Aluísio Azevedo

VIDA LITERÁRIA

I

A Giovani

(Particular)

 

Querido desconhecido. - A tua carta é a primeira carta anônima que respondo, das muitíssimas que até hoje tenho recebido. E a razão disso está simplesmente no modo asseado por que me falas. Deitaste um pequenino dominó de seda, mas mo descalçaste as meias e não arregaçaste as mangas da camisa.

Para dizer tudo - creio até que em ti percebi uma banda de luva amarrotada na mão esquerda.

Entra, pois, assenta-te, toma um charuto, e conversemos. Não precisas tirar a máscara; pediste que te não procurasse reconhecer, e eu, apesar de minha curiosidade, estou resolvido a fazer-te a vontade.

Antes de entrarmos no assunto verdadeiro de tua carta, convém declarar-te uma cousa: - Estou reconhecido pelas palavras lisonjeiras que me dedicas e mais ainda pelo interesse que mostras pelas minhas produções.

Nada é tão agradável para quem escreve, como saber que seus escritos preocupam de qualquer forma a atenção de quem quer que seja.

Ofereceste-me obsequiosamente para anotar o meu romance O Mulato e eu aceito e agradeço o oferecimento, sentindo apenas não possuir um exemplar para pô-lo à tua disposição.

Hoje é muito difícil encontrar um volume d'O Mulato.

Quanto ao que dizes a respeito das Memórias do condenado, pesa-me confessar-te uma cousa: - Tu tomaste muito a sério essa obra.

Que não nos ouçam os leitores do rodapé, mas impõe-me a franqueza declarar-te que as Memórias, enquanto não aparecerem em volume, não merecerão desvelos de ninguém.

Romance de au jour le jour, escrito para acudir às exigências de uma folha diária, está, como facilmente se pode julgar, eivado de erros e descuidos, que só na revisão para o volume poderão desaparecer.

Além disso, os erros tipográficos são tantos e tão constantes, que constituem uma verdadeira calamidade. Ainda no último folhetim, eu escrevi - belos brilhantes, e os tipógrafos disseram - velhos brilhantes; em outro lugar falo de pedras limpas, e eles emendaram para límpidas. Isto sem querer citar as repetidas transposições que alteram completamente o sentido do que está escrito; as palavras incompletas, os saltos e mil outros inimigos do estilo e da boa lógica gramatical.

Entretanto, manda-me as tuas notas - elas me poderão ser de grande utilidade. Quando fores razoável, seguirei o teu conselho e quando não fores não seguirei; em todo caso nada perderemos com isso.

Mas vejamos as tuas três primeiras emendas:

1.o) Queima como pus.

Se bem que isto não seja unia frase completamente verdadeira, tem todavia algum fundo de verdade. Há certo pus venenoso, que possui propriedades de cáustico, e queima a epiderme. Podes facilmente verificar esse fato nas feridas venéreas. Contudo não disputo a frase, porque não reconheço nela valor algum.

2.o) O abuso das frases - Que diabo! com os diabos! etc., etc.

Não me pareces nisso muito razoável, mas enfim pode ser que tenhas razão.

3.o) Pedes a supressão de certo adjetivo, porque ele pode lembrar desgostos a uma senhora, que ambos nós respeitamos.

Quanto a isso, só me resta declarar-te uma cousa: - Para poupar um desgosto a uma senhora de minha estima, eu seria capaz de sacrificar um dedo, quanto mais um adjetivo.

Creio que te fiz a vontade; espero por conseguinte que sejas mais severo nas tuas notas. Vê se dizes alguma cousa sobre a concepção artística de meus trabalhos.

Pena é que as Memórias estejam a expirar.

E com esta - adeus, fico-te obrigado e à espera de mais.

ALUÍZIO AZEVEDO

Gazetinha, Rio,

 

 

II

Colaboração

 

Há uma cousa verdadeiramente horrorosa para todo o desgraçado em cujos dedos a triste sorte enfiou uma pena, ainda mesmo quando essa pena seja tão desatilada e tão romba como a minha - é a obrigação de concorrer com algum produto de sua lavra sempre que os amigos se lembram de realizar qualquer empresa ou empreender qualquer negócio.

Essa pequenina obrigação, que vista isoladamente não tem o mínimo valor, transforma-se todavia em um compromisso grave, em um martírio implacável, desde que ela representa a promessa de vinte, trinta, cem, mil artigos, destinados aos fins mais diversos e mais desencontrados.

E a graça é que não se pode a gente recusar a nenhum dos amigos, porque todos eles querem muito pouco: "Duas palavrinhas! Apenas duas palavrinhas, com o nosso nome por baixo!..." Ou então querem uma simples carta, uma simples notícia, um ligeiro pensamento, uma frase, um verso, uma palavra.

Este deseja que lhe escrevamos um anúncio de gosto, com que ele possa chamar a atenção do público sobre os seus queijos ou sobre os seus chapéus de pêlo: aquele quer apenas que lhe façamos uma boa resposta a uma certa carta que lhe enviou certa e determinada pessoa; estoutro não exige de nós senão uma página no seu álbum; aqueloutro contenta-se com um discurso que ele tem de pronunciar por ocasião do aniversário natalício de seu sócio; aqui é uma reclamaçãozinha pela imprensa a respeito dos escândalos que se dão em tal rua; ali uma introdução para o livro de um amigo e colega que vai estrear; mais adiante um artiguinho para encher o número do jornal, que nesse dia está fraco. Hoje - a poliantéia do senhor fulano; amanhã - o número especial da folha do Dr. Beltrano; depois - folhetim sobre os trabalhos de cicrano, rodapé pr'a cá, artigo de fundo p'ra lá, crônica para acolá.

Uf! É um nunca terminar de pequeninas maçadas que, reunidas são o bastante para nos amargurar a existência.

Chega-se a perder o gosto de sair de casa, de procurar os amigos de fazer a sua palestra; porque a cada passo surge-nos um dos tais credores de artiguinhos e pensamentos filosóficos.

"Então, fulano, aquilo!..."

"Aposto que ainda não fizeste o que te pedi!..."

"Trouxeste o artigo que prometeste?... "

"Quando estarás disposto a dar um passeio pelas nossas colunas?..."

"Queres ou não queres aprontar a correspondência?..."

E cada um, por que pede muito pouco, entende que não merecemos ser desculpados pela demora.

- Oh! Duas linhas! Duas linhas escrevem-se em três minutos!

- Mas filho! é que me falta a idéia! Estou seco, não sei o que te escreva!

- Qualquer cousa, homem!

- Enche aí duas tiras. Seja o que for.

- Seja o que for?... Pois bem, ora espera! Vais ver como te ensino!

Rio, 24 de dezembro de 1883

 

III

Um fruto da época

Ontem, quando saí do trabalho, para ir tomar o aperitivo do costume antes do jantar, dou com o nosso querido escritor, o Ernesto Branco, que eu não via há muito tempo.

- Olá! exclamei. Bons ares te restituam à rua do Ouvidor. Como vai isso, poeta? Que tens feito? Qual é agora o teu livro? Qual é o teu novo amor?

Ernesto respondeu-me a tudo isso com um gesto seco, acompanhado de um triste sorriso, que até então nunca lhe vira nos lábios.

E notei que a sua inteligente fisionomia perdera a primitiva expressão de alegre coragem, e parecia agora fechada sobre um surdo desgosto, desses que nos acabrunham, não pela violência da dor, mas pela pungente convicção de que não há esperança de remédio para eles.

- Que tens? perguntei-lhe, encarando-o. Parece-me doente.

- Tédio, murmurou o meu amigo, fechando por um instante os olhos e levando lentamente o charuto à boca.

- Tomaste já o teu vermouth?

- Já não tomo vermouth

- Tomarás hoje. Vem daí.

Subimos até ao largo de S. Francisco e fomos ter àquela confeitaria onde há um viveiro de passarinhos.

Uma vez instalados ao canto mais sombrio do botequim, disse-nos Ernesto enquanto o servente esperava as nossas ordens:

- Não bebas vermouth francês. Li numa revista médica muito séria, que essa detestável bebida é de todos os veículos alcoólicos o mais rápido para chegar à morte ou ao delirium tremens. Depois dele é que está classificado o ilustre absinto, e em terceiro lugar o piperment.

- Pois tomemos uma passagem de segunda classe. Garção, dois absintos!

- Com goma?

- Não! com água e gelo. Para que adoçar os meios de morte?...

E, voltando-me de todo para o meu amigo, atirei-lhe misteriosamente a nova pergunta a respeito do que ele fazia nesse momento. Era impossível que Ernesto, o fecundo trabalhador das letras brasileiras, não tivesse em mão um novo livro. Quem sabe mesmo se não seria o excesso de trabalho o que lhe dera ao semblante aquele ar de fadiga e aborrecimento ?... Escrever com arte é cousa tão penosa e acabrunhante!... E eu sabia perfeitamente que Ernesto era desses artistas que, quanto mais produzem, melhor e mais acabado querem produzir; desses que, ao terminar uma obra, pensam logo em principiar outra, porque aquela lhes parece ainda incompleta e falhada. Qual seria, pois, a minha desilusão, qual seria o meu desgosto, notando que Ernesto, em vez de responder ao sincero interesse da minha pergunta de admirador e de amigo, deixara pender a cabeça e olhava vagamente para o seu copo?

- Então?! insisti. E' segredo?! Fala-me do teu novo livro! Dize-me o que estás escrevendo agora...

- Nada...

- Nada ?! Ora essa! Por quê?

- Não vale a pena!

- Ó injusto! Ó ingrato! Pois tu, o único homem de letras que ultimamente no Brasil tem ganho dinheiro... tu, que tens leitores certos; que tens editores para tudo o que escreves; tu, ó felizardo! tens a coragem de falar desse modo.... Vai para o diabo que te carregue! Não sei que queres tu então!

- Estás enganado... - replicou-me Ernesto sem se alterar. Estás muito enganado a meu respeito. Eu tinha com efeito três leitores, mas um abandonou-me para entregar de corpo e alma ao jogo da bolsa e agora só pensa em salvar-se do naufrágio em que o lançaram; o outro deixou-me pela política e, perseguido pelo governo atual, só pensa em salvar da fome a mulher e os filhos e em livrar do cutelo da legalidade a própria cabeça ameaçada. Bem vês que quem tem a pensar em cousas tão preciosas - o dinheiro e a vida, - não se pode dar ao luxo de ler os meus livros.

- E o terceiro?

- Ah! com o terceiro não conto; não contei nunca para pôr o livro no prelo ou a panela no fogo.

O terceiro é o meu colega, é o literato, é o jornalista, é o crítico; é o leitor que foi muito meu amigo enquanto as minhas obras nada rendiam, e que começou a dar-me bordoada de cego, desde que a cousa cheirou a sucesso de livraria.

Não o amaldiçoa; devo-lhe talvez mesmo a coragem triunfante com que trabalhei durante de anos; devo-lhe a convicção do meu valor e da minha energia, agora apagados; devo-lhe o cuidado crescente com que fui caprichando mais e mais toda a nova obra que eu produzia; mas não estou disposto a escrever só para ele, por uma razão muito simples, porque esse leitor não paga!

- Não! bradei eu com uru murro na mesa. Não tens razão. Ou te esvaziaste o teu saco, meu rapaz, ou foste invadido pela preguiça! Os teus paradoxos são desculpas de cabo de esquadra! Dize-me que te esgotaste, e nada protestarei, mas...

- Não! Creio que não me esgotei, porque preciso empregar verdadeira violência para não continuar a escrever. Mas trabalhar para quê? por quê? para quem? em que língua? Nesta que falamos? Mas isso é escrever para a família; isto é o mesmo que falar para dentro de um garrafão vazio? E' ridículo escrever na língua portuguesa!

- Uma bela língua!

- Qual história! Uma língua incompleta e dificílima; uma língua sem prestígio, sem utilidade, sem vocabulário técnico para a ciência e para as cousas da vida moderna; unia língua que nem sequer tem ortografia, porque não tem ainda um dicionário definitivo; uma língua tão mesquinha, que não tem palavras de tratamento. - O homem é senhor, a mulher é senhoira, e acabou-se! Demoiselle, Miss, Senhorita não têm tradução em português. Uma língua em que é preciso errar, quando se não quer ser afetado na linguagem, porque não se há de fazer os personagens tratarem-se por vós, quando o que se usa é você. Você é gíria, é uma asneira que não existe autorizada por língua nenhuma do mundo!

- Você é a corrupção de Vossa Mercê.

- Não é tal! Vossa Mercê é um tratamento respeitoso, e eu não posso perguntar a urna senhora a quem falo pela primeira vez: "Você como vai?" o Usted espanhol, sim, é que pode ser usado e corresponde em respeito e legalidade ao desusado e inútil Vossa Mercê da língua portuguesa.

- Não! Pode-se perfeitamente falar ou escrever a boa língua portuguesa sem errar.

- Sem afetação clássica é impossível. Diz-me a gramática que o imperativo consta de "Faze tu; fazei vós; e eu digo todos os dias ao meu criado: "Faça isto: faça aquilo". Um horror! Pois eu posso lá continuar a escrever em semelhante língua?... Maldita a hora em que nô-la impingiram os donos dela, A língua portuguesa foi um presente grego!

- Ninguém pode negar que é um idioma elegante...

- Elegante e limpo: A barba que se usa por debaixo do queixo chama-se "Passa-piolho". A nostalgia da pátria chama-se "Morrinha galega".

O Antônio Castilho para dizer numa página que, no lugar descrito por ele, havia grande número de raparigas, exprimiu-se assim: "havia moçame à tripa forra"... Que elegância! Que distinção!

- Não concordo contigo.

- Pois não concordes. Ainda não há muito tempo, o Azeredo Coutinho, fazendo a tradução de uma comédia francesa, viu-se em sérios embaraços, para dizer em português um diálogo travado entre dois personagens de sexo diferente, porque os dois não deviam, nem podiam tratar--se por tu, mas também não deviam tratar-se por senhor, que é tratamento muito cerimonioso; e como não existe ou não se usa em português o tratamento de vós, o nobre tradutor, para não abandonar a sua obra, teve de fazer, sabes o teve de dar um título a cada um dos dois personagens, a mulher fez baronesa, e ao homem conde, para que eles pudessem conversar do seguinte modo, sem se tratarem por tu, nem por senhor: "A Baronesa é cruel", "Não diga isso, Conde", "A Baronesa não quer ouvir-me, mas eu hei de fazer-me ouvir pela Baronesa...", "Oh, o Conde não tem razão, mas eu perdôo o Conde". Delicioso! Mas ainda assim, prefiro que os senhores tradutores vão imitando Portugal na farta distribuição de títulos, ruas não imitem os atuais escritores portugueses que, apertados como o Azeredo na dificuldade do tratamento, recorreram ao passivo si, fazendo-o concordar com a pessoa com quem se fala; de sorte que, escritas por esses mestres aquelas frases citadas, ficariam assim: "A Baronesa não quer ouvir-me, ruas eu hei de fazer-me ouvir por si", "O Conde não tem razão, mas eu perdôo a si". Ah, bandidos! E queres tu, meu amigo, que eu escreva em semelhante língua, e para semelhante público de imbecis?!... Não! antes uma boa morte!

E Ernesto, com a resolução de um suicida, gritou para o moço do botequim:

- Garçon! traz um expresso de segunda ordem, bem carregado, bem forte, bem rápido, que me atire o mais depressa possível ao outro inundo! Ao menos lá hei de falar alguma língua que não seja a do padre Sena Freitas!

O Combate, 5 de março de 1892.

 

IV

Gasparoni

 

Ora, até que afinal apareceu um livro de literatura amena. E' o primeiro que surge depois que O Combate existe.

 

CONTOS DE UM DILETTANTI

por Alexandre Gasparoni

Seja benvindo!

O autor é um bom rapaz, simpático e honesto; inteligente e trabalhador, que, em vez de dar as suas horas de descanso à pândega ou à preguiça, entendeu de aproveitá-las escrevendo contos para diversas folhas; e agora, depois de reuni-las em volume, oferece-os ao público.

Como declara logo no prólogo, o Sr. Gasparoni não tem pretensões artísticas e não tem filiação literária. Faz contos, como o Sr. Taunay faz música e como o espirituoso escritor França Júnior fazia pintura, por gosto, para matar o tempo e divertir os amigos.

Nada mais natural e mais de direito. Eu, porém, é que não vou com semelhante sistema. A arte é cousa muito séria e respeitável para ser cultivada assim, nas horas vagas, descansando de outros trabalhos.

A vida inteira de um artista é muito pouco ainda para a sua obra. Na arte, seja literatura, música, pintura ou estatuária, não há meios termos - ou é arte ou não é arte!

Se é arte pertence ao público, pertence à nação, pertence ao mundo, se não é arte pertence ao dono ou dona da prenda, e não deve sair de casa do autor; deve ficar na sala de visitas, sobre os consolos, entre os bibelots e os bordados da família.

Se é arte, pertence à crítica que a julgará, sem nunca tirar nem pôr do seu merecimento. Forte, ela atravessará os séculos, marcando eternamente na história a época em que veio ao mundo; fraca, morrerá logo ao nascer, desconhecida de todos e esquecida até pelo próprio autor.

A arte é honesta e só se entrega a quem a ama mediante rigoroso casamento. Não quer amantes passageiros. É egoísta e cruel: não admite que o seu idólatra volva uni só momento os olhos para outro ideal; quer que ele se dê todo inteiro, todo de corpo, todo de alma; quer beber-lhe a existência, gota a gota, instante a instante, até deixá-lo totalmente vazio, seco, inutilizado para todas as outras aspirações da vida.

O artista não vive: o artista trabalha. O artista não descansa: o artista pensa. Deitado, passeando, comendo, enquanto as mãos deixaram o pincel, ou o escopro ou a pena, o pensamento continua a executar a obra interrompida.

Dormindo, ele trabalha ainda. Não é raro vê-lo levantar-se ao meio da noite, no meio do sono, e, esquecido da mulher que tem ao lado na cama, ir, como um sonâmbulo, acender a vela e correr ao seu quadro, ou à sua estátua, ou ao seu poema, para modificar uma linha ou corrigir uma frase.

A obra concebida nestas condições, o filho legítimo dessa união indissolúvel do artista com n sua arte estremecida, não pede desculpas quando aparece, nem aparece ao público enquanto não se sente capaz de impor a sua passagem.

A arte nunca deve pedir; deve sempre surgir de pé, armada e pronta, altiva, superior, e seguir tranqüilamente o seu destino, sem olhar para trás, nem para os lados, nem para o chão.

Como, por conseguinte, aceitar, no prólogo de um livro de contos, esta confissão do autor: "Sou apenas um dilettanti" o que quer dizer: "não sou um artista; não sou um escritor"?

Mas, valha-me Deus! se não é escritor, não escreva! Se não é pintor, não pinte! Se não é flautista, para que se mete a tocar flauta fora de casa, em concertos públicos?

Isto faz-me lembrar certos quadros que às vezes se expõem por aí com esta declaração por baixo: "O autor não aprendeu desenho!"

Como se fosse preciso semelhante declaração, quando o quadro aí está para não deixar dúvidas a esse respeito.

E, no entanto, a declaração mais necessária não a faz o autor, explicando por que diabo é que ele pinta e expõe quadros, tendo consciência de que não está habilitado para isso.

Mas o Sr. Gasparoni, apesar de pregar por debaixo do seu quadro um letreiro em que declara não passar de simples dilettanti despretensioso e sem preocupação de escolas literárias, diz-nos também que, para escrever, se inspirou "na encantadora simplicidade de linguagem destes três mestres da literatura francesa: Alfonse Daudet, Guy de Maupassant e Paul Bourget".

E' caso para dizer: Bem lembrado! Unicamente convém notar que a chamada simplicidade desses três escritores parisienses, que nada têm de comum com as nossas letras, é resultado de muita arte, de muito esforço e de longos anos de trabalho e de estudo.

Qualquer desses três artistas para alcançar essa bela simplicidade sedutora, de que fala o Sr. Gasparoni, deu em troca, durante uma vida de calceta, tudo o que de melhor possuíam: a sua força cerebral e a sua força física. Daudet está moribundo em conseqüência de esgotamento nervoso, e Maupassant está perdido e louco para sempre; de Bourget nada me consta por enquanto, mas não dou muito pela integridade dos seus músculos e dos seus nervos.

Tome cuidado o Sr. Gasparoni e mude de mestres enquanto é tempo! Além de que, não há necessidade de pedir esmolas à literatura francesa, tendo a quem recorrer na própria, e até aqui mesmo, em nossa querida pátria. Volva o Sr. Gasparoni as vistas para Machado de Assis, para Lúcio de Mendonça, para Raul Pompéia, para Artur Azevedo e para os nossos outros bons narradores de contos e me dirá se o engano!

E é isso principalmente o que não perdôo ao estimável autor dos Contos de um dilettanti, é a sua pretensão de ser discípulo daqueles três escritores franceses. Não perdôo, porque além de tudo, não é verdade. O seu livro, onde figuram mulatinhas parafinas, das que gostam de ser beliscadas na festa da Glória, e de primos Jojocas, nenhum parentesco tem com a doentia, preciosa e amorfinada literatura parisiense; o seu livro é um netinho franzino dos nossos velhos e engraçados escritores; descendo do Pena, do Mace do, do França Júnior, e um pouco também do diletantismo alegre e burguês de Ferreira de Araújo.

Que isso que fica dito não seja traduzido por má vontade contra o autor; que sirva antes para lhe chamar o apetite de trabalhar forte e rijo nas letras, porque no seu livro há revelações de bons qualidades, que, uma vez cultivadas a sério, podem desabrochar em trabalho de arte.

Será com o maior prazer que um belo dia, falando de Alexandre Gasparoni, em vez de "Bom rapaz", tenha eu que dizer "Bom escritor".

O comércio e a bolsa perderão um dos seus agentes mais esperançosos, mas as letras pátrias rejubilarão de gozo.

O Combate, 12 de março de 1892.

 

V

Do vendeiro ao poeta

I

Meu Deus! como o Rio de Janeiro ainda está longe de ser uma cidade artística e principalmente um centro literário.

Nas grandes capitais do velho mundo civilizado a primeira camada social é formada pelos homens de espírito, pelos sábios, pelos homens de letras, pelos artistas de talento, pelos investigadores e reformadores científicos, pelos exploradores notáveis; depois seguem-se os políticos em evidência, os estadistas de pulso e os militares distintos pelo saber profissional, pela honra e pela coragem; depois os grandes funcionários jurídicos; depois os homens da alta indústria, os que movem grandes massas de operários; depois os banqueiros milionários; depois os grandes agricultores; depois vêm os artistas auxiliares, os cortesãos de merecimento, os reprodutores dos quadros vitoriosos, os propagadores da ciência e das letras, os peritos executores da boa música, os cantores, os gravadores, os tipógrafos, os atores de gênero ligeiro; enfim, todo esse mundo de habilidosos, que são incapazes de criar, mas que servem de veículo à grande obra dos artistas criadores; e afinal, em último plano, chega a vez dos mercadores, isto é, daqueles que, por falta de talento para conceber e por falta de técnica para executar ou reproduzir qualquer trabalho científico ou artístico, limitam-se a servir de intermediários entre a ciência, a arte e a indústria e entre o público que o consome.

Esta última camada social constitui o comércio, em grosso e a retalho. Na Inglaterra, na Alemanha, na Itália, e na Rússia, as portas da boa sociedade lhe são vedadas escrupulosamente.

A França, depois que se democratizou, limita-se a empurrá-la para o fim da ordem social, e, se lhe não fecha as portas da alta sociedade, faz pior: despreza-a, trata-a com desdém e até com repugnância.

Em França, hoje essa classe só serve para fornecer sogros ricos e noivas com bom dote.

É que a França vê no comerciante o homem que nada produz e mais lucra; o homem que vive exclusivamente para a ganância e para a especulação.

E o negociante, com efeito, ao mesmo tempo que é o intermediário entre o produtor e o consumidor, é o feroz parasita do homem de ciência, do homem de letras, do artista e do inventor industrial.

Estes quase sempre acabam pobres, e o negociante acaba rico, rico e são, porque durante toda a sua vida de lucros nunca fez o menor esforço intelectual e por conseguinte nunca se gastou nervosamente. Em toda a extensa classe social o negociante é o único que não trabalha.

A sociedade dá-lhe o direito de viver sem produzir, comprando por dois para vender por dois e meio; mas o negociante abusa sempre desse direito, comprando por dois e vendendo por quatro quando não vende por seis ou por oito. A consciência do comércio e muito elástica quando se trata de negócios, porque faz parte dos principais requisitos do seu ofício enganar o comprador. E tanto assim é, que eles inventaram para uso prático, provérbios da ordem filosófica deste: "Amigos, amigos - negócios à parte".

Efetivamente, entre os negociantes não se respeita a amizade, nem se observam certos deveres de consciência quando se trata de vender. Uma vez recebi de certa família do interior, a quem devo obrigações, o pedido de comprar aqui uma dúzia de certos lenços especiais de cambraia de linho que então estavam em grande moda e custavam bastante caro.

Como não entendo de fazendas e não queria servir mal a quem me fez a encomenda, dirigi-me a certo dono de armarinho, que eu conhecia de muito tempo e a quem tinha na conta de homem sério.

- Não podias cair melhor! disse-me ele, quando lhe expus o que me levava à sua casa. Não encontrarias em outra parte fazenda como a que tenho no gênero que precisas. É o que há de melhor, vais ver!

- Não preciso ver, porque, já disse, não entendo da matéria. Uma vez me afianças que tens o que procuro, é quanto basta.

Ele embrulhou os lenços, paguei e saí.

Daí a alguns passos encontro outro negociante meu amigo.

Paramos a conversar um instante e contei-lhe a compra que fizera, dizendo que supunha aviar bem a encomenda recebida.

Ele pediu para ver os lenços, observou-os um instante e segredou-me:

- Foste enganado... Isto não é cambraia de linho. Se queres servir bem a família que te encomendou os lenços, não lhe mandes estes, vai à casa do Leite (e ensinou-me onde era) que é o único no mercado que possui hoje dessa fazenda. E tive de ir eu de novo comprar os lenços, pagando também quanto paguei pelos primeiros.

E agora digam-me com franqueza: Fui ou não fui roubado?

E se com efeito fui; se o dono do primeiro armarinho é um tratante, porque motivo hei de eu tratá-lo com mais consideração do que aos outros gatunos, menos velhacos e que mais se expõem, desses que roubam um queijo à porta de uma venda?...

Esses ao menos são mais sinceros e arriscam a dormir na cadeia.

Os negociantes, em geral, são como o amigo que me vendeu os lenços falsos; unicamente, eles lá na sua alta filosofia comercial entendem que não praticam ato desonesto quando nos impingem gato por lebre.

Concordo que assim vivam; concordo que enganem o freguês sempre que possam; concordo que enriqueçam, sem jamais produzir, concordo que o livreiro seja rico e que o autor que mais o enriqueceu morra de fome; concordo que o empresário de teatro tenha milhões, enquanto os artistas que trabalham para ele, escrevendo comédias, representando os papéis, fazendo música, pintando cenografia, não tenham onde cair mortos; concordo que o especulador engorde e que o produtor entisique e estoure de esgotamento nervoso a força de trabalhar; mas com um milhão de raios! não queiram que o parasita ignorante e sem escrúpulo venha colocar-se ao lado do artista de talento, do escritor de espírito, do homem de ciência ou do soldado de honra.

Dois proveitos não cabem no mesmo saco! As cocotes não sofrem as provocações da mulher honesta, mas também não gozam das regalias que esta goza!

Pois bem: para se calcular com justiça do nosso estado de civilização e cultivo intelectual, basta lembrar-nos de que aqui a escala social acha-se rigorosamente invertida.

Aqui, a primeira camada é feita pela classe comercial, e a última pelos homens de espírito.

Rompe a marcha na ordem social, em primeiro plano, o glorioso e brutal comendador, o vendeiro com o seu ventre de monstro, a sua indecorosa fortuna e a sua obscena estupidez.

E quando precisamos alugar ~a casa, diz-nos o proprietário:

- Não alugo sem carta de fiança de vendeiro ou negociante matriculado.

Não! Definitivamente o Brasil poderá ser um país civilizado, enquanto a grande revolução, a verdadeira, a única, não o tomar pelas duas extremidades e sacudi-lo violentamente, até deslocar todas as camadas sociais e obriga-las a tomar o lugar que lhes compete.

Antes disso, não passará esta terra de um grande porto comercial, onde os estrangeiros aventurosos vêm procurar fortuna rápida.

O Combate, 6 de março de 1892.

 

II

 

Começo a convencer-me de que esta seção não tem razão de ser e não devia existir, porque infelizmente a vida literária de hoje no Brasil é uma cousa tão hipotética como a vida elegante na costa d'África.

Dantes surgia ainda um livro de vez em quando; vinha à tona, de longe em longe, um volume de versos ou de contos; mas agora, valha-me Deus! não aparece com que dar à gente uma hora de regalo ao apetite de letras pátrias.

E no entanto, o que dantes inspirava versos aos poetas, e o que dantes fornecia aos romancistas capítulos de enredo ou páginas de observação, continua por aí afora, inalteravelmente, enchendo a vida de cousas bonitas, de cousas tristes e de cousas heróicas.

O amor, o grande manancial onde os líricos e os românticos abeberaram por longos séculos as suas musas, não nos consta que fosse também deposto, antes pelo contrário parece que se tem desenvolvido ultimamente e que hoje é o único que não morre de fome no Brasil.

Eva continua, como Jesus Cristo, a atravessar as gerações de braços abertos, à espera dos aflitos que precisam de consolo e que se queiram abrigar na religião da ternura e do carinho. As flores, ao que me consta, nada perderam da integridade do seu perfume primitivo e as rosas continuam a ser belas e os lírios a ser cândidos que faz gosto. Os lagos e os vales, afogados de verdura, perseveram em ter-se misteriosos e as brisas não deixaram ainda de ciciar depois que o Sr. Floriano tomou conta da República.

Segundo as minhas observações, o azul do céu não desbotou e está novinho em folha como saísse da fábrica; as estrelas são inalteravelmente as mesmas; e eu seria capaz de apostar que os sabiás cantam tal qual como no bom tempo de Gonçalves Das, e que as roas não são menos legítimas e gemebundas que as do falecido Casimiro de Abreu.

Por que pois acabaram-se os poetas? Se há azul de céu, se há crepúsculos, e há lua, como pois não há versos?

Como diabo não há versos e poetas, havendo tudo aquilo e, o que é mais, o soberbo e inestimável elemento da fome, da fome e da miséria?

Os senhores sabem quanto vale a fome para os poetas!...

Não sei que mais desejam, os exigentes!

Boa lua, mágoas de primeira ordem, estrelas a discrição, um ditador sanguinário no poder, que é uma tetéia; mulheres que só desejam ser cantadas e decantadas; lágrimas e luto por toda a parte, do que se pode desejar de melhor; uma ótima peste desoladora, um belo sol de rachar, uma falta absoluta de residências, e, por cima de tudo isso, que já é muito, a carne seca a 1$200 o quilo!

Pois mesmo assim, com todas essas vantagens, incrível! os senhores poetas conservam-se na moita e - nem pio! nem um verso!

Os romancistas e os contistas e novelistas, pelo eu lado, também não sei do que se possam queixar. Já não há Portelas para desviá-los do trabalho literário; o governo da legalidade fornece-lhes por dia assassinatos e tenebrosas perseguições, que dão para uma enfiada de volumes; os conspiradores esfervilham de todos os lados; há no ar gritos de agonia e fartum de sangue; rosna-se a respeito de fuzilamentos e cabeças cortadas e assaltos a mão armada; um tesouro!

E os romancistas - moita!

Pelo teatro a mesma cousa: as revoluções sucedem-se; os chefes políticos lutam como atletas; os estados transformam-se em campos de batalha; a peste e a fome, de mãos dadas, invadem a casa do pobre e promovem cenas de grande sensação. E, no entanto, não aparece um dramazinho, uma tragédia, e nem sequer uma comédia em um ato, apesar de que o elemento cômico não abunda menos que o dramático, se dermos crédito ao vizinho da Vida fluminense que conhece muita gente engraçada e capaz de provocar as maiores pilhérias e as mais largas gargalhadas.

Os Melos, por exemplo! Como aqueles dois gaiatos irmãos estão a pedir por amor de Deus que os ponham em cena, de cócoras, um defronte do outro, a torcerem-se de patriotismo! E que belo efeito não faria o Floriano de guarda ao tesouro, como o descreveu Pierrot, de espingarda ao ombro e vela de sebo ao lado? E o batalhão patriótico a gingar na frente da música? E a manifestação popular, obrigada a balõezinhos chineses e descompostura às folhas da oposição?

Oh! definitivamente, não vejo razões para não haver comédias, dramas, romances e poemas!

Se os Srs. literatos não aproveitarem esta boa ocasião, se não aproveitarem enquanto Brás é tesoureiro do Estado do Rio de Janeiro, nunca mais pilharão outra tão boa.

E é pena, porque o momento histórico que atravessamos, devia passar à história, cantado em prosa e verso, para gozo e regalo dos futuros brasileiros.

Um Floriano não se bispa duas vezes no mesmo século!

Vamos, coragem, meus senhores! mãos à obra, que a literatura brasileira precisa, para a sua glória, de ter também, como a literatura italiana, o seu Bertoldinho e o seu Cacasseno.

Vá o país à garra, mas salvem-se as letras, com um milhão de raios!

O Combate, 10 de março de 1892.

 

VI

Literatura nacional

I

Agora, sempre que por aí se fala de literatura nacional, diz-se que ultimamente há grande desfalecimento entre os escritores brasileiros e que diminui o numero de volumes publicados, e que só se escreve sobre finanças e sobre política.

É exato. Mas a culpa não é dos escritores; é das dificuldades que se apresentam hoje em dia para realizar a publicação de qualquer trabalho. A falecida baronesa de Mamanguape levou os seus timos anos de vida a publicar; na casa Pinheiro, um volume de versos, que nunca veio à luz e lhe abreviou naturalmente os dias de existência.

Aluízio Azevedo, tem há quase ano e meio, um volume de contos a publicar-se na casa Mont'Alverne, hoje Companhia Editora; e, apesar de haver pago adiantado a primeira folha de composição, ainda não teve o prazer de ver uma página impressa do seu livro; outros e outros homens de letras queixam-se de iguais contrariedades, e não é natural que alguém se disponha a escrever com boa vontade, tendo uma obra encalhada no prelo.

Repetimos: a culpa não é de quem escreve; a culpa é dos que imprimem. Hoje, no Rio de Janeiro, dar um livro à publicidade é quase tão difícil como viver, ou talvez mais ainda, se atendermos ao que por aí vai pelas tipografias e casas editoras.

É que no Rio de Janeiro atualmente, ninguém quer trabalhar. A febre do jogo, criada desde o ministério Ouro-Preto e desenvolvida depois pela revolução, o desespero de enriquecer forte e rapidamente, o desalento causado pelos graves prejuízos trazidos pelo descalabro de companhias, que eram a grande esperança dos ambiciosos; tudo isso transformou a maior parte da população fluminense num infernal bando de jogatineiros decavés, doidos perdidos, furiosos, desanimados, sem vintém e sem ânimo para o mais insignificante trabalho honesto.

Vai-se a uma tipografia para imprimir uma obra. Aparece-nos o dono da casa, triste, desorientado, pensando nas suas tantas mil ações sem valor, e ouve-nos distraidamente, sem conseguir ligar importância ao trabalho que lhe encomendamos; e, quando lá voltamos, o homem já nem se lembra do que lhe dissemos a primeira vez.

Mas, se apesar de tudo, a encomenda fica feita, por um preço paradoxal, e tornamos lá para ver as provas, ai! que triste espetáculo nos espera! Cada tipógrafo é também uma vítima da bolsa; cada tipógrafo tem em casa, inúteis como um baralho de bilhetes brancos de loteria, unia infinidade de títulos de companhias arrebentadas.

E, macambúzio, dedos enterrados no cabelo, cotovelos fincados na caixa de composição, cada desgraçado desses olha sonambulamente para os tipos empastelados, mortos, emudecidos e cobertos de pó, e não encontra em si coragem para compor um paquet.

Compor! Trabalhar! Para quê?... Para receber uma soldada que, com os preços atuais do pão, mal chega para não morrer de fome?... Ganhar 5$000 por dia, quando, se não rebentasse tal companhia ou banco tal, deveríamos empolgar 300 ou 400 contos?... Não! definitivamente não há valor de homem capaz de ir até lá!

E o tipógrafo, convencido de que não vale a pena trabalhar tão resignadamente para ganhar tão pouco, faz como a maior parte dos operários, toma o chapéu, despede-se da casa em que está empregado, e sai de cabeça baixa e o coração encharcado de desalento; vai pedir dinheiro emprestado a um amigo, ou empenhar alguma joiazinha da mulher, para correr à roleta, que nada mais e do que a caricatura da bolsa; a roleta a ultima esperança de lucro rápido; a roleta, donde o infeliz nunca mais voltará ao trabalho e à dignidade da vida, porque a engrenagem daquela máquina infernal jamais largou a presa que lhe caiu nos dentes!

E diz o dono da tipografia, quando o autor vai à vigésima vez, pelas provas do seu pobre livro:

- Vê, meu caro senhor?... Estou sem gente!... Os operários foram-se todos! Estou disposto a pagar o duplo do que pagava dantes, mas ninguém aparece! E se isto continua assim - fecho a porta!

E a verdade inteira é que este dono de tipografia está morrendo por fazer como fez o tipógrafo: correr à roleta! Correr à tavolagem!

E lá, em volta dos malditos trinta e oito números, de 0O a 36, ou à música implacável do Trente et quarente irá ele encontrar como em uma praia de desilusão todos esses náufragos da megalomania, arrojadas à casa do jogo pelas ondas do oceano da bolsa.

Todos lá vão ter, desde o assombroso titular até o magro poeta, que interrompeu os estudos, para meter-se no ensilhamento. Banqueiros, doutores, funcionários públicos, artistas, caixeiros, todos, todos!

Triste e desconsoladora romaria que só tem uma fé - ganhar. Só tem uma esperança - levar a banca à glória.

Todos e tudo lá vão ter à praia da tavolagem. Sim, meus senhores, aqueles belos carros, aqueles cavalos de raça, aqueles diamantes, tudo isso rolará para sempre na areia e, com os tipos da composição e com as páginas, os poetas e prosadores.

O Combate, 2 de março de 1892.

 

II

Ontem encontrei de novo o meu querido romancista Ernesto Branco. Vinha ainda com o ar enfastiado e, ao ver-me, foi logo me passando o braço pela cintura e levando-me para a confeitaria dos pássaros.

- Estou furioso contigo! disse me ele, quando nos assentamos, e depois que o garçon se afastou para ir buscar uma garrafa de cerveja. - Furioso, mas o que se pode chamar "Furioso!".

- Por quê?

- Por causa do tal artigo de ontem Li a tua detestável Vida Literária! Aquilo não se faz! É uma infâmia!

- Mas o que fiz eu?

- Fizeste pilhéria com as letras!

- Ora!

- Ora não! Não admito que se brinque com a cousa mais séria que há no mundo! Não admito que se meta a ridículo a Literatura, a sagrada e imaculada arte de escrever! Sabes tu o que é um poeta pobre, meu amigo? sabes quanto é venerável essa criatura de sapatos rotos, que só vive da amarga desgraça de não ser imbecil ou medíocre, e que vai atravessando cinicamente e corajosamente a dantesca escala de todas as torturas e de todas as misérias, olhos fitos no ideal e pé calcado sobre a convenção burguesa e sobre as conveniências sociais?

Sabes tu o que é esse sombrio boêmio que a multidão acotovela e que os felizes desdenham e odeiam; esse negro espetro que tem a alma branca e palpitante como as estrelas da manhã? Esse, que entre toda essa magra canalha que luta inconscientemente para comer e respirar sobre a terra, é o único que sofre, porque é o único que tem inteira consciência da lama em que se arrasta, com as asas inutilizadas pelo lodo da miséria? esse é o poeta, e ao poeta tu ofendeste com as tuas abomináveis chufas de cabotin de imprensa! Queres fazer graça? Que diabo! imita o Pierrot ou o Clown; toma as marionetes do governo; enfileira-as defronte de ti, sobre a tua mesa de trabalho, e pinta-lhes bigodes; põe-lhes chifres; puxa-lhes pela língua até ao umbigo; rasga-lhes a boca até às orelhas; prega-lhes rabos de papel; dá-lhes piparotes no nariz; toma-as entre as palmas da mãe e boleia-as até reduzi-las a uma grande pílula; atira com esta ao ar, torna a apanha-la, torna a atira-la; deixa-a cair ao chão; levanta-a com ponta do pé; atira-lhe outro antes que ela torne a cair; mas, por amor de Deus, por amor de quem mais ames! não fales de carne seca, quando falares de poesia! não exijas versos aos poetas que dormem para não ver o que vai pela República! não peças gracejando obra literária, quando o nosso país geme apunhalado por um salteador político!

- Mas, por isso mesmo, respondi eu, esquentando-me também. Por isso mesmo que o Brasil chora de dor; por isso que o Brasil é traído, é saqueado, é reduzido a ruínas, é que os poetas deviam erguer-se cheios de indignação e arrancar das liras, ao menos para dar com elas na cabeça do governo! Tu mesmo, que estás aí a declamar a favor deles; porque não atiras agora ao público um livro patriótico, um grito de revolta que fizesse tremer o palácio de Itamarati e gelar nas veias o sangue desses assassinos que acabam de ensangüentar o Ceará?

- Eu? Por uma razão muito simples: porque o talento é como os títulos da bolsa - sobe e baixa conforme a procura.

O meu neste momento está muito por baixo. Ainda ontem quis principiar um trabalho: dispus o papel sobre a pasta, enchi o tinteiro, acendi um charuto, assentei-me corajosamente à mesa, molhei com energia a pena e... em vez de escrever, pus-me a pensar... E em que pensava eu? Pensava em uma carta do meu senhorio que nesse dia me comunicara amavelmente a sua generosa resolução de aumentar-me 5O$OOO no aluguel da casa; pensava na minha rnenagêre que me avisara na véspera que o dinheiro que eu lhe dou agora para as despesas diárias não chega, apesar de ser quase que o duplo do que lhe dava dantes; e pensei nos escandalosos preços que me cobrava agora o alfaiate, e pensei no chapeleiro, e no sapateiro; e, insensivelmente, fui pondo a pena de parte e levantando-me para ir assentar-me à janela, a contemplar o céu.

Fez-se noite e eu continuava a pensar em cousas alheias ao meu trabalho. Lembrei-me com mágoa de um amigo meu, tão bom rapaz, tão simpático e tão bem educado, o Garcia do Amorim, que na véspera tinha sido, como muitos outros, devorado pela maldita febre-amarela; lembrei-me de o ter visto quatro dias antes, bom e esperançoso, a falar-me de seus versos e de sua próxima viagem a Roma.

Fiquei triste com esta idéia, e pus-me então a cismar no estado e no destino desta pobre terra em que vegetamos, acabrunhados pela peste, pelo calor, pela infernal carestia da vida, ameaçados a todos os instantes pela guerra civil... Pobre República viúva! Pobre noiva a quem arrancaram o esposo ainda na lua-de-mel, para entregá-la à prostituição, para entregá-la à torpe sensualidade da maruja! Ah! maldito Floriano! maldita raça de traidores!

E de todos esses negros pensamentos ficou-me no espírito uma surda amargura, uma funda e dura tristeza, um vago desejo de desertar desta infeliz pátria, correndo à procura de um lugar onde se respire um ar menos assassino, onde a vida não seja tão amarga e tão tenebrosa, onde se não vejam cair tantas vítimas da peste e onde se não encontrem pelas praias cadáveres boiando misteriosamente. E uma dor imensa, terrível, sem esperanças de remédio, apoderou-se de mim e fez-me amaldiçoar a hora em que vim ao mundo. Imagina se trabalhei!

- E por que não aproveitaste a tua própria dor para fazer uma obra? Por que não fizeste da tua dor um poema?

- Porque era verdadeira demais para isso! Desconfia das lágrimas descritas em prosa e verso. A dor legítima é egoísta, é besta, é inútil, não serve senão para doer! A arte nasceu para cantar e não para chorar!

Ia replicar, metendo as botas no governo, mas o meu amigo cortou-me a palavra, segredando-me rapidamente:

- Caia-te! Esse sujeito que se assentou agora atrás de ti é um espião de polícia... Cuidado!

Embucbei.

O Combate, 11 de março de 1892.