Artur de Azevedo
A FILOSOFIA DO MENDES
Decididamente o Fulgêncio não nascera para cavalarias
altas: não havia rapaz de trinta anos mais tímido nem mais pacato
vivendo só, na sua casinha de solteiro, independente e feliz.
Aconteceu, porém, que um dia o Fulgêncio foi tão
provocado pelos bonitos olhos de uma senhora, que se sentara ao seu lado num
bondinho da Carris Urbanos, que se deixou arrastar numa aventura de amor.
Quando, depois da primeira entrevista, na casa dele, Bárbara
- ela chamava-se Bárbara - lhe confessou que era casada com um sujeito
chamado Mendes, o pobre rapaz, que a supunha solteira ou pelo menos viúva,
ficou horrorizado de si mesmo. Ficou horrorizado, mas era tarde: gostava dela,
e não teve forças para fugir-lhe.
As entrevistas amiudaram-se. Quando Bárbara não ia ter
pessoalmente com o Fulgêncio escrevia-lhe cartas inflamadas, e nenhuma
ficava sem resposta.
Essa imprudência teve mau resultado: um dia Bárbara Mendes
entrou em casa do amante acompanhada de duas malas, uma trouxa e um baú.
- Que é isto?
- Alegra-te! Meu marido, que é muito abelhudo, encontrou
debaixo do meu travesseiro a tua última carta e expulsou-me de casa.
- Hein?
- Foi melhor assim: agora sou tua, só tua, e por toda a
vida!... Não estás contente?
- Muito...
- Estou te achando assim a modo que...
- É a surpresa... a comoção... a alegria...
- Como vamos ser felizes! Mas olha, peço-te que não
te exponhas nestes primeiros tempos... O Mendes é ciumento e brutal e,
mesmo antes de ter certeza de que eu o enganava, andava armado de revólver!
O Fulgêncio, que não tinha sangue de herói,
viveu dali por diante em transes terríveis. Saía de casa o menos
possível, e nas ruas só andava de tilburi, recomendando aos cocheiros
que fossem depressa. Quando via ao longe um sujeito qualquer parecido com o
Mendes, punha-se a tremer que nem varas verdes.
Um dia, tendo descido de um tílburi no Largo da Carioca, para
comprar cigarros, encontrou na charutaria o Mendes, que comprava charutos. Ficou
de repente muito pálido e trêmulo e quis fugir, mas o outro agarrou-o
por um braço, dizendo-lhe com muita brandura:
- Faça favor... venha cá... não se assuste...
não trema... não lhe quero mal... ouça-me... é para
o seu bem...
O Fulgêncio caiu das nuvens. O marido continuou:
- Eu sei que o sr. tem medo de mim que se péla: receia que
eu o mate, ou que lhe bata... Tranqüilize-se: não lhe farei o menor
mal. Pelo contrário!
O pobre Fulgêncio não conseguiu articular um monossílabo.
As maxilas batiam uma na outra.
- Matá-lo? Bater-lhe? Seria uma ingratidão! O Sr.
Prestou-me um relevante serviço: livrou-me de Bárbara! E não
era meu amigo, sim, porque em geral são os amigos que têm a especialidade
desses obséquios...
O Fulgêncio continuava a tremer.
- Não esteja assim nervoso! Depois que o Sr. me libertou
daquela peste, sou outro homem, vivo mais satisfeito, como com mais apetite,
tudo me sabe melhor e durmo que é um regalo... Aqui entre nós,
se o amigo quiser uma indenização em dinheiro, uma espécie
de luvas, não faça cerimônia; estou pronto a pagar - não
há nada mais justo... Ande desassombradamente por toda a parte... não
receie uma vingança que seria absurda... e se, algum dia, eu lhe puder
servir para alguma coisa, disponha de mim. Não sou nenhum ingrato.
Daí por diante, o Fulgêncio nunca mais teve receio de
estar na rua, mas em pouco tempo se convenceu de que não podia estar
em casa, porque Bárbara era definitivamente insuportável. O Mendes
foi o mais feliz dos três.