II
biblio
FATORES EXÓTICOS
biblio
Ao começar o século XVI, Portugal
labutava na transição da idade média
para a era moderna. Coexistiam em seu seio duas
sociedades completas, com sua hierarquia, sua legislação
e seus tribunais; mas a sociedade civil não
professava mais a superioridade transcendente nem
se sujeitava à dependência absoluta
da Igreja, despida agora de muitas de suas históricas
prerrogativas, obrigada a reduzir muitas de suas
pretensões.
biblio O Estado reconhecia
e acatava as leis da Igreja, executava as sentenças
de seus tribunais, declarava-se incompetente em
quaisquer litígios debatidos entre clérigos,
só punia um eclesiástico se, depois
de degradado, era-lhe entregue por seus superiores
ordinários, respeitava o direito de asilo
nos templos e mosteiros para os criminosos cujas
penas eram de sangue, abstinha-se de cobrar impostos
do clero.
biblio A Igreja dominava
soberana pelo batismo, tão necessário
à vida civil como à salvação
da alma; pelo casamento, que podia permitir, sustar
ou anular com impedimentos dirimentes; pelos sacramentos,
distribuídos através da existência
inteira; pela excomunhão, que incapacitava
para todos eles; pelo interdito, que separava comunidades
inteiras da comunicação dos santos;
pela morte, permitindo ou negando sufrágios,
deixando que o cadáver descansasse em lugar
sagrado junto aos irmãos ou apodrecesse nos
monturos em companhia dos bichos; dominava pelo
ensino, limitando e definindo as crenças,
extremando o que se podia do que não era
lícito aprender ou ensinar.
biblio Contra ela,
na esfera estreita ainda em que firmara sua competência,
depois de lutas com o papado e com o clero indígena,
o Estado empregava o placet para os documentos emanados
do sólio pontifício, os juízes
da coroa para resguardar certos órgãos
essenciais ao exercício normal da soberania
plena, as leis de amortização para
limitar as aquisições prediais, as
temporaridades para abolir certas resistências.
Em compensação, repartia sua jurisdição
com o outro poder em casos por isso chamados mixti
fori, prestava o braço secular para executar,
até com morte violenta, os condenados pelo
juízo eclesiástico, duramente castigava
certos atos só porque a Igreja os considerava
pecaminosos; em suma, o mesmo que hoje os interesses
econômicos ou fiscais, pesavam então
inspirações religiosas e considerações
eclesiásticas.
biblio Apesar de tudo
ocorriam freqüentes atritos entre a Igreja
e o Estado, aquela disposta a abrir o menos possível
mão de suas atribuições antigas,
este conquistando ou assumindo sempre novas faculdades,
para arcar com os problemas crescentes, legados
onerosos do regime medieval, exigências inadiáveis
de uma situação transformada pelo
comércio fortalecido, pelas comunicações
amiudadas, pela indústria renascente, pela
renovação intelectual, pela circulação
metálica em luta contra a economia naturista,
rasgando horizontes mundiais.
biblio Como o papa,
cabeça da sociedade religiosa, o rei tornara-se
o sujeito jurídico da sociedade civil: na
qualidade de senhor absoluto, seus poderes não
admitiam fronteiras definíveis, invocados
como um princípio de eqüidade superior,
como remédio a casos excepcionais, graves
e imprevistos. De outros poderes suscetíveis
de definição, podia fazer uso mais
ou menos completo, e aliená-los em parte.
biblio Era direito
real bater moeda, criar capitães na terra
e no mar, fazer oficiais de justiça, do ínfimo
ao pino da carreira, declarar guerra, chamando o
povo às armas com os mantimentos necessários.
Para seu serviço el-rei tomava carros, bestas
e navios dos súditos; pertenciam-lhe as estradas
e as vias públicas, os rios navegáveis,
os direitos de passagens de rios, os portos de mar
com as portagens neles pagas, as ilhas adjacentes
ao Reino, as rendas das pescarias, das marinhas,
do sal, as minas de ouro, prata e quaisquer outros
metais, os bens sem dono, os dos malfeitores de
certos crimes. Nele se concentrava toda a faculdade
legislativa: os votos das Cortes só valiam
com o seu assenso e enquanto lhe aprazia, pois as
disposições mais precisas podia dispensar,
especificando-as; juízes e tribunais eram
delegações do trono.
biblio Abaixo do rei
estava a nobreza, numerosa em famílias como
nas distinções que separavam umas
de outras, compreendendo desde os senhores donatários,
com honras, coutos e jurisdição, e
os grão-mestres das ordens militares, cujo
mestrado o rei houve por bem afinal assumir, até
simples cavaleiros e escudeiros. Seu poderio fora
grande; agora contentava-se com o monopólio
dos cargos públicos, com o papel saliente
nos tempos de guerra ou nos conselhos da coroa,
com a situação privilegiada nas questões
penais, em que o título de nobre defendia
dos tormentos ou acarretava diminuição
de pena. A nobreza não era uma casta exclusiva;
davam para ela várias portas, entre as quais
a das letras.
biblio Abaixo da nobreza
acampava o povo, a grande massa da nação,
sem direitos pessoais, apenas defendidos seus filhos
por pessoas morais a que se acostavam, lavradores,
mecânicos, mercadores; os de mor qualidade
chamavam-se homens bons, e reuniam-se em câmaras
municipais, órgãos de administração
local, cuja importância, então e sempre
somenos, nunca pesou decisivamente em lances momentosos,
nem no Reino, nem aqui, apesar dos esforços
de escritores nossos contemporâneos, iludidos
pelas aparências fugazes ou cegados por idéias
preconcebidas.
biblio Abundavam pessoas
morais a que o povo se podia filiar — corporações
limitadas como as de moedeiros e bombardeiros, coletividades
maiores como os cidadãos do Porto. Os privilégios
inerentes a estes foram outorgados a várias
cidades do Brasil, Maranhão, Bahia, Rio e
São Paulo, pelo menos; pelo que encerram,
dão bem a idéia de direitos regateados
a quem tinha apenas para socorrer-se a mera qualidade
de ser humano.
biblio A estes felizes
cidadãos do Porto concedeu dom João
II:
biblio que não
fossem metidos a tormentos por nenhuns malefícios
que tivessem feito, cometido e cometessem e fizessem
daí por diante, salvos nos feitos e daquelas
qualidades e nos modos em que o devem ser e são
os fidalgos do reino e senhores;
biblio que não
pudessem ser presos por nenhum crime, somente sobre
suas menagens e assim como o são e devem
ser os fidalgos;
biblio que pudessem
trazer e trouxessem por todos os seu reinos e senhorios
quais e quantas armas lhes aprouvesse de noite e
de dia, assim ofensivas como defensivas;
biblio que não
pousassem com eles nem lhes tomassem suas casas
de moradas, adegas, nem cavalariças, nem
suas bestas de sela, nem outra nenhuma coisa de
seu contra suas vontades e lhes catassem e guardassem
muito inteiramente suas casas, e houvessem com elas
e fora delas todas as liberdades que antigamente
haviam os infanções e ricos homens;
biblio que os serviçais
agrícolas só fossem à guerra
com os patrões.
biblio Abaixo do terceiro
estado havia ainda os servos, escravos, etc., etc.,
cujo direito único cifrava-se em poderem,
dadas circunstâncias favoráveis, passar
à classe imediatamente superior, pois, conquanto
rentes as separações, as classes nunca
se transformaram em castas.
biblio Os três
braços do clero, da nobreza e do povo, convocados
em ocasiões solenes e a intervalos arbitrários,
constituiram as Cortes. Meramente consultivas, ou
por igual deliberativas? Liquidem entre si este
ponto os eruditos de além-mar; fora de dúvida
só valeram enquanto os reis consideraram
reinar como um ofício e precisaram de recursos
pecuniários para os quais não eram
suficientes os copiosos direitos reais.
biblio A prosperidade
e o povoamento do Brasil provaram fatais a esta
venerável instituição. Por
uma coincidência nada fortuita, reuniram-se
as últimas cortes em 1697, quando o ouro
das Gerais começava a deslumbrar o mundo,
e só reviveram com a revolução
francesa, as guerras napoleônicas e a independência
real do Brasil, depois de trasladada para aqui a
sede da monarquia portuguesa.
biblioEm 1527 a soma total dos fogos em todo o Reino
andava por duzentos e oitenta mil quinhentos e vinte
e oito; dando a cada um destes números de
quatro indivíduos, a população
do Reino seria naquele ano de um milhão e
cento e vinte dois mil cento e doze almas. Com este
pessoal exíguo, que não bastava para
enchê-lo, ia Portugal povoar o mundo. Como
consegui-lo sem atirar-se à mestiçagem?
biblio A agricultura
estava atrasada no Reino; Damião Góis,
explicando em 1541 à opinião letrada
da Europa a razão dos seus atrasos em Portugal
e Espanha, afirma ser a fertilidade espontânea
do solo tamanha que a maior parte do ano os escravos
e os homens pobres se podem sustentar lautamente
de frutos silvestres, mel e ervas, o que os faz
pouco propensos ao trabalho agrícola.
biblio Alguns traços
tomados ao livro de Costa Lobo mostrarão
o caráter dominante do povo ao começar
a era dos descobrimentos.
biblio O português
do século XV era fragueiro, abstêmio,
de imaginação ardente, propenso ao
misticismo, caráter independente, não
constrangido pela disciplina ou contrafeito pela
convenção; o seu falar era livre,
não conhecia rebuços nem eufemismos
de linguagem.
biblio A têmpera
era rija, o coração duro. As cominações
penais não conheciam piedade. A morte expiava
crimes tais como o furto do valor de um marco de
prata. Ao falsificador de moeda infligia-se a morte
pelo fogo, e o confisco de todos os bens.
biblio Com a rudeza
de costumes que assinala aqueles tempos, a segurança
da própria pessoa, família e haveres,
dependia em grande parte da força e energia
individual; daí freqüentes homizios,
agressões, feridos e mortes que habituavam
à contemplação da violência
e da dor, infligida ou recebida. O espetáculo
de penar não repugnava, porque ninguém
tinha em muita conta o padecimento físico.
Cruezas que hoje denotariam a vileza de um caráter
perverso não tinham nesses tempos semelhante
significação. O mal que elas causavam
não se reputava demasia, todos estavam sujeitos
a padecê-lo. Mas se a dor física ou
moral alcançava molificar a rigeza da índole
inacostumada à paciência e à
reflexão ou se a paixão a inflamava,
então o sentimento irrompia em clamores,
prantos e contorsões, semelhando os meneios
da demência furiosa.
biblio À
dureza da têmpera correspondia extensamente
um aspecto agreste, a força muscular era
tida em grande apreço. Cercear com um revés
de montante uma perna de boi por meia coxa ou decepar-lhe
quase todo o pescoço eram feitos dignos de
recordação histórica.
biblio Ao português
estranho ao continente cumpre juntar o negro, igualmente
alienígena. A importação começou
desde o estabelecimento das capitanias e avultou
nos séculos seguintes, primeiro por causa
da cultura da cana, mais tarde por causa do fumo,
das minas, do algodão e do café. Depois
da supressão do tráfico em 1850, o
café provocou deslocações consideráveis
na distribuição interna; o mesmo efeito
produziu a abolição.
biblio Os primeiros
negros vieram da costa ocidental, e pertencem geralmente
ao grupo banto; mais tarde vieram de Moçambique.
Sua organização robusta, sua resistência
ao trabalho indicaram-nos para as rudes labutas
que o indígena não tolerava. Destinados
para a lavoura, penetraram na vida doméstica
dos senhores pela ama de leite e pela mucama, e
tornaram-se indispensáveis pela sua índole
carinhosa. A mestiçagem com o elemento africano,
ao contrário da mestiçagem com o americano,
era vista com certa aversão, e inabilitava
para certos postos. Os mulatos não podiam
receber as ordens sacras, por exemplo: daí
o desejo comum de ter um padre na família,
para provar limpeza de sangue. Com o tempo os mulatos
souberam melhorar de posição e por
fim impor-se à sociedade. Quando reuniam
a audácia ao talento e à fortuna alcançaram
altas posições.
biblio O negro trouxe
uma nota alegre ao lado do português taciturno
e do índio sorumbático. As suas danças
lascivas, toleradas a princípio, tornaram-se
instituição nacional; suas feitiçarias
e crenças propagaram-se fora das senzalas.
As mulatas encontraram apreciadores de seus desgarres
e foram verdadeiras rainhas. O Brasil é inferno
dos negros, purgatório dos brancos, paraíso
dos mulatos, resumiu em 1711 o benemérito
Antonil.