IX
O SERTÃO
biblioA invasão flamenga constitui mero episódio da ocupação da costa. Deixa-a na sombra a todos os respeitos o povoamento do sertão, iniciado em épocas diversas, de pontos apartados, até formar-se uma corrente interior, mais volumosa e mais fertilizante que o tênue fio litorâneo.
* * *
biblioPodemos
começar pela capitania de São Vicente.
O estabelecimento de Piratininga, desde a era de 530,
na borda do campo, significa uma vitória ganha
sem combate sobre a mata, que reclamou alhures o esforço
de várias gerações. Deste avanço
procede o desenvolvimento peculiar de São Paulo.
biblioO Tietê corria
perto; bastava seguir-lhe o curso para alcançar
a bacia do Prata. Transpunha-se uma garganta fácil
e encontrava-se o Paraíba, encaixado entre
a serra do Mar e a da Mantiqueira, apontando o caminho
do Norte. Para o Sul estendiam-se vastos descampados,
interrompidos por capões e até manchas
de florestas, consideráveis às vezes,
mais incapazes de sustarem o movimento expansivo por
sua descontinuidade. A Este apenas uma vereda quase
intransitável levava à beira-mar, vereda
fácil de obstruir, obstruída mais de
uma vez, tornando a população sertaneja
independente das autoridades da marinha, pois um punhado
de homens bastava para arrostar um exército,
e abrir novas picadas, domando as asperezas da serra,
rompendo as massas de vegetação, arrostando
a hostilidade dos habitantes, pediria esforços
quase sobre-humanos.
biblioSob aquela latitude,
naquela altitude, fora possível uma lavoura
semi-européia, de alguns, senão todos
os cereais e frutos da península. Ao contrário
o meio agiu como evaporador: os paulistas lançaram-se
a bandeirantes.
biblioBandeiras eram
partidas de homens empregados em prender e escravizar
o gentio indígena. O nome provém talvez
do costume tupiniquim, referido por Anchieta, de levantar-se
uma bandeira em sinal de guerra. Dirigia a expedição
um chefe supremo, com os mais amplos poderes, senhor
da vida e morte de seus subordinados. Abaixo dele
com certa graduação marchavam pessoas
que concorriam para as despesas ou davam gente.
biblioFigura obrigada
era o capelão. “Meu capelão saiu
para fora estando eu para sair para a campanha”,
escrevia Domingos Jorge Velho em novembro de 692,
“mandei-o buscar; não quis vir; de necessidade
busquei o inimigo; sem ele morreram-me três
homens brancos sem confissão, cousa que mais
tenho sentido nesta vida; peço-lhe pelo amor
de Deus me mande um clérigo em falta de um
frade, pois se não pode andar na campanha e
sendo com tanto risco de vida sem capelão”.
Montoya fala nestes “lobos vestidos de pieles
de ovejas, unos hipocritones, los cuales tienen por
oficio mientras los demás andan robando y despojando
las iglesias y atando indios, matando y despedazando
niños, ellos, mostrando largos rosarios que
traen al cuello, lléganse á los padres
[jesuítas espanhóis] pidenles confesion...
y mientras están hablando de estas cosas van
pasando las cuentas del Rosario muy aprisa”.
biblioEscravos serviam
de carregadores. Compunha-se a carga de pólvora,
bala, machados e outras ferramentas, cordas para amarrar
os cativos, às vezes sementes, às vezes
sal e mantimentos. Poucos mantimentos. Costumavam
partir de madrugada, pousavam antes de entardecer,
o resto do dia passavam caçando, pescando,
procurando mel silvestre, extraindo palmito, colhendo
frutos; as pobres roças dos índios forneciam-lhes
os suplementos necessários, e destruí-las
era um dos meios mais próprios para sujeitar
os donos.
biblioSe encontravam
algum rio e prestava para a navegação,
improvisavam canoas ligeiras, fáceis de varar
nos saltos, aliviar nos baixios ou conduzir à
sirga. Por terra aproveitavam as trilhas dos índios;
em falta delas seguiam córregos e riachos,
passando de uma para outra banda conforme lhes convinha,
e ainda hoje lembram as denominações
de Passa-Dois, Passa-Dez, Passa-Vinte, Passa-Trinta;
balizavam-se pelas alturas, em busca de gargantas,
evitavam naturalmente as matas, e de preferência
caminhavam pelos espigões. Alguns ficaram tanto
tempo no sertão que “volviendo a sus
casas hallaron hijos nuevos, de los que teniendolos
ya a ellos por muertos, se habian casado com sus mujeres,
llevando tambien ellos los hijos que habian engedrado
en los montes”, informa-nos Montoya. Os jesuítas
chamam à gente de S. Paulo mamalucos, isto
é, filhos de cunhãs índias, denominação
evidentemente exata, pois mulheres brancas não
chegavam para aquelas brenhas.
biblioFaltaram documentos
para escrever a história das bandeiras, aliás
sempre a mesma: homens munidos de armas de fogo atacam
selvagens que se defendem com arco e frecha; à
primeira investida morrem muitos dos assaltados e
logo desmaia-lhes a coragem; os restantes, amarrados,
são conduzidos ao povoado e distribuídos
segundo as condições em que se organizou
a bandeira. Nesta monotonia trágica os Caiapós
introduziram mais tarde uma novidade: “a de
nos cercar de fogo quando nos acham nos campos, a
fim de que impedida a fuga nos abrasemos: este risco
evitam já alguns lançando-lhe contrafogo,
ou arrancando o capim para que não se lhe comuniquem
as suas chamas; outros se untam com mel de pau, embrulhados
em folhas ou cobertos de carvão, por troncos
verdes ou paus queimados”.
biblioÀ parte
geográfica das expedições corresponde
mais ou menos o seguinte esquema: Os bandeirantes
deixando o Tietê alcançaram o Paraíba
do Sul pela garganta de São Miguel, desceram-no
até Guapacaré, atual Lorena, e dali
passaram a Mantiqueira, aproximadamente por onde hoje
transpõe a E. F. Rio e Minas. Viajando em rumo
de Jundiaí e Mogi, deixaram à esquerda
o salto do Urupungá, chegaram pelo Paranaíba
a Goiás. De Sorocaba partia a linha de penetração
que levava ao trecho superior dos afluentes orientais
do Paraná e do Uruguai. Pelos rios que desembocam
entre os saltos do Urubupungá e Guaiará,
transferiram-se da bacia do Paraná para a do
Paraguai, chegaram a Cuiabá e a Mato-Grosso.
Com o tempo a linha do Paraíba ligou o planalto
do Paraná ao do S. Francisco e do Parnaíba,
as de Goiás e Mato-Grosso ligaram o planalto
amazônico ao rio-mar pelo Madeira, pelo Tapajós
e pelo Tocantins.
biblioAs bandeiras no
século XVI devastaram sobretudo o Tietê,
cujos numerosos Tupiniquins depressa desapareceram,
e o alto Paraíba, chamado rio dos Surubis em
Piratininga, segundo informa Glimmer; com o tempo
foram-se alongando os raios do despovoamento e depredação,
característico essencial e inseparável
das bandeiras.
biblioO movimento paulista
para o sertão ocidental chocou-se com o movimento
paraguaio à procura do mar: Ciudad Real, no
Piqueri, próximo do salto das Sete Quedas,
Vila Rica, no Ivaí, datam da segunda metade
do século XVI, antes do Brasil cair sob o domínio
da Espanha. Com estes colonos a gente de São
Paulo cultivou a princípio boas relações;
nas caçadas humanas foram às vezes sócios
aliados. Além disso a viagem por terra do Paraguai
para a costa fazia-se mais facilmente procurando Piratininga,
do que repetindo a incômoda travessia de Cabeza
de Vaca. A harmonia entrava assim no interesse de
ambas as partes. Só mais tarde houve conflitos
e as duas povoações desapareceram.
biblioPor 1610, jesuítas
castelhanos partidos de Asunción começaram
a missionar na margem oriental do Paraná. Fundaram
Loreto e San Ignacio, no Paranapanema, e em compasso
acelerado mais onze reduções no Tibagi,
no Ivaí, no Corumbataí, no Iguaçu.
Transposto o Uruguai, assentaram outras dez entre
o Ijuí e o Ibicuí, outras seis nas terras
dos Tape, em diversos tributários da lagoa
dos Patos. De San Cristóbal e Jesús
María, no rio Pardo, poucas léguas os
separavam agora do mar.
biblioEsta catequese
grandiosa não consistia simplesmente em verter
as orações da cartilha para a língua
geral, fazê-las repetir pela multidão
ignara, submetendo-a à observância maquinal
do culto externo. “Reduções, escreve
um dos jesuítas contemporâneos que mais
concorreram para avultarem, chamamos aos povoados
dos índios, que vivendo à sua antiga
usança, em matos, serras e vales, em escondidos
arroios, em três, quatro ou seis casas apenas,
separados, uma, duas, três e mais léguas
uns de outros, os reduziu a diligência dos padres
a povoações grandes e a vida política
e humana, a beneficiar algodão com que se vistam,
porque comumente viviam em nudez, ainda sem cobrir
o que a natureza ocultava”.
biblioNão se imagina
presa mais tentadora para caçadores de escravos.
Por que aventurar-se a terras desvairadas, entre gente
boçal e rara, falando línguas travadas
e incompreensíveis, se perto demoravam aldeamentos
numerosos, iniciados na arte da paz, afeitos ao jugo
da autoridade, doutrinados no abanheen?
biblioHouve alguns salteios
contra as reduções desde o seu começo,
mas a energia e o sangue frio dos jesuítas
contiveram os arreganhos dos mamalucos, que se retiraram
proferindo ameaças. Para pô-las em prática
precisavam, porém, da convivência da
gente de Asunción. Isto conseguiram em fins
de 628, e muito concorreu para assegurá-la
Luís Cespedes Xeria, governador do Paraguai,
casado em família fluminense, senhor de engenho
no Rio. Fez por terra a viagem para seu governo; esteve
em Loreto do Pirapó e Santo Ignacio de Ipãumbuçu,
admirou as igrejas, “hermosísimas iglesias,
que no las he visto mejores en las Indias que he corrido
del Perú y Chile”, e fez sinal aos bandeirantes
para avançarem.
biblioA primeira das
reduções invadidas, a de S. Antônio,
demorava na margem direita do Ivaí; invadiram
depois San Miguel, Jesús María, San
Pablo, San Francisco Xavier, no Tibagi; as outras,
ainda mais depressa do que as agremiara uma inspiração
ideal, foram sucessivamente destruídas pela
fúria devastadora. Restavam apenas as de Loreto
e San Ignacio, na Paranapanema; os jesuítas
resolveram transplantá-las para abaixo do salto
das Sete Quedas, entre o Paraná e o Uruguai,
doloroso êxodo cuja narrativa ainda hoje penaliza.
Depois de devastadas as missões de Guairá,
os mamalucos passaram às do Uruguai e dos Tape.
biblioA entrada em Jesús
María, no rio Pardo, já em águas
da lagoa dos Patos, qual a descreve Montoya, dará
idéia resumida dos processos empregados nestas
expedições.
biblioNo dia de São
Francisco Xavier (3 de dezembro de 637), estando celebrando
a festa com missa e sermão, cento e quarenta
paulistas com cento e cinqüenta tupis, todos
muito bem armados de escopetas, vestido de escupis,
que são ao modo de dalmáticas estofadas
de algodão, com que vestido o soldado de pés
à cabeça peleja seguro das setas, a
som de caixa, bandeira tendida e ordem militar, entraram
pelo povoado, e sem aguardar razões, acometendo
a igreja, disparando seus mosquetes. Pelejaram seis
horas, desde as oito da manhã até as
duas da tarde.
biblioVisto pelo inimigo
o valor dos cercados e que os mortos seus eram muitos,
determinou queimar a igreja, aonde se acolhera a gente.
Por três vezes tocaram-lhe fogo que foi apagado,
mas à quarta começou a palha a arder,
e os refugiados viram-se obrigados a sair. Abriram
um postigo e saindo por ele a modo de rebanho de ovelhas
que sai do curral para o pasto, com espadas, machetes
e alfanjes lhes derribavam cabeças, truncavam
braços, desjarretavam pernas, atravessaram
corpos. Provavam os aços de seus alfanjes em
rachar os meninos em duas partes, abrir-lhes as cabeças
e despedaçar-lhes os membros.
biblioCompensará
tais horrores a consideração de que
por favor dos bandeirantes pertencem agora ao Brasil
as terras devastadas?
biblioApenas vagamente
se conhece o caminho seguido nas bandeiras contra
Guairá, Uruguai e Tape. Certamente Sorocaba,
último povoado, representava papel importante.
Em canoas ou balsas feitas no planalto desciam os
rios, e uma ou outra que garrava servia de aviso do
perigo iminente às reduções;
eram, pois, viagens mistas. À volta, as jornadas
deviam ser inteiramente por terra; de outro modo não
poderiam trazer as chusmas de prisioneiros de coleira,
amarrados uns aos outros.
biblioQue destino davam
a esta gente? Diz-nos Montoya que eram empregados
em transportar nas costas para a marinha carne de
vaca e porco; naturalmente carregariam sal na volta;
outros passavam para o Rio, onde havia interessados
nestas piratarias; outros finalmente juntavam-se nas
fazendas dos administradores. Em campanha “las
mujeres que en este, y otros pueblos (que destruyeron)
de buen parecer, casadas, solteras o gentiles, el
dueño las encerraba consigo en un aposento,
com quien pasaba las noches al modo que un cabron
en un curral de cabras”.
biblioO número
considerável dos escravizados nas reduções
jesuíticas manifesta-se na freqüência
de Carijós, chamavam em São Paulo aos
Guaranis. Estes índios, devidamente amestrados,
serviam também para as conquistas de outros;
eram o grosso das forças dos bandeirantes,
cujo papel se limitava ao de oficiais.
biblioOs sucessos dos
Tape provaram mais uma vez não haver remédio
em Asunción, Rio ou Bahia. Os missionários
esperavam ser mais felizes no além-mar e embarcaram
Antonio Ruiz de Montoya para Madrid, Francisco Dias
Taño para Roma. Conseguiu este bulas e censuras
fulminantes, trouxe aquele as ordens mais precisas
e encarecidas para as autoridades coloniais. Tudo
perdido. Conhecidas as letras pontifícias no
Rio, alborotou-se a população, e a bula
ficou suspensa. A irritação propagou-se
pela marinha e intensificou-se em serra acima. Defendidos
por seu caminho inexpugnável, os paulistas
expulsaram os jesuítas que só voltaram
anos depois, à força de negociações
e concessões. Implantou-se, portanto, o sistema
seguido nas terras espanholas de encomendas ou administração
dos índios; algumas encomendas por testamento
couberam finalmente à Companhia de Jesus. Imagina-se
mal neste figurino oportunista a consciência
heróica de Manuel da Nóbrega.
biblioMontoya conseguiu
licença para aparelhar os índios com
armas de fogo e adestrá-los na arte militar.
Em breve os bandeirantes perderam a superioridade:
derrotados, procuraram conquistas mais fáceis,
na serra de Maracaju, no alto Paraguai, entre os Chiquitos,
e por fim entre o gentio de corso, de língua
travada. Esta caçada não rendia tanto,
as bandeiras foram perdendo parte dos primeiros atrativos
e decairam. Das reduções destruídas
nunca mais se restabeleceram novamente fundados sete
povos, mais tarde incorporados ao Brasil, como veremos.
biblioMelhores serviços
prestaram os paulistas na Bahia e ao Norte do rio
S. Francisco. Em torno do Paraguaçu reuniram-se
tribos ousadas e valentes, aparentadas aos Aimorés
convertidos no princípio do século,
que invadiram o distrito de Capanema, trucidaram os
moradores e vaqueiros do Aporá, e avançaram
até Itapororocas. Pouco fizeram expedições
baianas mandadas contra eles, e houve a idéia
de chamar gente de São Paulo. Acudindo ao convite
Domingos Barbosa Calheiros embarcou em Santos; na
Bahia se dirigiu para Jacobinas, mas deixou-se iludir
por Paiaiás domesticados, e nada fez de útil.
Acompanhando-o na jornada mais de duzentos homens
brancos, raros tornaram do sertão.
biblioCom este malogro
não admira se repetissem as incursões
de Tapuias, a ponto de a 4 de março de 1669
ser-lhes declarada guerra e outra vez convidados paulistas
para fazê-la. em agosto de 71 chegou a gente
embarcada, com cuja condução a câmara
do Salvador despendeu mais de dez contos de réis.
Eram dois os chefes principais, Brás Rodrigues
de Arzão e Estêvão Ribeiro Baião
Parente. Fizeram de Cachoeira base das operações
que duraram anos. Brás Rodrigues retirou-se
depois de tomar, na margem esquerda do Paraguaçu,
a aldeia do Camisão. Estêvão Ribeiro
guerreou sobretudo na margem direita, onde conquistou
a aldeia de Massacará. Em paga dos serviços
foi-lhe dado o senhorio de uma vila chamada de João
Amaro, nome de seu filho. A vila, depois de vendida
com as suas terras a um ricaço da Bahia, extinguiu-se;
o epônimo ainda é lembrado nos catingais
baianos.
biblioA estas expedições
marítimas sucederam outras por via terrestre.
Talvez a mais antiga fosse a de Domingos de Freitas
de Azevedo, de quem apenas consta haver sido derrotado
no rio S. Francisco. Facilitaram estas entradas a
abundância de matas no trecho superior do rio,
as suas condições de navegabilidade
dentro do planalto, o emprego de canoas. Paulistas
houve que fizeram canoas e desceram para vendê-las
próximo do trecho encachoeirado, onde a escassez
da vegetação tornava preciosa a mercadoria.
Das expedições feitas pelo interior
conhecemos a de Domingos Jorge Velho, Matias Cardoso
de Almeida, Morais Navarro, todos empregados em combater
os Paiacus, Janduís, Icós, nas ribeiras
do Açu e do Jaguaribe. Domingos Jorge auxiliou
a debelação dos Palmares, mocambo de
negros localizado nos sertões de Pernambuco
e Alagoas, que já existia antes da invasão
flamenga e zombara de numerosas e repetidas tropas
contra ele mandadas. Ficou assim livre todo o território
entre as matas do cabo de Santo Agostinho e Porto
Calvo.
biblioMuitos dos paulistas
empregados nas guerras do Norte não tornaram
mais a S. Paulo, e preferiram a vida de grandes proprietários
nas terras adquiridas por suas armas: de bandeirantes,
isto é despovoadores, passaram a conquistadores,
formando estabelecimentos fixos. Ainda antes do descobrimento
das minas sabemos que nas ribeiras do rio das Velhas
e do S. Francisco havia mais de cem famílias
paulistas, entregues à criação
de gado.
biblioConhecemos mal,
para ajuizar dela, a vida levada em São Paulo
pelos bandeirantes recolhidos aos lares, pela gente
rica e poderosa. O seguinte trecho de Pedro Taques
só em parte supre a lacuna, pois refere-se
a época posterior às minas, o que altera
em muito a situação:
biblio“Na casa
de Guilherme Pompeu de Almeida, celebrava-se anualmente
a festa de 8 de dezembro com um oitavário de
festa de missas cantadas, sacramento exposto e sermão
a vários santos de sua especial devoção
e se concluía o oitavário com um aniversário
pelas almas do purgatório, com ofício
de nove lições, missa cantada e sermão
para excitar a devoção dos fiéis
ouvintes. De São Paulo concorria a maior parte
da nobreza com os religiosos de maior autoridade das
quatro comunidades, Companhia de Jesus, Carmo, São
Bento e São Francisco, e os clérigos
de maior graduação. Era a casa do Dr.
Guilherme Pompeu naqueles dias uma populosa vila ou
corte pela assistência e concurso dos hóspedes.
Para a grandeza do tratamento da casa deste herói
paulista, basta saber-se que fazia paramentar cem
camas, cada uma com cortinado próprio, lençóis
finos de bretanha, guarnecidos de rendas, e com uma
bacia de prata debaixo de cada uma das ditas cem camas,
sem pedir-se nada emprestado. Tinha, na entrada de
sua fazenda da Araçariguama, um pórtico,
do qual até as casas mediava um plano de 500
passos, todo murado, cujo terreno servia de pátio
à igreja ou capela da Conceição.
biblioNeste portão
ficavam todos os criados dos hóspedes, que
ali se apeavam, largando esporas e outros trastes
com que vinham de cavalo, e tudo ficava entregue a
criados, escravos, que para este político ministério
os tinha bem disciplinados.
biblioEntrava o hóspede,
ou fosse um, ou muitos em número, e nunca mais
nos dias que se demoravam, ainda que fossem de uma
semana ou de um mês, não tinham nenhum
dos hóspedes notícia alguma dos seus
escravos, cavalos e trastes. Quando porém qualquer
dos hóspedes se despedia, ou fosse um, quinze
ou muitos ao mesmo tempo, chegando ao portão
cada um achava o seu cavalo com os mesmo jaezes, em
que tinha vindo montado, as mesmas esporas, e os seus
trastes todos, sem que a multidão da gente
produzisse a menor confusão na advertência
daqueles criados, que para isto estavam destinados.
Os cavalos recolhiam-se às cavalariças,
onde tinham todo o bom penso de herva e milho, que
é o que se dá diariamente no Brasil
aos cavalos, principalmente na capitania de São
Paulo... Esta advertência era uma das ações
de que os hóspedes se aturdiam, por observarem
que nunca jamais, entre a multidão de várias
pessoas que diàriamente concorriam a visitar
e obsequiar dias e dias ao Dr. Guilherme Pompeu de
Almeida, se experimentava a menor falta, nem ainda
uma só troca de trastes a trastes. Foi tão
profusa a mesa do Dr. Guilherme Pompeu, que nela as
iguarias de várias viandas se praticava com
tal advertência, que se acabada a mesa, passadas
algumas horas, chegassem hóspedes não
houvesse para banqueteá-los a menor falta.
biblioPor esta razão
estava a ucharia sempre pronta. A abundância
de trigo nesta casa foi tanta que todos os dias se
fazia pão, de sorte que para o seguinte já
não servia o que tinha sobrado do antecedente;
o vinho era primoroso de uma grande vinha que com
acerto se cultivava e suposto o consumo era sem miséria,
sempre o vinho sobrava de ano a ano”.
biblioA vida do povo
comum dizia mal com estes esplendores: a canjica,
alimento da maioria da população, dispensava
sal, porque este ingrediente não chegava para
todos.
biblioOs paulistas não
se limitaram a passar de bandeirantes a conquistadores.
Houve sempre alguma mineração em Iguape
e Paranaguá: em maior número ainda,
entregaram-se a pesquisas minerais a partir da era
de 670, depois que o monarca português apelou
para seu brios. Antes da grande dispersão provocada
pelos descobertos auríferos, a população
grupava-se nas margens do Tietê e nas do Paraíba.
Na ribeira do Tietê, Mogi das Cruzes, Parnaíba,
Itu, Sorocaba; na do Paraíba, Jacareí,
Taubaté, Guaratinguetá precedem os descobertos.
A maior densidade provàvelmente notava-se no
Paraíba, cujo vale estreitado à direita
pela serra do Mar, à esquerda pela da Mantiqueira,
produzia o efeito de condensador. Entretanto, a abundância
de vilas não importa forçosamente população
considerável. Em terras de donatários
deviam facilitar as fundações o orgulho
de poder juntar ao próprio nome o título
de senhor de tais e tais vilas e o interesse de nomear
tabeliães, etc.
biblioJá neste
tempo, Piratininga não se impunha como entrada
única do planalto: formaram-se grupos conjugados
do sertão e da marinha: Parati e Taubaté;
S. Vicente, Santos, São Paulo, Mogi e quiçá
Jacareí que, pelo menos mais tarde, possuiu
ligação direta com o litoral; Iguape,
Paranaguá, São Francisco e Curitiba:
esta última, aparentemente destinada a situação
preponderante, atraiu pouca população,
e medrou precàriamente enquanto não
lhe deu vida o comércio de trânsito,
principalmente de muares, procedentes do Sul.
biblioUm escritor anônimo
dizia a respeito dos paulistas pouco depois de 1690:
“Sua Majestade podia se valer dos homens de
São Paulo, fazendo-lhes honras e mercês,
que as honras e os interesses facilitam os homens
a todo o perigo, porque são homens capazes
para penetrar todos os sertões, por onde andam
continuamente sem mais sustento que caças do
mato, bichos, cobras, lagartos, frutas bravas e raízes
de vários paus, e não lhes é
molesto andarem pelos sertões anos e anos,
pelo hábito que têm feito daquela vida.
E suposto que estes paulistas, por alguns casos sucedidos
de uns para com outros, sejam tidos por insolentes,
ninguém lhes pode negar que o sertão
todo que temos povoado neste Brasil eles o conquistaram
do gentio bravo que tinha destruído e assolado
as vilas de Cairu, Boipeba, Camamu, Jaguaripe, Maragogipe
e Peruaçu no tempo do governador Afonso Furtado
de Mendonça, o que não puderam fazer
os mais governadores antecedentes por mais diligências
que fizeram para isso.
biblioTambém se
lhes não pode negar que foram os conquistadores
dos Palmares de Pernambuco, e também se podem
desenganar que sem os paulistas com seu gentio nunca
se há de conquistar o gentio bravo que se tem
levantado no Ceará, no Rio Grande e no sertão
da Paraíba e Pernambuco, porque o gentio bravo
por serras, por penhas, por matos, por catinga só
com o gentio manso se há de conquistar e não
com algum outro poder, e dos paulistas se deve valer
Sua Majestade para a conquista de suas terras”.
* * *
biblioAlexandre de Moura
deixou Jerônimo de Albuquerque por capitão-mor
do Maranhão; da capitania subordinada de Cumá
encarregou Martim Soares Moreno; a do Pará,
confiada a Francisco Caldeira de Castelo Branco, ficaria
independente, para evitar novos atritos entre os recentes
rivais. Capitão de entradas elegeu Bento Maciel
Parente, reinol criado em Pernambuco, que estivera
nas guerras da Paraíba e Rio Grande, andara
na jornada de salitre na Bahia, acompanhara d. Francisco
de Sousa a São Vicente, e lá assistira
um triênio empenhado em minas e bandeiras, outro
de sargento-mor em cinco vilas do Sul.
biblioFaltavam a Jerônimo
de Albuquerque alguns requisitos para governar bem,
na opinião insuspeita de Gaspar de Sousa; acusações
lhe fizeram, bem graves se forem verdadeiras; algumas
das recomendações de Alexandre de Moura
parece ter descurado; mostrou-se mais próprio
aos rompantes da guerra que às artes da paz.
Faleceu em fevereiro de 618 legando o cargo a seu
filho Antônio de Albuquerque, assessorado por
Bento Maciel e Diogo da Costa Machado. O jovem de
vinte e dois anos desprezou os limites postos pelo
pai à sua autoridade; quando, havendo preso
aquele, o governador geral impôs-lhe a assistência
do segundo, preferiu retirar-se para o reino. Substituiu-o
no mando desde abril de 619 Diogo Machado; de suas
mãos recebeu-o Antônio Muniz Barreiros
em maio de 622, e ocupou-o até agosto de 626.
biblioDurante esta primeira
década, Bento Maciel fez diversas entradas
aos rios Mearim e Pindaré, seguindo os exemplos
e processos dos bandeirantes e construiu um forte
no Itapicuru, bastante acima da barra. Outras entradas
fez Francisco de Azevedo, o primeiro a penetrar nos
sertões de Turi e Gurupi. O gentio de Cumá
insurgiu-se apenas Martim Soares saiu para o Reino,
urgido por antigas enfermidades. Sob seu sucessor
Matias, irmão de Antônio de Albuquerque,
a guarnição portuguesa foi quase toda
trucidada, e o levante estendeu-se quase à
ponta de Saparará. A devastação
nos índios foi enorme; os jesuítas Manuel
Gomes e Diogo Nunes, convictos da inutilidade de seus
esforços em favor dos indígenas, procuraram
as Índias Ocidentais; Fr. Cristóvão
de Lisboa, chefe dos capuchos, viu desrespeitadas
as leis mais explícitas e até as censuras.
biblioNo governo de Diogo
da Costa Machado chegaram a São Luís
algumas centenas de açorianos, engajados para
povoadores. Nada encontraram feito para recebê-los,
e padeceram as maiores privações e misérias.
A imigração, iniciada sob fagueiras
esperanças, não recobrou o alento originário
com o livro de propaganda de Simão Estaço
da Silveira.
biblioNo empenho de criar
engenhos, o governo geral contratou a construção
de dois ou três com Antônio Barreiros;
a nomeação do filho para capitão-mor
do Maranhão visava facilitar a execução
do trato. Um engenho construiu Bento Maciel. A terra
prestava-se bem à cultura da cana; braços
podiam fornecer os índios sujeitos às
administrações usadas nas colônias
espanholas e transplantadas por Bento Maciel; a dificuldade
grande pendia dos transportes. Ficava próximo
Pernambuco, o maior mercado do país, mas só
se navegava para lá durante certa parte do
ano, nas monções; a viagem terrestre
pela costa, feita na estação das águas,
para escapar aos tormentos sofridos por Pedro Coelho
quando tentou colonizar o Ceará, apenas poderia
servir à passagem de escravos. Parece ter servido
efetivamente: fala um contemporâneo na “grande
quantidade de patacões que os moradores do
Maranhão houveram pelo comércio com
os de Pernambuco, enviando-lhes de quando em quando
escravos.”
biblioAlém da
cana plantava-se algodão e fumo; o fio e o
pano de algodão correram como moeda. Os navios
partiam para o reino em agosto ou setembro.
biblioAs dificuldades
de comunicações marítimas entre
o Maranhão e o resto do Brasil sugeriram a
idéia de criar ali um estado independente.
Isto se ordenou em 621. Começava no Ceará,
próximo do cabo de São Roque, e ia à
fronteira setentrional, ainda indefinida, do Pará.
Francisco Coelho de Carvalho, primeiro governador,
aportou a Pernambuco ao tempo da invasão holandesa
na Bahia. Deteve-o ali Matias de Albuquerque; depois,
sob vários pretextos, foi se deixando ficar;
só em agosto de 26 chegou a seu destino, levando
Manuel de Sousa de Sá, capitão-mor do
Pará, declarado agora dependente do Estado
do Maranhão.
biblioNa capitania do
Pará, Francisco Caldeira de Castelo Branco,
recebido amigavelmente pelo gentio, apanhara o primeiro
pretexto para guerreá-lo. A imensidade das
águas inspirou-lhe a adaptação
de um suplício mediável, que devia parecer
novo e terrível aos rudes filhos da natureza:
amarrava o condenado a diversas canoas, mandava remar
em sentidos opostos, até os membros despregarem
do tronco. Seu gênio rixento, já revelado
em presença dos franceses, malquistou-o com
os compatriotas; cansados de aturá-lo, depuseram-no,
meteram-no a ferros, e substituiram-no por Baltasar
Rodrigues em novembro de 618. Nem assim arrefeceu
a sanha dos índios; o movimento de Cumá
soldou-se ao do Pará. Teve-se de reclamar auxílio
de Pernambuco; vieram socorros sob as ordens de Jerônimo
Fragoso, nomeado capitão-mor por d. Luís
de Sousa, governador geral, com ordem, logo cumprida,
de mandar presos Castelo Branco, Rodrigues e outros
cabecilhas. Castelo Branco morreu na prisão
do Limoeiro, em Lisboa.
biblioBento Maciel, que
fora a Pernambuco depois das questões com Antônio
de Albuquerque, voltou com gente nova recrutada nas
duas capitanias vizinhas, e repetiu com maior fúria
suas costumadas façanhas. De Tapuitapera até
dentro do Amazonas tamanhas foram suas devastações
que Jerônimo Fragoso intimou-lhe cessasse as
hostilidades; ele, porém, desrespeitou a intimação
porque, sendo o comandante da guerra por investidura
do governador geral, não estava subordinado
ao capitão-mor do Pará. Fragoso faleceu
logo; houve diversos pretendentes à sucessão;
por fim saiu nomeado Bento Maciel, que abriu um caminho
terrestre para o Maranhão, ligando talvez o
rio Capim ao Pindaré, como se tentou mais tarde,
e governou quatro anos, até chegar Manuel de
Sousa de Sá, em 1627.
biblioFrancisco Caldeira
fora logo à chegada informado de viagens e
fortalezas de ingleses e flamengos nas plagas amazônicas.
No próprio ano da fundação de
Belém, Pedro Teixeira aprisionou uma nau holandesa,
cuja artilharia serviu a reforçar a do Presepe.
Os ingleses preferiam a foz do rio e seu estabelecimento
mais ocidental assentava no Cajari; os flamengos avançaram
até o Xingu. Diversas expedições,
em que se distinguiram Pedro Teixeira, Pedro da Costa
Favela, Feliciano Coelho, Jácome Raimundo de
Noronha tomaram navios, fizeram muitos prisioneiros
e arrasaram um a um todos os fortes. No assalto ao
forte inglês de Filipe, gaba-se Noronha de haver
tomado quatro peças de artilharia grossas e
roqueiras e muitas armas, com a morte de oitenta e
três estrangeiros, o aprisionamento de treze,
a destruição de todos os gentios confederados,
“com que ficaram tão aterrorizados que
nunca mais tiveram pazes com os estrangeiros”.
biblioA falta de índios
amigos, fornecedores de fumo, algodão, urucu
(anoto, em língua cariba) e outras drogas,
bastaria a dissuadir os entrepolos de novos cometimentos.
Veio ainda mais dificultá-los a fortaleza de
Gurupá, estabelecida no local de um antigo
forte holandês, no começo do delta amazônico,
excelente posto de observação para todos
os movimentos da margem esquerda, obra avançada
e complemento precioso do forte de Presepe na margem
direita. O último estabelecimento holandês
de que temos notícia tomou-o Sebastião
de Lucena em 1646, no Maiacaré, junto ao cabo
do Norte; os ingleses já havia anos não
apareciam. Ficou assim firmada a soberania de Portugal
desde o cabo do Norte até a ponta de Saparará,
e desassombrado de inimigos todo o baixo Amazonas.
biblioNo tempo de Francisco
Coelho, foi dividido o Estado do Maranhão em
várias capitanias hereditárias: as de
Tapuitapera e Cametá couberam a um irmão
e ao filho do governador, a de Caeté ou Gurupi
a Álvaro de Sousa, filho de Gaspar de Sousa,
que tantos serviços prestara à conquista;
para si a metrópole reservou no Maranhão
o território entre o Parnaíba e o Pindaré,
no Pará as terras de Maracanã ao Tocantins.
Mais tarde Bento Maciel obteve a capitania do cabo
do Norte limitada pelos rios Vicente Pinzon ou Oiapoque,
Amazonas e Paru, e Antônio de Sousa de Macedo
a da ilha Marajó.
biblioA penetração
no Amazonas prosseguia lentamente: pela margem setentrional
tratara-se apenas de eliminar os entrelopos; ao Sul
a aldeia Maturu, na margem direita do Xingu, também
chamado Parnaíba, durante algum tempo permaneceu
o posto mais ocidental; ante as flechas envenenadas
do gentio do Tapajós estacaram as entradas.
A marcha precipitou-se a partir de 1637 com a chegada
de dois leigos franciscanos vindos do pé dos
Andes. Jácome de Noronha, que com certo atropelo
de formas sucedera no governo por falecimento de Francisco
Coelho de Carvalho, resolveu abrir relações
com as dependências cisandinas de Castela. Pedro
Teixeira, incumbido desta missão, partiu a
17 de outubro águas a riba do rio-mar, em 15
de agosto de 38 alcançou o Paiamino, afluente
do Napo, e seguiu para Quito. Depois de receber as
ordens do vice-rei do Peru, regressou e chegou ao
Pará em 12 de dezembro do ano seguinte. Já
de volta, a 16 de março de 39, na barra do
Aguarico, tomou posse em nome da coroa de Portugal
das terras que para o Oriente se estendiam até
beira-mar. Bento Maciel, então governador do
estado, recompensou estes e outros serviços
durante mais de quatro lustros prestados por seu companheiro
de armas, concedendo-lhe por três vidas a encomendação
de trezentos casais de índios.
biblioMal suspeitava
então o velho capitão de entradas os
perigos que se avizinhavam. Desde de 1637, Gedeon
Morris, flamengo preso em combate no Amazonas e lá
conservado prisioneiro durante oito anos, lograra
repatriar-se e chamava a atenção da
câmara de Zelândia para a conquista do
Maranhão. Tal conquista, alegava, traria a
aquisição de mais de quatrocentas léguas
de costa, ocupadas apenas por mil e quatrocentos a
mil e quinhentos portugueses, e quarenta mil índios;
os índios estavam sujeitos mais por medo que
por afeição, os portugueses com as forças
disseminadas, os soldados descontentes e rebeldes
pelo desgoverno e falta de pagamento, os fortes pouco
defensáveis; os índios considerariam
os flamengos como libertadores. A Companhia das Índias
Ocidentais se apossaria de belos açúcares,
fumos, algodão, laranjas, anil, tintas, óleos
e bálsamos, gengibres, gomas e várias
sortes de excelentes madeiras. Poderia vender escravos
para Pernambuco “como os portugueses faziam
outrora, antes de começar a guerra naquela
capitania, e este era o seu maior negócio”.
biblioQuando Morris expunha
estas idéias em Middelburg, ocorria na colônia
um fato próprio a facilitar-lhes a execução.
Atendendo a repetidos chamados do gentio cearense,
a Companhia mandou uma expedição que
desembarcou no Mocuripe, e após brava mas inútil
resistência da guarnição apossou-se
do forte fundado por Martim Soares Moreno. Havia agora
um ponto de apoio para as operações
apregoadas como tão proveitosas: Gedeon Morris
foi nomeado comandante do Ceará, onde descobriu
as salinas do Ipanema, como que a preparar a avançada.
biblioA notícia
da viagem de Pedro Teixeira, apenas divulgada, ainda
mais confirmou-o em suas traças e aspirações.
A todas as vantagens apresentadas, a conquista do
Maranhão juntava ainda a da contigüidade
com as terras do Peru, e seria portanto o mais terrível
golpe contra as possessões espanholas, insistia
novamente Gedeon. Não foi compreendido. Nassau
e as autoridades superiores preocupavam-se antes com
a conquista de Buenos Aires e do Chile, procurando
longe o que lhes acenava de tão perto. Só
mais tarde atenderam a suas incitações;
em novembro de 641 apresentou-se uma esquadra holandesa
na baía de São Marcos.
biblioVigorava o estado
esquisito criado pela política hesitante de
d. João IV. Não havia guerra, pois fora
decidida na Europa uma aliança ofensiva e defensiva
entre Portugal e Holanda; não havia paz nas
colônias, porque faltava a ratificação
do tratado. Iludido ou decrépito ou aterrado,
Bento Maciel entregou-se sem combater e a Companhia
das Índias mais uma vez alargou seus domínios.
Morris, que tomou parte na operação,
ficou descontente com o modo de proceder de Nassau.
Por que depois de tomada a ilha não passavam
logo ao Pará? Por que não expulsavam
os portugueses ricos deixando apenas os mais pobres
como feitores? Onde se viu em todo o Brasil um português,
quatro meses apenas depois de tomada a terra, embarcar
por sua conta cem caixas de açúcar,
como fez o provedor-mor Inácio do Rêgo,
que se passou para as Índias? Que valia a posse
do Maranhão sem a incorporação
do Amazonas?
biblioEnquanto dominaram,
os flamengos houveram-se com a cobiça e a venalidade
já correntes em Pernambuco. Entretanto, a população
calava-se e parecia mesmo disposta a não reagir,
se não fossem Antônio Muniz Barreiros,
o antigo capitão-mor, e os jesuítas
Benedito Amadeu e Lopo do Couto, este chegado em companhia
de um coadjutor desde 1624. Impeliram a estes chefes
insurgentes sobretudo considerações
religiosas: o holandês era o herege e a fé
católica perigava. O movimento começou
no Itapicuru, libertado em poucos dias, e passou à
ilha. Aqui a resistência foi maior: vieram socorros
de Pernambuco para o flamengo, também os nossos
receberam-nos do Pará, mas a falta de armas
e munições obrigou-os a passarem para
a capitania de Tapuitapera, no continente. Mais tarde,
chegados recursos da Bahia, acometeram novamente a
obra libertadora. A Teixeira de Melo, sucessor de
Barreiros, morto em conseqüência de ferimentos,
coube a glória de restaurar S. Luís
em 1643. O exemplo do Maranhão propagou-se
a Ceará, onde os índios trucidaram os
holandeses, que entretanto voltaram mais tarde e se
mantiveram até 1654. Também produziu
impressão em Pernambuco, e alentou os anhelos
patrióticos ainda desconexos, apontando um
exemplo a seguir.
biblioNos anos seguintes
o fato mais notável foi a introdução
dos jesuítas. A Alexandre de Moura acompanharam
dois, mas retiraram-se, reconhecendo a inutilidade
de seus esforços na defesa dos índios.
Luís Figueira, vindo com Antônio Barreiros,
logrou apagar as prevenções dos colonos,
limitando e encobrindo a sua ação, e
depois de algum tempo recolheu-se à Europa.
Lopo do Couto, além de isolado e portanto impotente,
soube conquistar as simpatias no ardor da reconquista,
de que foi a alma. Figueira, que desde 638 preparava
uma missão no além mar, afinal com muitos
sócios partiu do reino mais Pedro de Albuquerque,
nomeado sucessor de Bento Maciel. Por estarem ainda
os holandeses senhores de S. Luís, passaram
ao Pará; junto à baía do Sol,
Figueira e a maior parte dos companheiros afogaram-se
ou foram mortos pelos índios, em junho de 643.
Os sobreviventes pouco puderam fazer no Maranhão
para onde se transportaram apenas as condições
o permitiram; logo trucidaram-nos selvagens de Itapecuru.
Em 1649 não havia mais um só padre da
Companhia de Jesus em todo o Estado.
biblioEntretanto, na
Europa movia-se o padre Antônio Vieira, grande
valido de dom João IV e um dos maiores escritores
da língua. Pupilo de Fernão Cardim,
colhera dos lábios deste amigo de Anchieta
a história das primeiras missões, e
a carreira de missionário formara uma das primeiras
aspirações de sua alma ambiciosa. Mandado
para o Reino quando se divulgou na Bahia a notícia
da independência de Portugal, passara dez anos
em terras européias por vontade da Companhia
ou insistência do rei, triunfando na tribuna
sagrada, ajudando as mais espinhosas negociações
diplomáticas, engenhando combinações
financeiras como a da Companhia do Comércio,
tão útil na guerra pela libertação
de Pernambuco, influindo nos conselhos da coroa, dando
idéias e defendendo as próprias ou alheias,
estas principalmente, com uma abundância de
expressões, uma sutileza de raciocínios,
um bisantinismo de argumentos, uma fertilidade de
distinções verdadeiramente admiráveis.
Um dia apareceu-lhe o vácuo de todas estas
pompas, invadiu-o a saudade da primeira infância
e da segunda pátria e aspirou missionar no
Maranhão.
biblioEm setembro de
652 partiram adiante nove missionários, trazendo
por superior o padre Francisco Veloso: dois destes
continuaram a viagem para o Pará, onde fundaram
casa. Em seguida à primeira leva embarcou no
Tejo o padre Vieira acompanhado de outros três
jesuítas, que a 16 de janeiro de 53, véspera
de S. Antão, fundearam diante da capital do
estado. Afinal chegavam defensores aos índios.
Para que narrar esta história? Com os índios
só havia duas políticas racionais: ou
deixá-los aprisionar à vontade como
então se fazia, ou proibir expressamente toda
e qualquer escravidão. Nem uma das duas observaram
quer o governo, quer os próprios jesuítas.
Daí lutas contra os colonos cubiçosos,
contra os governadores venais, contra padres e frades
simoníacos, contra os legisladores incoerentes
e a legislação instável, viagens
pelo sertão e rios, travessias do oceano, sermões
cáusticos, papéis sediciosos, expulsões
e exprobrações, em suma uma série
de tumultos trágicos ou burlescos. Mais interessa
que tais historietas apresentar o organismo do estado
cerca de 1662, tal qual o desseca o valente escritor
em uma página memorável, ainda palpitante
no pálido resumo aqui feito.
biblioOs alicerces assentaram
sobre sangue, com sangue se foi amassando e ligando
o edifício e as pedras se desfazem, separam
e arruínam. As terras se esterilizam; as plantações
de mandioca não bastam para garantir o sustento;
tem-se de buscar longe as madeiras e as terras de
tabaco; minguaram a caça e a pesca; as povoações
são muito distantes uma das outras e o trabalho
de remar consome as forças da indiada. Não
há açougue, nem ribeira, nem horta,
nem tenda para vender as cousas usuais para o comer
ordinário, nem ainda um arratel de açúcar,
com se fazer na terra. No Pará, onde todos
os caminhos são por água, não
há uma canoa de aluguel. Para um homem ter
o pão da terra há de ter roça,
e para comer carne há de ter caçador,
e para comer peixe pescador e para vestir roupa lavada
lavadeira, e para ir à missa ou qualquer parte
canoas e remeiros: os moradores de tal cabedal têm
a mais de tudo isto costureiras, fiandeiras, rendeiras,
teares e outros instrumentos e ofícios de mais
fábrica, com que cada família vem a
ser uma república.
biblioOs povoadores primeiros
foram gente pobre: soldados idos de Pernambuco, mal
pagos a ponto de raros poderem calçar sapatos
e meias; ilhéus nobres, mas gente necessitada,
impelida à emigração pela procura
de meios não existentes no arquipélago;
soldados rotos e despedidos tomados na guerra e abandonados
nas costas pelos holandeses; finalmente degradados.
biblioNão guarda
proporção com a população
o número de frades: o Pará, com oitenta
moradores, tem quatro conventos e sai dos moradores
a paga de missas, ofícios e enterros, servem
grande número de confrarias com grandes e involuntários
gastos nas suas festas, porque em serem perguntados,
se ouvem apregoar dos púlpitos e não
basta o que grangeiam num ano para satisfazer os empenhos
desta forçada devoção. Apenas
a Companhia de Jesus não pesa sobre a gente,
porque a renda concedida pela fazenda real a põe
a coberto das necessidades.
biblioAs drogas do estado
baixaram de preço, e mal bastam para pagar
os fretes, em compensação os gêneros
vindos da Europa vendem-se por preços excessivos.
Dominam a ociosidade, a preguiça e o luxo:
grassa o alcoolismo; só na cidade do Pará
gastam anualmente quinze mil cruzados em aguardente
da terra, sem falar na que vai do reino. Os governadores
e oficiais de fazenda pagam-se em primeiro lugar,
pouco deixando para os vigários e soldados;
confiam os melhores ofícios aos criados; prendem,
processam, recrutam, atravessam os gêneros.
biblioFinalmente os índios,
por sua natural fraqueza e pelo ócio, descanso
e liberdade em que se criam, não são
capazes de aturar por muito tempo o trabalho em que
os portugueses os fazem servir, principalmente das
canas, engenhos e tabacos, sendo muitos os que por
esta causa continuamente estão morrendo; e
como nas suas vidas consiste toda a riqueza e remédios
dos moradores, é mui ordinário virem
a cair em pouco tempo em grande pobreza os que se
tinham por mais ricos e afazendados, porque a fazenda
não consiste nas terras que são comuns
senão nos frutos da indústria com que
cada um as fabrica e de que são os únicos
instrumentos os braços dos índios. —
Até aqui Antônio Vieira, com esta vívida
descrição da economia naturista.
biblioExcetuando a de
Bartolomeu Barreiros de Ataíde ao rio de Ouro,
isto é, às terras de que Pedro Teixeira
tomara posse em nome da coroa de Portugal, e a de
João Betencourt Muniz contra os Anibás
do Jari, as expedições tinham de preferência
procurado a margem direita do Amazonas. Em 1663 Antônio
Arnau Vilela dirigiu-se à outra margem e foi
pouco feliz numa entrada do rio Urubu; a vingá-lo
saiu Pedro da Costa Favela, que matou setecentos,
aprisionou quatrocentos índios dos Guaneenas
e Caboquenas, queimou trezentas aldeias. Atrás
destes vieram outros, atraídos pela densidade
da indiada. Logo em seguida começou a ser freqüentado
o rio Negro e finalmente o Branco. A fortaleza da
barra do rio Negro, nas proximidades da atual cidade
de Manaus, ponto de partida para este movimento de
penetração, foi fundada logo depois.
biblioNo ano de 1693
foram determinados os territórios em que cada
uma das ordens poderia estabelecer missões:
aos jesuítas concedeu-se a margem meridional
do Amazonas; aos franciscanos as terras do cabo do
Norte até o rio Urubu; aos carmelitas coube
o rio Negro.
biblioEntrementes os
jesuítas espanhóis no seu ardor de catequizar
foram descendo o Solimões, como os do Paraguai
procuraram o Paranapanema, Ivaí, Igyaçu
e Uruguai. Samuel Fritz, natural da Boêmia,
atraiu ao grêmio da igreja diversas tribos de
línguas travadas, e os Cambebas ou Omagoas
da língua geral, missionando até o Juruá
ou talvez mais a Este. Motivos de saúde levaram-no
ao Pará em setembro de 1689, onde sob vários
pretextos o detiveram cerca de dois anos. Na volta,
apesar de suas excusas, deram-lhe uma escolta para
acompanhá-lo às reduções
e, lá chegado, o oficial comandante protestou
pertencerem a Portugal as terras que se estendiam
até o rio Napo. Enquanto o apóstolo
dos Mainas se dirigia a Lima, no intuito de avisar
da próxima usurpação ao vice-rei
do Peru, que não quis tomar providências,
desde 1695 se discutia no Pará e em Lisboa
a idéia de aumentar o domínio português
por aqueles lados. Forneceu ensejo próprio
o caso da sucessão da Espanha. Inácio
Corrêa de Oliveira expulsou os jesuítas
castelhanos do Solimões. Assim a guerra entre
as duas coroas produziu ao Norte os mesmos efeitos
que de sua união resultaram em Guairá,
Uruguai e Tape. A estas invasões e às
seguintes uniram-se os frades do Carmo, dignos confrades
dos capuchos das bandeiras meridionais. Nestas missões
aprenderam os invasores o emprego do caucho.
biblioAs entradas pelos
afluentes da margem direita iam também continuando:
em 1669 Gonçalo Pires e Manuel Brandão
descobrem cravo, canela e castanha no Tocantins; em
1716 João de Barros Guerra derrota os Torás
no Madeira; em 1720 marcha uma expedição
contra os Juínas do Juruá; em 1724 Francisco
de Melo Palheta sobe o Madeira até as aldeias
espanholas. Com o descobrimento das minas, procura-se
chegar a elas pelos afluentes meridionais. Mais de
uma das tentativas foi bem sucedida e o Maranhão
reclamou como pertencentes a seu distrito as minas
de S. Félix e da Natividade, ribeirinhas do
Tocantins. Desde a terceira década do século
XVIII descem ao Amazonas mineiros de Goiás
e Mato Grosso. Destas descidas a mais fértil
em conseqüências foi a de Manuel Félix
de Lima, que em 1742 navegou o Sararé, Guaporé,
Mamoré, Madeira e alcançou o Maranhão.
Quando o governador de Mato Grosso assentou a capital
na margem do Guaporé apenas tirou a conseqüência
do achamento deste caminho, que com o tempo se tornou
o mais freqüentado.
biblioLentamente a população
ia crescendo, embora epidemias freqüentes inutilizassem
em poucos meses o progresso de anos. Como sinais evidentes
de melhores condições, basta citar a
fundação de um pesqueiro real em 1692
na ilha de Marajó, por Antônio de Albuquerque
Coelho, e o desenvolvimento assumido pela criação
de gado na mesma ilha, a partir dos primeiros anos
do século seguinte. Na Páscoa de 1726
começou a funcionar um açougue em Belém.
Quando La Condamine passou por Belém em 743
a única moeda corrente eram grãos de
cacau; desde maio de 1749 principiou a correr dinheiro
amoedado de ouro, prata e cobre.
biblioEm 1751, o Pará,
a que agora estava subordinado o Maranhão,
contava 9 freguesias e seis ermidas paroquiais, sete
fortalezas, vinte e quatro engenhos de açúcar,
quarenta e duas engenhocas de aguardente, sessenta
e três aldeias de índios missionados.
Muitas medidas concertou o governo para desenvolver
a agricultura, mas só o conseguiu nas cercanias
de Belém. O café, levado de Caiena por
Francisco de Melo Palheta, pareceu despertar o torpor
da população. Pouco tempo durou a experiência;
preferiu-se a apanha de produtos florestais, cravo,
canela, cacau, salsa, mais rendosos e criados à
lei da natureza.
biblioOs anos seguintes
à partida de Antônio Vieira para a Europa
em 1661 assinalam-se pela legislação
caótica a respeito de aldeias, jurisdição
espiritual e temporal, descimentos, salários
e escravidão dos índios. Em 1680 uma
lei proibiu que os índios fossem escravizados,
única solução lógica e
justa, se houvesse gente bastante honesta e bastante
enérgica para fazê-la respeitada.
biblioPara mitigar as
queixas dos colonos criou-se uma companhia de comércio
com o privilégio de vender certos gêneros
de primeira necessidade, que compraria toda a produção
do estado e forneceria escravos africanos, mais fortes
e mais próprios para a pesada labuta agrícola.
biblioPouca repugnância
provocou no Pará, cujos interesses, em partes
divergentes, a distância resguardava; no Maranhão
produziu grande alborôto. Foram expulsos os
jesuítas, deposto e preso o capitão-mor,
mandados procuradores à Corte para apresentar
as queixas do povo e impetrar o perdão régio.
Manuel Bequimão, reinol de origem teutônica,
primeira figura da assuada, pôs-se à
frente da governança. O movimento iniciado
com tamanha valentia ficou estacionário; nem
a fronteira capitania de Tapuitapera aderiu; dos aderentes
da primeira hora, muitos foram-se esgueirando.
biblioNota-se agora o
caso repetido tantas vezes em nossa história:
depois do triunfo, obtido antes por desídia
ou pusilanimidade do atacado que por habilidade ou
fortaleza do atacante, e só depois do triunfo
comprado tão barato, compreende-se que o fato
importa conseqüências, e começa-se
a indagação de quais poderão
ser. Desta mandrice intelectual ou miopia política
não se eximiu Bequimão. Quando apareceu
na barra Gomes Freire de Andrada, nomeado governador
do Estado e acompanhado de força armada para
se fazer obedecido, veio-lhe a veleidade de opor-se
ao desembarque. Nada previra, nada preparara, agora
era tarde. O governador empossou-se do poder sem oposição.
biblioRestava a esperança
de ter trazido o perdão régio; mesmo
este não veio. Prestes instaurou-se o processo,
e sairam condenados à morte Manuel Bequimão,
Jorge de Sampaio e Deiró. Este padeceu o suplício
em efígie; os outros subiram ao patíbulo.
Com os figurantes o governador mostrou benevolência:
de bondoso e benévolo deixou tradição
entre os governados. Por seu conselho aboliram-se
a companhia e o estanco; a questão índia
prosseguiu com os avanços, recuos e sobressaltos
do costume.
biblioDurante seu governo
preocupou-o a questão máxima do Estado:
achar comunicações com o Brasil, independente
do capricho das monções, sobranceira
à linha dos vaus à beira-mar.
biblioPoucos anos antes
Vital Maciel Parente, filho do velho prisioneiro dos
flamengos, depois de derrotar ao Tremembés,
desafrontando o caminho da praia para o Ceará,
navegara muitas léguas pelo Parnaíba
e reconhecera a direção meridional de
seu curso. Deve manar daí a idéia da
proximidade senão identidade entre o Parnaíba
ou Paraguaçu e o São Francisco. Assim
a questão apresentava-se com certa nitidez:
a Bahia representava o objetivo e o Parnaíba
o rumo a seguir.
biblioJoão Velho
do Vale incumbido de resolver o problema levou-o a
bom termo; escreveu a mesma narrativa do descobrimento,
entregue mais tarde a Gomes Freire, no Reino, livro
hoje extraviado ou perdido, e muito importante para
a etnografia e história pátria, a julgar
pelas indicações ligeiras, fornecidas
por Fr. Domingos Teixeira, biógrafo do governador:
biblio“Depois de
dar em larga relação notícia
exata dos sertões que penetrou, rios, e nações
várias que os habitam, sinalando pelos graus
as alturas do polo, mais gasto do trabalho, que dos
anos, veio a acabar [João Velho do Vale] em
benefício da pátria, com serviços
maiores que a gratidão. Descansam suas cinzas
em jazigo humilde na cidade de São Salvador,
onde veio consumar com último termo seus trabalhos
com mais honra que interesse”.
biblioVale fez duas viagens.
Na primeira chegou à serra de Ibiapaba, onde
deixou três estradas; da segunda alcançou
a Bahia, naturalmente partindo da mesma serra, o que
indica traçado bastante oriental, talvez pelas
ribeiras do Poti e contravertentes do rio São
Francisco, Cabrobó, Ibó e Jeremoabo.
biblioE’ impossível
decidir se a esta ou a outra estrada se refere uma
carta de Antônio Albuquerque, sucessor de Gomes
Freire, escrita em julho de 1694 e entregue na Bahia
a d. João de Lencastro, governador geral, em
19 de abril do ano seguinte. Dois dias depois chegava
à mesma cidade o sargento-mor Francisco dos
Santos com quatro soldados e vinte índios,
que tinham acabado de descobrir o caminho, trazendo
uma carta de Antônio de Albuquerque datada de
15 de dezembro. Para retribuir a fineza e ver se podia
encurtar o caminho, o governador geral mandou o capitão
André Lopes ao Maranhão, com carta para
Antônio de Albuquerque datada de 21 de maio.
André Lopes alcançou a capital do Estado
em novembro mas teve de esperar pela volta de Antônio
de Albuquerque, ido ao Pará. Com resposta de
15 de março de 1696 estava na Bahia em 22 de
setembro.
biblioO trecho mais difícil
a vencer ficava no Maranhão pròpriamente
dito: nos rios Piauí e Canindé, nas
ribeiras do Ceará, a uma e outra margem do
São Francisco já abundavam fazendas
de gado e deviam existir numerosas vias de comunicação.
Com o gado desta procedência povoaram-se os
sertões de Pastos Bons, cujas transações
durante algum tempo se fizeram só com a Bahia,
exatamente como as de Pernambuco a montante de Paulo
Afonso.
biblioMais tarde o padre
Malagrida levou a catequese até o rio Codó;
seu sucessor João Ferreira fundou as Aldeias
Altas, hoje Caxias. Conhecida a pequena distância
neste trecho entre o Itapecuru e o Parnaíba
começou a ser preferida esta passagem. Já
em 1747 dela se servia d. Manuel da Cruz, trasladado
do sólio do Maranhão para o de Mariana.
biblioMaranhão
começou a decair desde ou antes do governo
de Gomes Freire, e explica-se o fato pelo abandono
da agricultura, devido a produtos florestais semelhantes
aos do Pará. Ao cravo, à canela, à
castanha sucumbiram os engenhos.
biblio“Erigiram
cerca de cinqüenta engenhos”, escrevia
um contemporâneo em 1703, “que fabricaram
enquanto se não descobriu o cravo e cacau ,
total ruína daqueles homens, como causa de
ócio com que todos deixaram perder a fábrica
de tabaco e açúcar em que se iam aumentando...
Terrível é a dificuldade que têm
os senhores de engenho em acomodar a conveniência
de seus lavradores, em quem também é
impraticável o querer lavrar canas; uns e outros
confessam esta pela melhor conveniência, clamando
que por falta dela estão miseráveis
e que quando dela usavam viviam prósperos;
porém, não há remédio
em ajustarem-se; os lavradores com justa causa queixosos
e teimosos com notável sem-razão; os
senhores de engenho tiranos de suas próprias
consciências: esta desunião é
capaz de impedir as fábrica dos engenhos e
não é o menos outro erro a que aqueles
homens estão amarrados, querendo fabricar tudo
o que gastam, como são lenhas, cinzas, azeites,
farinhas, tabuados e canoas, em cuja fábrica
divertindo a gente dos engenhos lhes não fica
lugar de fabricar açúcar”.
biblioInformando este
papel, acrescentava Antônio de Albuquerque:
como estejam só com o sentido no sertão,
feitos hidrópicos do gentio que só apetecem
e procuram por único remédio, não
tratam de se disporem a outro algum meneio.
biblioEm 1751 a capitania
contava oito freguesias, cinco engenhos de açúcar,
duzentas e três fazendas a criar gado, das quais
quarenta e quatro em Pastos Bons e trinta e cinco
em Aldeias Altas.
biblioAs questões
de limites com a Espanha, não menos que a importância
crescente do Pará, foram causa da metrópole
declarar-lhe subordinado o Maranhão e transferir
para a bacia do Amazonas a capital do Estado. Breve,
porém, graças à cultura do algodão
e do arroz, à introdução de escravos
africanos e à intervenção de
nova companhia de comércio, abriu-se uma era
de prosperidade relativa, muito inferior entretanto
a seus imensos recursos naturais.
* * *
biblioOs
engenhos de açúcar, as roças
de fumo e mantimentos cabiam dentro de uma área
traçada pelo custo de transporte dos produtos.
Além de certo raio vegetava-se indefinitivamente,
a prosperidade real nunca bafejaria o proprietário.
Com a economia naturista, o equívoco podia
prolongar-se por muito tempo, mas por fim patenteava-se
que só próximo do mar ou no pequeno
trecho dos rios navegáveis graças à
ausência de corredeiras e saltos, a labuta agrícola
encontrava remuneração satisfatória.
Queixam-se os primeiros cronistas de andarem os contemporâneos
arranhando a areia das costas como caranguejos, em
vez de atirarem-se ao interior. Fazê-lo seria
fácil em São Paulo, onde a caçada
humana e desumana atraía e ocupava a atividade
geral, na Amazônia toda cortada de rios caudalosos
e desimpedidos, com preciosos produtos vegetais, extraídos
sem cultura. Na outras zonas interiores o problema
pedia solução diversa.
biblioA solução
foi o gado vacum.
biblioO gado vacum dispensava
a proximidade da praia, pois como as vítimas
dos bandeirantes a si próprio transportava
das maiores distâncias, e ainda com mais comodidade;
dava-se bem nas regiões impróprias ao
cultivo da cana, quer pela ingratidão do solo,
quer pela pobreza das matas sem as quais as fornalhas
não podiam laborar; pedia pessoal diminuto,
sem traquejamento especial, consideração
de alta valia num país de população
rala; quase abolia capitais, capital fixo e circulante
a um tempo, multiplicando-se sem interstício,
fornecia alimentação constante, superior
aos mariscos, aos peixes e outros bichos de terra
e água, usados na marinha. De tudo pagava-se
apenas em sal; forneciam suficiente sal os numerosos
barreiros dos sertões.
biblioA criação
de gado primeiro se desenvolveu nas cercanias das
cidade do Salvador; a conquista de Sergipe estendeu-se
à margem direita do São Francisco. Na
outra margem veio dar menos forte e menos acelerado
o movimento idêntico partido de Pernambuco.
Ao romper a guerra holandesa estavam inçadas
de gado as duas bandas do rio em seu curso inferior.
Nem por outro motivo as incorporou Maurício
de Nassau ao território da Companhia das Índias
Ocidentais, e os patriotas da liberdade divina com
tanto afinco as defenderam.
biblioFoi o gado acompanhando
o curso do São Francisco. O povoado maior,
a Bahia, atraiu todo o da margem meridional, que para
lá ia por um caminho paralelo à praia,
limitado pela linha dos vaus.
biblioMais tarde, à
medida que a criação se afastou do litoral,
outros caminhos se tornaram necessários. Um
dos mais antigos passava por Pombal no Itapecuru,
Jeremoabo no Vasabarris, e atingindo o São
Francisco acima da região encachoeirada, chamou
o gado da outra margem. Esta, pertencente a Pernambuco
por todos os títulos, ficou de fato baiana,
foi povoado por baianos, e como o chapadão
do São Francisco se estreita depois da grande
volta, onde ao contrário atinge sua maior expansão
o do Parnaíba, consumou-se aqui a passagem
de um para o outro, e encontraram-se os baianos com
a gente vinda do Maranhão. O riacho do Terra
Nova e o do Brígida facilitaram a marcha para
o Ceará. Pelo do Pontal e pela serra dos Dois
Irmãos passaram os caminhos do Piauí.
Nem o Parnaíba teve poder para conter a onda
invasora: Pastos Bons foi povoado por baianos, e até
meados do século XVIII teve comunicações
exclusivamente com a Bahia.
biblioNa margem pernambucana
do rio S. Francisco possuía duzentas e sessenta
léguas de testada a casa da Torre, fundada
por Garcia d’Ávilla, protegido de Tomé
de Sousa, a qual entre o S. Francisco e o Parnaíba
senhoreava mais oitenta léguas. Para adquirir
estas propriedades imensas, gastou apenas papel e
tinta em requerimentos de sesmarias. Como seus gados
não davam para encher tamanhas extensões,
arrendava sítios, geralmente de uma légua,
à razão de 10$ por ano, no princípio
do século XVIII. Um de tais rendeiros, Domingos
Afonso, por alcunha o Sertão, partindo de um
dos muitos sobrados existentes no São Francisco,
aos quais se dá este nome por causa de vagamente
semelharem um edifício, fundou numerosas e
importantes fazendas nos rios Piauí e Canindé,
legadas por sua morte à Companhia de Jesus,
a quem a coroa as confiscou em proveito próprio,
por ocasião de suprimir a Ordem.
biblioPor esta margem
do São Francisco existiam numerosas tribos
indígenas, a maioria pertencente ao tronco
cariri, algumas caribas como os Pimenteiras, e até
tupis como os Amoipiras. Com elas houve guerras, ou
por não quererem ceder pacificamente as suas
terras, ou por pretenderem desfrutar os gados contra
a vontade dos donos. Estes conflitos foram menos sanguinolentos
que os antigos: a criação de gado não
precisava de tantos braços como a lavoura,
nem reclamava o mesmo esforço, nem provocava
a mesma repugnância; além disso abundavam
terras devolutas para onde os índios podiam
emigrar. Entretanto, muitos foram escravizados, refugiaram-se
outros em aldeias dirigidas por missionários,
acostaram-se outros à sombra de homens poderosos,
cujas lutas esposaram e cujos ódios serviram.
biblioResistiram bastante
os índios do Pajeú, mas em tempo de
d. João de Lencastro e por sua ordem Manuel
de Araujo de Carvalho atacou-os. Simultaneamente penetrava
da Paraíba Teodósio de Oliveira Ledo.
Graças aos esforços dos dois, ficaram
pacificados os sertões de Pajeú, Piancó
e Piranhas. Parte deles abriu comunicações
com Pernambuco, para onde mandava seus gados. Pajeú,
apesar da proximidade, só fez isto em começos
do século XIX; até então gravitava
para a Bahia.
biblioAo compasso do
afastamento do gado, novas passagens e novos caminhos
iam sendo trilhados. Basta citar o de Jacobinas e
a passagem do Juazeiro, pelo qual pautou-se uma estrada
de ferro. Com o crescimento de Cachoeira e o impulso
do plantio de fumo, abriu-se um ramal importante em
busca do baixo Paraguaçu.
biblioA margem baiana
do São Francisco criou gado em não menor
quantidade, embora no terreno cortado de serras e
nas matas litorâneas ou ribeirinhas se conservasse
numerosa população indígena,
sempre disposta a salteios. As bandeiras de Arzão
e Estêvão Parente e outras enfraqueceram,
mas não extinguiram a resistência do
gentio, e anos depois guerreavam-se ainda nas cabeceiras
do rio de Contas, Pardo, etc. O grande proprietário
desta banda chamava-se Antônio Guedes de Brito,
com cento e sessenta léguas, contadas do morro
do Chapéu até águas do rio das
Velhas. Merecem também ser mencionados João
Peixoto Viegas, que incorporou as terras do alto do
Paraguaçu; Matias Cardoso e Fiqueira, conquistadores
paulistas, estabelecidos em situações
muito próprias a favorecerem o tráfego
com S. Paulo. Os caminhos destes lados entroncaram
primeiramente nos que pela margem esquerda do S. Francisco
demandavam o chapadão do Parnaíba; só
mais tarde o Paraguaçu foi procurado desde
o curso superior e seguido até Cacheira, perto
da barra.
biblioOs primeiros ocupadores
do sertão passaram vida bem apertada; não
eram os donos das sesmarias, mas escravos ou prepostos.
Carne e leite havia em abundância, mas isto
apenas. A farinha, único alimento em que o
povo tem confiança, faltou-lhes a princípio
por julgarem imprópria a terra à plantação
da mandioca, não por defeito do solo, pela
falta de chuva durante a maior parte do ano. O milho,
a não ser verde, afugentava pelo penoso do
preparo naqueles distritos estranhos ao uso do monjolo.
As frutas mais silvestres, as qualidades de mel menos
saborosas eram devoradas com avidez. Pode-se apanhar
muitos fatos da vida daqueles sertanejos dizendo que
atravessaram a época do couro. De couro era
a porta das cabanas, o rude leito aplicado ao chão
duro, e mais tarde a cama para os partos; de couro
todas as cordas, a borracha para carregar água,
o mocó ou alforge para levar comida, a maca
para guardar roupa, a mochila para milhar cavalo,
a peia para prendê-lo em viagem, as bainhas
de faca, as broacas e surrões, a roupa de entrar
no mato, os banguês para cortume ou para apurar
sal; para os açudes, o material de aterro era
levado em couros puxados por juntas de bois que calcavam
a terra com seu peso; em couro pisava-se tabaco para
o nariz.
biblioAdquirida a terra
para uma fazenda, o trabalho primeiro era acostumar
o gado ao novo pasto, o que exigia algum tempo e bastante
gente; depois ficava tudo entregue ao vaqueiro. A
este cabia amansar e ferrar os bezerros, curá-los
das bicheiras, queimar os campos alternadamente na
estação apropriada, extinguir onças,
cobras e morcegos, conhecer as malhadas escolhidas
pelo gado para ruminar gregàriamente, abrir
cacimbas e bebedouros. Para cumprir bem com seu ofício
vaqueiral, escreve um observador, deixa poucas noites
de dormir nos campos, ou a menos as madrugadas não
o acham em casa, especialmente de inverno, sem atender
às maiores trovoadas, porque nesta ocasião
costuma nascer a maior parte de bezerros e pode nas
malhadas observar o gado antes de espalhar-se ao romper
do dia, como costumam, marcar as vacas que estão
próximas a ser mães e trazê-las
quase como à vista, para que parindo não
escondam os filhos de forma que fiquem bravos ou morram
de varejeiras.
biblioDepois de quatro
ou cinco anos de serviço, começava o
vaqueiro a ser pago; de quatro crias cabia-lhe uma;
podia assim fundar fazenda por sua conta. Desde começos
do século XVIII, as sesmarias tinham sido limitadas
ao máximo de três léguas separadas
por uma devoluta. A gente dos sertões da Bahia,
Pernambuco, Ceará, informa o autor anônimo
do admirável Roteiro do Maranhão a Goiás,
tem pelo exercício nas fazendas de gado tal
inclinação que procura com empenhos
ser nela ocupada, consistindo toda a sua maior felicidade
em merecer algum dia o nome de vaqueiro. Vaqueiro,
criador ou homem de fazenda, são títulos
honoríficos entre eles.
biblioAs boiadas procuravam
os maiores centros de população, isto
é, as capitais da Bahia e Pernambuco.
biblioSobre as que iam
para a Bahia escreve o seguinte André João
Antonil, anagrama do benemérito jesuíta
João Antônio Andreoni:
biblio“Constam
as boiadas que ordinariamente vêm para a Bahia,
de cem, cento e cinqüenta, duzentas e trezentas
cabeças de gado; e desta quase cada semana
chegam algumas a Capoame, lugar distante da cidade
oito léguas, aonde tem pasto e aonde os marchantes
as compram: e em alguns tempos do ano há semanas
em que cada dia chegam boiadas. Os que as trazem são
brancos, mulatos e pretos, e também índios
que com este trabalho procuram ter algum lucro. Guiam-se
indo uns adiante cantando, para serem desta sorte
seguidos do gado; e outros vêm atrás
das reses tangendo-as e tendo cuidado que não
saiam do caminho e se amontem. As jornadas são
de quatro, cinco e seis léguas, conforme a
comodidade dos pastos aonde hão de parar. Porém,
aonde há falta de água, seguem o caminho
de quinze, e vinte léguas, marchando de dia
e de noite, com pouco descanso, até que achem
paragem aonde possam parar. Nas passagens de alguns
rios, um dos que guiam a boiada, pondo uma armação
de boi na cabeça e nadando, mostra às
reses o vau por onde hão de passar”.
biblioPor maior cuidado
na condução das boiadas, transviavam-se
algumas reses, outras por fracas ficavam incapazes
de continuar a marcha. Contando com isso, alguns moradores
se estabeleceram nos caminhos e por pouco preço
compravam este gado depreciado que mais tarde cediam
em boas condições. Além disso,
faziam uma pequena lavoura, cujas sobras vendiam aos
transeuntes; alguns, graças aos conhecimentos
locais, melhoraram e encurtaram as estradas; fizeram
açudes, plantaram canas, proporcionaram ao
sertanejo uma de suas alegrias, a rapadura. No rio
S. Francisco, desde a barra do Salitre até
São Romão, descobriram-se jazidas de
sal na detenção de três graus
geográficos, que preparado com algum trabalho
provou excelente. Graças a estas circunstâncias,
formou-se no trajeto do gado uma população
relativamente densa, tão densa como só
houve igual depois de descobertas as minas, nas cercanias
do Rio.
biblioPerdeu assim os
terrores a viagem do sertão, e cerca de 1690
havia antes motivos a aconselhá-la. Um contemporâneo
muito bem informado fala no preço altíssimo
dos gêneros estrangeiros, na depreciação
dos frutos da terra, na menor feracidade do solo em
conseqüência do cansaço, nas limitações
impostas à cultura do tabaco, “gênero
fabricado por pretos, por brancos, por forros, por
cativos, por ricos, por pobres, de que todos em sua
qualidade se alimentavam e vestiam”, nos excessos
do contrato do sal, na prepotência da magistratura,
na dificuldade de cobrar dívidas, no desenvolvimento
anormal da mão-morta. “Das fazendas,
terras, lavouras e propriedades possuídas das
religiões nem Sua Majestade tem tributos, nem
subsídios, nem ainda dízimos, nem as
misericórdias, nem os hospitais, nem as sés,
matrizes e mais igrejas, nem as confrarias e irmandades,
nem as pobres órfãs e viúvas
têm esmola alguma; só são úteis
às religiões que as possuem e não
a outra pessoa alguma... Anualmente vão indo
às religiões muitas propriedades, terras
e fazendas, ou por compra, ou por deixa, ou por herança,
ou por demanda de pretensões de sessenta, setenta,
oitenta, noventa e cem anos, as quais em poder dos
vassalos seculares eram sujeitas a dízimos,
tributos e mais pensões e incorporadas em religiões
logo ficam isentas, e o pior é que aquele tanto
ou quanto que pagavam de fintas, tributos subsídios
e outros impostos, tornam a cair sobre os miseráveis
seculares”.
biblioDesvanecidos os
terrores da viagem ao sertão, alguns homens
mais resolutos levaram família para as fazendas,
temporária ou definitivamente e as condições
de vida melhoraram; casas sólidas, espaçosas,
de alpendre hospitaleiro, currais de mourões
por cima dos quais se podia passear, bolandeiras para
o preparo da farinha, teares modestos para o fabrico
de redes ou pano grosseiro, açudes, engenhocas
para preparar a rapadura, capelas e até capelães,
cavalos de estimação, negros africanos,
não como fator econômico, mas como elemento
de magnificência e fausto, apresentaram-se gradualmente
como sinais de abastança.
biblioSe a Bahia ocupava
os sertões de dentro, escoavam-se para Pernambuco
os sertões de fora, começando de Borborema
e alcançando o Ceará, onde confluíam
a corrente baiana e pernambucana. A estrada que partia
da ribeira do Acaracu atravessava a do Jaguaribe,
procurava o alto Piranhas e por Pombal, Patos, Campina
Grande, bifurcava-se para o Paraíba e Capibaribe,
avantajava-se a todas nesta região. Também
no alto Piranhas confluiram o movimento baiano e o
movimento pernambucano, como já fica indicado.
biblioSobre a extensão
de terras ocupada pelo gado vacum oferece-nos dados
positivos o maravilhoso Antonil-Andreoni: “Estende-se
o sertão da Bahia até a barra do rio
de S. Francisco, oitenta léguas por costa;
e indo para o rio acima até a barra que chamam
de Água-Grande, fica distante a Bahia da dita
barra cento e quinze léguas; de Santunse cento
e trinta léguas; de Rodelas, por dentro, oitenta
léguas; das Jacobinas, noventa, e do Tucano
cinqüenta... Os currais da parte da Bahia estão
postos na borda do rio de São Francisco, na
do rio das Velhas, na do rio das Rãs, na do
rio Verde, na do rio Paramirim, na do rio Jacuípe,
na do rio Ipojuca, na do rio Inhambupe, na do rio
Itapicuru, na do rio Real, na do rio Vasabarris, na
do rio Sergipe e de outros rios, em os quais, por
informação tomada de vários,
que correram este sertão, estão atualmente
mais de quinhentos currais...
biblio“E posto
que sejam muitos os currais da parte da Bahia chegam
a muito maior número os de Pernambuco, cujo
sertão se estende pela costa, desde a cidade
de Olinda até o rio São Francisco, oitenta
léguas; e continuando da barra do rio de São
Francisco até a barra do rio Iguaçu,
contam-se duzentas léguas. De Olinda para Oeste
até o Piagui, freguesia de Nossa Senhora da
Vitória, cento e sessenta léguas, e
pela parte do Norte estende-se de Olinda até
o Ceará-mirim, oitenta léguas, e daí
até o Açu trinta e cinco, e até
o Ceará Grande, oitenta; e por todas vem estender-se
desde Olinda até esta parte, quase duzentas
léguas...
biblioOs currais desta
parte hão de passar de oitocentos; e de todos
estes vão boiadas para o Recife e Olinda e
suas vilas e para o fornecimento das fábricas
dos engenhos desde o rio de São Francisco até
o rio Grande: tirando os que acima estão nomeados
desde o Piagui, até a barra de Iguaçu
e de Paranaguá e rio Preto; porque as boiadas
destes rios vão quase todas para a Bahia, por
lhes ficar melhor caminho pelas Jacobinas, por onde
passam e descansam...
biblioAs [cabeças
de gado] da parte da Bahia se tem por certo que passam
de meio milhão, e mais de oitocentas mil hão
de ser as da parte de Pernambuco, ainda que destas
se aproveitam mais os da Bahia, para onde vão
muitas boiadas, que os pernambucanos”.
biblioMuito tempo viveu
esta gente entregue a si mesmo, sem figura de ordem
nem de organização. Como eram católicos
e a igreja à freqüência dos sacramentos,
naturalmente qualquer vigário ou algum mais
animoso, mais zeloso ou mais cúpido saía
de tempos em tempos a desobrigar as ovelhas remotas.
Depois da instalação do arcebispado
da Bahia, criaram-se freguesias no sertão,
enormes, de oitenta, cem léguas e mais. Ali
era cobrado o imposto meio civil meio eclesiástico
do dízimo. Os dizimeiros que o arrematavam,
depois de ter feito a experiência, preferiram
deixar a outros o trabalho da arrecadação:
um dos fazendeiros ou qualquer pessoa capaz do interior
em seu nome ia pelos vizinhos recolher os bezerros
dizimados, pois a paga realizava-se em gênero;
depois de alguns anos, três ou quatro conforme
a convenção, prestava contas: cabia-lhe
pelo trabalho um quarto do gado, exatamente como aos
vaqueiros.
biblioA carta régia
de 20 de janeiro de 1699, primeiro esforço
para introduzir alguma ordem naquela massa amorfa,
mandou criar nas freguesias do sertão juízes
à semelhança dos de vintena, que saíam
dos mais poderosos da terra, e em cada freguesia um
capitão-mor e cabos de milícia obrigados
a socorrer e ajudar os juízes. A resistência
contra estes se equiparava à resistência
contra os juízes de fora, e ficariam seqüestrados
os bens do réu até sentença final;
as penas pecuniárias deveriam ser preferidas
por não se poder facilmente executar as corporais.
Ouvidores, corregedores eram obrigados a uma visita
trienal. Se tais ordens foram cumpridas e nos arquivos
de além-mar existirem relatórios das
correções, nem um documento poderá
nos ajudar tanto no estudo e conhecimento da vida
sertaneja.
biblioOs capitães-mores
deixaram fama de violentos, arbitrários e cruéis;
não eram, porém, incontratáveis
e maior ou menor sempre encontraram oposição.
Reinava respeito natural pela propriedade; ladrão
era e ainda é hoje o mais afrontoso dos epítetos;
a vida humana não inspirava o mesmo acatamento.
Questões de terra, melindres de família,
uma descortesia mesmo involuntária, coisas
às vezes de insignificância inapreciável
desfechavam em sangue. Por desgraça não
se dava o encontro em campo aberto: por trás
de um pau, por uma porta ou janela aberta descuidosamente,
na passagem de algum lugar ermo ou sombrio lascava
o tiro assassino, às vezes marcando o começo
de longa série de assassinatos e vendetas.
Com a economia naturista dominante, custava pouco
ajuntar valentões e facinorosos, desafiando
as autoridades e as leis. Para apossar-se destes régulos
só havia dois recursos: a astúcia ou
o auxílio de vizinhos.
biblioAlém do
sentimento de orgulho inspirado pela riqueza, pelo
afastamento de autoridades eficazes, pela impunidade,
a criação de gado teve um efeito, que
repercutiu longamente. Graças a ela foi possível
descobrir mina. Desde 1618 o autor dos Diálogos
das Grandezas do Brasil dizia que o problema da mineração
não consistia em encontrar metais, —
estes existiam não restava dúvida, pois
o Oriente é mais nobre que o Ocidente e portanto
o Brasil mais opulento que o Peru; o problema verdadeiro
consistia na dificuldade de alimentar os mineiros.
E expunha um plano: “O primeiro que se devia
fazer antes de bulir nelas, depois de estarem certos
que eram de proveito, houvera de plantarem-se muitos
mantimentos ao redor do sítio onde elas estão
e como os houvesse em abundância tratar-se-ia
da lavoura das minas; mas isto se faz pelo contrário,
porque sem terem mantimento entenderam em tirar o
ouro e como as minas estão muito pelo sertão
os que vão levam de carreto o mantimento necessário
e como se lhe acaba tornam-se e deixam a lavoura que
tinham começado. E esta cuido que é
a verdadeira causa de darem as ditas minas pouco de
si”.
biblioO plano decorria
da natureza das coisas e Fernão Dias Pais,
sem nunca ter lido os Diálogos das Grandezas
do Brasil, conservados inéditos até
muito poucos anos, obedeceu-lhe na famosa jornadas
das esmeraldas; seria suficiente enquanto os mineiros
se limitassem a bandos mais ou menos numerosos, e
a alimentação vegetal pudesse ser suprida
com a caça e a pesca; depois do alborôto
provocado pelos descobertos era indispensável
recurso menos aleatório, e impunha-se a necessidade
de gado vacum e de muito gado.
biblioNão podia
ir de S. Paulo: em março de 1700 o capitão-mor
Pedro Taques de Almeida confessava a d. João
de Lencastro, governador geral: “destas vilas
não é possível fazer-se [a remessa
das boiadas], porque sendo vinte já perecem
os povos, nem se vende peso de carne, e valendo uma
rês dois mil réis prometem os mineiros
oito, pelo que interessam nas minas, porque o preço
geral até o presente foi cinqüenta oitavas
e em alguma necessidade cem”.
biblioO recurso só
podia partir da bacia do rio S. Francisco. “Pelo
dito rio ou pelo seu caminho, expõe um documento
pouco posterior a 1705, lhe entram os gados de que
se sustenta o grande povo que está nas minas,
de tal sorte que de nem uma outra parte lhe vão
nem lhe podem ir os ditos gados, porque não
os há nos sertões de São Paulo
nem nos do Rio de Janeiro. Da mesma sorte se provêm
pelo dito caminho de cavalos para suas viagens, de
sal feito de terra no rio S. Francisco, de farinhas
e outras cousas, todas precisas para o trato e sustento
da vida.
biblioO rio S. Francisco,
acrescenta, desde a sua barra que faz no mar junto
à vila de Penedo, em igual distância
de oitenta léguas da Bahia e Pernambuco, de
uma e outra parte, assim do que pertence à
jurisdição de Pernambuco como à
da Bahia (para os quais serve de divisão o
dito rio) tem às suas beiras várias
povoações, umas mais chegadas, outras
mais distantes do dito rio; e na mesma forma se vão
continuando por ele acima, por espaço de mais
de seiscentas léguas, até se ajuntarem
na barra que nele faz o rio das Velhas, em cuja altura
se acham hoje as últimas fazendas de gados
de uma e outra banda do dito rio de S. Francisco,
sem ter da dita barra até esta altura parte
despovoada nem deserta em a qual seja necessário
dormir ou alvergarem no campo os viandantes, querendo
recolher-se na casa dos vaqueiros, como ordinàriamente
fazem, pelo bom acolhimento que nelas acham”.
biblioAssim, como o alto
Paraíba do Sul, mas em proporções
muito mais grandiosas, também o rio de S. Francisco
serviu de condensador da população.
biblioÀ vista
disto poder-se-ia esperar muitas vilas nestas regiões
tão povoadas. Puro engano: só foram
criadas no século XVIII, mais uma prova da
diferença entre as capitanias del-rei e as
de donatários na apreciação das
municipalidades.
biblioAs câmaras
do sertão não divergiam das do litoral,
isto é, possuíam direito de petição,
podiam taxar os gêneros de produção
local, davam os juízes ordinários, mas
eram antes de tudo corporações meramente
administrativas.
biblioDos assentos da
câmara do Icó no Ceará, instalada
em 1738, constam posturas relativas ao plantio de
mandioca para farinha e de carrapateira para o fabrico
de azeite, à proibição de exportar
farinha por causa da carestia, aos salários
que deviam cobrar alfaiates, sapateiros e outros oficiais,
à morte de periquitos, etc.
biblioNada confirma a
onipotência das câmaras municipais descoberta
por João Francisco Lisboa, e repetida à
porfia por quem não se deu ao trabalho de recorrer
às fontes.
* * *
À
preocupação de minas cederam já
Cristóvão Jaques e Martim Afonso. Nas
suas capitanias esperavam encontrá-las João
de Barros e sócios. Duarte Coelho contava descobri-las
no rio de S. Francisco, e só deixou de ir pesquisá-las
pessoalmente por circunstâncias alheias à
sua vontade. Em Porto Seguro correram notícias
de ouro uns quarenta anos depois da viagem de Pedr’Álvares.
Luís de Melo da Silva embarcou-se à
sua procura para as terras do Amazonas.
biblioTomé de
Sousa dispôs uma expedição que
transpôs a serra do Espinhaço. Sob seus
sucessores volveram outros com pedras preciosas, especialmente
esmeraldas. Pareceram por fim tais e tantos os vestígios
de haveres a uma inteligência perspícua
como a de Gabriel Soares, que abandonou o próspero
engenho de Jeriquiriçá e perdeu anos
com requerimentos junto às cortes de Lisboa
e de Madrid para prestar à pátria o
serviço de revelar-lhe as riquezas ocultas.
biblio“Dos metais
de que o mundo faz mais conta, que é ouro e
prata, — escreve no último capítulo
de seu monumental Tratado, — fazemos aqui tão
pouca que os guardamos para o remate e fim desta história,
havendo-se de dizer deles primeiro, pois esta terra
da Bahia tem dele tanto quanto se pode imaginar; do
que pode vir a Espanha cada ano maiores carregações
do que nunca vieram das Índias Ocidentais,
se Sua Majestade for disso servido”.
biblioA tentativa em
que se meteu não provou a verdade destes assertos,
mas perpetuou-lhe o nome. A ele prende-se a tradição
de grandes viagens ao interior e de inexauríveis
minas de prata. Melchior Dias, seu parente, ofereceu
mostrar o metal branco em quantidade igual à
do ferro em Biscaia. Após muitas negaças,
intimado a cumprir a promessa, levou o governador
geral do Brasil com alguns mineiros às serras
de Itabaiana. As experiências feitas com azougue
deram nada, com fogo deram fumo, informa testemunha
de vista. Apesar de tudo continuou inabalável
a crença nos tesouros ocultos de Melchior e
na riqueza argentífera. Ainda no último
quartel do século XVII procurava-se, esperava-se
prata.
biblioPartilhando das
crenças de Gabriel Soares, d. Francisco de
Sousa mandou do Espírito Santo às esmeraldas
e de S. Vicente a Sabarabuçu. Quando veio-lhe
substituto dirigiu-se para Madrid, onde conseguiu
a separação do Estado em dois governos,
em 1608; coube-lhe o do Sul com a superintendência
exclusiva das minas em toda a colônia. Nestes
trabalhos perdeu a vida em São Paulo; a esperança
conservou sempre e soube comunicá-la a outros.
biblioA incumbência
dada a d. Francisco passou por sua morte a Salvador
Correia e a alguns de seus descendentes, que durante
quatro gerações pesquisaram ouro, prata,
esmeraldas nos pontos mais diversos. Salvador neto
adquiriu por fim certo cepticismo a propósito
de metais; antes de qualquer outro convenceu-se da
não existência de prata: “em sua
consciência o declara que de Itabaiana para
o Sul, quarenta léguas do mar, não há
minas de prata, porquanto nestas partes andou ele
conselheiro e fez todas as experiências para
a descobrir, e é diferente terreno do de Potosi”,
concluía no Conselho Ultramarino em 3 de maio
de 1677. De Potosi podia falar com pertinência,
pois fora até os Andes.
biblioPor que se generalizou
e persistiu esta crença com tanta pertinácia?
Porque se acreditava na identidade estrutural do Ocidente
e do Oriente da América; porque tomaram a malacacheta
por prata, como Salvador afirma de Melchior Dias;
porque nas idéias do tempo o Oriente era mais
nobre que o Ocidente, e não podia faltar aqui
o que abundava lá: “por boa razão
de filosofia esta região deve ter mais e melhores
minas que a do Peru”, lê-se em documento
escrito cerca de 1610, “por ficar mais oriental
que ela e mais disposta para a criação
de metais”. Talvez influíssem também
o nome do rio da Prata legado pelos primeiros navegadores
e os informes confusos dos indígenas.
biblioO ouro, não
procurado ou procurado com menor afinco, aparecia
entretanto às pequenas quantidades na capitania
de S. Vicente. Desde o tempo de Mem de Sá encontraram
alguns grãos Brás Cubas, provedor da
fazenda, e Luís Martins, mineiro ido de Portugal.
biblioForam igualmente
felizes outros. A crer na tradição houve
descobertos riquíssimos; Afonso Sardinha, dizia-se,
deixara oitenta mil cruzados de ouro em pó.
Há de entrar exagero nesta conta, ou pelo menos
muito ogó haveria no monte. Se tanto abundasse
o metal, a população teria afluído
aos bandos e os paulistas não levariam tanto
tempo vida de bandeirantes.
biblioAntonil-Andreoni
parece mais próximo da verdade, quando diz
a respeito destas primitivas lavras “que de
um outeiro alto distante três léguas
da vila de S. Paulo, a que chamam Jaraguá,
se tirou quantidade de ouro que passava de oitavas
a libras. Em Parnaíba, também junto
da mesma vila no serro Ibituruna, se achou ouro e
tirou-se por oitavas. Muito mais e por muitos anos
se continuou a tirar em Parnaguá e Curitiba,
primeiro por oitavas, depois por libras, que chegaram
a alguma arroba posto que com muito trabalho para
o ajuntar, sendo o rendimento no catar limitado”.
biblioMais que as libras
e oitavas, importam porém o gosto pelas pesquisas
auríferas assim mantido e a prática
do ouro de lavagem. Esta familiaridade influiu de
maneira benéfica sobre o desenvolvimento ulterior
da mineração.
biblioD. Pedro II, depois
de ver frustradas ou mal correspondidas todas as esperanças
concentradas nas minas, resolveu dar um grande passo:
dirigiu as mais lisonjeiras cartas à gente
principal de São Paulo, confiando-lhe por assim
dizer a questão.
biblioEste apelo aos
brios paulistas provocou o maior entusiasmo: um rei
ainda se reputava então semideus, e uma carta
régia honra quase sobre-humana. De chofre aparelharam-se
e partiram nos rumos mais opostos numerosas bandeiras,
e desde logo se evidenciou que, se o Brasil contivesse
haveres minerais, não poderia conservá-los
encobertos por mais tempo.
biblioO mais famoso destes
bandeirantes, transformado agora em mineiro pelo pedido
do rei, chamava-se Fernão Dias Pais. Administrava
algumas aldeias de índios Guanãan, desfrutava
a casa grande característica da economia naturista
e transmontara já o pino da vida. Alistou-se
na cruzada do metal, apesar de tudo isto. Dez anos
consumiu na porfia, e ao falecer nas matas do rio
Doce levou a certeza de haver descoberto as célebres
esmeraldas, secularmente esquivas.
biblioSua morte precedeu
de pouco o despontar dos descobertos fenomenais. Garcia
Rodrigues Pais era seu filho, uma filha sua esposara
Manuel da Borba Gato, ambos astros de primeira grandeza
nestes cometimentos.
biblioDe Minas Gerais
o nome indica a fartura, a onipresença dos
haveres. Quem os descobriu primitivamente é
impossível apurar, tanto se contradizem as
versões; o fato ocorreu pouco depois de 1690.
Segundo Antonil-Andreoni, um mulato de Curitiba encontrou
no riacho chamado Tripuí uns granitos cor de
aço, que vendeu em Taubaté a Miguel
de Sousa por meia pataca a oitava; levados ao Rio
reconheceu-se neles ouro finíssimo. Foi este
o primeiro descoberto.
biblioSeguiram-se o de
Antônio Dias, a meia légua de Ouro Preto,
o de João de Faria, o de Bueno e de Bento Rodrigues
pouco mais distantes, os do ribeirão do Carmo
e do Ibupiranga, todos nas cercanias de Ouro Preto
e Mariana; parte da bacia do alto rio Doce foi escavada,
justificando o nome de minas gerais primeiramente
aplicado a este distrito.
biblioOutros centros
foram o rio das Mortes nas proximidades de São
João e São José de El-Rei, caminho
de São Paulo; o rio das Velhas, revelado por
Manuel da Borba Gato, caminho da Bahia; Caeté
e, ainda e sempre no alto rio Doce e na cordilheira
do Espinhaço, o serro do Frio. Novas minas
foram descobertas em Pitangui, Paracatu e alhures;
já pertencem à segunda corrente e dispensam
enumeração especial.
biblioDos caminhos primitivos
um partia de S. Paulo, acompanhava o Paraíba,
transpunha a Mantiqueira, cortava as águas
do rio Grande e além bifurcava para o rio das
Velhas ou o Doce, conforme o destino; outro ou saía
de Cachoeira na Bahia e subia o rio Paraguaçu,
ou tomando outras direções, passava
a divisória do São Francisco, margeava-o
a maior ou menor distância até o rio
das Velhas que perlongava; o caminho do Rio seguia
por terra ou por mar até Parati, pela antiga
picada dos Guaianá galgava a serra do Facão
nas cercanias da atual cidade do Cunha e em Taubaté
entroncava na estrada geral de São Paulo. Mais
tarde o entroncamento fez-se em Pindamonhangaba.
biblioArtur de Sá,
primeira autoridade que visitou os descobertos, tratou
com Garcia Rodrigues Pais a abertura de uma linha
mais direta de comunicações com a cidade
de São Sebastião, a verdadeira capital
do Sul. O filho de Fernão Dias deu conta cabal
da incumbência. Nas proximidades da hodierna
Barbacena reuniam-se os caminhos do rio das Mortes,
o do rio das Velhas, e o do rio Doce; começou
daí, venceu a Mantiqueira, procurou o Paraibuna,
seguiu-o até sua barra no Paraíba e
pela serra dos Órgãos chegou à
baía do Rio, passando em Cabaru, Marcos da
Costa, Couto e Pilar. O trecho entre o Paraíba
e a baía já estava ligado em 1725 por
outro caminho, devido a Bernardo Soares de Proença,
correspondendo em parte ao traçado de E. de
F. de Petrópolis a Entre-Rios, em parte acompanhando
o rio Inhomirim.
biblioAinda uma década
depois dos primeiros descobertos, custava um boi cem
oitavas, a mão de sessenta espigas de milho
trinta oitavas, um alqueire de farinha de mandioca
quarenta oitavas, uma galinha três ou quatro
oitavas, um barrilote de aguardente, carga de um escravo,
cem oitavas, um barrilote de vinho, carga de um escravo,
duzentas oitavas, um barrilote de azeite duas libras
(libra = 128 oitavas).
biblio“Não
se pode crer o que padeceram ao princípio os
mineiros por falta de mantimentos, achando-se não
poucos mortos com uma espiga de milho na mão
sem terem outro sustento”, informa Antonil-Andreoni.
“Porém tanto que se viu a abundância
do ouro que se tirava e a largueza com que se pagava
tudo o que lá ia, logo se fizeram estalagens
e logo começaram os mercadores a mandar às
minas o melhor que chega nos navios do Reino e de
outras partes, assim de mantimentos como de regalo
e de pomposo para se vestirem, além de mil
bugiarias de França, que lá também
foram dar... E não havendo nas minas outra
moeda mais que ouro em pó, o menos que se pedia
e dava por qualquer coisa eram oitavas.
biblioCom vender coisas
comestíveis, aguardente e garapas muitos em
breve tempo acumularam quantidade considerável
de ouro, — continua o mesmo autor. Porque como
os negros e os índios escondem bastantes oitavas
quando catam nos ribeiros e nos dias santos e nas
últimas horas do dia tiram ouro para si, a
maior parte deste ouro se gasta em comer e beber,
e insensìvelmente dá aos vendedores
grande lucro, como costuma dar a chuva miúda
aos campos, a qual continuando a regá-los sem
estrondo, os faz muito férteis. E por isso
até os homens de maior cabedal não deixaram
de se aproveitar por este caminho dessa mina à
flor da terra, tendo negras cozinheiras, mulatas doceiras
e crioulos taverneiros ocupados nesta redosíssima
lavra, e mandando vir dos portos de mar tudo o que
a gula costuma apetecer e buscar”.
biblioSem serem procuradas
apareceram as minas de Cuiabá. Pascoal Moreira
Cabral e seus companheiros andavam à cata de
índios quando encontraram os primeiros grãos
de ouro em 1719, em tamanha abundância que extraía-se
com as mãos e paus pontudos; tirava-se ouro
da terra como nata de leite, na expressão pitoresca
de Eschwege. Os bandeirantes viraram mineiros sem
pensar e sem querer. A experiência das desordens
das minas gerais foi aproveitada, e não houve
aqui as terríveis desordens que fizeram tristemente
célebre o rio das Mortes.
biblioAs notícias
desta facilidade única de minerar, levadas
ao povoado, agitaram a população, e
levianamente se lançou à terrível
jornada que começava no Tietê próximo
do Itu, prosseguia pelo Paraná até junto
das Sete Quedas, varava para as águas do Mbotetéu
até sua barra no Paraguai e subindo por este
procurava o São Lourenço e o Cuiabá.
Muitos naufragaram; morreram outros de inanição
ou devorados pelas feras; dos escapos à morte
muitos perderam nos saltos e corredeiras as fazendas
com que pretendiam negociar; as fazendas salvas chegavam
podres a seu destino, porque não toldavam as
canoas. E depois de tantos perigos encontravam a mais
negra miséria em Cuiabá.
biblioAlguns fatos narrados
por Barbosa de Sá, testemunha e cronista desse
período, mostram o horror da situação.
biblioSó em 1721
chegou a primeira ferramenta para a mineração.
Não havia pescadores e um dourado colhido acaso
vendia-se por sete e oito oitavas. Muitos andavam
opilados e hidrópicos, todos em geral com pernas
e barrigas inchadas, com cores de defuntos; apetecia-se
comer terra e muitos o faziam. Em 1723 apareceram
os primeiros porcos e galinhas. Em 1725 chegou-se
a dar por um frasco de sal meia libra de ouro (256$,
a câmbio de 27). O milho, antes de brotado,
era comido pelos ratos; depois de nascido caíam-lhe
em cima os gafanhotos; se espigava, o sabugo saía
sem grãos; o que granava tinha de ser colhido
verde para os pássaros o não comerem.
As ratazanas eram tantas que um casal de gatos foi
vendido por uma libra de ouro, e os filhotes a vinte
e trinta oitavas. Em 1729, por falta de fazendas,
venderam-se camisas de alguns lençóis
que se desfaziam a doze oitavas de ouro; a vara de
algodão da terra a três e a quatro oitavas;
sal não havia nem para batizado.
biblioA situação
melhorou muito lentamente. Em 1725 começou-se
a navegação pelo Pardo, Coxim e Taquari,
o que facilitava bastante a viagem, principalmente
depois de se fazerem roças, criação
de gado e até carros para transportar canoas
no varadouro de Camapuã, entre o Paraguai e
o Paraná.
biblioEm 1728 plantou-se
cana: “logo começaram a moer nas moendinhas
que chamamos escaroçador e a estilar em lambiques
que formavam de tachos, apareceram logo águas
ardentes de cana que vendiam a cinco e seis oitavas
de ouro e as frasqueiras a quarenta oitavas. Com isto
foi que se começou a lograr saúde, a
cessarem enfermidades e terem os homens boas cores
que até então tinham-nas de defuntos,
foram a menos as hidropisias e inflamações
de barrigas e pernas e a mortandade de escravos que
té aí se experimentava enterrando-se
cada dia aos montões”.
biblioAté então
a gente se concentrava nas cercanias de Cuiabá.
Em 1734 transpuseram a serra e na região dos
Parecis afloraram novas minas. Grandes florestas encontradas
ali são a origem do nome de Mato Grosso. Em
1736 descobriu-se caminho por terra de Cuiabá
ao Paraguai, e pelas águas do Guaporé
a mineração foi se estendendo. Aquele
ponto mais remoto ainda do que Cuiabá sofreu
iguais misérias; despertou, porém, risonhas
esperanças conhecer-se a existência de
aldeias de jesuítas espanhóis a distâncias
relativamente pequenas. Os primeiros que foram às
reduções encontraram bom acolhimento
e obtiveram algum gado. Brotou a idéia entabular
comércio e logo outros aventureiros realizaram
mais de uma expedição sem o fruto apetecido,
porque ordens restritas vedaram quaisquer transações
com os portugueses. Nas reduções encontraram
notícia de estarem na bacia do Madeira.
biblioPoucos anos antes
Francisco de Melo Palheta chegara às aldeias
do Mamoré, partindo do Pará. Animado
por este exemplo, Manuel Félix de Lima em 1742
atirou-se ao rio Guaporé e foi sair em Belém.
Mais tarde João de Sousa de Azevedo embarcou
no Arinos, foi dar no Tapajós e voltou pelo
Madeira. Apesar das dificuldades de navegação
ainda hoje não vencidas, a viagem de um e outro
rio foi repetida e aqueles sertões de Noroeste
ficaram ligados à baixada do Amazonas.
biblioOutra ligação
se estabelecera antes com S. Paulo por via terrestre
para evitar os índios brabos. Desde a barra
do São Lourenço começaram os
Paiaguás e Guaicurus a perseguir as pessoas
que iam para Cuiabá ou de lá tornavam.
Apareciam de súbito em inúmeras canoas,
e conhecendo os mínimos acidentes dos pantanais
escolhiam os pontos de ataque e sabiam furtar-se aos
que perseguiam. Diz-se que obravam incitados pelos
castelhanos de Asunción e é muito possível,
porque mineiros e bandeirantes não eram vizinhos
para se desejar. Em todo o caso o ouro que tomavam
encontrava a saída no Paraguai e tanto bastava
para estimulá-los em seus salteios.
biblioO primeiro destes
sucessos ocorreu em 1725. Diogo de Sousa com muita
gente entrava no Xané, no delta do S. Lourenço,
quando apareceu o gentio. Foram mortas seiscentas
pessoas: salvaram-se apenas um branco e um preto:
como troféu e despojo, os Paiaguás levaram
vinte canoas. Repetiram-se os ataques nos anos seguintes,
ora mais perto, ora mais longe do Taquari, ponto obrigado
depois das plantações do Camapuã
e da navegação do Pardo. No meio de
expedições para tomar vingança
dos Bárbaros, surgiu a idéia de abrir
caminho para Goiás e o povo concorreu com três
mil oitavas para a obra. Realizou-se Antônio
Pinto de Azevedo, que já estava de volta a
Cuiabá em setembro de 1737, com cavalarias
e gados, os primeiros ali introduzidos.
biblioOs descobertos
de Cuiabá lembraram a Bartolomeu Bueno da Silva
que, uns quarenta anos antes, percorrendo os sertões
em companhia de seu pai, o primeiro Anhangüera,
vira entre os índios Guaiá pepitas de
ouro servindo-lhes de ornatos. Deviam ser muito auríferas
aquelas regiões, pois o metal chegara a atrair
a atenção do aborígene. Sentiu-se
capaz de achá-las outra vez, ofereceu-se a
tentá-lo e seu oferecimento aceito, partiu
de São Paulo em janeiro de 722.
biblioFiara demais de
sua retentiva: durante mais de três anos andou
a esmo em todos os sentidos, até as cabeceiras
do Araguaia; parte de sua gente desceu o Tocantins
e chegou ao Pará; parte caiu em encontro com
os índios, parte morreu de fome; depois de
comidos os cachorros e alguns cavalos, “fiz
trinta e cinco sermões sem mudar de tema”,
conta um companheiro do segundo Anhangüera, “animando
a todos que não esmorecessem, certificando-lhes
para diante rios de muitos peixes, campos de muitos
veados, matos de muita caça, mel e guarirobas.
Perguntavam os miseráveis: quando? Respondia-lhes:
nestes dias, e nestes permitia Deus que chegássemos
e tudo se achava certo. Com isto cessaram as mortes
e não morreu mais ninguém, e mal de
muitos se não fora o pregador”.
biblioAfinal, em 21 de
outubro de 725, Bartolomeu Bueno chegou triunfante
a S. Paulo, assegurando iguais grandezas às
de Cuiabá, com a vantagem dos ares não
serem tão contagiosos. Os rios, cujas passagens
lhe foram concedidas e a seu sócio Bartolomeu
Pais de Abreu, pai do benemérito historiador
paulista Pedro Taques, dão idéia aproximada
do seu itinerário, a trechos seguido no traçado
da E. F. Mogiana: Atibaia, Jaguari, Mogi, Sapucaí,
Pardo Grande, Velhas, Paranaíba, Corumbá,
Meia-Ponte e Pasmados.
biblioA primeira mineração
condensou-se no rio Vermelho, afluente do Araguaia;
mas também aqui apareceram minas generalizadas
e os mineiros se dispersaram.
biblioEm 733 Domingos
Rodrigues do Prado descobriu as de Crixás,
Manuel Dias da Silva as de Santa Cruz e Calhamare
as de Antas; no mesmo ano Manuel Rodrigues Tomar descobriu
as de Água-Quente e nos seguintes as de S.
José e Traíras; em 734 Carlos Marinho
descobriu as de S. Félix, em 736 descobriu
as de Cachoeira, Santa Rita e Moquém; em 737
Francisco de Albuquerque Cavalcante descobriu as que
guardam seu nome; datam de 739 o descoberto de Amaro
Leite, de 740 o de Arraias, devido a Francisco Lopes,
de 740 o de Pilar, devido a João de Godói
Pinto da Silveira, de 746 o de Santa Luzia, devido
a Antônio Bueno de Azeredo. Estas datas são
aproximadas, e variam com os cronistas.
biblioA situação
geográfica de Goiás permitia-lhe fàcilmente
comunicar-se com a baixada amazônica e com os
chapadões de Parnaíba, de S. Francisco
e do Paraná; sua aparição tardia
na história e relativa proximidade caminho
de São Paulo pouco tempo conservou-se único;
apesar das proibições repetidas e arbitrárias
abriram-se mais outras picadas, e gados e aventureiros
afluiram de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Piauí
e Maranhão. Já se viu que poucos anos
depois daqui partiram recursos para os cuiabanos.
biblioVárias expedições
se organizaram à procura de jazidas particularmente
abundantes, sibilinamente anunciadas em roteiros misteriosos:
— Martírios, assim chamados da semelhança
entre as formas das rochas vizinhas e os instrumentos
da Paixão, Araez, rio Rico, etc. Nos roteiros,
observa Eschwege, que ainda alcançou alguns,
guardados ciosamente nas famílias, três
irmãos ou três irmãs podem ser
três serras ou três rios; juntamente com
a trindade, anda em geral a alavanca encostada à
gameleira, ou a corrente pregada ao cedro, ou o prato
de estanho largado numa loca, designados como conhecenças
inequívocas do tesouro e nunca vistos. Os Martírios,
se de fato existem, aguardam ainda descobridor.
biblioA estas três
capitanias auríferas cumpre agregar a da Bahia,
não menos rica. Jacobinas e rio de Contas,
este sobretudo, justificaram todas as esperanças
do velho Gabriel Soares; mas a metrópole julgou
estes descobertos demasiado próximos do litoral,
expostos portanto a assaltos de piratas, e proibiu
fossem minerados. O veto respeitou-se o menos possível,
embora se guardassem as aparências; daí
certo ar de clandestinidade de especificá-la.
Mais tarde a proibição foi levantada;
contudo Bahia continuou antes agrícola e pastoril
que mineira, e Goiás afogou-a com o seu esplendor.
biblioAs Ordenações
do Reino enumeravam as minas entre os direitos reais.
Como a experiência de quase um século
patenteasse a dificuldade de desfrutá-las,
triunfou a idéia, sugerida talvez por d. Francisco
de Sousa e incorporada no regimento de 1603, de permitir
a lavrança, com a ressalva do quinto para a
Coroa. Enquanto o ouro andou por oitavas e libras,
a porcentagem foi por assim dizer deixada aos escrúpulos
de cada mineiro, mera afirmação de um
princípio teórico; com os descobertos
gerais de Cataguases transformou-se em propulsor de
todo o mecanismo colonial.
biblioNo caos inicial
a única autoridade, o guarda-mor, demarcava
os lotes e apartava para o rei uma data, adjudicada
em licitação a quem mais desse. O quinto
cobravam provedores ad hoc ou arrecadavam registos
colocados em pontos de passagem forçada: Taubaté,
para quem procurava São Paulo, ou Parati, no
caminho do Rio. Nas ribeiras do São Francisco
a coleta ficava mais difícil, porque a partir
do arraial de Matias Cardoso, perto da atual Januária,
abriram-se muitos caminhos para o Norte e nascente;
pelo rio desciam canoas e muitos preferiam este veículo,
mais seguro e mais econômico. A dificuldade
de arrecadação ainda avultou quando
Garcia Pais estabeleceu comunicação
direta com a baía do Rio de Janeiro. Mesmo
assim o rendimento foi considerável.
biblioNova era começa
em 1711, com a chegada de Antônio de Albuquerque,
a criação de vilas e a instalação
das municipalidades. Albuquerque reuniu as câmaras
e pessoas mais notáveis, para assentarem o
melhor meio de garantir os interesses da Coroa. Parecia
racional uma capitação paga por cada
bateia empregada na lavra; as câmaras preferiram
impostos de entrada sobre fazendas secas, molhados
e escravos. A invasão de Duguay-Trouin chamou
o governador ao Rio; o ponto ficou suspenso; continuaram
os registros e o sistema antigo.
biblioBrás Baltásar
da Silveira, novo governador, aceitou o oferecimento
feito pelas câmaras de Vila-Rica, Sabará
e Carmo, de darem anualmente, em paga do quinto, trinta
arrobas de ouro (1 arroba = 16:834$000, ao câmbio
de 27); para auxílio da cobrança, concedeu-lhes
d. Brás uma quota no direito das entradas.
Durou esta avença um quinqüênio,
sem que o governo da metrópole jamais parecesse
satisfeito.
biblioDe 1718 a 722,
as câmaras abriram mão da quota de importação
e obrigaram-se a pagar anualmente vinte e cinco arrobas.
A corte encheu-se, porém, de escrúpulos
com a injustiça da capitação
até ali vigente; preferiu casas de fundição,
a que seria recolhido todo o ouro em pó, reduzido
a barras e desde logo quintado. Avessas a este sistema,
as municipalidades propuseram pagar trinta e sete
arrobas e assim se fez até 1725.
biblioDe então
até 1750 vigorou, ora o sistema de capitação,
ora o de casas de fundição. Estas foram
definitivamente estabelecidas desde o começo
do reinado de José I; afiançaram as
câmaras o rendimento anual de cem arrobas; havendo
sobra, poderia servir para cobrir de déficit
do ano seguinte; se este apresentasse também
sobra, a do ano anterior ficava pertencendo definitivamente
à Coroa; se houvesse déficit e não
pudesse ser suprido pelo modo indicado, proceder-se-ia
à derrama, isto é, cada municipalidade
concorreria proporcionalmente, de modo a completar-se
a centena de arrobas. A câmara mais opulenta,
a de Vila-Rica, tinha, como recursos exclusivos, os
aferimentos de pesos e medidas, os foros das casas,
a renda dos açougues e a da cadeia; somado
tudo não chegava a cinco contos ânuos.
Quer isto dizer que a escrupulosa metrópole
passava adiante a responsabilidade na odiada capitação.
biblioLevariam longe
os pormenores do regime fiscal, imposto a Minas Gerais
e, até onde o permitiam as distâncias
e a população esparsa, à Bahia,
Goiás e Mato Grosso; a proibição
de abrir novas picadas, a proibição
de fundar novos engenhos, a proibição
de andar com ouro em pó, a proibição
de andar com ouro amoedado, a proibição
de exercer o ofício de ourives, os impostos
múltiplos, os donativos implorados por prazo
certo e curto e depois exigidos imperiosamente por
prazo muito maior, estranhando-se a ousadia de suspendê-los
nos termos do acordo inicial, mostrariam até
onde pode chegar uma administração sem
melindres e sem inteligência e uma gente sem
energia, se não fosse o distrito adiamantino.
biblioApenas uma amostra.
Divulgada em 1730 a existência de diamantes
no Tijuco, logo d. Lourenço de Almeida, governador
de Minas Gerais, estabeleceu a capitação
de 5$ por cada escravo empregado nas lavras; no ano
seguinte mandou despejar as minas, expulsar da comarca
do Serro negros, mulatas e mulatos forros, limitar
a mineração a certa zona, pagando-se
pelo menos 60$ anualmente, afinal por muito favor
reduzidos a 20$, proibiu vendas fora do povoado e
só as permitiu na povoação com
o sol de fora; em 1734 a capitação foi
elevada a 40$, e logo em seguida vedada a mineração
e mandado que nem um dos habitantes do distrito pudesse
ter bateia, almocrafe, alavanca ou qualquer outro
instrumento de minerar. Com o tempo foi-se tornando
mais tirânico o regime, de modo a permitir que
a Coroa portuguesa ficasse senhora do mercado de diamantes
do mundo inteiro.
biblioO ouro produzido
no Brasil escapa a qualquer avaliação
exata. Levando em conta uma porção de
dados, Calógeras calcula que Goiás e
Mato Grosso, desde o começo da mineração
até 1770, deram uma produção
total de nove mil arrobas; daquela data a 1822 mais
umas duas mil e quinhentas: ao todo cento e noventa
mil quilogramas. Entre São Paulo, Bahia e Ceará
haveria mais setenta e cinco a oitenta mil. Chega-se
assim ao total de duzentos e setenta mil quilos para
a produção destas partes do Brasil,
durante o período colonial até 1822.
biblioPara Minas Gerais
avalia-se em sete mil e quinhentas arrobas do princípio
até 1725; em seis mil e quinhentas arrobas
a produção dos onze anos seguintes;
em doze mil arrobas de 1736 a 1751; em dezoito mil
arrobas de 1752 a 1787; em três mil e quinhentas
a quatro mil arrobas de 1788 a 1801; em três
mil e quinhentas arrobas de 1801 a 1820. Até
1820 a extração total em Minas devia
andar por 51.500 arrobas, digamos 772.500 quilogramas.
biblioOs quintos representam
apenas uma parte do regime fiscal: havia mais os dízimos,
os direitos das entradas, as passagens dos rios.
biblioOs dízimos,
estabelecidos em 1704, rendiam no tempo de Teixeira
Coelho mais de sessenta contos anuais: para os seis
anos e cinco meses decorrentes do primeiro de agosto
de 1777 ao último de dezembro de 1783 o contrato
foi arrematado por 388 contos.
biblioOs direitos de
entrada cobravam-se nos registros do caminho novo,
da Mantiqueira, do Itajubá, do Jaguara, do
Ouro-fino, do Jacuí, de Sete Lagoas, do Jequitibá,
do Zabelê, do ribeirão da Areia, de Nazaré,
de Olhos d’Água, de S. Luís, de
Santo Antônio, de Santa Isabel, do Pé
do morro, do Rebelo, do Inhacica, do Caeté-mirim,
do Galheiro, do Bom-Jardim, de Simão Vieira,
de Jequitinhonha, de Itacambira, do rio Pardo. Pagavam
entrada os escravos introduzidos pela primeira vez,
cabeças de gado vacum, muar ou cavalar, e as
cargas de fazenda seca ou molhada. Por molhados entendiam-se
os comestíveis, ferro, aço, pólvora
e tudo o mais impróprio para se vestir. O rendimento
das entradas em 1776 foi de mais de cento e quarenta
e sete contos.
biblioPagava-se passagem
nos rios Sapucaí, Verde, Mortes, Grande, Paraupeba,
Velhas, Urucuia, Baependi, Pará, São
Francisco, Jequitinhonha. Ofícios de justiça
e fazenda pagavam também donativos, terças
e novos direitos.
biblioNa constância
da derrama surgiram os primeiros fenômenos da
decadência da mineração. Explicaram-na
pelos extravios cada vez mais numerosos, graças
à multiplicidade de vias de comunicação.
Teixeira Coelho, que passou onze anos em Minas, ocupando
altos empregos, e deixou escrito precioso sobre a
capitania, indica outras causas: a pobreza dos mineiros;
falta de negros, monopólios deles e direitos
excessivos que pagavam; abusos nas concessões
dos guardas-mores; demandas sobre terras e águas
minerais; mau método de minerar; demandas sobre
os privilégios dos mineiros a que chamam da
trintada, divisão das fábricas por heranças,
etc.
biblioTodos estes males
influem sensivelmente na decadência das minas,
observa Eschwege, mas todos eles procedem de duas
únicas causas, e são terem se franqueado
ao povo as minas sem limitação e sem
inspeção sobre seus trabalhos e a falta
de leis montanísticas adequadas a este país...
Os mineiros do país aproveitam só o
que podem separar mecânicamente e de uma maneira
muito imperfeita. Assim, contando todas as perdas
que sofrem, causadas pela sua ignorância, desde
que tiram o ouro do seu leito natural até que
sai fundido da casa de fundição e da
moeda, não será por certo exagerado
quem avaliar estas perdas em a metade do mesmo ouro...
biblioDesenganada de
ouro, a população procurou outros meios
de subsistência: a criação do
gado, a agricultura de cereais, a plantação
de cana, de fumo, de algodão; com o tempo avultou
a produção ao ponto de criar-se uma
indústria especial de transportes, confiada
aos históricos e honrados tropeiros.
biblioDiversas tentativas
se fizeram para atravessar a mata e comunicar diretamente
com o mar. A mais feliz consistiu na passagem do alto
rio Doce para o Pomba, iniciada por 1766. A presença
de poaia facilitou o comércio com os índios
daquelas regiões. Coroados, Coropotos, extratores
da erva medicinal, cujo emprego, segundo uma tradição
encontrada por Martius, lhes ensinou a irara: “asseguraram-nos”,
escreve ele, “que estes filhos da natureza aprenderam
o uso da raiz hemética com a irara, espécie
de marta, que costuma, quando bebeu demais água
impura ou salgada de muitos riachos e tanques, mastigar
a raiz e a erva para provocar vômito. Contudo
isto pode muito bem ser uma das muitas histórias
infundadas que sem exame os portugueses receberam
dos índios”.
biblioAssim, a penetração
ou melhor a exteriorização fez-se rápida
através da zona de ipecacuanha. Já na
era de 780 Miguel Henrique, o Mão de Luva,
chegava por este caminho às minas de Cantagalo.
Mais tarde plantou-se café naquela comarca,
que desceu o Paraíba ou procurou o porto de
Magé (por Aparecida, Serra do Capim, Paquequer,
estrada construída pelo barão de Aiuruoca),
enquanto não pôde servir-se da Estrada
de Ferro de Pedro II e da Estrada de Ferro da Leopoldina.
* * *
biblioOs
triunfos colhidos em guerras contra os estrangeiros,
as proezas dos bandeirantes dentro e fora do país,
a abundância de gados animando a imensidade
dos sertões, as copiosas somas remetidas para
o governo da metrópole, as numerosas fortunas,
o acréscimo da população, influiram
consideravelmente sobre a psicologia dos colonos.
Os descobertos auríferos vieram completar a
obra. Não queriam, não podiam mais se
reputar inferiores aos nascidos no além-mar,
os humildes e envergonhados mazombos do começo
do século XVII. Por seus serviços, por
suas riquezas, pelas magnificências da terra
nata, contavam-se entre os maiores beneméritos
da coroa portuguesa.
biblioTal transfiguração
não se deram pressa em reconhecer os filhos
do além-mar. Daí atritos freqüentes.
Gregório de Matos, baiano que se formara em
Coimbra e aliás não revela simpatia
particular pelos patrícios, já na segunda
metade do século XVII manejava o látego
da sátira contra o reinol: vem degradado por
crimes ou fugido ao pai, ou por não ter o que
comer, salta no cais descalço, despido, roto,
trazendo por cabedal único piolhos e assobios,
curte a vida de misérias, amiúda roubos,
ajunta dinheiro, casa rico e ocupa os cargos da república!
De outra parte não faltariam respostas mordazes
e remoques equivalentes.
biblioDestes atritos
e malquerenças a primeira manifestação
pública explodiu nas terras do ouro com a chamada
guerra dos Emboabas, uma das designações
dos reinóis na língua geral. Para o
caso de que vamos agora tratar a designação
era pouco rigorosa. Naquelas brenhas tão alongadas
do litoral devia haver poucos portugueses; é
provável, quase certo, estivessem em minoria
nos combates: mas a alcunha, além de afrontosa,
resolvia uma questão difícil: como chamar
os adversários, em sua maioria gente da ribeira
do São Francisco, se muitos vieram de São
Paulo ou procediam de paulistas, e eram baianos os
de uma, pernambucanos os de outra margem? Chamavam
emboabas a todos os que não sairam de sua região,
explica Rocha Pita.
biblioOs paulistas afetavam
profundo desprezo pelo emboaba, tratavam-no por vós,
como se fora escravo, informa o cronista destes sucessos.
Durante o prazo de sua prepotência entre a serra
da Mantiqueira e a do Espinhaço, nas primeiras
décadas da anarquia incompreensível,
entregaram-se aos maiores excessos e só a força
deu leis. Um dia, ante a violência praticada
à sua vista contra um pobre diabo, protestou
Manuel Nunes Viana, emboaba poderoso, afazendado nas
margens do Carinhanha, prático em guerras contra
o gentio do S. Francisco, nas quais conquistara o
posto de mestre de campo. Tanto bastou para promoverem-no
a chefe dos oprimidos. Os paulistas por sua vez sentiam-se
espoliados com a presença de tantos forasteiros.
Conservam ódio aos reinóis, lembrava
Antônio Rodrigues da Costa, no Conselho Ultramarino
de que era membro, porque os reputam por usurpadores
daquelas riquíssimas minas, que eles entendiam
firmemente serem patrimônio seu, que lhes havia
dado ou a sua fortuna ou a sua indústria. Entre
espoliados e oprimidos o conflito era fatal.
biblioA morte da gente
miúda não se levava em conta, mas um
dia os forasteiros mataram José Pardo, paulista
poderoso, e seus patrícios começaram
a se armar, para em janeiro do seguinte ano de 1709
dar cabo dos emboabas. Estes, fogosos agora com o
prestígio do chefe eleito, anteciparam a ameaça
e sairam à procura do inimigo para dar-lhe
combate. A força de São Paulo, que descuidosa
acampava junto ao rio das Mortes, recolheu-se a um
capão quando chegou a multidão arrebanhada
no rio das Velhas e alto rio Doce. De cima das árvores
os paulistas disparam tiros certeiros, mas sua resistência
não podia aturar muito, por estar cercado o
mato de modo a não permitir saída e
além disso falecerem víveres. Espalhou-se
que os emboabas se contentariam com desarmar os contrários,
e estes, fiados na promessa vaga, pediram bom quartel,
prometendo entregar as armas. Concedeu-lho Bento do
Amaral Gurgel, cabo da força atacante, fluminense
de instintos sanguinários; apenas, porém,
os viu indefesos “fez um tal estrago naqueles
miseráveis que, deixando o campo coberto de
mortos e feridos, foi causa de que ainda hoje se conserve
a memória de tanta tirania, impondo àquele
lugar o infame título de capão da Traição”.
biblioEnsoberbecidos
com esta vitória, os emboabas proclamaram Manuel
Nunes Viana governador daquelas minas. O aclamado,
alheio às malfeitorias e crueldades de Bento
do Amaral, praticadas longe de suas vistas e sem seu
assentimento, mostrou-se capaz do cargo; elevou-se
de chefe de partido a cabeça de governo, criou
juízes, distribuiu postos, ofícios e
patentes, regularizou a concessão das minas,
cobrou os quintos devidos ao régio erário,
arrecadou direitos sobre os gados e fazendas importadas,
sopeou a anarquia reinante. Excessos praticou necessariamente,
nem com a facilidade poderia evitá-los, mas
sua obra foi benéfica e depois dela percebe-se
o arrefecimento da barbárie universal. Era
aliás um espírito de certa cultura;
gostava de ler a Cidade de Deus e obras congêneres;
a suas expensas se imprimiu o Peregrino da América
de Nuno Marques Pereira, um dos mais apreciados livros
para nossos avós do século XVIII, como
provam suas numerosas edições.
biblioA notícia
dos sucessos do rio das Mortes atraiu às minas
Fernando de Lencastro, governador do Rio. Os espíritos
estavam ainda muito excitados para reconhecer-lhe
a autoridade, mesmo se admitissem sua imparcialidade
e desta com razão ou sem ela duvidavam. Em
Congonhas, próximo de Ouro Preto, Nunes Viana
saiu-lhe ao encontro, rodeado de cavalaria e infantaria,
e o governador intimidado fez-se de volta para sua
capital. Diz-se que secretamente procurou-o o chefe
dos emboabas, assegurando-lhe sua lealdade, prometendo
sujeitar-se à ordem legal apenas serenasse
a efervescência de sua gente. Parece exata a
história, pois quando mais tarde acudiu Antônio
de Albuquerque, sucessor de d. Fernando, acompanhado
apenas de dois capitães, dois ajudantes e dez
soldados, Nunes Viana entregou-lhe voluntàriamente
o mando e recolheu-se a suas fazendas na margem pernambucana
do São Francisco.
biblioDonde menos se
esperava anunciou-se nova procela. Os paulistas, sobreviventes
ao morticínio do capão da Traição,
foram recebidos em sua terra com desprezo até
das próprias mulheres, que “blasonando
de Pantasiléas, Semiramis e Zenobias, os injuriavam
por se haverem ausentado das minas fugitivos, e sem
tomarem vingança dos seus agravos, estimulando-os
a voltar na satisfação deles com o estrago
dos forasteiros”. Estas palavras ardentes encontraram
eco; Piratininga tornou-se praça de guerra;
numerosos voluntários, sedentos de vingança,
gruparam-se à roda de Amador Bueno da Veiga
e se encaminharam para além da Mantiqueira.
Sua marcha foi bastante vagarosa. Saiu-lhes ao encontro
Antônio de Albuquerque, esperançado em
ser tão bem sucedido com eles como fora com
os emboabas. Enganou-se, porém; a marcha vagarosa
dos paulistas não provinha de hesitações
ou receios e por tal modo receberam o governador que
dali mesmo seguiu para o Rio pelo velho caminho de
Parati, receioso de ser preso por aqueles súditos
turbulentos. Da cidade, pelo caminho novo de Garcia
Pais, mandou avisar os emboabas do perigo que os ameaçava.
biblioAssim tiveram tempo
de se aparelhar e fortalecer até chegar Amador
Bueno com seus mil e trezentos soldados. Feriu-se
logo o combate e durou vários dias; alguns
paulistas, desanimados com a resistência, falaram
em levantar o cerco; alguns emboabas, à vista
da mortandade nas próprias fileiras, pensaram
em se render. O ódio era demasiado forte de
parte a parte para prevalecer qualquer solução
mais humana. Afinal, quando os emboabas já
não podiam se manter e dispunham uma sortida
desesperada, misteriosamente retiraram-se os paulistas,
talvez com o boato de marcharem do rio das Velhas
e de Ouro Preto forças consideráveis.
Não deram com isso a partida por perdida e
trataram de preparar ou fingiram preparar outra expedição
mais forte para recomeçar a luta; interveio,
porém, d. João V, com o prestígio
semi-divino da realeza naquelas inteligências
rudimentares: “entendendo o soberano que ânimos
generosos se deixam vencer com qualquer afago, lhes
enviou pelo novo governador um retrato seu... para
que entendessem que visitando-os daquele modo, já
que pessoalmente o não podia fazer, tomava
aos paulistas debaixo de sua real proteção”.
Com este singular presente se satisfizeram, e esquecidos
dos agravos passados depuseram as armas.
biblioDepois da guerra
dos emboabas, houve ainda desordens em Minas Gerais,
uma delas, em 1720, sufocada enèrgicamente;
não mais inspirou-as o espírito de nativismo,
isto é, a queixa de espoliação
e sua importância é meramente provinciana.
biblioMal estavam pacificadas
as terras do ouro e já rebentava a manifestação
análoga na capitania de Pernambuco.
biblioDepois da expulsão
dos flamengos, o governador fixou residência
em Olinda, e nela o primeira bispo estabeleceu a sede
da diocese em 1688. A nobreza antiga reedificou a
casaria destruída, que ocupava só por
ocasião das festas, pois a maior parte do ano
passava nos engenhos. O Recife, graças à
superioridade do porto, continuou a prosperar e adquiriu
população numerosa e permanente; preferiam-no
para morada os negociantes, gente que em geral procurava
enriquecer depressa, para ir desfrutar a fortuna no
além-mar. Os olindenses olhavam para eles com
toda a soberania, de sua prosápia e de seus
postos, desdenhosamente chamavam-nos mascates, e andavam
sempre em rusgas por causa de contas queixando-se
uns de usura e extorsão, outros de mau pagamento
e má fé.
biblioDepois de enriquecer,
alguns recifenses procuravam ter também parte
no governo, obter hábitos e ganhar postos de
milícia. Conseguiram-no com grande indignação
da nobreza, acostumada ao privilégio destas
honrarias. Em 1703 fizeram não só eleitores
como um vereador. Com isto tanto mais se exacerbaram
as paixões. Olinda aproveitou sua dupla superioridade
de capital civil e eclesiástica para a todo
propósito amesquinhar a rival. Desde então
empenharam-se os mascates em obter para o Recife o
título de vila, condição de autonomia
dos negócios municipais. Enquanto reinou d.
Pedro II, lembrado ainda da guerra dos vinte e quatro
anos, valeu a oposição da nobreza; d.
João V cedeu à influência contrária
poucos anos depois de haver subido ao trono.
biblioA solução
ofendeu os brios olindenses, mas talvez não
provocasse violências se a outro coubesse executar
a ordem régia. Governava a capitania Sebastião
de Castro Caldas, ex-governador do Rio e da Paraíba,
português leviano, sarcástico, desdenhoso
dos subordinados, adito dos reinóis. A 15 de
fevereiro de 1710 levantou o pelourinho da vila nova,
em honra sua chamada de S. Sebastião; a 3 de
março levantou outro com maior solenidade,
por não ser bastante o primeiro. A delimitação
do termo de Recife, a jurisdição dos
juízes ordinários, a serventia dos diversos
ofícios malquistaram o ouvidor, o juiz de fora
e o juiz ordinário com o governador. Correu
que se pretendia depô-lo, como em 1666 se fizera
a Jerônimo de Mendonça Furtado. Sob este
pretexto, verdadeiro ou falso, começou ele
a prender pessoas importantes, e ameaçava ainda
outras quando a 17 de outubro desfecharam-lhe um tiro
às 4 horas da tarde, no meio da rua. Já
tardava este desfecho: “em Pernambuco se acha
que mais gente se tem morto a espingarda depois de
sua restauração do que matara a mesma
guerra”, escrevera-se alguns anos antes.
biblioNão foram
pegados os três mandatários nem se descobriu
mandante. Caldas, ligeiramente ferido, proibiu que
a dez léguas do Recife andasse alguém
armado e mandou prender mais gente. O fato de superintender
a tudo sem se recolher ao leito deu azo aos agitadores
para espalharem ser fingido o ferimento e o tiro mandado
dar por ele próprio; a proibição
de andar-se armado apontaram como prova de estar disposto
a entregar a terra aos franceses, que acabavam de
atacar o Rio. Com isto cresceu a fermentação;
perdendo a calma, o governador expediu vários
destacamentos às freguesias da mata, a efetuar
novas prisões. Levantou-se o povo; parte da
tropa foi cercada, parte capitulou, parte fraternizou,
e levas numerosas de populares puseram-se em marcha
para o Recife.
biblioA 5 de novembro
chegou à praça a notícia do levante;
a 6, Caldas tentou negociar com os levantados, que
a nada quiseram atender; a 7 de madrugada embarcou
numa sumaca para a Bahia, levando consigo alguns dos
mais odiados de seus partidários.
biblioDos populares,
recrutados pela maior parte em Santo Antão,
S. Lourenço, Jaboatão, Varge, Muribeca,
alguns eram movidos sobretudo pela pretensa traição
do governador; a outros instigava ódio aos
mascates, e formava artigos de seu programa o saque
do Recife. Tê-los dissuadido deste projeto deveu-se
principalmente aos religiosos regulares e seculares.
Na entrada da nova vila houve algumas violências,
mas de pequeno vulto e a tempestade desfez-se sem
os estragos temidos. O pelourinho foi derribado, anulada
a eleição, inutilizados os pelouros,
privados de insígnias os oficiais mascates;
um ou outro devedor menos consciencioso liquidou as
contas sumàriamente; contudo houve mais farsas
e desfeitas que violências e desforços.
biblioCom retirada de
Sebastião de Castro vagara o lugar de governador;
abertas as vias de sucessão para saber o nome
do substituto, saiu o do bispo da diocese. Alguns
insurgentes opuseram-se à posse. Bernardo Vieira
de Melo, sargento-mor, um dos cabos na guerra dos
Palmares, propôs se proclamasse umas república
à moda de Veneza ou se procurasse a proteção
de alguma potência cristã. Hoje é
festa estadual em Pernambuco o dia 10 de novembro,
em honra deste gesto peregrino. Que idéia formava
da república e da adaptabilidade a terras tão
atrasadas, a povo tão alheio às práticas
políticas e administrativas, de organismo complexo
e delicado qual a constituição veneziana,
provàvelmente se ignorará até
a consumação dos séculos. Ouvira,
talvez, falar no seu caráter aristocrático
e ingenuamente equiparava a nobreza de Olinda aos
cultos patrícios das lagunas. Do protetorado
de qualquer nação cristã que
se poderia seguir? Esperava-o fim idêntico ao
da invasão flamenga, — bem o provava
o atual movimento, triunfante graças principalmente
à crença que se divulgou da convivência
do governador expulso com os franceses. De resto podem
ser falsas estas alegações, transmitidas
só por adversários rancorosos, empenhados
em agravar as culpas dos vencidos. Acabou-se reconhecendo
legítimo o sucessor indicado pelas vias de
sucessão, Sua Ilustríssima o Senhor
d. Manuel.
biblioD. Manuel Álvares
da Costa, chegado de Portugal no começo do
ano, mantivera com o representante do poder civil
as relações antes frias que cordiais
de praxe entre os cabeças das duas sociedades
perfeitas. Ao ser informado do tiro, foi visitar o
ferido de quem na mesma ocasião se despediu
por ter de partir para a Paraíba. Em caminho
agregou-se à comitiva, como dias antes convencionara,
José Inácio Arouche, o ex-ouvidor malquistado
com o governador a propósito da divisão
do termo do Recife, e objeto de ódio muito
particular seu e dos mascates, apesar de português.
Sebastião de Castro implicou-o entre os mandantes
do crime a fautores da conspiração,
deu ordem de capturá-lo e, não sendo
achado em casa, mandou segui-lo até onde fosse
encontrado: era fácil a diligência, pois
Arouche não andara com mistérios.
biblioA 20 de outubro
amanheceu cercada a igreja de Tapirema, onde pernoitara
o bispo, por uma tropa de soldado encarregada de realizar
a prisão. D. Manuel escreveu a Sebastião
de Castro protestando contra a desatenção
à sua pessoa e descomposição
imerecida e obrigando-se a dar conta do perseguido.
A resposta foi remessa de força mais numerosa,
acusações odiosas contra o ex-ouvidor,
ordem de trazê-lo vivo ou morto: “se o
dito doutor está inocente, tenho bens com que
satisfazer-lhe a injúria e cabeça com
que pague quando por este respeito mereça castigo...
Este doutor ficou em Pernambuco ou por pecado da terra
ou pelo meus, pois não só embaraçou
o meu governo, mas pôs a V. S.ª em ódio
com as sua ovelhas, como é público e
notório, pois todos reconhecem as letras e
virtudes de V. S.ª e atribuem aos seus conselhos
e vinganças tudo quanto se tem visto e experimentado”.
Arouche escapou à prisão porque sacerdotes
do lugar deram-lhe escapula e por caminhos desviados
levaram-no à Paraíba.
biblioD. Manuel voltou
para Olinda no dia 10 de novembro, a 15 tomou posse
do governo e logo, para aquietar os povos sublevados
desde São Francisco até Paraíba,
perdoou-lhes a revolução e o tiro, “confiado
na grandeza de el-rei nosso senhor que Deus guarde,
o haja de confirmar”.
biblioSeguem-se alguns
meses de calma aparente. A nobreza desfrutava ruidosamente
a vitória, dando tudo terminado; apenas em
junho do ano seguinte falou-se de tirar proveito das
fortalezas para impedir o desembarque do novo governador,
se não trouxesse o perdão esperado,
ou permiti-lo sòmente sob certas condições.
biblioEntretanto a inércia
dos mascates encobria um trabalho de mina muito ativo.
Com habilidade foram separadas da causa de Olinda
as freguesias situadas entre o cabo de Santo Agostinho
e o rio S. Francisco, obtida a cooperação
do capitão-mor da Paraíba, do mestre
de campo dos Henriques, do governador dos índios,
do comandante da fortaleza de Tamandaré; aos
poucos, para não despertar atenção,
reunidos víveres em quantidade suficiente para
resistir a um cerco; aliciado o terço do Recife
com seus oficiais, fiéis a Sebastião
de Castro até a última hora. Esta pelo
menos é a versão olindense. Como nada
transpirou até o momento decisivo dificilmente
se compreende; não se sabe o que mais admirar,
se a manha da gente mascatal, se a cegueira da nobreza,
e ganha foros de verossímil a história
depois contada pelos mascates de que nada se previra,
nada se preparara, tudo surgira de momento. Até
hoje só têm triunfado no Brasil movimentos
improvisados, que dispensam longas combinações
e prodigalidades cerebrais.
biblioSoldados do terço
do Recife e os de Bernardo Vieira de Melo entraram
em rusga por causa de mulheres à toa; o sargento-mor
tomou o partido dos seus e exigiu o castigo dos outros;
estes imploraram-lhe perdão, mas encontrando-o
mal disposto e implacável, sairam para a rua
disparando tiros, dando vivas ao rei e morras aos
traidores, prenderam o cabo dos Palmares e levaram-no
para a cadeia. O bispo e Valenzuela Ortiz, antigo
juiz de fora que interinamente substituía a
Arouche na ouvidoria, assistiram à prisão
e aprovaram-na. Como por encanto ocupou as fortalezas
a gente recifense; tudo isto a 18 de junho de 1711.
No outro dia o bispo assinou comunicações
às freguesias rurais aquietando-as. Se houvera
de fato plano, a execução correu magistral:
de um só golpe ficavam guarnecidas as fortalezas
com pessoal amigo, imobilizado o mais resoluto cabecilha
do grupo adverso e a legalidade de tudo atestada pela
presença e aprovação explícita
do chefe religioso e civil da capitania e de seu primeiro
magistrado. Depois de três dias o bispo e o
ouvidor sairam de Recife para Olinda, onde o inesperado
dos sucessos provocara a maior agitação.
biblioD. Manuel era varão
virtuoso e letrado, mas facilmente sugestionável,
timorato e violento a um tempo, impelido numa direção
pelos ditames da consciência e logo atirado
em sentido oposto pelas intrigas dos conselheiros.
Sem grande custo convenceu-se na cidade de que os
mascates quiseram prendê-lo, que a guarnição
das fortalezas embuçava os mais negregados
horrores e não podia, nem devia permitir desrespeito
à majestade real depositada em suas mãos.
Mandou diversas intimações aos do Recife
para abandonarem as fortalezas, desvanecerem as fortificações
feitas para terra, reconhecerem a fidelidade dos olindenses.
Depois da quarta, tão inútil como as
outras, a 27 de junho demitiu de si parte do poder
temporal em favor de Valenzuela Ortiz, do mestre de
campo Cristóvão de Mendonça Arrais,
e oficiais do senado, “contanto que não
haja efusão de sangue e assim o protesto uma
e mil vezes, como já protestado tenho, e que
para esta restauração e negócio
e tudo o mais que dele se pode seguir, não
concorro direta nem indiretamente, porque só
quero a paz e sossego nos vassalos de Sua Majestade
que Deus guarde”.
biblioSe quisesse tornar
inevitável a efusão de sangue, o pobre
prelado não teria achado melhor caminho. Escudada
em sua cumplicidade, a nobreza cercou o Recife e as
hostilidades abriram-se com violência de parte
a parte. Bombardeios, sortidas, recriminações,
folhas avulsas mostrando a sem-razão dos adversários
compõem este pouco interessante episódio.
Comandava os mascates João da Mota, natural
de Alagoas, elevado a capitão mandante por
ser o oficial mais antigo. Era-lhe fácil manter
a resistência, pois os sitiados sabiam que desta
vez, se se rendessem, seria fatal o saque da vila.
Dispunha a mais de sangue frio, bravura, entusiasmo,
bom humor e presença de espírito. A
exemplo do bispo, constituiu uma espécie de
governo eclesiástico de frades, principalmente
recoletos e carmelitas, letrados e canonistas, para
contrabalançar as censuras e excomunhões
episcopais. Nunca os mensageiros do prelado puderam
fazer as intimações necessárias,
e portanto ninguém se considerou nunca excomungado.
A terrível arma mentiu fogo.
biblioNa campanha houve
dois combates: no primeiro venceram os mascates, no
segundo os cidadãos. Apesar de seu furor partidário,
o cronista olindense reconhece um quê de providencial
no resultado dos dois encontros: “Mistérios
foram ambas estas ocasiões da Divina Providência,
que não permitiu o conseguir-se de outra sorte,
livrando-nos sempre do maior mal, que por cegos o
não víamos; pois é certo que
se os nossos na primeira vez vencessem, como desejavam,
escandalizados do seu atrevimento e sem o seu amparo
os do Recife, entrariam de fora os moradores a abrasar
quantos dentro nele achassem. E se nesta segunda batalha
nos vencessem, vinham do mesmo modo sobre nós
a acabar-nos”.
biblioA notícia
dos primeiros sucessos chegou a Lisboa em fevereiro
de 711. Com eles ocupou-se o Conselho Ultramarino
na consulta de 26. A impressão produzida foi
veemente: “este caso não só é
gravíssimo, mas o maior que até agora
aconteceu na nação portuguesa”,
e a variedade nos alvitres, a virulência nas
propostas, chegando um membro a fixar o mínimo
dos que deveriam ser condenados à pena última,
patentearam o soçobro dos conselheiros. Quase
tanta indignação como o tiro e o levante
suscitou a fuga de Sebastião de Castro, largando
um governo de que prestara menagem nas mãos
do soberano; o perigo da vida, mesmo se houvesse,
não era o motivo para desculpá-lo.
biblioChegaram depois
notícias mais tranqüilizadoras: a posse
do bispo, o perdão concedido aos revoltosos,
a paz e a obediência sucedendo ao motim. A consulta
de 8 de abril já revela mais calma. Só
a 1 de junho, porém, o governo metropolitano
resolveu confirmar o perdão, prender Sebastião
de Castro por abandono do cargo , enviar novo governador,
acompanhado de ouvidor, juiz de fora e alguma tropa.
biblioFélix José
Machado, nomeado governador, apareceu ao longe sobre
Pau Amarelo em 6 de outubro, e logo os dois partidos
mandaram a bordo expondo a seu modo o estado das cousas.
Só então devia ter sabido do cerco do
Recife e mais sucessos dele decorrentes. Exigiu que
João da Mota entregasse as fortalezas, fez
levantar o cerco e restituir toda a autoridade política
a d. Manuel, de cujas mãos ùnicamente
as receberia.
biblioEstes atos revelaram
espírito bem orientado, disposto a colocar-se
sobranceiro às facções que se
degladiavam. E’ bem possível mantivesse
esta atitude até o fim se houvesse maneira
de chegar a qualquer conciliação entre
os combatentes, ou de arredar a questão fundamental:
quem eram os verdadeiros criminosos? os de Olinda
que atentaram contra a vida de Sebastião de
Castro, derribaram o pelourinho, queimaram as pautas
eleitorais? os do Recife que negaram obediência
ao bispo-governador, guarneceram as fortalezas por
autoridade própria, abocaram a artilharia contra
a terra? Os cidadãos haviam sido anistiados
pelo rei; o governador geral desde a Bahia anistiara
os mascates, mas estes, desvanecidos e orgulhosos,
diziam não precisar de perdão, antes
reclamavam recompensas e agradecimentos.
biblioA resposta seria
fácil havendo terceiro levante, e logo um partido
denunciou o outro de o estar tramando. A acusação
era absurda, como o ato inexeqüível. Os
de Olinda não tinham encontrado apoio ao Norte
de Itamaracá ou ao Sul de Santo Agostinho;
menos o encontrariam agora, com tropas vindas de Portugal
e navios de guerra fundeados no porto. A gente mascatal
obtivera a restauração da vila, o reerguimento
do pelourinho, novas eleições: que mais
poderia aspirar?
biblioEntretanto, convenceu-se
o governador de que os olindenses conspiravam, e logo
começaram prisões, perseguições
e processos. Ouvidores e desembargadores chamados
a devassar o caso mostraram não só a
parcialidade odienta a favor dos reinóis, como
às vezes ordenaram prisões pelo simples
desenfado de desfeitear o adversário e de se
divertir com a gente de sua roda. O bispo teve ordem
de sair de Olinda para o S. Francisco e como, por
ser tempo das águas, viajasse devagar, intimou-lhe
um desembargador que andasse mais depressa. Se a primeira
dignidade eclesiástica não escapava
destas afrontas, pode-se imaginar o que passariam
pessoas sem imunidades. Foram anos bem calamitosos
os de 712 e 713.
biblioNo fim deste, Antônio
de Albuquerque, depois de ter governado Maranhão,
Rio, S. Paulo e Minas, aportando a Pernambuco de passagem
para a Europa, pôde observar o estado de miséria
e atribulação daquela pobre gente, e
na corte expôs a verdadeira situação.
biblioOs serviços
prestados durante anos em cargos tão importante
davam peso a suas palavras e a ele se atribuiu a disposição
mais benévola desde logo mostrada. Cartas régias
datadas de 7 de abril de 714 lembraram que estavam
perdoados tanto o levante de 710 como o de 711; não
havia mais devassar e prender por causa deles; só
constituía crime o de 713.
biblioPor implicados
neste foram conservados presos Bernardo Vieira de
Melo e um filho, Leonardo Bezerra e dois filhos, e
Leão Falcão, o estouvado e leviano que,
ainda depois da chegada de Félix José
Machado, teve a veleidade de tentar resistir e insurgir-se,
nos limites de Goiana, poderoso centro mascatal.
biblioLeonardo Bezerra,
depois de desterrado para a Índia, conseguiu
fugir para a Bahia, onde terminou a vida. Segunda
a tradição escrevia aos amigos: “não
corteis um só quiri das matas; tratai de poupá-los
para em tempo oportuno quebrarem-se nas costas dos
marinheiros”. Marinheiro era uma das designações
dos portugueses na capitania de Pernambuco, quiri
o nome de madeira tão rija como ferro. Se as
palavras são autênticas, devia possuir
otimismo incurável o velho insurgente que fiava
a república ou a independência de sua
pátria de costas e cacetes quebrados.
biblioEntre estas agitações
publicou-se na metrópole um livro intitulado
Cultura e opulência do Brasil por suas drogas
e minas, obra de André João Antonil,
lê-se na primeira página da edição
impressa com as licenças necessárias
pela oficina real Deslanderina em 1711. Hoje sabemos
que se tratava de anagrama e deve-se ler João
Ant. Andreoni L. (luquense). Filho de Luca em Toscana,
Andreoni veio ao Brasil em 1689 como visitador da
Companhia de Jesus e terminada a comissão ficara
na província. Ocupava o cargo de reitor da
Bahia quando expirou Antônio Vieira, em 1697.
Era provincial ao rebentar a guerra dos Mascates;
há queixas, provàvelmente fideindignas,
de haver manifestado simpatias a favor da nobreza
de Olinda.
biblioA obra de Andreoni,
dividida em cinco partes, trata de engenhos e açúcar,
de fumo, minas e gado. Sem amplificações,
em forma tersa e severa, adunava algarismos e mostrava
o Brasil tal qual se apresentava à visão
de um espírito investigador e penetrante. Ficava-se
agora sabendo da existência de cento e quarenta
e seis engenhos, moentes e correntes na Bahia com
a produção ânua de quatorze mil
e quinhentas caixas de açúcar; de duzentos
e quarenta e seis engenhos em Pernambuco;produzindo
doze mil e trezentas caixas; de cento e trinta e seis
engenhos no Rio, produzindo dez mil duzentas e vinte.
Somava tudo trinta e sete mil e vinte caixas, de trinta
e cinco arrobas cada uma, apurando 2.535:142$800.
biblioA Bahia produzia
vinte e cinco mil rolos de fumo, Pernambuco e Alagoas
dois mil e quinhentos, rendendo anualmente 334:650$000.
biblioNo decênio
anterior, a extração de ouro importaria
mil arrobas; oficialmente andava agora por cem cada
ano, mas a realidade importaria trezentas, uma por
dia, descontados domingos e dias santos.
biblioPara avaliar o
gado bastava lembrar que os milhares de rolos de fumo
iam encourados para bordo; além disso Bahia
exportava anualmente cinqüenta mil meios de sola,
Pernambuco quarenta mil e Rio, com os que iam da colônia
do Sacramento, vinte mil, — ao todo cento e
dez mil meios de sola, na importância de 201:800$000.
biblioE não são
tudo estes 3.743:992$800 da opulência do Brasil
em favor de Portugal.
biblioCumpre acrescentar
“o que rende o contrato das baleias que por
seis anos se arrematou ultimamente na Bahia por 110
mil cruzados, o contrato anual dos dízimos
reais, que na Bahia, nestes últimos anos, fora
as propinas, chegou a perto de 200.00 cruzados; no
Rio de Janeiro, por três anos, por 190.000 cruzados;
em São Paulo por 60.000 cruzados, fora os das
outras capitanias menores, que em todas notàvelmente
cresceram; o contrato dos vinhos, que na Bahia se
arrematou por seis anos 195.000 cruzados, em Pernambuco
por três anos em 46.000 cruzados, e no Rio de
Janeiro por quatro anos por mais de 50.000 cruzados;
o contrato de sal na Bahia arrematado por doze anos
a 28.000 cruzados cada ano; o contrato das águas
ardentes da terra e de fora, avaliado por junto em
trinta mil cruzados; o rendimento da Casa da Moeda
do Rio de Janeiro, que, fazendo em dois anos três
milhões de moeda de ouro, deu de lucro a el-rei,
que o compra a doze tostões a oitava, mais
de seiscentos mil cruzados; além das arrobas
dos quinto que cada ano lhe vão; os direitos
que se pagam nas alfândegas dos negros que vêm
cada ano de Angola, S. Tomé e Mina em tão
grande número aos portos da Bahia, Recife e
Rio de Janeiro, a 3.500 réis por cabeça;
e os dez por cento das fazendas no Rio de Janeiro,
que importam um ano por outro oitenta mil cruzados”.
biblioA conclusão
tirada destes algarismos escrupulosamente dispostos
não podia ser mais modesta. Devem ser multiplicadas
as igrejas, pois tanto cresce a população,
amoestava o sagaz jesuíta; devem ser propostas
pessoas idôneas nos concursos e provimentos
das igrejas vacantes, pois tanto avultam os dízimos;
deve-se pagar com pontualidade a soldadesca das praças
e fortalezas marítimas e adiantá-la
nos postos em igualdade de serviços; deve-se
deferir as petições dos moradores, e
aceitar os meios que para seu alívio e conveniência
as câmaras tão humildemente propõem.
“Se os senhores de engenhos e os lavradores
do açúcar e do tabaco são os
que mais promovem um lucro tão estimável,
parece que merecem mais que os outros preferir no
favor e achar em todos os tribunais aquela pronta
expedição que atalha as dilações
dos requerimentos, e o enfado e os gastos de prolongadas
demandas”.
biblioO governo metropolitano
deu ao livro uma resposta fulminante: confiscou-o,
e com tamanho rigor que ainda hoje raríssimos
exemplares se encontram da edição princeps.
Pretextou para esta violência, estar divulgado
nele o segredo do Brasil aos estrangeiros. Não
se vê bem como podia fazê-lo: cultiva-se
cana e fabricava-se açúcar em colônias
de outras nações; plantava-se também
fumo, criava-se gado, trafegavam-se minas. Que lhes
poderia ensinar de novo a Cultura e opulência
do Brasil por suas drogas e minas? A verdade é
outra: o livro ensinava o segredo do Brasil aos brasileiros,
mostrando toda a sua possança, justificando
todas as suas pretensões, esclarecendo toda
a sua grandeza.
biblioSob a arquitetônica
severa dos algarismos colhidos pelo benemérito
jesuíta conservou-se inviolado o segredo do
Brasil aos brasileiros; transpirou, porém,
sob outras formas, em adumbrações significativas.
biblioSurdiu em ditirambos,
exaltando a riqueza sem par do país. Apareceu
em vastas compilações dedicadas à
nobiliarquia, como a de Borges da Fonseca para Pernambuco,
a de Jaboatão para a Bahia, e sobretudo a de
Pedro Taques para S. Paulo, entroncando as famílias
do Brasil na primeira nobreza de Espanha, Itália
e Flandres. Como falecia-lhe senso histórico,
Loreto Couto apanhou centenas de nomes para mostrar
Pernambuco ilustrado com virtudes, com as letras,
pelas armas, pelo sexo feminino.
biblioNo mesmo Loreto
Couto, beneditino pernambucano que escrevia por 1757,
encontramos manifestação ainda mais
característica: o exalçamento, a glorificação
do indígena, em confronto com a antiga gente
de Portugal e até com povos mais adiantados
do velho mundo.
biblioPara provar suas
virtudes morais, cita o nome de índios notáveis
pelo valor e pela fidelidade, um Tabira, os Camarões
e tanto outros auxiliares nas guerras flamengas e
na conquista do país. Entre as manifestações
de suas virtudes intelectuais aponta os conselhos
em que os velhos da tribo discutiam as questões
pendentes, o conhecimento das enfermidades e mezinhas,
os ardis de caça e pesca.
biblioIgnoravam a verdadeira
religião? Não adoravam como os gentios
antigos moradores da Beira e marinha de Setúbal
uma baleia arrojada à praia, nem lhe ofereciam
em sacrifício anualmente uma donzela e um moço.
“Se os erros mui repugnantes aos princípios
naturais provam barbaridade, é preciso declarar
por bárbaros aos ingleses, dinamarqueses, suevos
e muitos alemães, pois em todas estas nações
está muito dominante o erro de que não
pecamos por eleição, senão por
necessidade, que Deus nos obriga a pecar e nos é
impossível evitar o pecado”.
biblioSe tivessem cultura,
desenvolveriam a inteligência. “No nosso
reino de Portugal entre Celorico e Trancoso habitavam
povos tão brutos e silvestres como animais
indômitos, tão rudos que uma família
não entendia a língua de outra com menos
de duas léguas de distância, pelo que
eram julgados pelos povos confinantes como bestas
mais feras que as mesmas feras”.
biblioEntregavam-se à
antropofagia? “Nem nos deve admirar a barbaridade
destes povos, quando sabemos que dos descendentes
de Tubal e de outras nações políticas
com que se povoou Portugal se reduziram muitos dos
seus descendentes a tanta brutalidade que matavam
e comiam aos que dos povos vizinhos apanhavam ou em
guerra ou em ciladas”.
biblioServindo-se dos
mesmos raciocínios, trata da língua
geral cujas excelências celebra, da cor dos
primitivos habitantes, etc. Suas idéias, discursivamente
expostas e fundamentadas, aparecem sob forma sintética
nos poetas contemporâneos; de modo ainda mais
intuitivo revelam-nas os apelidos tomados na época
da independência: Araripe, Braúna, Canguçu,
Guaicuru, Jucá, Montezuma, Mororó, Sucupira,
Tupinambá e muitos outros. Por toda parte transparece
o segredo do brasileiro: a diferenciação
paulatina do reinol, inconsciente e tímida
ao princípio, consciente, resoluta e irresistível
mais tarde, pela integração com a natureza,
com suas árvores, seus bichos e o próprio
indígena.
biblioCom ar triunfante,
o escritor beneditino agita o decreto real de 4 de
abril de 1755, declarando “que os meus vassalos
deste reino e da América que casarem com as
índias dela não ficam com infâmia
alguma, antes se farão dignos de minha real
atenção e que nas terras em que se estabelecerem
serão preferidos para aqueles lugares e ocupações,
que couberem na graduação de suas pessoas,
e que seus filhos e descendentes serão hábeis
e capazes de qualquer emprego, honra ou dignidade,
sem que necessitem de dispensa alguma”, etc.
biblioEste decreto constitui
episódio de longa história que se pode
resumir em poucas palavras.
biblioApenas aportou
à Bahia em 1549, Manuel da Nóbrega interessou-se
pelos indígenas, por seu bem-estar físico,
por sua formação espiritual e incorporação
ao catolicismo. A experiência convenceu-o da
necessidade, para colher resultado útil e duradouro,
de isolar o indígena do colono, para afeiçoá-lo
ao trabalho moderado, resguardar-lhe a segurança
pessoal e garantir-lhe economia independente. Que
fosse permitido escravizar índios, nunca contestou
ele nem qualquer de seus sucessores: exigiram apenas
o preenchimento de certas condições
para a escravidão ser lícita. Cometeram
um erro capital, mas inevitável: como poderiam
negar o direito de cativar brasis, se os contemporâneos
e as gerações seguintes durante mais
de dois séculos reconheceram a escravatura
africana?
biblioApesar de todos
os embaraços criados pelas hesitações
da metrópole e pelas paixões da colônia,
a obra de Nóbrega prosseguiu e, na região
amazônica sobretudo, prosperou. Aos missionários
foi entregue a administração temporal
das aldeias, cuja abastança e fartura excediam
às das vilas dos brancos. Não se falava
senão das riquezas dos jesuítas, e de
fato sua parcimônia, gerência metódica
e desapego pessoal figuravam uma magnificência
de que levaram o segredo, como depois se verificou.
biblioCom o tempo as
aldeias tornaram-se não só um estado
no estado como uma igreja na igreja. O primeiro bispo
do Pará quis chamar à sua jurisdição
os missionários, mas estes, escudados em numerosos
privilégios pontifícios e mercês
régias, recusaram submeter-se. Suas razões
deviam pesar alguma cousa, pois a decisão final
exigiu largos anos.
biblioAos 24 de setembro
de 1751 tomou posse do cargo em Belém Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, nomeado Governador
Geral do Estado. Recomendavam-lhe suas instruções
velasse pela liberdade dos índios e coibisse
os excessos dos missionários. Uma excursão
começada em Fevereiro do ano seguinte permitiu-lhe
visitar as aldeias distribuídas entre a ilha
de Marajó e o estreito de Pauxis. Em Caiá,
ouvindo o discurso de um cacique, satisfeito com os
melhores tempos que se anunciavam, exclamou: “E
estes são os homens de quem se diz não
têm juízo nem são capazes de nada!
Deles se pode fazer uma nação como qualquer
outra de que se pode tirar grande interesse”.
biblioSua correspondência
oficial neste e nos anos imediatos insiste na liberdade
dos indígenas, nos abusos dos missionários,
nos bens de raiz possuídos contra lei expressa,
etc. Em fevereiro de 54, escrevendo a Diogo de Mendonça
Corte-Real, mostra-se convencido da impossibilidade
de civilizar os índios com o auxílio
dos regulares. Suas palavras eram genéricas,
sem referência alguma especial à Companhia
de Jesus. De suas reclamações resultaram
duas leis, datadas de 6 e 7 de junho do ano seguinte,
uma abolindo a administração temporal
dos missionários nas aldeias, proclamando a
outra mais uma vez a liberdade absoluta dos indígenas.
Deixou-se ao arbítrio do governador geral o
modo e a ocasião de publicá-las.
biblioIncumbido de dirigir
a demarcação das fronteiras do Norte,
Mendonça Furtado reclamou das aldeias as centenas
de remeiros necessários ao progresso da comissão,
os milhares de alqueires de farinha e outros gêneros
necessários à manutenção
de toda esta gente durante anos. O Pará moderno,
servido por navios a vapor, comerciando com os dois
mundos, estaria à altura de tamanhas exigências;
não estava a Amazônia antiga, ocupada
na extração do cravo, da salsa-parrilha,
do cacau, sustentada quase exclusivamente pela pesca,
muito feliz quando a pequena produção
agrícola bastava para o consumo ordinário.
biblioMendonça
parece não ter tido idéia clara desta
situação, e todos os embaraços
fatais, decorrentes da natureza das coisas, atribuiu
às intrigas, à malevolência e
perfídia dos jesuítas, criminosos obstinados
e relapsos de uma monstruosidade sem nome: não
terem domesticado as leis demográficas e econômicas
às impaciências do irmão de Pombal.
Para castigar tão nefando crime, reuniram-se
as duas sociedades perfeitas; só uma expiação
bastaria: extinguir a igreja na igreja, o estado no
estado, que realmente era e não podia deixar
de ser o regime dos aldeamentos.
biblioEm 5 de fevereiro
de 57, Mendonça publicou a lei retirando aos
missionários a administração
temporal das aldeias, que deviam ter daí por
diante uma organização puramente civil.
Os missionários continuariam como párocos
sujeitos à jurisdição do prelado.
Todos sujeitaram-se a isto exceto os jesuítas
por não lho permitirem suas constituições.
Ofereceram-se para coadjutores, mas isto não
aceitaram o governador nem o bispo.
biblioMendonça
formulou um diretório em cerca de noventa e
cinco artigos, datado de 3 de maio, para reger provisòriamente.
Neste código da nova ordem de cousas, o missionário
era substituído pelo diretor. A 14 do mesmo
mês explicava esta criação do
seguinte modo: “E não sendo possível
que passassem [os índios] de um extremo a outro
sem se buscar algum meio por que se pudesse chegar
àquele importante fim, me não ocorreu
outro mais proporcionado do que pôr em cada
povoação um homem com o título
de diretor, ao qual, sem ter jurisdição
alguma coativa, lhe pertencesse só a diretiva
para lhe ir ensinando não a forma de se governarem
civilmente, mas a comerciarem de a cultivarem as suas
terras, e tirarem destes frutuosos e interessantissímos
trabalhos os lucros que eles sem dúvida alguma
hão de dar de si e fazerem-se estes até
agora desgraçados homens por esta forma cristãos,
civis e ricos, que é o que sem dúvida
alguma lhe há de suceder, se os diretores fizerem
a sua obrigação”.
biblioEm seguida passou
a elevar as aldeias maiores a vilas e as menores a
lugares. Um contemporâneo, suspeito por ser
jesuíta e não ter presenciado os sucessos,
dá interessante descrição destas
novidades; também sua cronologia não
parece rigorosamente exata.
biblio“Veio-lhe
pois ao pensamento dar o nome e os privilégios
de vilas à semelhança das que há
em Portugal a muitas aldeias que os índios
habitavam, não obstante constarem todas de
pobres, e rústicas choupanas, a exceção
da igreja e casas dos párrocos. Para isto mandando
levantar um grande pau no meio de um terreiro, dava
a este sítio o nome de pelourinho; depois escolhendo
entre todos aqueles selvagens alguns, que lhe pareceram
ou pela fisionomia do rosto ou pela mole do corpo,
mais hábeis para os empregos, a que os queria
elevar, os constituiu como vereadores ou juízes
dos mais, dizendo-lhes que eles eram tão bons,
como os portugueses: que se governassem a si, sem
dependência, ou sojeição alguma
dos missionários. Além disto mandou
vestir e calçar estas suas novas criaturas,
assentá-las á sua mesa, fazendo-lhes
nela muitos brindes, e ensinado-lhes inter pocula,
por meio de um língua ou intérprete,
o modo como se haviam de portar dali em diante, administrando
a todos Justiça, etc. etc. Os Índios
porém, acabada a comida, e a companhia desfeita,
esquecendo-se de quanto lhes tinha dito o senhor Mendonça,
apenas sairam da sua presença tiraram os sapatos
e vestidos e se emborracharam com os seus vinhos a
que chamam mocòroròs, e em sinal de
alegria e contentamento pelos cargos, a que tinham
sido elevados, gritavam todos dizendo: Vinha del-rei,
vinha del-rei, querendo dizer viva el-rei, viva el-rei.
Mas passada a bebedice e tornando em si, se fizeram
insolentes não só com os Missionários,
perdendo-lhes o respeito e desobedecendo-lhes ainda
nas cousas espirituais, senão também
com os outros Índios; e isto com tal excesso,
que saindo os Jesuítas e o mais Religiosos,
que até ali foram párrocos nas Aldeias,
além dos clérigos, que os substituíram,
se viu o senhor Mendonça obrigado a mandar
alguns portugueses com o título de diretores
para os governar, e meter em sojeição:
e ainda muitos destes portugueses repugnaram a ir
para as novas vilas sem terem sempre consigo alguns
soldados, que os defendessem dos insultos daqueles
bárbaros”.
biblioMendonça
tratou em seguida da lei relativa à liberdade
dos índios. Havia uma bula de Benedito XIV,
passada em 20 de dezembro de 1741 a instâncias
de d. João V, cominando excomunhão latae
sententiae a quem por qualquer motivo cativasse indígenas
do Brasil. No panfleto pombalino intitulado Relação
abreviada da república, etc., lê-se que
o bispo do Pará d. Miguel de Bulhões
ao tratar de executar a mesma bula se concitou contra
ele uma sublevação que impediu por então
aquela providência apostólica. A alegação
é absolutamente caluniosa. Em data de 11 de
junho de 1757 escrevia Mendonça Furtado: “cuja
bula foi dada a este prelado por ordem de S. Majestade
para publicar e fazer observar na sua diocese, o que
pretendendo executar quando veio para esta cidade
foi embaraçada pelos mesmos fundamentos com
que eu suspendi a publicação da liberdade”,
etc. Os fundamentos para a suspensão da lei
da liberdade foram meras considerações
de oportunidade, como se verifica em toda a correspondência
do governador geral; nunca houve sublevação.
E tanta consciência tinha o escriba de estar
caluniando, que acrescenta: “ao mesmo prelado
não pareceu participar à corte uma tão
estranha desordem, em tempo no qual a notícia
de um tão escandaloso fato, temeu que alterasse
a tranqüilidade do ânimo do dito monarca,
que já se achava com a grave enfermidade de
que veio a falecer em 31 de julho de 1750”.
Assim se escreve a leitura.
biblioA 25 de maio foi
publicada a bula de Benedito XIV pelo bispo. A 28
Mendonça publicou a lei da liberdade dos índios.
Não despertaram protestos, e diga-se a verdade,
não foram respeitadas, apesar das aparências.
biblioO diretório,
aprovado pelo rei, vigorou de 1757 a 1798. As misérias
provocadas por ele, direta ou indiretamente, são
nefandas. Por fim d. Francisco de Sousa Coutinho teve
compaixão dos índios e conseguiu a revogação.
Chegava tarde a medida salvadora: o mal estava feito.
Em 1850 o Pará e o Amazonas eram menos povoados
e menos prósperos que um século antes;
as devastações da cabanagem, os sofrimentos
passados por aquelas comarcas remotas de 1820 a 1836
contam entre as raízes a malfadada criação
de Francisco Xavier de Mendonça Furtado.
biblioAs leis retirando
aos missionários a administração
das aldeias e libertando os índios, ditadas
só para o Estado do Maranhão, foram
feitas extensivas ao resto do Brasil por alvará
de 8 de maio de 1758. Também aqui miraculosamente
pulularam as vilas, todas com legítimos nomes
portugueses. Nestas partes a questão do indígena
já perdera a importância, e as violências
não foram tamanhas. Um escritor pernambucano
das primeiras décadas do século passado
mostra a situação antes ridícula
que tétrica:
biblio“Os Índios
têm vilas, e câmeras; e são nelas
juízes, sem saberem nem ler, nem escrever,
nem discorrer! tudo supre o escrivão; o qual,
não passando muitas vezes de um mulato sapateiro,
ou alfaiate, dirige a seu arbítrio aquelas
câmeras de irracionais quase, pelo formulário
seguinte:
biblio“Na véspera
do dia, em que há de haver na aldeia vereação,
parte o escrivão da sua moradia, se é
longe; e neste caso sempre a cavalo; e vem dormir,
nessa noite, em casa do senhor juiz, o qual imediatamente
se encarrega do cavalo do senhor escrivão,
leva-o a beber água; e por fim vai peá-lo
aonde possa cômodamente pastar.
biblioFica entretanto
o escrivão descansando, senhor aliás
da casa, mulher, e filhas do oficioso juiz, que na
volta lhe cede o melhor lugar da choupana, para dormir
e passar a noite. Logo em amanhecendo começa
o juiz a ornar-se com os velhos e emprestados arreios
da sua dignidade, e a horas competentes marcha para
um pardieiro, com alcunha de casa da câmera,
aonde lidas as petições, que o escrivão
fez na véspera, são despachadas pelo
mesmo escrivão em nome do senhor juiz ordinário;
e pouco depois se desfaz o venerando senado, e aparecem
os senadores de camisa, e ceroulas, e de caminho para
as suas tarefas”.
biblioA declaração
da liberdade e o diretório dos índios
foram seguidos de outras medidas em que igualmente
colaboraram a igreja e o Estado. A Santa Sé
nomeou visitador e reformador geral apostólico
da Companhia de Jesus o cardeal F. de Saldanha, que
contra os jesuítas vibrou um tremendo mandamento,
subscrito a 15 de maio de 1758. A 7 de junho o patriarca
de Lisboa suspendeu-os do exercício de confessarem
e pregarem na sua diocese. Aproveitando uns tiros
dados no rei, Pombal fez assinar pelo régio
manequim uma lei declarando-os rebeldes, traidores,
e havendo-os por desnaturalizados e proscritos.
biblioNo correr do ano
seguinte foram embarcados para o Reino as centenas
de sucessores de Nóbrega encontrados no Brasil.
Durou duzentos e dez anos a sua atividade em nossa
terra, e sua influência deve ter sido considerável.
Deve ter sido, porque no atual estado de nossos conhecimentos
é impossível determiná-la com
precisão. No tempo de sua prosperidade publicaram
apenas a redundante, deficiente e nem sempre fidedigna
crônica de Simão de Vasconcelos, que
vai só de 1549 a 1570. O que se encontra nas
crônicas gerais, ânuas e outras publicações
reduz-se às poucas páginas reunidas
por A. H. Leal na Rev. Trim. do Inst. Hist. Biografias
como as de Anchieta, Almeida, Vieira, Correia, pouco
adiantam. Uma história dos jesuítas
é obra urgente; enquanto não a possuirmos
será presunçoso quem quiser escrever
a do Brasil.
biblioNas suas diferentes
casas devem ter ficado numerosos e importantes documentos,
que o desleixo ou propósito aniquilou; salvaram-se
apenas os títulos de suas propriedades. A julgar
por algumas publicações e documentos
fornecidos a Eduardo Prado e a Studart os arquivos
europeus devem ser ricos.
biblioEnquanto não
se fizer a luz sobre tão obscuros assuntos,
um juízo definitivo a respeito da famosa ordem
pecará pela base. Em todo caso pouca, muito
pouca inteligência revelam os ataques dirigidos
contra ela. Instintivamente a simpatia volta-se para
os discípulos e companheiros de Nóbrega,
Anchieta, Cardim, Vieira, Andreoni, os educadores
da mocidade, os fundadores da linguística americana.