VII
FRANCESES E ESPANHÓIS
biblio
Em 1580 extinguiu-se a dinastia de Avis. Filipe
II da Espanha, neto de d. Manuel, apoiando suas
pretensões pelas armas, sucedeu a d. Henrique,
e incorporou à casa de Habsburgo o trono
português. Com Portugal cairam todas suas
possessões sob o domínio espanhol.
biblio Para o Brasil as primeiras conseqüências
deste estado de cousas foram favoráveis.
Os limites naturais da colônia indicaram-nos
o Amazonas e o Prata. De ambos separavam o povoado
distâncias sempre enormes. Agora, se as distâncias
persistiam as mesmas, podia-se em compensação
concentrar os esforços num só sentido,
em vez de dissipá-los por ambos. Esperaria
o Prata, já ocupado em parte; urgia senhorear
o Amazonas, ainda não investido, mas já
cobiçado por diversas nações.
Assim, caminho do Prata o trabalho reduziu-se a
mera consolidação, ao estreitamento
de malhas; para o Amazonas a expansão colonizadora
moveu-se acelerada. Por isso, preferindo a ordem
cronológica para a expansão amazônica,
seguiremos a ordem geográfica no outro extremo.
biblio Vindo do sul, encontrava-se a Cananéia
habitada por gente ida da capitania de São
Vicente, que também procurava recôncavo
de angra dos Reis, e já se comunicava com
a cidade de São Sebastião, pela baixada
de Santa Cruz, onde os jesuítas começavam
uma fazenda famosa. Nas terras do Cabo Frio os franceses
continuavam a freqüentar, naturalmente menos
a miúdo e com menor proveito.
biblio Por fim, Constantino Menelau, depois de vencê-los,
obstruiu o porto, e Estevão Gomes estabeleceu
uma pequena fortaleza. Flagelados pelas bexigas,
os Guaitacás aproximaram-se dos brancos que
os poderiam socorrer. Para a conciliação
muito contribuiu o jesuíta Domingos Rodrigues.
biblio Este mesmo Domingos Rodrigues, mais tarde
egresso da Companhia de Jesus, em Ilheus, Álvaro
Rodrigues Adôrno, na Cachoeira, levaram a
bom termo a pacificação dos Aimorés.
Por este modo desde o Rio até a cidade do
Salvador cessaram temporariamente suas devastações
os tão temidos Tapuias do litoral, que só
reaparecem pelos meados do século.
biblio Ao Norte da Bahia apresenta-se como mais
notável o fato da conquista de Sergipe. Desde
os últimos tempos de Mem de Sá a empresa
afigurara-se fácil, pois não cessavam
mensagens pedindo aos padres da Companhia que fossem
até lá levar a boa nova. Com os dois
jesuítas mandados a este fim partiram os
soldados e mamalucos, ávidos de escravos,
que plantaram a sizania entre os Tupinambás,
e alienaram sua confiança. Todas as desconfianças
confirmou o governador Luís de Brito de Almeida
no ano de 74, fazendo guerra implacável aos
índios, aprisionando uns, afugentando outros,
devastando aquelas comarcas, por simples desfastio
destruidor, poderia crer-se; pois durante cerca
de dois decênios quedou estacionária
a obra colonizadora.
biblio Em fins de 89, Cristóvão de
Barros, governador interino por morte de Manuel
Teles Barreto, repetiu de novo a tentativa, com
melhor êxito. Parte da força seguiu
por mar, parte por terra, e reunidos deram em várias
cercas dos naturais, que foram derrotados.
biblio Acossando estes, penetraram alguns aventureiros
até o rio S. Francisco. No território
devoluto Cristóvão de Barros separou
uma enorme sesmaria para o filho; esta serviu de
craveira para outras, e dentro em pouco não
havia mais o que distribuir. Com esta campanha os
franceses perderam as antigas ligações
no rio Real.
biblio Na capitania de Duarte Coelho continuou o
movimento para o rio S. Francisco. Fazendas de gado
ou canaviais avançaram pelo território
das Alagoas. Entre os povoadores desta região
avulta o alemão Lins, que deixou larga descendência,
e João Pais, de quem já se falou.
Também daqui os franceses tiveram de retirar-se.
biblio Nos primeiros anos do século 17, podia-se
viajar e viajava-se efetivamente por terra da Bahia
até Pernambuco sem encontrar resistência
séria por parte dos naturais, vencidos ou
afugentados da marinha. O único obstáculo
ao livre trânsito apresentava a passagem dos
rios maiores, direito real, como já vimos.
Os rios menores eram passados nos vaus, e assim
continuaram nos séculos seguintes; pelos
vaus pode-se traçar a borda da primitiva
ocupação litorânea.
biblio Vejamos agora a marcha para o Amazonas.
biblio Longo tempo estacionara o povoamento na ilha
de Itamaracá e no continente fronteiro. Os
Petiguares da serra entretinham boas relações
com os colonos, que visitavam pacificamente as aldeias;
os da praia, sempre amigos dos franceses, faziam
com estes bons negócios na Paraíba,
onde não os perturbavam os portugueses, contentes
com breves excursões à procura de
âmbar, abundante por aquelas plagas até
o Ceará, e com o pau-brasil trazido do interior
pelos próprios índios.
biblio Em 74, por causa de uma cunhã do sertão,
desaveio-se a gente deste com a da Goiana, e começam
as hostilidades. Foram assaltados e queimados dois
engenhos, e com esta fácil vitória
mais se assanharam as paixões dos assaltantes.
A guerra levianamente provocada havia de durar vinte
e cinco anos.
biblioA mandado de Luís de Brito, o ouvidor-geral,
Fernão da Silva, partiu para a Paraíba,
afugentou a indiana com simples presença,
lavrou autos que ficaram só no papel. Frutuoso
Barbosa, homem de fortunas, ofereceu-se à
metrópole para ultimar a conquista se lhe
concedessem certas mercês. Com elas chegou
em 80 a Pernambuco, mas nada logrou fazer, porque
um temporal atirou-o para as Antilhas e de lá
à Europa. Da segunda vez não se animou
a tentar estabelecimento algum; limitou-se a queimar
navios franceses.
biblio Em 83 aportou à Bahia Diogo Flores
Valdez, vindo de uma viagem malograda ao estreito
de Magalhães. Ao governador insinuou-se como
capaz desta conquista, e na monção
seguinte partiu com uma armada espanhola e algumas
embarcações portuguesas para Pernambuco.
Organizou-se ao Recife uma expedição
marítima e outra terrestre. Por mar, Diogo
Flores chegou sem embaraço a seu destino,
queimou alguns navios franceses carregados de pau-brasil,
fundou um forte, nele deixou uma guarnição
de compatriotas seus; a gente ida por terra saiu
vitoriosa de vários reencontros e fundou
um povoado, a cidade Filipéia, como a chamou
Frutuoso Barbosa, em honra do dinasta reinante.
O castelhano Castejón ficou por alcaide do
forte, e Frutuoso Barbosa tomou conta da cidade.
biblio Amassaram-se mal o chefe civil e o chefe
militar; a discórdia lavrou entre castelhanos
e portugueses. Os Petiguares, aterrados pelos primeiros
embates, voltaram logo em chusmas densas e mais
arrogantes. Guiavam-nos franceses dos diversos navios
queimados, sedentos de vingança, cônscios
da importância capital desta partida, em que
se disputavam terrenos de seu domínio exclusivo
durante tantos anos.
biblioCastejón portou-se com bravura; socorros
de Pernambuco expedidos por Martim Leitão,
ouvidor-geral, nunca lhe faltaram. O próprio
ouvidor-geral lá foi, em março de
86, com quinhentos homens brancos e muitos índios
em sua companhia. Mas os índios e os franceses
continuavam cada vez mais afoitos e mais ardentes.
Desanimado, Frutuoso Barbosa desistiu de seus direitos
e retirou-se para Olinda. Castejón resistiu
até junho; ao retirar-se tocou fogo no forte,
quebrou o sino, meteu a pique um navio, lançou
a artilharia ao mar. Ficava aniquilado todo o trabalho.
biblio Anos antes, aventureiros pernambucanos, guerreando
no rio S. Francisco, houveram-se tão aleivosamente
com os Tabajaras, os antigos e fiéis aliados
desde o tempo de Duarte Coelho, que estes o mataram
a todos, fugiram dos lugares nefastos, e por uma
das gargantas da Borborema procuraram a terra da
Paraíba para combater os brancos, aliando-se
embora aos Petiguares, seus inimigos hereditários
e irreconciliáveis da língua geral.
Martim Leitão, quando saiu de Olinda em auxílio
de Castejón, reconheceu-os e entabulou negociações,
esperando trazê-los à antiga amizade.
Os Tabajaras não se deixaram requestar e
prepararam-se para o combate: traiu-os a sorte,
apesar da valentia de Braço de Peixe e Assento
de Pássaro, os dois chefes tupiniquins.
biblio Esta derrota despertou o ódio avito
dos Tupinambás que se tornaram contra os
novos aliados, malsinando-os de covardes, tratando-os
de traidores, obrigando-os a tornarem às
terras donde vieram. Soube-o Martim Leitão,
e mandou emissários a Piragibá, prometeu
o esquecimento das injúrias recentes, anunciou
auxílios prontos, instou por sua permanência,
renovando as antigas pazes. Cedeu o Braço
de Peixe; com a intervenção de João
Tavares, escrivão de órfãos
de Olinda, passaram os Tabajaras a combater ao lados
dos portugueses.
biblioEm agosto 5, dia de Nossa Senhora das Neves,
João Tavares recomeçou a obra aniquilada
pela defecção de Castejón,
auxiliada agora pela gente de Braço de Peixe
e Assento de Pássaro, mas perturbada sempre
pelos Petiguares e pelos franceses. Mais duas vezes
tornou Martim Leitão à Paraíba.
Sua ação sempre fecunda e prestigiosa
pode resumir-se em poucas palavras: queimou navios,
queimou pau-brasil já cortado, queimou aldeias,
arrancou plantações, inutilizou mantimentos
na baía da Traição, na serra
de Copaoba, no Tijucopapo.
biblioEm maio de 87, Martim Leitão considerou
terminada sua missão, e voltou para Pernambuco,
depois de lançar os alicerces para um engenho
real. Enganava-se, porém; prosseguiram constantes
as guerras durante mais de dez anos, no sertão,
no litoral com as naus francesas, que chegaram a
cercar a fortaleza do Cabedelo, com os Petiguares,
a quem a presença dos franceses, privados
de ir para sua terra pela queima das naus que os
deviam conduzir, comunicaram uma audácia
e uma persistência bem alheias à índole
indígena. Destes incidentes ignoramos a história;
a crônica apenas guarda os nomes de Pero Lopes,
Feliciano Coelho, Pero Coelho, talvez Ambrósio
Fernandes Brandão, o autor possível
dos Diálogos das Grandezas do Brasil. Do
lado dos franceses a tradição lembra
Rifault, cujos feitos não podem aliás
ser precisados á falta de documentos.
biblioTantos anos agitados e tão desesperada
resistência patentearam a urgência de
ocupar o rio Grande onde os inimigos perenemente
se refaziam. De lá sairam uma vez treze navios
para tomar Cabedelo e o combate durara de uma sexta
a uma segunda-feira. Em suas águas chegaram
a se reunir vinte navios procedentes de França.
Muitos franceses mestiçaram com as mulheres
indígenas, muitos filhos de cunhãs
se encontravam já de cabelo louro: ainda
hoje resta um vestígio da ascendência
e da persistência dos antigos rivais dos portugueses
na cabeleira de gente encontrada naquela e nos vizinhos
sertões de Paraíba e Ceará.
biblioA expedição ao rio Grande, concebida
no governo de d. Francisco de Sousa, aparelhada
de recursos abundantes, dirigida desde Pernambuco
por Manuel de Mascaranhas Homem, lugar-tenente do
donatário, e Alexandre de Moura, que devia
suceder no mando, repartiu-se por terra e por mar.
A divisão marítima, comandada por
Manuel de Mascaranhas, a quem se agregou Jerônimo
de Albuquerque, chegou felizmente a seu destino
em janeiro de 98. Parte da divisão terrestre,
encabeçada por Feliciano Coelho, capitão-mor
da Paraíba, venceu a resistência dos
inimigos, mas dissolveu-se ante uma epidemia de
bexigas. A praga passou também ao inimigo,
e serviu para dar folgas a Manuel de Mascaranhas,
aliás acometido mais de uma vez no forte
que começara.
biblioEm março, Feliciano Coelho outra vez
marchou para o rio Grande, depois de reunir as suas
forças, reduzidas agora à metade pela
doença e pela retirada do contigente de Pernambuco.
Com este reforço, Manuel de Mascaranhas concluiu
o forte dos Reis Magos, e entregou-o a Jerônimo
de Albuquerque, nomeado para comandá-lo.
À sua sombra medrou o que é hoje a
cidade de Natal. Na volta, Mascaranhas e Coelho
afastaram-se da costa e fizeram novas devastações
entre a indiada do sertão.
biblioNas veias de Jerônimo de Albuquerque
circulava sangue petiguar de sua mãe, Maria
do Arco-Verde, e disto não se envergonhava,
antes o vemos em mais de uma conjuntura proclamando
a sua extração. Assim devia sorrir-lhe
a idéia de conciliar os parentes, reduzidos
aos últimos apuros por tantos trabalhos e
tão continuada perseguição,
e agora forçosamente abandonados pelo franceses.
A um índio aprisionado, principal e feiticeiro,
incumbiu esta missão, depois de bem instruí-lo
no que devia dizer. O pensamento humanitário
foi coroado do melhor êxito, graças
sobretudo às mulheres que, informa um contemporâneo,
enfadadas de andarem com o fato continuamente às
costas, fugindo pelos matos sem poder gozar de suas
casas, nem dos legumes que plantavam, traziam os
maridos ameaçados que se haviam de ir para
os brancos, porque antes queriam ser suas cativas
que viver em tantos receios de contínuas
guerras e rebates. Por ordem de d. Francisco de
Sousa as pazes foram juradas solenemente na Paraíba,
a 15 de junho de 99. Serviu de intérprete
frei Bernardino das Neves, filho de João
Tavares, escrivão de órfãos
de Olinda, já nosso conhecido. Deste ato
resultou nascer e criar-se na amizade dos portugueses,
Antônio Camarão, um dos heróis
da luta contra Holanda.
biblioA conquista do rio Grande tinha logrado afastar
os franceses e desenganar os índios numa
grande extensão de terreno; mas significava,
mais que isto, o encurtamento da distância
ao Maranhão e Amazonas. Desde os primeiros
tempos do governador Diogo Botelho surge com força
a idéia de consumar a obra, e trata-se de
chegar às regiões onde a mão
da natureza assentara os limites do país.
biblioObrigou-se a incorporar o Maranhão
Pedro Coelho de Sousa, cunhado de Frutuoso Barbosa,
que com séquito numeroso partiu da Paraíba
e chegou ao Jaguaribe em 1603. Os índios
daquela ribeira, a princípio esquivos, deixaram-se
enlear pelas promessas dos intérpretes e
todo o sáfio litoral cearense foi percorrido
em paz. Só na serra de Ibiapaba, aliás
seminário dos amigos Tabajaras, apareceu
resistência, promovida por franceses. Venceu-a
Pedro Coelho e desceu a serra em busca do rio Punará,
ou Parnaíba, como é chamado hoje.
Como sua gente não quisesse ir mais adiante
teve que retroceder.
biblioTudo correra bem até aí, tudo
começou logo a se danar. Pedro Coelho, na
volta para o povoado, capturou os índios
que pôde, indiferentemente, Tabajaras, velhos
amigos, e Petiguares, aliados recentes. Quando,
depois de os ter distribuído pela Paraíba
e Pernambuco, novamente tornou ao Ceará,
achou a situação insustentável
e foi obrigado a retirar-se. Sua retirada lastimável
balizaram cadáveres, vítimas dos areais
candentes, da fome e da sede.
biblioNo provincialado de Fernão Cardim,
governando d. Diogo de Menezes, dois jesuítas,
Francisco Pinto e Luís Figueira, foram incumbidos
de chegar ao Maranhão. Levaram em sua companhia
para restituí-los à liberdade alguns
dos índios capturados por Pedro Coelho e
sua gente; com algum esforço venceram as
desconfianças do gentio, atravessaram a serra
do Uruburetama, e chegaram a Ibiapaba, bem acolhidos,
apesar de tudo. Preparavam-se para prosseguir, quando
uns Tapuaias assaltaram a aldeia em que assistiam,
e mataram Francisco Pinto. Luís Figueira
escapou e tornou para Pernambuco, onde anos mais
tarde escreveu esta trágica odisséia
em carta felizmente hoje salva da voragem do tempo.
biblioNem a expedição numerosa, aparelhada
para a guerra, de Pedro Coelho, nem a missão
pacífica dos jesuítas adiantara um
passo à questão de avanço para
a costa Leste-Oeste, destinada talvez a adiamento
indefinido, se não interviesse Martim Soares
Moreno. Chegara de Portugal em 1602, e Diogo de
Campos, seu tio, sargento-mor de estado, o incorporou
à primeira expedição de Pedro
Coelho, para aprender a língua da terra e
familiarizar-se com os costumes. Contava apenas
dezoito anos. Realizou os desejos do tio de modo
superior, e tão bem se houve entre os indígenas
que Jacaúna, chefe petiguar, distinguiu-o
da turba malfeitora e votou-lhe amor de pai. Nomeado
tenente da fortaleza dos Reis-Magos, cultivou estas
relações, mais de uma vez visitou
o fiel amigo, sempre esperançado de dissipar
as prevenções e rancores. Afinal o
índio permitiu-lhe levar um filho à
Bahia, apresentá-lo ao governador, d. Diogo
de Meneses, e consentiu-lhe viesse estabelecer-se
com dois soldados. Pôde assim lançar,
junto ao minúsculo rio Ceará, os fundamentos
de um forte, onde resistiu aos ataques da gente
não sujeita a Jacaúna; com o auxílio
deste tomou duas naus estrangeiras, nu e pintado
de genipapo, à maneira de seus auxiliares.
Aquele ponto, até ali conhecido como excelente
aguada dos franceses, passou desde então
a ser evitado.
biblioNo governo de Gaspar de Sousa projetou-se
avançar mais para o Norte. Por sua ordem
Jerônimo de Albuquerque partiu de Pernambuco
com quatro barcos, em meados de 1613, nomeado capitão-mor
da conquista do Maranhão, comandando cem
homens brancos e muitos índios. Na passagem
pelo Ceará levou consigo Martim Soares Moreno,
como lhe fora permitido, e navegou até o
Camocim, onde pretendeu fundar um forte. Por parecer
pouco próprio este lugar, preferiu a enseada
das Tartarugas, em Jererecuacara, onde deixou quarenta
soldados num presídio; com o restante voltou
por terra; os barcos mandou que costeassem como
melhor pudessem e tornassem a Pernambuco.
biblioDo Camocim expediu Martim Soares com vinte
soldados ao Maranhão, a colher notícias
que pudessem guiar no prosseguimento da conquista.
Graças ao pequeno calado da lancha, Martim
navegou muito pegado à terra, pôde
entrar pela boca do Preá, e alcançou
por águas interiores a baía hoje chamada
de S. José.
biblioO nome e a amizade de Jacaúna serviram-lhe
neste lance arriscado. Os Tupinambás receberam-no
com aparente afabilidade, mas preparavam-se para
traí-lo, quando um deles descobriu-lhe a
verdadeira situação. Havia um ano
estavam aí franceses, com uma fortaleza artilhada
de vinte peças, soldados, gente trazida em
embarcações, sob o comando de Daniel
de Latouche, senhor de la Ravardière. Ao
mesmo tempo eram os franceses informados da presença
do explorador português, e começavam
a dar-lhe caça. Martim Soares escapou incólume
com os seus e o índio amigo; o tempo, menos
propício, atirou-o às costas da Venezuela,
donde, por São Domingos, chegou a Sevilha
em abril do ano seguinte, e tratou logo de mandar
notícias para Pernambuco. Na mesma ocasião
enviou com igual destino o piloto Sebastião
Martins, mestre da lancha, que o acompanhara na
peregrinação. Chegou no momento oportuno;
Gaspar de Sousa tratava justamente de segunda e
mais poderosa expedição para a nova
conquista, e suas informações puderam
ainda ser aproveitadas.
biblioAinda esta vez Jerônimo de Albuquerque
serviu de capitão-mor. Diogo de Campos, sargento-mor,
ia por colateral. Recomendou-lhes o governador as
maiores cautelas, lembrava a fortificação
de algum ponto além do fortim deixado no
ano anterior, a plantação de legumes
de rápido crescimento, e indicou a conveniência
de, desde Tutóia, ir parte da força
por terra, parte por mar.
biblioDepois de receber alguns reforços na
fortaleza do Ceará, os expedicionários
prosseguiram viagem a 29 de setembro de 614, para
o forte do Rosário, que meses antes provara
forças com a gente de uma nau francesa destinada
ao Maranhão. Feito o alarde da gente, apuraram-se
220 soldados portugueses, 60 marítimos e
300 índios frecheiros. Deviam acampar em
Tutóia? Confessaram-se os pilotos ignorantes
daquele trecho da costa: Bastião Martins
só conhecia a barra do Preá; para
lá se encaminharam a 12 de outubro, e na
noite de 13 se abalançaram por ela na maior
confusão: “houve navios que iam tocando
e dando grandes pancadas nos bancos ao entrar da
barra, e, por não atemorizarem os que vinham
de trás, calavam e paravam sem se ouvir uma
palavra de rumor”.
biblioIam a bordo moços impacientes e pouco
disciplinados, ansiosos de medir-se com os franceses.
Conseguiram do capitão-mor se prosseguisse
levianamente pelo Preá a dentro, até
avistar o inimigo. Era o melhor plano a executar,
provou-o o resultado. Antes da viagem de Martim
Soares Moreno, aquela entrada era desconhecida dos
franceses; depois dela assentaram um forte ligeiro
em Itapari; todo o esforço de Ravardière
aplicara-se, porém, à defesa da baía
de S. Marcos; nas suas fortificações
depositavam-se a maior confiança. Claude
‘Abbeville, missionário capuchinho,
escrevia orgulhosamente: “C’est donc
niaizerie de penser que l’on puisse desloger
les François de ce lieu, lors qu’ils
y seront bien establis: & le vouloir faire croire,
outre que c’est trop raualler leur courage
& faire trop peu d’estime de leur valeur
& generosité, Si ce n’est une pure
malice n’est-ce pas temerité? &
que l’on en parle comme les aueugles des couleurs?
Ceux qui ont veu la situation de cette Isle &
qui connoissent par experience les difficultez de
ses advenuës, n’aduoueront iamais telle
proposition qui ne procede que d’vn esprit
timide”. O ataque pela baía de S. José,
devido mais à casual fraqueza da lancha de
Martim Soares, deitava por terra todos estes arreganhos.
biblioA 26 de outubro chegaram os expedicionários
ao porto, depois chamado de Guaxenduba; a 28, começaram
no continente o forte de Santa Maria. Na ilha fronteira,
logo muitos fogos pareceram indicar a transmissão
de notícias. Vieram à fala alguns
índios, esquivos apesar de todas atenções
e carinhos de Jerônimo de Albuquerque; negavam
em geral a assistência dos franceses; um,
porém, natural de Pernambuco, denunciou ataque
próximo. De fato, a 12 de novembro, no quarto
da lua, deu o inimigo nas embarcações
e tomou três.
biblioA este seguiu-se outro de maior monta a 19.
Os franceses desembarcaram duzentos infantes, mais
de dois mil índios; como reserva ficou La
Ravardière a bordo, acompanhado de cem soldados.
Transportaram esta força cinqüenta e
sete embarcações, das quais as três
tomadas alguns dias antes, e cinqüenta canoas.
Trataram de se entrincheirar e, para ganhar tempo,
La Ravardière dirigiu uma carta ameaçadora
a Jerônimo de Albuquerque. Sem dar-lhe resposta
começaram os portugueses uma ofensiva desesperada,
indo pela praia Diogo de Campos, Antônio e
Albuquerque, filho do capitão-mor, e Jerônimo
Fragoso; pelo monte Jerônimo de Albuquerque,
Francisco de Frias e Manuel de Sousa de Sá.
biblioDos franceses, escreve este, morreram a espada
e a arcabuzaços noventa e tantos, que logo
ali ficaram, além dos que se afogaram fugindo
para as embarcações, ao todo cento
e sessenta; foram capturados nove; queimaram-se-lhes
quarenta e seis canoas; tomaram-se ao todo duzentas
armas de fogo, mosquetes e arcabuzes; dos selvagens
averiguou-se depois que faltavam quatrocentos, a
maior parte mortos afogados. De parte dos portugueses
as perdas foram insignificantes.
biblioA derrota quebrantou o ânimo de La Ravardière.
Em vez de procurar desforrar-se logo, entabulou
a 21 uma correspondência com Jerônimo
de Albuquerque, concebida em termos duros, que foi
abrandando gradualmente. Os portugueses achavam-se
em situação difícil: o inimigo
dominava as entradas com sua frota; socorros só
poderiam vir pelo Preá, e o Preá só
admitia vasos de pequeno calado. Apesar de tudo
sua confiança mantinha-se inalterável:
“somos homens que um punhado de farinha e
um pedaço de cobra quando o há nos
sustenta”, escrevia Jerônimo de Albuquerque;
“somos gente que não podemos nadar
tanto mar quanto há daqui à Espanha;
pelo que ainda que hoje tendes a barra, nós
temos a terra que pisamos, a qual sempre será
de nossos corpos até que Sua Majestade d’el-rei
da Espanha, nosso senhor, cujo tudo é, outra
coisa ordene”, segundava mais difuso Diogo
de Campos.
biblioDa correspondência e das práticas
nasceu a idéia de tréguas. As duas
metrópoles estavam amigas e aliadas no velho
mundo, por que se degladiariam neste? A 27, convencionou-se
a suspensão das hostilidades até fim
de dezembro de 615; nem os franceses iriam ao continente,
nem os portugueses à ilha, e evitariam ambos
entrar em contacto com os índios de uma e
outra jurisdição; seriam permutados
sem resgate os prisioneiros; ficaria o mar franco
aos portugueses; socorro de gente de guerra não
suspenderia o armistício; a nação
obrigada a retirar-se teria três meses para
os aprestos; dois representantes de cada beligerante
iriam à corte de Madrid e à de Paris,
saber de Suas Majestades Católica e Cristianíssima
suas vontades sobre quem deveria ficar no Maranhão
biblioDepois disso o capitão-mor da conquista
mandou Manuel de Sousa de Sá, num caravelão,
a Pernambuco levar a notícia do sucedido
ao governador geral. A nau Regente, que já
se batera com a guarnição do Rosário,
em Jererecuacara, partiu a 16 de dezembro, levando
os emissário Du Prat e Gregório Fragoso
para França. A 4 de janeiro de 1615 saiu
para Portugal Diogo de Campos com Mathieu Maillart,
numa caravela comprada a este por 500 cruzados;
a 3 de março apresentava-se ao vice-rei d.
Aleixo de Menezes. O sargento-mor aproveitou a travessia
para escrever a Jornada de Maranhão.
biblioNa corte foi acolhido com frieza o resultado
da expedição, e a má vontade
aumentou quando inesperadamente chegou Manuel de
Sousa de Sá, enviado a Pernambuco mas levado
pelos ventos e correntes às Indias ocidentais,
donde lhe deram condução para a Europa.
Conhecida a versão de Manuel de Sousa, diferente
em pontos essenciais da de Diogo de Campos, aprestou-se
para o Maranhão um patacho com munições,
pólvoras e mais coisas necessárias,
que em começos de junho passou pelo Ceará.
Nele parece ter voltado Martim Soares, com o posto
de sargento-mor, na ausência do tio. Falou-se
em castigar este, mas prevaleceu o alvitre de mandá-lo
com Sousa de Sá a Gaspar de Sousa, a quem
com maior empenho se ordenou a ultimação
da empresa.
biblioNão se descuidara o governador. Em
junho mandara Francisco Caldeira de Castelo Branco,
antigo capitão-mor do Rio Grande, comandando
uma armada composta de um patacho, duas caravelas
e um caravelão grande, que chegou a Santa
Maria de Guaxenduba em 1 de julho, fazendo a viagem
por fora do Preá. La Ravardière foi,
apesar da trégua, intimado a abandonar a
terra, e, depois de relutar, cedeu em promessa;
mas, porque rebentassem discórdias entre
os dois chefes portugueses, foi-se deixando ficar,
Jerônimo de Albuquerque transferiu-se para
a ilha, onde fundou uma cerca e um forte, chamado
de S. José. Provavelmente vem daí
o nome atual desta baía.
biblioManuel de Sousa encontrou o governador geral
em Pernambuco, e deu-lhe cartas e ordens. Sem demora
Gaspar de Sousa aprestou nove navios, cinco dos
quais grandes, com mais de novecentos homens, muito
armamento e dinheiro, plantas e gado para povoarem
a terra.
biblioConferiu o comando a Alexandre de Moura que,
partindo a 5 de outubro do Recife, a 17 chegava
ao Preá, onde breve se convenceu de não
serem para aquele canal as suas embarcações.
Cumpria navegar por fora, fazer sondagens, arrostar
a baía de S. Marcos, as terríveis
fortificações, inexpugnáveis
no sentir de Abbeville. E não havia tempo
a perder, pois a fortaleza de S. José se
incendiara, e Jerônimo de Albuquerque, capitão-mor
antes de nome que de fato, porque os portugueses
achavam-se divididos em dois partidos dominados
por ódios violentos, estava reduzido a pouca
pólvora e às armas salvas do incêndio.
biblioA 1 de novembro decidiu-se a investir a entrada
de São Marcos; um patacho menor foi adiante,
mostrando o caminho, e a armada surgiu fora do alcance
da artilharia inimiga. Jerônimo de Albuquerque
marchou por terra com forças; um posto foi
guarnecido com oito peças de artilharia,
cento e cinqüenta soldados, duzentos frecheiros;
cem homens com seis peças guardariam a entrada
da barra. A 3 foi intimado La Ravardière
a entregar a colônia e a fortaleza, com toda
a artilharia e munições existentes
dentro e fora dela, com todos os navios grandes
e pequenos, sem por tudo receber indenização
alguma. Obrigava-se Alexandre de Moura a dar condução
para a França; os franceses se obrigariam
a partir apenas recebessem os navios e deixassem
reféns. E este favor se lhe faz, concluía,
pelas alianças que hoje há entre os
senhores reis Católico e Cristianíssimo.
biblioA fortaleza foi entregue; em duas naus sem
artilharia, mandadas separadamente, partiram os
franceses para a pátria; La Ravardière
teve de acompanhar o vencedor a Pernambuco. Anos
mais tarde andava em Lisboa, requerendo mercês
e alegando serviços, por haver largado o
Maranhão com a sua fortaleza e artilharia.
Assim, o mesmo ano de 1615 assistiu à derrocada
final dos franceses depois de quase um século
de resistência: em Cabo Frio, por mão
de Constantino Menelau, no Maranhão pelo
antigo capitão-mor de Pernambuco.
biblioTrazia Alexandre de Moura instruções
para expulsar os franceses do Pará e ir até
o Amazonas. Como no Pará não existisse
estabelecimento francês e o Amazonas estivesse
desocupado, mandou em seu lugar Francisco Caldeira
de Castelo Branco com cento e cinqüenta homens,
dez peças de artilharia e três embarcações.
Além de colher outras vantagens, afastava
do Maranhão um elemento perturbador. Em companhia
de Castelo Branco seguiu um piloto francês,
e o famoso Charles Desvaux “de quem ele, dito
capitão-mor, deve fazer uma conta, com a
cautela devida”. Antônio Vicente Cochado
foi como piloto.
biblioPartiram no dia de Natal, correndo a costa,
fazendo sondagens, dando fundo todas as noites,
tomando as conhecenças da terra, numa extensão
de cento e cinqüenta léguas. Entraram
na barra pela ponta de Saparará, e seguiram
por entre ilhas, bem acolhidos pelo gentio disposto
em seu favor, graças à derrota dos
franceses; muitos dos naturais usavam cabelo comprido
e de longe pareciam mulheres; encontraram notícias
imprecisas de flamengos e ingleses que freqüentavam
aquelas regiões.
biblioA 35 léguas do mar, na margem direita
do Pará, Francisco Caldeira de Castelo Branco
fundou a fortaleza, e chamou-a Presepe.
biblioEstava dado o primeiro passo para a ocupação
do Amazonas.
biblioAgora um rápido lancear do país,
aí pelos anos de 1618, quando escrevia autor
do Diálogo das Grandezas do Brasil, e Fr.
Vicente do Salvador preparava-se para redigir sua
história.
biblioOs estabelecimentos fundados por portugueses
começavam no Pará quase sob o Equador
e terminavam em Cananéia além do trópico.
Entre uma e outra capitania havia longos espaços
desertos, de dezenas de léguas de extensão.
A população de língua européia
cabia folgadamente em cinco algarismos.
biblioA camada ínfima da população
era formada por escravos, filhos da terra, africanos
ou seus descendentes. Aqueles aparecem menos numerosos
pela pouca densidade originária da população
indígena, pelos grandes êxodos que
os afastaram da costa, pelas constantes epidemias
que os dizimaram, pelos embaraços, nem sempre
inúteis, opostas ao seu escravizamento.
biblioAcima deste rebanho sem terra e sem liberdade,
seguiram-se os portugueses de nascimento ou de origem,
sem terra, porém livres: feitores, mestres
de açúcar, oficiais mecânicos,
vivendo do seus salários ou do feitio de
obras encomendadas; em geral o mecânico sabia
vários ofícios, pois um só
não garantia a subsistência, e ia trabalhar
pelas fazendas quando a simplicidade das ferramentas
o permitia ou os proprietários possuiam a
ferramenta em casa.
biblioEntre os proprietários rurais ocupavam
lugar modesto os lavradores de mantimento e os criadores
de gado: a criação avultava somente
a uma e outra margem do baixo São Francisco:
seu grande desenvolvimento se operou mais tarde,
quando se separou da lavoura e invadiu os campos
e as catingas do interior.
biblioCoroava esta hierarquia o senhor de engenho.
Havia engenhos movidos por água e por bois;
servidos por carros ou por barcos; situados à
beira-mar ou mais apartados, não muito, porque
as dificuldades de comunicações apenas
permitiam arcos de limitados raios. O engenho real
devia possuir grandes canaviais, lenha abundante,
boiada capaz ou barcos e barqueiros suficientes,
escravatura, aparelhos diversos, moendas, cobres,
fôrmas, casas de purgar, pessoal adestrado
para o preparo do açúcar, pois a matéria
prima passava por diversos processos antes de ser
entregue ao consumo: alguns possuiam igreja, capelão
melhor remunerado que os vigários, e às
vezes incumbido de ensinar rudimentos de leitura
à meninada. O senhor de engenho opulento
remetia a safra diretamente para o Reino, e recebia
o pagamento do além-mar em fazendas finas,
vinhos, farinha de trigo, em suma, coisas de gozo
ou de luxo.
biblioA casa da gente rica representava uma economia
autônoma: o nec est quod putes illum quidquam
emere, omnia domi nascuntur, de Petrônio,
não podia ser praticado ao pé da letra,
mas correspondia até certo ponto à
realidade. Para os escravos fiava-se e tecia-se
a roupa; a roupa da família era feita no
meio dela; da alimentação, fornecida
por peixe de água doce ou salgada, mariscos
apanhados nos mangues ou caça, estavam encarregados
os escravos; a criação miúda
de voláteis, ovelhas, cabritos e porcos evitava
as surpresas de hóspedes da última
hora: não havia açougues ou mercados:
“as casas dos ricos (ainda que seja á
custa alheia, pois muitos devem o que têm)
andam providas de todo o necessário, pois
têm escravos pescadores e caçadores,
que lhes trazem a carne e o peixe, pipas de vinho
e azeite que compram por junto, nas vilas muitas
vezes se não acha isto de venda”.
biblioA mercatura representava-se por embarcadiços
vindos do Reino com carregamentos que tratavam de
liquidar, de modo a voltar no mesmo navio, ou de
mascates que iam pelos lugares mais afastados, a
vender miudezas. Nas transações dominava
a permuta ou empréstimos de gêneros;
transações a dinheiro não se
conheciam ou eram raríssimas, e como ninguém
sabia aproximadamente de suas posses, o endividamento
era geral.
biblioNa economia naturista, já foi observado,
por um economista recente, nunca se produzem demais
os gêneros consumidos em casa; se há
superabundância de algum, guarda-se, dá-se
ou deixa-se estragar; daí, a hospitalidade,
as festas pantagruélicas e também
o jogo. Talvez nas paradas achasse seu melhor emprego
o pouco dinheiro girante; o resto ia em festas eclesiásticas
ou profanas.
biblioA ausência de capitais restringia muito
as satisfações da vida coletiva: não
havia fontes, nem pontes, nem estradas; se por alguma
circunstância favorável, construía-se
alguma, à falta de conservação
estragava-se ou ficava de todo arruinada. Como não
havia dinheiro, os impostos eram levados à
praça, e o contratador pagava-se em gêneros.
Só as casas de misericórdia eram até
certo ponto devidas à ação
incorporada. As sedes das capitanias, mesmo as mais
prósperas, reduziam-se a meros lugarejos;
a gente abastada possuía prédios nas
vilas, mas só os ocupava no tempo das festas;
a população permanente constava de
funcionários, mecânicos, regulares
ou gente de vida pouco edificante.
biblioAjunte-se a isto a natural desafeição
pela terra, fácil de compreender se nos transportamos
às condições dos primeiros
colonos, abafados pela mata virgem, picados por
insetos, envenenados por ofídios, expostos
às feras, ameaçados pelos índios,
indefesos contra os piratas, que começaram
a surgir apenas souberam de alguma coisa digna de
roubar. Mesmo se sobejassem meios, não havia
pendor a meter mãos a obras destinadas aos
vindouros; tratava-se de ganhar fortuna o mais depressa
possível para ir desfrutá-la no além
mar. Informa-nos Gandavo que os velhos acostumados
ao país não queriam sair mais. Seriam
estes seus primeiros entusiastas.
biblioDesafeição igual à sentida
pela terra nutriam entre si os diversos componentes
da população.
biblioExaminando superficialmente o povo, discriminaram-se
logo três raças irredutíveis,
oriunda cada qual de continente diverso, cuja aproximação
nada favorecia. Tão pouco próprios
a despertar simpatia e benevolência, antolhavam-se
os mestiços, mesclados em proporção
instável quanto à receita da pele
e dosagem do sangue, medidas naqueles tempos, quando
o fenômeno estranho e novo, em toda a energia
do estado nascente, tendia a observação
ao requinte e superexcitava os sentidos, medidas
e pesadas com uma precisão de que não
podemos mais formar idéia remota, nós
afeitos ao fato consumado desde o berço,
indiferentes às peles de qualquer aviação
e às dinamizações do sangue
em qualquer ordinal.
biblioA desafeição entre as três
raças e respectivos mestiços lavrava
dentro de cada raça. O negro ladino e crioulo
olhava com desprezo o parceiro boçal, alheio
à língua dos senhores. O índio
catequizado, reduzido e vestido, e o índio
selvagem ainda livre e nu, mesmo quando pertencentes
à mesma tribo, deviam sentir-se profundamente
separados. O português vindo da terra, o reinol,
julgava-se muito superior ao português nascido
nestas paragens alongadas e bárbaras; o português
nascido no Brasil, o mazombo, sentia e reconhecia
sua inferioridade.
biblioEm suma, dominavam forças dissolventes,
centrífugas, no organismo social; apenas
se percebiam as diferenças; não havia
consciência de unidade, mas de multiplicidade.
Só muito devagar foi cedendo esta dispersão
geral, pelos meados do século XVII. Reinóis
e mazombos, negros boçais e negros ladinos,
mamalucos, mulatos, caboclos, caribocas, todas as
denominações, enfim, sentiram-se mais
próximos uns de outros, apesar de todas as
diferenças flagrantes e irredutíveis,
do que do invasor holandês: daí uma
guerra começada em 1624, e levada ao fim,
sem desfalecimentos, durante trinta anos. Em São
Vicente, no Rio, na Bahia, e em outros lugares,
por meios diferentes, chegou-se ao mesmo resultado.
biblioSobre o modo de administração
de toda esta gente informa-nos a folha geral do
estado, organizada em 1617.
biblioSubiam todas as despesas públicas a
cinqüenta e quatro contos, cento e trinta e
oito mil, duzentos e noventa e oito réis,
repartidos pelas quatro rubricas de igreja, justiça,
milícia e fazenda.
biblioConstituía todo o país uma só
diocese; o Bispo assistia na Bahia com o Cabido;
dois administradores, um para as capitanias do Norte
e estabelecido na Paraíba, outra para as
capitanias do Sul e residindo no Espírito
Santo, seguiam-se em hierarquia; cada capitania
formava uma freguesia, com seu vigário e
coadjuntor, exceto a de S. Vicente, que contava
as vigararias de Itanhaém, São Vicente,
Santos e São Paulo; a de Espírito
Santo, com as de Vitória e E. Santo; a da
Bahia com as de Vila-Velha, Santo Amaro, S. Iago,
Peruaçu, Paripe, Matoim, N. S. do Socorro,
Sergipe do Conde, Taparica, Passé, Pirajá,
Cotegipe, Tamari e Sergipe del Rei; a de Pernambuco
com as de Olinda, São Pedro, Recife, S. Lourenço,
Igaraçu, S. Antônio, Várzea,
Moribeca, S. Amaro, Pojuca, Serinhaém e Porto
Calvo; a de Itamaracá, com a da ilha e a
da Goiana. A todo este pessoal o governo pagava
ordenado e ordinária para a celebração
do culto; para isso o rei arrecadava o dízimo,
como grão-mestre da Ordem de Cristo.
biblioHavia colégio de jesuítas, conventos
Capuchos, Carmelitas ou Beneditinos na Bahia, Rio,
Espírito Santo, Pernambuco, e todos recebiam
auxílios sob diversas formas, em gêneros
ou dinheiro. Quase todas as capitanias sustentavam
casas de misericórdia, que o governo socorria.
biblioÀ frente da justiça estava a
Relação instalada na Bahia com um
numeroso pessoal de desembargadores, ouvidor-geral,
etc.; nas capitanias reais parece que a jurisdição
de primeira instância cabia aos juízes
ordinários, renovados anualmente; as dos
donatários possuíam ouvidores que
muitas vezes eram os próprios capitães-mores:
pouco informa a este respeito a folha geral.
biblioEncabeçava o corpo da fazenda o provedor-mor,
estabelecido na capital, a quem estavam subordinados
em cada capitania o provedor e escrivão da
fazenda, o almoxarife e o porteiro das alfândegas.
biblioAo lado das capitanias de donatários,
São Vicente, S. Amaro, Espírito Santo,
Porto Seguro, Ilhéus, Pernambuco e Itamaracá,
havia as capitanias reais do Rio, Bahia, Sergipe,
Paraíba, Rio Grande, Ceará, Maranhão,
Pará.
biblioChefe da milícia e em geral da administração
era o Governador Geral com assento na Bahia. A milícia
era representada pela tropa paga, e pelas ordenanças,
espécie de guarda nacional.
biblioE agora vistas as vantagens do domínio
espanhol na eliminação completa dos
franceses e na rapidez da marcha para o Amazonas,
vejamos o reverso da medalha, nas guerras flamengas
dele originadas.