VIII
GUERRAS FLAMENGAS
biblioAs relações entre Portugal e Flandres,
iniciadas desde a idade média, continuaram
ainda depois de descoberto o caminho marítimo
das Índias e achado e colonizado o Brasil.
Iam os flamengos a Lisboa adquirir as drogas e gêneros
exóticos, apenas desembarcados, e retalhavam-nos
pela vasta clientela do Norte e Ocidente da Europa,
poupando canseiras e garantindo lucros imediatos aos
portugueses; estes, além do dinheiro de contado,
proviam-se, graças aos seus fiéis fregueses,
de cereais, peixe salgado, objetos de metal, aparelhos
náuticos, fazendas finas.
biblioModificou-se esta situação vantajosa
para ambas as partes quando a monarquia espanhola
abarcou a península inteira e os inimigos de
Castela passaram a ser os de Portugal. Em 85, Filipe
II mandou confiscar os navios flamengos ancorados
em seus portos, aprisionando-lhes as tripulações.
O mesmo se fez em 90, 95 e 99.
biblioDificilmente se conceberia mais terrível
golpe contra um povo que do comércio marítimo
auferia o melhor de suas riquezas, base de uma independência
comprada a poder de sangue. Depois de tanto heroísmo
teria de sujeitar-se ao domínio do Meio-Dia?
Para escapar a estes apuros brotaram os mais desencontrados
alvitres: procurar pelo Norte da Ásia outro
caminho marítimo para a China e Índia;
transferir a atividade comercial para o Mediterrâneo;
apossar-se do estreito de Magalhães. Tudo isto
se tentou, de tudo se tirou resultado negativo. Por
que não se afrontaria o cabo da Boa Esperança,
a buscar os gêneros do Oriente nos próprios
lugares de sua procedência?
biblioEm 95, mercadores de Amsterdam arriscaram a
primeira viagem ao oceano Índico, viagem demorada,
de pouco proveito imediato, mas fecundíssima
em conseqüências, pois logrou a certeza
da fragilidade do domínio peninsular naquelas
regiões alongadas. Da mesma cidade partiram
outros navios em maio de 98, terceira expedição
em abril, quarta em dezembro de 99. Em várias
províncias surgem negociantes arrojados, improvisam-se
companhias opulentas, ávidas de despojos e
aventuras no amplo teatro que agora se abria. A emulação
salutar ameaçava degenerar em rivalidade perniciosa.
Homens sagazes anteviram o perigo; intervieram os
Estados Gerais, e por meio de concessões e
privilégios conciliaram as pretensões
divergentes, fundando a Companhia das Índias
Orientais no começo de 1602.
biblioA trégua de doze anos, assentada em 1609
entre os Países Baixos e a Espanha, em nada
interrompeu a carreira aventurosa da Companhia, que
com poucos anos de existência se impôs
aos príncipes indígenas, repeliu os
ingleses, derrocou a aparatosa fábrica luso-hispânica,
monopolizou o trato das especiarias, distribuiu dividendos
enormes, prestou serviços inestimáveis
ao governo das Províncias Unidas.
biblioNa constância do armistício sazonou
a idéia de uma companhia das Índias
ocidentais, análoga à outra nos intuitos
e na organização, que obteve foral a
3 de junho de 1621. Seu capital seria de sete milhões,
cento e tantos mil florins; o privilégio duraria
vinte e quatro anos; constaria de cinco câmaras,
representando os acionistas de Amsterdam, Zelândia,
cidades do Maas, o distrito do Norte e a Frísia;
os diretores, em número de dezenove, funcionariam
alternadamente em Amsterdam e Middelburg. A esfera
privilegiada seria, na África, do trópico
de Câncer ao cabo da Boa Esperança; ao
Ocidente, desde Terra-Nova, no Atlântico, até
o estreito de Anian no Pacífico.
biblioOs Estados Gerais concederam-lhe faculdade de
construir fortes na região outorgada, contrair
tratados com os príncipes e povos indígenas,
nomear autoridades e funcionários; obrigaram-se
a subvencioná-la, para ficar com direito a
certa parte dos dividendos; forneceriam soldados e
naus de guerra em condições especificadas.
Em suma, deixando de parte diferenças patentes,
a Companhia das Índias Ocidentais filiou-se
ao sistema dos donatários iniciados por d.
João III.
biblioA Companhia deixou sinais de sua passagem no
território africano, nas costas dos Estados
Unidos, nas Antilhas, no Brasil, no Chile. A nós
só importam os feitos ocorridos em nossa terra.
biblioSua criação foi acolhida com frieza
na Holanda; ainda em 622 não estava subscrito
um quinto sequer do capital que só ficou integralizado
depois de obtidas vantagens suplementares, entre outras,
o monopólio de exportação do
sal brasileiro, em 1624.
biblioDesde 623 começou a preparar uma expedição
contra a Bahia. Vinte e três navios e três
iates com quinhentas bocas de fogo, tripulados por
mil e seiscentos marinheiros, foram aos poucos se
reunindo em S. Vicente do Cabo-Verde nos fins deste
e no começo do seguinte ano. A 26 de março
partiram rumo de SW, a 4 de maio descobriram costa
do Brasil, a 8 surgiram diante da baía de Todos-os-Santos
e foram vistos de terra.
biblioGovernava a cidade do Salvador e o Brasil em
geral Diogo de Mendonça Furtado. Tinham-lhe
chegado notícias do perigo iminente e procurara
prevenir-se.
biblioSobejavam-lhe coragem e boa vontade, faltava-lhe
tudo o mais: as fortalezas já arruinadas umas,
outras por acabar, a barra larga e franca, acessível
sem prático às maiores embarcações
a qualquer hora do dia e da noite, a guarnição
reduzida e imbele, a população trépida,
prestes a fugir mal avistava qualquer vela suspeita,
não encerravam elementos de resistência
eficaz. Acresciam dissenções entre o
governador e o bispo e, como de costume, entre uma
e outra metade do povo, sempre ávido de questões
entre os potentados.
biblioA 9 de maio a armada enfiou a barra e dirigiu
o ataque por terra e por mar. Na ponta de S. Antônio,
à entrada, desembarcaram mil e duzentos soldados
e duzentos marinheiros: e à sua aproximação
a força dos colonos postada retirou-se às
carreiras, semeando o pânico. Dos fortes houve
alguns disparos, alguns navios pareceram dispostos
a resistir; quando o inimigo se aproximou, recorreu-se
ao incêndio para evitar fossem cair-lhe às
mãos os ricos carregamentos de açúcar,
pau-brasil, fumo e peles. Mesmo assim, muitos foram
salvos.
biblioÀ noite, bispo, eclesiástico,
os moradores que puderam abandonaram a cidade. Ao
amanhecer, além de escravos e gente baixa sem
nada a perder, encontravam-se apenas o governador
e alguns fiéis na cidade deserta. Com facilidade
os invasores prenderam-nos e mais tarde mandaram-nos
para a Holanda. Os fugitivos acomodaram-se como puderam
em engenhos próximos, aldeias de índios,
debaixo de árvores, ao céu aberto. Quantas
privações passaram e como foi difícil
sustentar e conter esta multidão, pode-se bem
imaginar. Ainda depois de reunidos em arraial e estabelecida
certa ordem, a empresa nada tinha de fácil.
biblioAs vias de sucessão, então abertas,
nomeavam para substituto do governador a Matias de
Albuquerque Coelho. Estava em Pernambuco, capitania
hereditária de seu irmão, em cujo nome
governava, a mais de cem léguas de distância.
Antes que recebesse a notícia e tomasse qualquer
providência, perder-se-ia tempo, um tempo precioso.
Elegeu-se, pois, capitão-mor interino o desembargador
Antão de Mesquita; dentro em pouco, por motivos
pouco conhecidos ainda, ficou sendo governador de
fato o bispo dom Marcos Teixeira.
biblioUma só coisa havia a fazer com os recursos
da terra: cercar o invasor dentro da cidade, impedindo
que penetrasse pelas cercanias para renovar provisões,
impossibilitando as adesões das classes baixas,
indiferentes à mudança do senhor, pois
o cativeiro prosseguiria invariável. A falta
de armamentos apropriados, a escassez e por fim a
carência completa de pólvora limitaram
as operações à arma branca; à
flecha, ao combate singular, à tocaia; as companhias
de emboscadas, em número de trinta, composta
cada uma de poucas dezenas de combatentes, pelo subitâneo
da aparição nos lugares mais diversos,
mantiveram o inimigo sobressaltado; a multiplicidade
dos assaltos, quase sempre coroados de êxito,
alimentava a coragem e fortaleceu o espírito
patriótico.
biblioEntretanto chegava a Pernambuco a notícia
de ser tomada a cidade. Matias de Albuquerque, informa
um contemporâneo, nem de dia, nem de noite,
se poupava ao trabalho. Não quis nunca andar
em rede, como no Brasil se costuma, senão a
cavalo ou em barcos, e quando nestes entrava não
se assentava, mas em pé ia ele próprio
governando. Tinha grande memória e conhecimento
dos homens, ainda que uma só vez os visse,
e ainda dos navios que uma vez vinham àquele
porto. Esta atividade fervorosa, unida a uma energia
indomável, ver-se-á melhor no decurso
da narrativa.
biblioPor sua ordem partiu logo Francisco Nunes Marinho
em dois caravelões, com pólvora, munições
de fogo e de boca e trinta soldados. Trataram-no mal
as tormentas; de vergas e mastros quebrados, arribou
a Sergipe; mas já em começos de setembro
juntava-se à gente do arraial. Sob o seu governo
as guerrilhas avançaram para o interior da
Bahia até Itapagipe, para o lado da barra até
a ponta de Santo Antônio; novas e mais fortes
trincheiras foram levantadas. Dois barcos, um no Itapoã,
e outro no morro de S. Paulo, vigiavam o mar, avisando
os navios portugueses que evitassem o porto, para
não serem aprisionados como já o haviam
sido outros.
biblioPequenos socorros do Reino iam chegando a Pernambuco
e Matias de Albuquerque reforçava-os, e encaminhava-os
sem perda de tempo. Graças a ele, d. Francisco
de Moura, vindo com o título de capitão-mor
do recôncavo, conduzindo três caravelas,
partiu de Recife depois de demora de oito dias, levando
seis caravelões, oitenta mil cruzados de provimentos
novos. A 3 de dezembro troava a artilharia no acampamento,
e os holandeses, curiosos da novidade, só então
souberam como ao bispo, poucos dias antes de falecer,
sucedera Francisco de Moura, antigo governador do
Cabo Verde.
biblioNa cidade conquistada as coisas corriam mal
para o inimigo. Johannes van Dorth, governador pela
Companhia, foi morto numa emboscada. Albert Schout,
seu sucessor, tratou das fortificações,
mas em festas e banquetes apanhou uma enfermidade,
que em poucos dias o levou. Willem Schout, seu irmão,
mostrou-se alheio às responsabilidades do cargo.
biblioContudo a situação poderia manter-se
indefinidamente, máxime dominando o oceano
a armada da Companhia; tratava-se de saber quem receberia
primeiros socorros de além-mar. Por uma felicidade
nunca mais repetida foram os nossos. A corte espanhola,
geralmente desatenta e inerte, desta vez sentiu a
gravidade do golpe; o rei, ou antes Olivares, seu
ministro onipotente, percebeu a ameaça implícita
contra o México e o Peru; cartas régias
do próprio punho, procissões, novenas,
excitaram o espírito público; a nobreza
da Espanha e a de Portugal alistaram-se com entusiasmo
na cruzada contra o hereje rebelde; fidalgos e prelados
fizeram largos donativos, fretaram navios, custearam
companhias; as armadas de Portugal, do Oceano, do
Estreito, de Biscaia, das Quatro-Vilas, de Nápoles,
somaram cinqüenta e dois navios de guerra; mais
de doze mil homens d’armas embarcaram para o
Novo Mundo. Comandante geral de todas as forças
era d. Fadrique de Toledo.
biblioA armada chegou à Bahia sábado
da aleluia, 29 de março de 1625, no mesmo dia
que aí aportara Tomé de Sousa, o fundador
da cidade, setenta e seis anos antes. Formou em meia-lua,
da ponta de Santo Antônio à de Itapagipe,
fechando a saída aos navios holandeses ancorados.
biblioA tropa desembarcou em Santo Antônio e
tomou logo posição em São Bento,
Palmeiras, Carmo e outros morros. A 2 de abril travou-se
o primeiro combate, seguido de outros. O cerco apertou-se
por terra e por mar. Os sitiados foram obrigados a
render-se. A 30 de abril assinava-se a capitulação.
A 1 de maio abriram-se as portas e entrou o exército
vencedor. A 26 apareceu na barra o socorro holandês,
trinta e quatro naus, comandadas por Boudewiyn Hendrikszoon.
Ambas as armadas evitaram porém travar novos
combates e os holandeses foram piratear em outras
regiões mais indefesas.
biblioNos anos seguintes a Companhia mandou diversos
navios que estiveram no Brasil e em outras partes
da África e da América, devastando e
saqueando. Seu triunfo mais completo foi a tomada
da frota espanhola, junto à costa de Cuba,
por Pieter Heyn, em setembro de 1628. De uma só
vez entraram-lhe para os cofres mais de quatorze milhões,
o duplo do capital inicial; os dividendos subiram
a 50%. Com as finanças restauradas, preparou
nova expedição ao Brasil; agora preferiu
Pernambuco para ponto de investida.
biblioA 26 de dezembro de 629 zarpou de S. Vicente
uma armada de cinqüenta e dois navios e iates,
e treze chalupas, poderosamente artilhados, com três
mil setecentos e oitenta marinheiros, três mil
e quinhentos soldados; a 3 de fevereiro de 630 avistou
o Brasil; a 13 chegou em frente a Olinda; no dia seguinte
abriu o ataque.
biblioComandava a capitania Matias de Albuquerque,
neto do velho Duarte Coelho, irmão do quarto
donatário. Com as notícias da próxima
invasão, partira de Lisboa a 12 de agosto de
629, trazendo vinte e sete soldados e alguma munição
em uma caravela. Chegou ao Recife a 18 de outubro,
e entregou-se com todo o devotamento à obra
desesperada.
biblioAs fortalezas estavam arruinadas como na Bahia.
Se a barra do Recife não oferecia as comodidades
da baía de Todos-os-Santos e não custaria
cegá-la, em compensação dava
fácil desembarque desde Pau-Amarelo ao Norte,
até Candelária ao Sul, na extensão
de sete léguas. Poder-se-ia ao menos contar
com o sangue frio da população?
biblioO inimigo dividiu a ofensiva por três
pontos. O grosso da armada, comandada pelo almirante
Loncq, investiu a barra, e estacou por achá-la
obstruída. Outro troço dirigiu-se diretamente
para Olinda. Com três mil homens o coronel Diedrich
van Weerdenburgh aproou primeiro para o rio Tapado,
depois para o Pau-Amarelo, mais ao Norte, onde desembarcou
na tarde de 15 de fevereiro. Na manhã seguinte,
formado em três colunas, marchou para o Sul;
as pequenas resistências esporádicas
da nossa gente cederam à tropa numerosa e às
embarcações de que saltara, que navegavam
a pequena distância, apoiando-lhes os movimentos.
biblioÀ entrada da vila alguns militares sacrificaram-se
nobremente. O troço da armada mandado de véspera
contra ela apossou-se das trincheiras da praia. Quando
anoiteceu, o pavilhão batavo flutuava sobre
a antiga Marim.
biblioA população abandonou a vila e
procurou abrigo nos matos e nos engenhos. A soldadesca
invasora entregou-se ao saque e à embriaguez.
Matias de Albuquerque mandou tocar fogo nos navios
e nos armazéns para ao menos arrancar das garras
da Companhia o fruto do trabalho amargamente suado.
A povoação de Recife, iluminada pelos
clarões de incêndio, converteu-se um
montão de ruínas. Defendiam-na ainda
dois fortes: um no istmo que vai para Olinda, outro
no próprio recife. Reforçou-os o general
com gente e munições, e mais de um ataque
foi repelido com vantagem; mas a 2 de março
o de S. Jorge, velho, capaz só de resistir
a ataques de índios, capitulou, e o de São
Francisco da barra seguiu-lhe o exemplo. Só
então a armada holandesa entrou no porto.
biblioDurante este tempo Matias de Albuquerque trazia
sempre inquieto o inimigo. Entregue aos próprios
recursos não lograria desalojá-lo, mas
tirava-lhe o sossego, diminuia-lhe a confiança,
reduzia-lhe o número, impedia-lhe as comunicações
com a gente da terra e nesta substituía o soçobro
do primeiro momento pelo desejo de lutar e desprezo
de morrer: a dominação holandesa era
um fato; não era, nunca seria um fato consumado.
biblioA 4 de março o general escolheu uma eminência
quase a uma légua do Recife e de Olinda, próximo
do rio Capibaribe e ainda mais do riacho Parnamirim,
ponto de boa água e lenha. Com vinte pessoas
começou a fortificação, plantando
quatro peças. Deu à obra o nome de arraial
do Bom-Jesus. Pouco a pouco foram chegando aderentes:
aventureiros, senhores de engenho sós ou seguidos
de escravos, índios aldeados. Entre estes entra
logo a aparecer com um brilho que irá sempre
crescendo Antônio Camarão, chefe petiguar
de vinte e oito anos de idade, o mais fiel e preciso
dos auxiliares. Dez dias mais tarde o arraial já
repelia com grandes perdas um assalto do inimigo.
Será esta a sua história perene durante
os cinco anos seguintes.
biblioComo contar os sucessos desta guerra sem precedentes?
Os conflitos feriam-se diários, houve dias
de mais de um. Holandeses que procuravam faxina ou
frutos, destacamentos que pelo istmo saíam
de um para outro ponto, caíam em emboscadas
que surdiam a cada passo. Trincheiras tomadas a peito
descoberto, socorros mandados por terra aos pontos
mais afastados, em concorrência com os navios
e não raro vencendo-os na rapidez; passagens
de rios no momento da maré, para atacar o centro
das fortificações inimigas; fome, nudez,
falta de pólvora, de médicos e botica,
tudo isso de tão comum passava despercebido.
Estando, havia quase dois anos, assente na vila de
Olinda e povoação do Recife, ainda o
invasor não podia, nem o deixava nosso general
por si e seus capitães, colher uma só
vaca, informa Duarte de Albuquerque. E acrescenta:
“Solamente comian de lo que les embiava Olanda;
com que bien licitamente se puede decir que sobre
estar de tanto tiempo em tierra, aun navegavan, pues
no tenian otros bastimentos mas de los salados”.
biblioAs notícias transmitidas à península
não provocaram o alvoroço da tomada
da Bahia. Vieram socorros em pequena quantidade, a
grandes intervalos e nem sempre aproveitáveis,
porque a Companhia dominava no mar, e ora se apossava
das caravelas mandadas para Pernambuco, ora as obrigava
a vararem em terra, perdendo os carregamentos ou deixando-os
a grande distância dos lugares onde faziam falta.
Encapava-se esta desídia na corte sob um profundo
maquiavelismo: a melhor guerra contra a Companhia
das Índias Ocidentais, alegavam estes calculistas
insondáveis, consistiam obrigá-la a
despesas que com o tempo arrastariam seu descalabro
econômico!
biblioSó em 631 partiu de Lisboa o famoso d.
Antônio de Oquendo com uma armada de vinte navios,
a 5 de maio. Trazia socorros para Paraíba,
Pernambuco e Bahia, e na volta deveria comboiar as
embarcações carregadas de açúcar
para o Reino. Procurou primeiramente a Bahia, como
se quisesse dar tempo de prepararem-se aos holandeses.
Estes, apenas souberam da sua vinda, despediram com
o mesmo destino uma armada mandada por Adrian Pater.
biblioDeu-se o encontro nas alturas dos Ilhéus,
quando Oquendo demandava já Pernambuco, a 12
de setembro; atos de heroísmo houve de parte
a parte; o almirante batavo sepultou-se nas ondas
com a capitânea; o resultado ficou indeciso,
isto é, a Companhia das Índias continuou
dominando o mar. Com Oquendo vieram e continuaram
no Brasil Duarte de Albuquerque, donatário
de Pernambuco, admirável historiador desta
guerra, desde o desembarque do Pau-Amarelo até
o assalto da Bahia por Nassau (1630-1638), e João
Vicente de San Felice, conde de Bagnoli, que já
aqui estivera com d. Fadrique de Toledo. Depois do
combate dos Ilhéus, o inimigo incendiou Olinda,
desesperado de fortificá-la eficazmente, e
concentrou-se no Recife.
biblioAté aqui sairam frustrados todos os esforços
da Companhia para romper o círculo de ferro
em que a envolvera Matias de Albuquerque; apenas fundara
na ilha de Itamaracá o forte de Orange. Começa
agora a sorrir-lhe a sorte. A 20 de abril de 32 passou
para seu lado Domingos Fernandes Calabar, mulato natural
de Porto Calvo, aonde tinha mãe e alguns parentes.
Segundo se pode concluir das poucas e suspeitas notícias
encontradas a seu respeito nos escritos contemporâneos,
Calabar exercia a profissão de contrabandista,
nem de outro modo se podem explicar os roubos feitos
à fazenda real de que o acusam os nossos, pois
não deviam ter andado dinheiros públicos
por suas mãos; para professar o contrabando
assinalavam-no a audácia, a presença
de espírito, a fertilidade de invenções,
o profundo conhecimento das localidades. Era o único
homem capaz de se medir com Matias de Albuquerque,
e como tinha sobre este a vantagem de dispor do mar,
desfechou-lhe os golpes mais certeiros. Qual móvel
o levou a abandonar os compatriotas, nunca se saberá;
talvez a ambição, ou a esperança
de fazer mais rápida carreira entre estranhos,
tornando-se pela singularidade de seus talentos indispensável
aos novos patrões ou, talvez, o desânimo,
a convicção da vitória certa
e fácil do invasor.
biblioEntre os feitos mais notáveis inspirados
por Calabar contam-se o ataque ao Igaraçu,
várias incursões ao rio Formoso, a ocupação
de Afogados, séria ameaça ao arraial
de Bom-Jesus, entradas por Alagoas, a tomada de Itamaracá
e Rio Grande. Estes últimos sucessos deixavam
bem iniciada a conquista da Paraíba, agora
mera questão de tempo. Em fins de fevereiro
de 34, uma armada para lá se dirigiu, e durante
dois dias não cessaram combates; tratava-se,
porém, de simples diversão: a verdadeira
mira era, como se verificou logo no começo
de março, o cabo de Santo Agostinho. Neste
porto desembarcavam os socorros vindos da Bahia; ali
embarcavam os frutos da terra destinados ao comércio;
apossar-se dele era senão impossibilitar de
todo, pelo menos paralizar qualquer resistência
ulterior.
biblioO inimigo dividiu o ataque em três armadas,
uma de treze, outra de onze navios, outra composta
de lanchas com mil homens encabeçados por Calabar.
biblioGraças a seu conhecimento da localidade,
os holandeses entraram no porto e fortificaram-se
no pontal. Um ataque violento dirigido contra eles,
e começado sob os melhores auspícios,
fracassou devido ao pânico. O arraial passava
agora ao segundo plano: heroísmo sobraria sempre
ali; o cabo de Santo Agostinho reclamava a efervescência
do general.
biblioCom os auxílios recebidos de fresco,
o inimigo dirigiu-se depois para a Paraíba,
sob o comando de Sigismundo von Schkoppe. Governava
a praça Antônio de Albuquerque, filho
do conquistador do Maranhão, que bem mostrou
não desmerecera o sangue paterno. Foi-lhe,
porém, impossível impedir o desembarque
do inimigo a 4 de dezembro. Os socorros, idos por
terra, de Pernambuco, chegaram tarde. Os fortes foram
capitulando; véspera de Natal a cidade estava
em poder da Companhia. Antônio de Albuquerque
ainda tentou fundar um arraial à semelhança
do de Bom-Jesus; não encontrou companheiros;
os que não se quiseram sujeitar ao domínio
estrangeiro emigraram com ele para Pernambuco, e foram
batalhar com Matias.
biblioNo fim de cinco anos o invasor mandava desde
o Rio Grande até o Recife; agora resistiam-lhe
apenas o arraial e o forte de Nazaré, no cabo
de S. Agostinho. Arciszewski desde Paraíba
marchou por terra a apertar o cerco do arraial; Sigismundo
von Schkoppe seguiu do Recife para Guararapes a apertar
o cerco de Nazaré. Matias de Albuquerque, deixando-o
entregue a soldados de confiança, transferiu-se
a Serinhaém, para de lá organizar e
mandar os socorros. Por terra, por mar, em caravelas,
em jangadas, pelos caminhos mais defesos socorreu
os companheiros enquanto pôde; mas a resistência
tem limites. “Afinal faltou o que tudo rende,
que é o sustento, e não já de
rocins, que isto seria regalo, mas de couros, cachorros
e gatos e ratos”, escreve Duarte de Albuquerque.
“E quando disto houvesse o necessário,
já não havia pólvora nem outra
munição. Não é de admirar,
pois, que se perdesse, não por certo; o admirável
é que em tal estado o sustentasse o governador
André Marin com seus capitais três meses
e três dias”. À rendição
do arraial em 3 de junho seguiu-se a do forte de Nazaré
a 2 de julho de 635. “Al salir nuestra gente
cayeron algunos soldados muertos de que parece los
sustentava vivos el no moverse”.
biblioBagnoli tinha-se retirado antes para Alagoas,
e Matias de Albuquerque foi reunir-se a ele com duzentos
soldados de linha, menos de cem de emboscada e alguns
índios. A 3 abalou de Serinhaém este
êxodo dos que não desesperavam.
biblio“Iam sessenta índios com seus capitães
Antônio Cardoso e João de Almeida, ambos
bem valentes, descobrindo adiante os caminhos e bosques,
por serem nisto tão práticos, como quem
havia nascido neles. Seguiam-nos os capitães
d. Fernando de la Riba Agüero, Afonso de Albuquerque,
d. Pedro Taveira Souto Mayor, Francisco Rabelo, Luiz
de Magalhães, Leonardo de Albuquerque.
biblio“Logo sucediam os moradores que se iam
retirando, e levavam duzentos carros. Atrás
destes os capitães Martim Ferreira, João
de Magalhães, d. Pedro Marinho, Manuel de Sousa
e Abreu, Rodrigo Fernandes, d. Gaspar de Valcáçar
e Paulo Vernola. Era retaguarda o capitão-mor
dos índios Antônio Filipe Camarão,
com oitenta dos seus, armados de mosquetes e arcabuzes”.
Confiavam-se a índios os postos de maior perigo!
Precisam de outra justificativa os esforços
de Nóbrega?
biblioO caminho mais praticável passava em
Porto Calvo, ocupado pelo inimigo. Matias de Albuquerque,
para facilitar a passagem, teria de atacá-lo;
sua resolução tornou-se inflexível
quando soube da chegada de Calabar com um reforço
de duzentos soldados. Mandou adiante a gente imbele.
O combate começou a 12 de julho e continuou
nos dias seguintes. A 19 o inimigo propôs capitular.
Os sitiantes, sem os índios, eram apenas cento
e quarenta; o inimigo, além de Picard, chefe
holandês, e numerosos oficiais, contava trezentos
e sessenta homens. Foram desarmados e logo mandados
aos pequenos troços para Alagoas, a fim de
não conhecerem a insignificância da força
atacante e romperem o pacto à última
hora. De todos Matias de Albuquerque reservou para
a justiça real o Domingos Fernandes Calabar.
No dia 22, “strangulatusque, jugulo defectionem
expiavit, et dissectos artus infidelitatis ac miseriae
suae testes ad spectaculum reliquit”.
biblioDesde muito anunciava-se a chegada de nova e
mais forte frota espanhola com socorros. Matias de
Albuquerque deixara em diversos pontos do litoral
pessoas fiéis incumbidas de darem notícias
da terra aos navegantes e fornecerem-lhes indicações
sobre o ponto mais convenientes para o desembarque.
Devia partir em março, depois em maio, só
partiu em 7 de setembro. Reunidos em Cabo Verde os
navios espanhóis e portugueses, comandados
aqueles por d. Lope de Hoces y Córdoba, estes
por d. Rodrigo Lobo, decidiram aproar a Pernambuco.
biblioA 26 de novembro avistaram Olinda, e logo em
frente ao Recife surtas nove naus do inimigo, carregadas
de açúcar, pau-brasil, tabaco, algodão
e gengibre, de partida para a Holanda, cada uma com
cinco ou seis homens apenas a bordo. Resolveu-se atacá-las
mas o almirante espanhol, a pretexto de suas naus
serem maior calado, deu contra-ordem. Nem ao menos
se deteve um pouco à espera de algum mensageiro
de terra.
biblioSigismundo ante o aparelho bélico julgou-se
perdido, mas a viração soprava de Nordeste,
as águas corriam para o Sul, e era agradável
entregar-se às seduções da corrente.
No cabo de S. Agostinho um jangadeiro desfraldando
a vela pôde comunicar o recado: deitassem a
gente no rio Serinhaém, mandassem um navio
buscar Matias de Albuquerque! As duas armadas entregaram
a solução ao vento e às águas;
ao anoitecer de 28 ancoravam em Alagoas.
biblioVinham a bordo Pedro da Silva, nomeado sucessor
de Diogo Luís de Oliveira no governo geral
do Brasil, Luis de Rojas y Borja, sucessor de Matias
de Albuquerque. Devia este recolher-se ao Reino; Duarte
de Albuquerque continuaria no governo político
da sua capitania; a Diogo Luís de Oliveira
cometia-se a reconquista de Curaçau, antes
de voltar para o Reino.
biblioMatias informou largamente a Rojas y Borja do
estado de cousas. Em suma, a situação
não era desesperada; urgia desandar o caminho
percorrido, voltar para o Norte, inquietar, expulsar
o inimigo. Calaram estes conselhos: d. Luis pôs-se
a caminho de Pernambuco e apossou-se de Porto Calvo,
ocupado pelo inimigo apenas os nosso prosseguiram
para o Sul, depois da execução de Calabar.
Teria forças para continuar as tradições
e estaria à altura do seu heróico antecessor?
Na batalha de Mata Redonda (18 de janeiro), um mosquetaço
na perna derrubou-o do cavalo, outro no peito levou-lhe
a vida, aos cinqüenta anos de idade. Pelas vias
de sucessão assumiu o comando supremo o conde
de Bagnoli, velho militar muito difícil de
se julgar com justiça. Nossos escritores tratam-no
sempre com menosprezo, cobrem-no de apodos, negam-lhe
até a virtude elementar da coragem individual.
Constitui uma exceção apenas Duarte
de Albuquerque, sempre discreto e circunspecto, mas
sente-se que não expõe todo o seu pensamento.
De Bagnoli, se alguma linha já foi publicada
relativa ao período holandês, anda perdida
em alguma coleção escura: não
sabemos como se defenderia dos acusadores. Em todo
caso uma honra lhe cabe: nunca desesperou.
biblioBagnoli assinalou seu comando pelo emprego de
companhistas, aventureiros, destemidos, que iam até
as barbas do inimigo, aprisionando, degolando gente,
jarreteando gado, se não podiam conduzi-lo,
queimando os canaviais, os açúcares,
o pau-brasil, os engenhos. Alguns avançaram
até as fronteiras da Paraíba. Era sempre
o pensamento de Matias de Albuquerque: a conquista
nunca seria fato consumado. Algum tempo Bagnoli pensou
em mover-se para o Norte e fortificou ligeiramente
o passo do rio Una, seis léguas ao Sul de Serinhaém.
Talvez contribuísse a animá-lo nesta
iniciativa tão estranha à sua maneira
habitual a presença de Duarte de Albuquerque.
Com este avanço os holandeses abandonaram Paripuera
e Barra Grande.
biblioTomado o arraial de Bom-Jesus, ocupada a fortaleza
de Nazaré, a Companhia das Índias Ocidentais
achou a ocasião própria para nomear
um governador geral, como lhe permitia seu regimento.
biblioEscolheu João Maurício, conde
de Nassau- Siegen, membro da família de Orange,
e confiou-lhe interinamente o cargo por cinco anos.
A 27 de janeiro de 637 aportou Nassau a Pernambuco,
onde deveria permanecer um octênio. Em sua companhia
ou logo depois vieram consideráveis reforços.
Tratou sem demora de retomar Porto Calvo. Do Recife
partiram ao mesmo tempo trinta navios com dois mil
infantes mandados por Arciszewski, que a 12 de fevereiro
fundearam em Barra Grande, e o próprio Nassau
com Sigismundo, levando três mil soldados e
quinhentos índios, que incólumes passaram
o rio Una, já desguarnecido por Bagnoli.
biblioReunidos apresentaram-se a 17 diante do povoado;
a 18 travaram um combate de que a nossa gente não
saiu com o melhor partido; a 20 subiram lanchas pelo
rio das Pedras, conduzindo artilharia e material;
com o canhoneio, respondido sempre galhardamente,
baquearam os parapeitos do forte de Porto Calvo, misturando
terra nos mantimentos; a 5 de março a falta
de víveres obrigou Miguel Giberton, comandante
da praça, a render-se.
biblioNa noite de 18 de fevereiro, depois de mandar
Alonso Ximénez com parte da força pelo
caminho da praia, escoltando a gente que se queria
retirar para Alagoas, Bagnoli tomou o mesmo destino
pelo interior. A 25 chegava à vila de Madalena,
onde não julgou prudente demorar. A 10 de março
continuou a marcha e a 17 chegava à vila de
S. Francisco, recentemente erigida pelo donatário
na margem esquerda do rio, a meia distância
entre a barra e a região encachoeirada. Duarte
de Albuquerque aconselhou-lhe fortificar-se no rio
Piaguí, para resistir ao inimigo, caso avançasse
por terra; tão pouca atenção
prestou a este como antes ao conselho de fortificar
eficazmente o passo da Una. Em ambos os casos o inimigo
não deparou tropeços.
biblioA 18 Bagnoli fez os terços napolitano
e castelhano atravessarem o rio para a capitania de
Sergipe; a 19 passou parte do terço de Portugal,
a 26 passou o resto; a 27 chegaram os holandeses à
vila e acharam-na vazia. Com a confusão, muitos
dos retirantes ficaram prisioneiros, salvaram-se outros
perdendo todos os haveres. No local abandonado por
Bagnoli resolveu Nassau construir um forte chamado
Maurício: lá existe hoje a cidade de
Penedo. Sigismundo foi incumbido da construção
e do comando. Nassau voltou para Pernambuco.
biblioA 31 de março Bagnoli chegou a S. Cristóvão.
Por sua ordem diversos companhistas avançaram
para Alagoas, ora acima, ora abaixo do forte, fazendo
suas costumadas façanhas. Trouxeram também
a notícia de uma invasão planejada no
forte Maurício contra Sergipe, no intento de
arrebanhar as numerosas manadas de gado, e vingar-se
dos audazes que não deixaram os holandeses
sossegados em suas novas conquistas. De fato, a 17
de novembro Sigismundo chegou a S. Cristóvão,
já deserta, a 25 de dezembro queimou a cidade
e retirou-se para o outro lado do rio.
biblioA 14 de novembro, sabendo da entrada do inimigo
pelo território sergipano, Bagnoli prosseguiu
para a Bahia, com grande pesar e indignação
dos emigrados de Paraíba e Pernambuco, que
haviam começado suas roças; a 24 alcançou
a Torre de Garcia d’Ávilla, onde recebeu
ordem do governador geral para se deter. Com alguns
companheiros encaminhou-se a 15 de dezembro para a
cidade do Salvador a avistar-se com Pedro da Silva,
governador geral do Estado. Receoso de próximo
ataque dos holandeses contra a capital do Brasil,
vinha lembrar a conveniência de estabelecer-se
com sua gente na antiga povoação de
Pereira, onde poderia com suas forças auxiliar
a resistência.
biblioNem Pedro da Silva, nem o povo acreditaram na
iminência de tal perigo, ninguém queria
a soldadesca na vizinhança. Concordou-se que
permaneceriam na Torre e, contrariado embora, Bagnoli
submeteu-se. Em breve, porém, seus companhistas
trouxeram notícia que Nassau preparava uma
expedição destinada a tomar a Bahia
e, apesar de pactuado, marchou para Vila-Velha a 14
de março de 38.
biblioPrisioneiros feitos por Sebastião do
Souto, chegados ao acampamento em 8 de abril, dissiparam
as últimas dúvidas. A 16 numa forte
armada Nassau entrava de fato pela baía de
Todos-os-Santos, com três mil e quatrocentos
soldados europeus e mil índios, e desembarcou
em Itapagipe.
biblioNos dias seguintes apossou-se de alguns fortes,
construiu trincheiras e baluartes, despejou artilharia
contra partes da cidade. A continuação
correspondeu mal a tão brilhante estréia:
as tropas de Bagnoli e a guarnição,
deixadas de parte rivalidades mesquinhas, bateram-se
com entusiasmo; a população, a princípio
tumultuária e desconfiada, acreditou por fim
na bravura e capacidade dos defensores; embarcações
veleiras traziam sem cessar farinha de Camamu; entrou
abundante gado de Itapicuru e do Real; emboscadas
repetidas faziam prisioneiros pelos quais se ficava
a par de todos os passos do inimigo; realizaram-se
sortidas felizes. Na noite de 25 para 26 de maio Maurício
de Nassau encerrou as seis semanas de carnificina,
embarcando furtivamente para o Recife, não
com tanta festa como se prometia, nem com tanto contentamento
como desejava.
biblioA vitória foi conhecida na península
quando se preparava uma forte armada restauradora,
composta de trinta e três navios, comandada
por d. Fernando Mascarenhas, conde da Torre. Partiu
de Lisboa a 7 de setembro; depois de danosa demora
no pestilencial clima do Cabo Verde, passou à
vista de Recife em 23 de janeiro de 39, sem, tão
pouco como as duas que a precederam, ousar atacá-lo,
e seguiu para a Bahia. Nassau aproveitou o aviso,
e no prazo de quase um ano pelo almirante português
proporcionado, melhorou as fortificações,
organizou um serviço de informações
rápidas e aparelhou uma esquadra.
biblioSó a 19 de novembro a armada restauradora
partiu da Bahia em demanda do Norte, já então
elevada a oitenta e seis embarcações
com onze a doze mil homens. A situação
de Nassau era aproximadamente a de Matias de Albuquerque
dez anos antes, com a grande vantagem de possuir a
força naval que faltava àquele.
biblioO conde da Torre poderia desembarcar nas proximidades
de Santo Agostinho ou Serinhaém; preferiu abordar
o Pau-Amarelo. Não lho permitiu a vigilância
do inimigo. Apareceu depois a armada holandesa; entre
a ponta de Pedras, o ponto mais oriental do continente
americano, e Canhaú, na costa do Rio Grande,
renhiram-se combates a 12, 13, 14 e 17 de janeiro
de 40. Apenas cerca de mil soldados nossos lograram
tomar terra na ponta do Touro, donde Luiz Barbalho,
por entre inimigos e pelo sertão, novo Xenofonte,
levou-os heròicamente à Bahia. Já
o precedera por via marítima com os destroços
que pôde salvar o conde da Torre, acompanhado
do velho Bagnoli, que não tardou a falecer.
O resto da esquadra dispersara-se em várias
direções.
biblioOs flamengos sofreram grandes perdas; alguns
de seus oficiais portaram-se covardemente e foram
executados; mas a vitória coube às suas
armas e sua posição consolidou-a mais
do que nunca.
biblioPodemos deixar em silêncio vários
feitos navais dos holandeses e numerosas incursões
dos companhistas ocorridos em seguida; outro sucesso
reclama de preferência a atenção.
A 1 de dezembro de 640 Portugal declarou-se independente
da Espanha, aclamou rei o duque de Bragança,
tratou pactos de amizade com os adversários
da monarquia espanhola. A 12 de junho de 41 concluiu
com a Holanda um tratado de aliança ofensiva
e defensiva na Europa, e nas colônias uma trégua
de dez anos, que devia vigorar para os domínios
da Companhia das Índias Orientais um ano depois
da ratificação do tratado, e nos da
companhia das Indias Ocidentais apenas a notícia
de haver sido ratificado fosse transmitida oficialmente.
Esta cláusula pouco lisa deve ter sido lembrada
pelos portugueses, na esperança de melhorarem
a situação durante o interstício;
de outro modo não se explica terem demorado
a ratificação até 18 de novembro.
Em fevereiro de 42 os Estados Gerais ordenaram às
duas companhias cumprissem fielmente o pactuado.
biblioGovernava na Bahia, como primeiro vice-rei do
Brasil, d. Jorge de Mascarenhas, marquês de
Montalvão, quando chegou a notícia dos
sucessos de Portugal. Suas medidas previdentes inutilizaram
a pequena guarnição espanhola; todos
os magnatas aderiram à independência
de Portugal e à aclamação do
Bragança, e o resto do país acompanhou-os,
mesmo a capitania de S. Vicente, onde havia muitas
famílias de estirpe castelhana.
biblioO vice-rei comunicou a novidade a Maurício
de Nassau, que a recebeu contente e celebrou-a com
festas. O inimigo tradicional era o espanhol; tudo
de contrário a este resultava em proveito das
Províncias Unidas. As relações
melhoraram ainda com a notícia do tratado de
12 de junho; como, porém, a ratificação
se demorasse, Maurício ampliou os domínios
da Companhia no Maranhão e na África.
biblioOs últimos anos do seu governo cabem
em poucas palavras. Da obra do administrador nada
sobrevive; seus palácios e jardins consumiram-se
na voragem de fogo e sangue dos anos seguintes; suas
coleções artísticas enriqueceram
vários estabelecimentos da Europa e estão
estudando-as os americanistas; os livros de Barlaeus,
Piso, Markgraf, devidos a seu mecenato, atingiram
uma altura a que nenhuma obra portuguesa ou brasileira
se pode comparar, nos tempos coloniais; parece mesmo
terem sido pouco lidos no Brasil apesar de escritos
em latim, na língua universal da época,
tão insignificantes vestígios encontramos
deles.
biblioA cidade Mauricéia não guardou
seu nome, mas prosperou e conserva sua memória.
Com o título de desforra, legado, vingança
ou coisa semelhante, de Maurício de Nassau,
poderia um amante de fantasias históricas interpretar
a guerra dos Mascates adiante narrada, e não
precisaria de esforço maior do que o empregado
para transformar Domingos Fernandes Calabar em patriota
e vidente. A origem principesca de Maurício
lisonjeou os colonos e tornou-lhes mais repugnantes
os outros governadores, simples burgueses, meros dependentes
da Companhia. Ele próprio preveniu disto os
sucessores, ao entregar-lhes o mando.
biblioFrei Manuel Calado, que o conheceu e freqüentou,
apresenta-o como fidalgo de raça, capaz de
sentir uma injustiça e repará-la, amante
de festas e esplendores, inclinado a farsas nem sempre
do gosto mais delicado, admirador das belezas tropicais,
isento da preocupação de voltar as terras
mais civilizadas. Em limpeza de mãos ficou
infinitamente abaixo de Matias de Albuquerque: está
provado o seu conluio em contrabandos com Gaspar Dias
Ferreira que, como era natural, logrou-o no ajuste
das contas, feito em Holanda quando o príncipe
já não governava.
biblioÀ partida de Maurício de Nassau,
em maio de 644, seguem-se dez anos profundamente agitados.
biblioDos emigrados com Matias de Albuquerque alguns
tinham voltado para as antigas propriedades e procuravam
reconstituir sua antiga abastança. O regime
holandês era duro, as extorsões contínuas;
mesmo se Nassau fosse o justiceiro, em que pretendem
transfigurá-lo, não tinha braço
bastante longo e bastante forte para amparar todas
as vítimas.
biblioOs invasores desarmaram a população
rural, preferindo deixá-la entregue às
devastações inclementes de companhistas
a ter de se preocupar algum dia com qualquer tentativa
de insurreição.
biblioComo poderia reagir?
biblioO foco do irredentismo, entretanto, lavrava
na Bahia.
biblioNorteiros emigrados e reduzidos à miséria,
baianos, cujos engenhos devastaram tantas vezes as
expedições marítimas dos flamengos,
alimentavam profundo rancor contra os seus malfeitores;
padres e frades espoliados e expulsos irritavam a
consciência religiosa. O sucessor de Montalvão,
Antônio Teles da Silva, tão abrasado
católico que quis fundar e dotar à sua
custa um Santo Ofício para o Brasil, a exemplo
de Goa, onde estivera, não podia suportar herejes
na vizinhança.
biblioAinda no tempo de Nassau a religião católica
gozava de tolerância embora limitada e instável.
Com sua partida, protestantes e judeus ultrajavam
a toda hora as crenças da população
indígena. Por isso o primeiro título
assumido pelos chefes dos insurgentes foi o de governadores
da liberdade divina: em linguagem moderna tanto valeria
dizer da liberdade de consciência.
biblioDa Bahia devia partir a iniciativa contra o
flamengo, pois só de lá podiam sair
o armamento, os oficiais, a gente de guerra, em torno
da qual se adensassem os pernambucanos bisonhos; precisava-se,
entretanto, de um chefe em Pernambuco, para o esforço
não ficar perdido nos primórdios.
biblioUm só homem havia ali capaz de assumir
esta responsabilidade, se quisesse: João Fernandes
Vieira. Natural da ilha da Madeira, passara aos onze
anos para aquela capitania, batera-se ao lado de Matias
de Albuquerque, e foi um dos prisioneiros do arraial
de Bom-Jesus, em junho de 635. Preferiu ficar com
os holandeses, depois da rendição, e
a sorte protegeu-o. Adquiriu a maior fortuna da terra.
Os compatriotas respeitavam-no, e ele os ajudava e
protegia liberal e generosamente. Conciliou igualmente
as graças dos invasores. Por que artes explica-o
no seu testamento: “Também me são
devedores [os flamengos]de mais de cem mil cruzados,
que no decurso de oito ou nove anos lhes dei por remir
minha vexação e por segurar a vida de
suas tiranias, de peitas e dádivas a todos
os governadores e seus ministros e com grandiosos
banquetes que ordinàriamente lhes dava pelos
trazer contentes”.
biblioÀ primeira vista ninguém menos
próprio para o papel de herói e libertador.
Entretanto Vidal de Negreiros, paraibano que começou
a se distinguir com Matias de Albuquerque, e oficial
da guarnição da Bahia, sondou o espírito
de Vieira e achou-o disposto à empresa. Notou,
porém, a falta de munições, de
armamento, de gente entendida em guerra para o levante
não degenerar em manifestação
estéril; para suprir todas estas faltas precisava-se
de tempo e de socorros estranhos. De fato foi-se fazendo
tudo com as maiores precauções possíveis.
Apesar de todas as cautelas, os holandeses tiveram
notícias vagas dos preparativos, admira até,
que as tivessem tão tarde, quando o segredo
andava por tantas bocas, e mandaram duas embaixadas
a Antônio Teles, queixando-se dos baianos que
fomentavam a revolução nas possessões
dos recém-aliados.
biblioUm dos embaixadores, d. von Hoogstraten, comprometeu-se
a trair os patrões, entregando o forte de Nazaré
de seu comando quando lhe fosse exigido.
biblioPor ocasião da segunda embaixada, Camarão
e seus índios, Henrique Dias e seus negros,
de acordo com o governador da Bahia, a convite de
Vieira tinham passado para o lado de Pernambuco. Peguem-nos
e castiguem-nos como merecem, intimava Antônio
Teles aos agentes da Companhia das Índias Ocidentais,
desde que não pôde mais negar a sua ausência.
E quando a gente de Vieira começou a se agitar,
mandou embarcados dois terços da força
paga sob o mando do velho Martim Soares Moreno e do
ardente Vidal de Negreiros, a pretexto de conterem
os rebeldes. Os dois mestres de campo a 28 de julho
de 45 desembarcaram próximo de Serinhaém;
logo a 4 de agosto rendeu-se-lhes o forte holandês
ali situado; a 3 de setembro Hoogstraten entregou-lhes
o forte de Pontal, como tratara.
biblioPara se ajuizar da importância deste ponto
basta lembrar que Matias de Albuquerque nunca mais
assistiu no arraial de Bom Jesus depois de tomado
o Pontal. Assim a restauração começava
por onde findara a conquista. O êxito dos terços
baianos seria maior se o flamengo não destruísse
a esquadrilha de Serrão de Paiva em que tinham
vindo até Serinhaém e se Salvador Correia
colaborasse com sua armada, como lhe foi mandado,
para fechar o ataque do Recife por terra e por mar.
biblioDesde junho, antes de chegado o reforço
da Bahia, a insurreição rebentara em
Pernambuco. Com pouca gente, sem armamentos, sem munição,
Vieira devia empenhar-se sobretudo em não se
encontrar com o inimigo. Isto conseguiu graças
às medidas cautelosas anteriormente tomadas,
ao requintado serviço de espionagem, apoiado
no conhecimento das localidades. Só a 3 de
agosto houve o primeiro combate no Monte das Tabocas,
e a vitória ficou de nosso lado. Aos que censuram
as hesitações de Vieira, suas delongas
à espera de Camarão e Henrique Dias,
sua insistência por socorros da Bahia, basta
lembrar um fato: na batalha das Tabocas muita gente
combateu ainda de pau tostado e foice por falta de
espingarda.
biblioUma das vantagens da vitória foi proporcionar
armas de fogo e munições tiradas aos
inimigos mortos. A tomada da Casa-Forte em 16 de agosto
propagou o incêndio. Com a rendição
de Serinhaém e do Pontal a Martim Soares e
André Vidal, insurgiu-se o Sul até o
rio de S. Francisco e a situação voltou
ao que era em começos de 35. As forças
baianas, mandadas a pretexto de pacificá-los,
reuniam-se sem rebuço aos insurgentes.
biblioFormou-se logo um arraial à margem direita
do Capibaribe, e deram-lhe o nome de arraial Novo
do Bom Jesus. Daqui partiram ataques incessantes contra
a gente do Recife. Uma fortaleza no continente, a
força do Asseca, sobretudo, causava-lhe grandes
estragos. Lembrou-se Sigismundo de repetir a tática
pela qual isolara o antigo arraial do forte de Nazaré
e obrigara os dois a se renderem. Desta vez o plano
mangrou: a batalha dos Guararapes (19 de abril de
48) terminou em derrota completa dos invasores, que
deixaram o campo juncado de mortos e despojos. Uma
compensação tiveram valiosa: a devastadora
força de Asseca passou para seu poder e em
seu poder persistiu até o fim da guerra.
biblioPoucos dias antes da batalha dos Guararapes
assumira o comando supremo dos pernambucanos o general
Francisco Barreto de Menezes, mandado do Reino a este
fim. O estado em que achou as cousas descreve assim
um historiador destes feitos, arauto enfático
de Vieira: “Sem armas e soldados venceu [Vieira]
o inimigo que o buscava com soldados e armas na batalha
das Tabocas. Depois unido com o mestre de campo André
Vidal de Negreiros ganharam a vitória ao flamengo
no engenho de d. Ana Pais, e nove fortalezas, com
outros redutos e casas fortes; perto de oitenta peças
de artilharia de diversos calibres, a maior parte
de bronze; armas, munições e petrechos
de guerra em tanta quantidade quanta bastou para sustentar
a guerra viva em cinco anos contínuos”.
biblioÀ primeira seguiu-se a segunda batalha
dos Guararapes, em 19 de fevereiro de 49, com o mesmo
resultado contrário aos flamengos. Depois dela
não houve mais combates notáveis por
terra nem por mar. A Companhia estava exausta, apesar
dos largos subsídios dados pelos Estados Gerais.
Dentro em pouco estes não puderam mais auxiliá-la,
envolvidos em guerra contra a Inglaterra. Em compensação
Portugal organizara uma companhia de comércio
que apareceu na costa pernambucana por dezembro de
53. Os patriotas puseram-se de acordo com ela, como
outrora a gente da Bahia com a armada de d. Fadrique
de Toledo; o almirante português desembarcou
no rio Tapado, o primeiro ponto em que Weerdenburgh
tentara o desembarque, e em Olinda combinou com os
chefes pernambucanos a marcha a seguir.
biblioUm a um foram caindo os fortes holandeses; a
26 de janeiro de 54 assinava-se a capitulação
da Taborda, e terminava esta guerra, levada quase
sem interrupções durante trinta anos.
biblioO desfecho fora previsto e publicado anos antes
por Pierre Moreau, natural de Charolais, na Borgonha,
que passara algum tempo entre os holandeses, em Pernambuco.
Suas palavras patenteiam algumas das mais profundas
causas do insucesso final da Companhia das Índias
Ocidentais.
biblio“Não há aparência”,
publicava em 1651, “de que os holandeses possam
nunca se restabelecer e restaurar no Brasil como eram
antes, mesmo se sua frota derrotasse a dos portugueses;
mesmo se lhes enviassem outro socorro semelhante ao
último, apenas perderiam homens e esgotariam
seus tesouros, sem nada adiantar; porque o território
que lhes resta desde o Ceará até a cidade
de Olinda está inteiramente perdido e sem habitantes,
as casas, povoados, aldeias ou vilas, as próprias
fruteiras queimadas e arruinadas, portanto seu estado
inútil e sem proveito; e embora sejam senhores
das fortalezas do Rio Grande e Paraíba, as
únicas que resistem com o Recife, para pouco
prestam e delas não podem tirar socorros; os
que se animam a reconstruir tijupás para cultivar
a terra ou se aventuram a alguma distância são
surpreendidos e mortos quando menos pensam pelos corsos
ordinários dos portugueses, dos Tapuias e dos
brasis bravos (desunis) que não têm dó
de ninguém.
biblioOs portugueses têm bloqueado o Recife,
por terra, de todos os lados, por meio da cidade de
Olinda, do cabo de S. Agostinho, das fortalezas construídas
em redor; são absolutos por toda a campanha
fértil e abundante, e de todas as praças
fortes, portos, abras e passagens desde o Recife até
a outra extremidade do Brasil além do Rio de
Janeiro. Todo o país que possuem é muito
bem povoado, com gente de guerra numerosa, sabem subsistir
e vivem do que a terra produz com abundância,
dispensam facilmente as produções da
Europa, coisa impossível aos holandeses, que
aliás têm apenas soldados arrebanhados
de diversas nações, comprados antes
que escolhidos, de cuja fidelidade não podem
estar seguros, impróprios aos costumes e ao
ar estranho do país, ignorantes dos desvios
e das emboscadas dos lugares. Ao passo que os portugueses
em sua maioria ali nasceram, dele são originários
desde a quarta geração, são robustos,
um mesmo povo, dos mesmos costumes e complexões,
que se sustentam entre si, não deixam de valorizar
e tirar proveito da terra, sabem-lhe até os
mínimos recantos, e basta-lhes esperarem os
inimigos nas passagens para derrotá-los”.
biblioEm outros termos, Holanda e Olinda representavam
o mercantilismo e o nacionalismo. Venceu o espírito
nacional. Reinóis como Francisco Barreto, ilhéus
como Vieira, masombos como André Vidal, índios
como Camarão, negros como Henrique Dias, mamalucos,
mulatos, caribocas, mestiços de todos os matizes
combaterem unânimes pela liberdade divina.
biblioSob a pressão externa operou-se uma solda,
superficial, imperfeita, mas um princípio de
solda, entre os diversos elementos étnicos.
biblioVencedores dos flamengos, que tinham vencido
os espanhóis, algum tempo senhores de Portugal,
os combatentes de Pernambuco sentiam-se um povo, e
um povo de heróis. Nesta convicção
os confirmaram os testemunhos do reconhecimento oficial,
os encarecimentos dos historiadores, como Manuel Calado
e Rafael de Jesus, cujas obras foram logo publicadas,
Diogo Lopes de Santiago, inédito até
nossos dias, os sobreviventes das lutas, os herdeiros
das tradições ligeiramente alteradas
com o tempo. Um documento de 1703 resume tais sentimentos
nos seguintes termos:
biblio“Entre todas as nações do
orbe são os portugueses os que se têm
empenhado nas empresas mais árduas e conseguido
os maiores triunfos, tendo pelo mais heróico
brasão a fidelidade e íntimo afeto com
que não só veneram mas adoram aos seus
príncipes naturais: e sendo isto assim parece
que em Pernambuco se souberam sinalar com maior ventagem,
pois quando mais oprimidos, mais sujeitos e mais desamparados,
sem favor e sem humana ajuda, desprezando aquele trato
que a continuação de tantos anos pudera
por familiar ter facilitado, e mais sabendo grangear
os ânimos com liberal mão os holandeses,
desprezando tudo com soberano impulso, intentaram
e conseguiram a mais ilustre ação e
digna de imortal fama, não só porque
com invicto sofrimento suportaram o duro peso de toda
a guerra, até se extinguir de todo a hostilidade,
mas ostentando-se ainda mais generosos, nem um privilégio
procuraram impetrar por serviço tão
relevante, havendo despendido por consegui-lo todos
os seus bens e ficando pobres; e assim sem mais prêmio
que o interesse do glorioso nome de leais vassalos,
fidelíssimos ao seu rei e amantíssimos
de sua pátria, recuperada e isenta de alheio
domínio lha restituiram como usurpada, sendo
uma tão nobre parte da sua real coroa, a custa
do caro preço de tantas vidas e de tanto sangue
vertido, recuperando, o que é o mais, o culto
ao sagrado que tão profanamente viram da heresia
infestado tantos anos.”
biblioPassado o primeiro momento de entusiasmo, os
reinóis quiseram reassumir a sua atitude de
superioridade e proteção. Data daí
a irreparável e irreprimível separação
entre pernambucanos e portugueses.