XI
TRÊS SÉCULOS DEPOIS
biblioTrês séculos depois do descobrimento
os habitantes do Brasil exprimiam-se por sete algarismos.
Repartidos na superfície reclamada como sua
pela metrópole, tocavam dois ou três
quilômetros quadrados a cada indivíduo.
biblioA população ocupava a marinha
desde Marajó até o Chuí, e uma
e outra margem do Amazonas desde a foz de Tabatinga
ao Javari. Nos tributários desta bacia os povoados,
de preferência estabelecidos nos caudais de
água preta, paravam a pouca distância
da barra, exceto no rio Negro, onde preocupações
de limites tinham requintado a expansão natural,
no Madeira, Tapajós e Tocantins, ligados a
Mato Grosso e Goiás. Desde o Piauí à
linha singela do litoral correspondiam uma ou mais
linhas interiores de povoamento nas beiras dos rios
e nos chapadões do Parnaíba, do S. Francisco,
do Paraná e regiões intermédias.
Estas linhas, interrompidas a cada instante, melhor
se diriam pontos indicando um traçado a realizar.
biblioObservando a distribuição geográfica
dos povoadores notavam-se duas correntes fáceis
de distinguir. A corrente espontânea do povoamento
tendia à continuidade e procurava a periferia
a Oeste, ao Norte e ao Sul. A corrente voluntária,
determinada por ação governativa, ambição
de territórios ou vantagens estratégicas,
aparecia salteada e desconexa, e começando
da periferia procurava rumos opostos. Nas terras auríferas
a ocorrência irregular dos minérios trouxe
primitivamente a desconexão dos núcleos,
mais tarde corrigida onde foi possível.
biblioA maioria constava de mestiços; a mestiçagem
variava de composição conforme as localidades.
Na Amazônia prevalecia o elemento indígena,
abundavam mamalucos, rareavam os mulatos. Na zona
pastoril existiam poucos negros e foram assimilados
muitos índios. À beira-mar e nas comarcas
dos metais sobressaía o negro, com todos os
derivados deste radical. Ao Sul dos trópicos
elevava-se a porcentagem dos brancos. Das três
raças irredutíveis, oriunda cada qual
de um continente e compelidas à convivência
forçada, eram os africanos a que maior número
de representantes puros possuía, em conseqüência
das levas anualmente fornecidas pelo tráfico
dos negreiros.
biblioNa baixada amazônica o predomínio
da água e da mata restringiam as ocupações
agrícola e pastoril. Lavoura existia apenas
nas proximidades dos povoados maiores, limitada à
cana, ao café, a poucos cereais e à
mandioca: esta desfazia-se em farinha d’água,
mais resistente à umidade; o tucupi ou manipuera
dava um molho apreciado; cru servia também
para apanhar aves. O gado vacum criado na ilha do
Marajó, perto do Paru, em Óbidos, no
Tapajós, nos campos do rio Branco, não
chegava para o consumo interno. De gado cavalar ainda
menos se curava: as embarcações, desde
a montaria, verdadeira sucedânea do cavalo,
como o nome está indicando, até as grandes
canoas, arqueando centenas de arrobas, e durante parte
do ano impelidas rio arriba pelos ventos gerais, eram
o quase exclusivo meio de transporte.
biblioO povo alimentava-se de peixe fresco, pegado
diàriamente pelos múltiplos e engenhosos
processos recebidos dos indígenas, ou salgado,
como o pirarucu, a tainha e o peixe-boi; de tartaruga,
mais abundante à medida que se caminhava para
Oeste, ou porque assim estivesse distribuída
originariamente, ou por se não ter adiantado
tanto por aquelas bandas a obra de devastação.
Verdadeira vaca amazônica, gado do rio como
a chamavam, podia-se guardar às centenas em
currais, e fornecia manteiga; a gema do ovo de uma
espécie tomava-se com café, como leite.
Sua manteiga, além, de condimento usual, fornecia
iluminação; o casco, sem brilho e por
isso imprestável para obras delicadas, empregava-se
como vasilha.
biblioA extração de produtos florestais,
cacau, salsa, piaçaba, cravo, ocupava a maioria
da população masculina em certas quadras
do ano, marcadas pelas enchentes e vasantes do rio-mar,
durante as quais as aldeias ficavam reduzidas a velhos,
meninos e mulheres. Estas fabricavam louça,
pintavam coités, não raro reveladoras
de talento artístico, fiavam e teciam. A seringueira,
já conhecida e utilizada, entrava apenas no
fabrico de objetos caseiros, como o que lhe deu o
nome, ou no tornar impermeáveis botas e tecidos.
Nem de longe se poderia ainda prever a importância
que lhe adveio depois de descobertos os modernos processos
de manipulação.
biblio“Nenhuns [cuidados] parecem ter comumente
no estado”, escrevia Fr. João de São
José em tempo de Pombal, e continuava a ser
verdade: “havendo rede, farinha e cachimbo,
está em termos. A frugalidade da mesa pode
passar se fosse coerente a de beber; e quanto ao mais
é expressão vulgar a da seguinte endecha
ou trova:
biblio
biblioVida do Pará,
biblioVida de descanso;
biblioComer de arremesso,
biblioDormir de balanço.”
biblio
biblioDa bacia amazônica passando à zona
pastoril, notava-se logo a falta de mata e a escassez
de água. A mata aparece apenas às margens
das correntes mais caudalosas, em algumas baixadas
úmidas, em serras elevadas de mil metros mais
ou menos de altitude. A água, excetuando alguns
rios permanentes, limitava-se a ipueiras, olhos d’água,
poços naturais, mais ou menos grandes e constantes;
fora destes casos tem-se de procurá-lo no seio
da terra, operação fácil nos
álveos secos, em outros casos empresa árdua
e até frustânea. Em geral não
prima quanto ao gosto, em conseqüência
da salinidade dos terrenos que a filtram. O caráter
salino do solo, a abundância de pastos suculentos,
os campos mimosos e agrestes, determinaram a multiplicação
do gado vacum. Vivia solto o maior tempo. Na época
da parição, as vacas eram recolhidas
ao curral, por causa dos cuidados exigidos pelo bezerro,
e também do leite, e mais tarde do queijo e
do requeijão; pouco valia a manteiga, se merece
este nome o esquisito produto guardado em botijas,
que se aquecia para extrair o conteúdo.
biblioO gado não se prendia ao descampado;
internava-se pelas catingas e amontava. O vaqueiro
corria-lhe ao encalço, e com uma vara de ferrão
em alguns pontos, em outros pela simples apreensão
do rabo, deitava a rês em terra e subjugava-a.
“Quando o vaqueiro se aproxima o boi foge para
o mato mais próximo”, informa Koster;
“segue-o o homem tão de perto quanto
possível, a fim de aproveitar a aberta que
o animal faz apartando os galhos, os quais se aproximam
logo depois e retomam a sua posição
antiga. Algumas vezes o boi passa sob o grosso e baixo
galho de uma árvore grande; o cavaleiro passa
igualmente por baixo do galho; para consegui-lo inclina-se
tanto à direita que pode agarrar a silha com
a mão esquerda; ao mesmo tempo prende-se com
o calcanhar esquerdo à aba da sela; nesta posição,
roçando quase em terra, de aguilhada em punho
segue sem diminuir a andadura, endireitando-se novamente
no assento desde que transpôs o obstáculo.
Se pode alcançar o boi, mete-lhe o aguilhão
na anca, e fazendo-o com jeito, derriba-o. Apeia então,
liga as pernas do animal, ou passa-lhe uma das mãos
por cima dos chifres, o que o segura do modo mais
eficaz. Estes homens recebem muitas vezes ferimentos,
mas raro é que ocasionem mortes”. A tradição
popular celebrou alguns dos barbatões mais
famosos, como o boi Espaço (espaço,
isto é, de chifres espaçados, não
espácio, como José de Alencar escreveu
e outros têm repetido), o Surubim, o Rabicho
da Geralda.
biblioNa boca deste uma poesia publicada por Sílvio
Romero põe as seguintes quadras:
biblio
biblioFoi uma carreira feia
biblioPara a serra da Chapada,
biblioQuando eu cuidei era tarde,
biblioTinha o cabra na rabada.
biblio
biblioTinha adiante um pau caído,
biblioNa descida de um riacho,
biblioO cabra passou por riba.
biblioO russo passou por baixo.
biblio
biblioApertei mais a carreira
biblioFui passar no boqueirão,
biblioO russo rolou no fundo,
biblioO cabra pulou no chão.
biblio
biblioO gado cavalar dava bem no sertão, mas
nunca se multiplicou tanto como o outro, por falta
de forragem apropriada. Talvez isto, mais que a falta
de cruzamento, explique a diminuição
da estatura; em todo caso sua resistência ao
trabalho é incomparável, a exigüidade
do porte apropriava-o às corridas pelo cantigal.
As viagens eram sempre interrompidas nas horas de
maior calor; não se ferravam os cavalos, cujo
casco rijo resistia às pederneiras sem estropeio.
O gado muar quase, senão de todo, se desconhecia
no começo. Havia poucas ovelhas e cabras: o
desenvolvimento destas data dos últimos trinta
anos, depois de reconhecida a superioridade de sua
pele.
biblioNa alimentação entrava naturalmente
a carne, mas em quantidade menor do que se poderia
supor. Uma rês tinha grande valor relativo,
porque ficavam próximos consideráveis
centros de consumo, como Bahia e Pernambuco. Além
disso dos sertões do Parnaíba e São
Francisco e das ribeiras concabeçantes partiu
o gado que abasteceu e inçou Minas Gerais,
Goiás e indiretamente Mato Grosso; tal abastecimento
encareceu ainda mais a mercadoria, desfalcando-a.
Cumpre não esquecer a calamidade das secas.
Assim consumia-se principalmente carne secada ao sol,
ou a do gado miúdo, de preferência à
de ovelha.
biblioNo começo nada se plantava, julgando
o terreno estéril; mais tarde introduziu-se
o feijão, o milho, a mandioca e até
a cana. São ainda hoje três épocas
alegres do ano sertanejo: a do milho verde, a da farinha
e a da moagem. Do milho seco, quase exclusivamente
reservado para os cavalos, só se utilizavam
torrado ou feito pipoca, transformado no raro cuscus
ou no insípido aluá. O milho verde,
cozido ou assado, feito pamonha ou canjica (no sentido
do Norte, muito diverso do Sul), o milho verde durante
semanas tirava o gosto das outras comidas. A farinhada
com a farinha mole, os beijus de coco ou de folha,
as tapiocas, os grudes, etc., as cenas joviais da
rapagem de mandioca, representavam dias de convivência
e cordialidade. A moagem era a cana assada, a garapa,
o alfenim, a rapadura, o mel de engenho.
biblioEstas festas, exceto a do milho, provavelmente
herdada dos indígenas, pressupunham a casa
grande, isto é, proprietários abastados
que residiam em suas terras e escravos que as cultivavam.
Nas proximidades moravam agregados, livres e dedicados.
Muitas vezes por motivos fúteis entre os donos
de duas casas grandes irrompiam questões que
podiam pôr em armas populações
inteiras. São características as lutas
de Montes e Feitosas no Ceará. Os inventos
mecânicos, que no século dezoito revolucionaram
a indústria dos tecidos, aumentando o consumo
do algodão, levaram o plantio aos terrenos
mais afastados, por onde difundiram o bem-estar.
biblioO dono da casa grande, como toda a população
masculina, exceto quando viajava, andava de ceroula
e camisa, geralmente com rosários, relíquias,
orações cuidadosamente cosidas e escapulários
ao pescoço. Nas ocasiões solenes, recebendo
visitas, revestia-se de quimão, timão
ou chambre. “Quando um brasileiro põe-se
a usar um desses hábitos talares começa
a se considerar personagem importante (gentleman)
e com título portanto a muita consideração”,
informa Koster. A roupa caseira das mulheres constava
de camisa e saia; o casebeque só apareceu mais
tarde. As moças solteiras dormiam juntas num
gineceu chamado camarinha. Não apareciam aos
estranhos. Era comum verem-se os noivos pela primeira
vez no dia do casamento. Entre as jóias prezava-se
sobretudo o colar: o número de varas de cordão
possuído pela mulher indicava até certo
ponto sua hierarquia. Até as alongadas brenhas
penetravam os bufarinheiros levando ouros, fazendas,
utensílios domésticos. Quando os objetos
se permutavam em gado, alugavam gente para arrebanhá-lo,
e podiam voltar com grande número de cabeças.
O mesmo sucedia aos dizimeiros, e até a eclesiásticos
ambulantes. Um fenômeno daquelas regiões,
ainda hoje existentes, eram as feiras de gado ou de
outros gêneros. Algumas feiras deram origem
a povoados.
biblioA zona criadeira começava um pouco acima
da foz do São Francisco, acompanhava-lhe as
margens a entestar com a fronteira de Minas Gerais,
transpunha as vertentes do Tocantins e do Parnaíba,
alcançava já enfraquecida o alto Itapicuru,
compreendia as ribeiras de todos os rios de meia-água
metidos entre a baía de Todos-os-Santos e a
de Tutóia. A trechos se aproximava muito da
beira-mar, de que em Ilhéus e Porto Seguro
separavam-na a serra do Espinhaço e suas matas
litorâneas. Em Pernambuco ocorria fato semelhante,
porque como as ligações beiravam o rio
de São Francisco, a maior ou menor distância,
grande número de sertanejos achavam mais fácil
e mais vantajoso comunicar-se com a Bahia, deixando
deserta uma região intermédia, variável
em comprimento e largura; o caminho entre Pajeú
e Capibaribe, que regulou esta anomalia, data dos
primeiros anos do século XIX.
biblioComo vimos, pode-se chamar pernambucanos os
sertões de fora, desde Paraíba até
o Acaracu no Ceará; baianos os sertões
de dentro, desde o rio S. Francisco até o sudoeste
do Maranhão. Entre os sertanejos de um e outro
grupo deve ter havido diferenças mais ou menos
sensíveis. Talvez se venha a determiná-las
um dia, quando forem divulgadas as relações
dos missionários, corregedores, etc.; em todo
caso as semelhanças entre os moradores de ambos
os sertões avultam mais que entre quaisquer
outros habitantes do Brasil.
biblioNas margens do rio S. Francisco encontraram-se
baianos e pernambucanos com os paulistas. Ao Sul e
ao ocidente pode-se determinar até certo ponto
os limites das duas correntes opostas, marcando os
lugares em que os altos deixam de ser preferidos para
a habitação, mesmo quando não
há perigo de ser inundado o terreno, e entram
a funcionar os monjolos.
biblioPredileção pelas baixas para as
casas de vivenda, freqüência de monjolo
para pilar o milho seco, milho como alimentação
habitual, sob as formas de canjica (no sentido do
Sul), fubá e farinha fermentada antes da torrefação
definitiva, carne de porco preferida à de boi
indicam a presença de paulistas ou de seus
descendentes. Como raiz de todas estas vergônteas
aparece a falta de sal, que impedia o desenvolvimento
rápido do gado vacum e ainda hoje não
tempera o angu nem a canjica. O porco, apesar de enorme
consumo interno, tornou-se mais tarde gênero
de exportação, em toucinho e em pé.
biblioPara o terreno acidentado provavam melhor os
muares, mais sóbrios, mais resistentes, de
passo mais seguro, importados de além Uruguai.
A viagem, não partida como ao Norte, arrastava-se
vagarosamente quase de sol a sol. As cavalgaduras
eram ferradas; nos caminhos mais freqüentados,
junto às vendas que forneciam milho, havia
ferradores, e seus serviços reclamavam a cada
instante os terríveis caldeirões.
biblioO ouro, passado o alborôto primitivo,
quase só ocupava faiscadores. A mineração
de ferro, aprendida de africanos, segundo informa
Eschwege pouco deu de si pelo atraso dos processos
e sobretudo pela ausência de lenha, devastada
cruelmente. A agricultura, além de cereais
comuns, encontrou a aplicação rendosa
no algodão: o de Minas-Novas procurava-se muito
pela excelente qualidade. A cultura do café
começou relativamente tarde, depois de verificada
a superioridade das regiões serranas sobre
as de beira-mar, nas proximidades do Rio, e desde
o começo revestiu os caracteres que conservou
até o fim.
biblioPerguntou Augusto de Saint-Hilaire a um seu
compatriota, conhecedor da localidade, em que os fazendeiros
gastavam o dinheiro: “Como vê, respondeu-lhe,
não é em construir belas casas nem em
mobiliá-las. Comem arroz e feijão; muito
pouco lhes custa também o vestuário,
tão pouco dispendem na educação
de seus filhos, que se rebolcam na ignorância;
são de todo estranhos aos prazeres da sociedade;
mas é o café que lhes dá dinheiro,
não se pode apanhar café senão
com negros; é pois em comprar negros que gastam
todos os seus rendimentos, e o aumento de sua fortuna
serve muito mais para satisfazer-lhes a vaidade que
para aumentar-lhes os gozos. Não têm
luxos de habitação, nada apregoa sua
riqueza. Mas é impossível que se ignore
nas cercanias que têm tantos escravos, tantos
pés de café; empertigam-se, comprazem-se
consigo mesmo e vivem satisfeitos, não se distinguindo
realmente dos pobres senão por uma vã
nomeada que se estende a alguns tiros de espingarda
de sua casa”.
biblioEsta instalação sumária
e pobre apareceria nos lugares recentemente desbravados;
nos de ocupação mais antiga notava-se
espetáculo bem diferente. “Às
fazendas apartadas falece todo o auxílio da
grande sociedade, escreve Martius, entre Vila-Rica
e a demarcação diamantina; cada fazendeiro
rico é por isso obrigado a preparar os escravos
para todas as necessidades da sua casa. Assim comumente
acham-se numa casa todos os oficiais e a aviação
para eles, como sapateiros, alfaiates, tecelões,
serralheiros, ferreiros, pedreiros, oleiros, caçadores,
mineiros, agricultores... À frente dos negócios
está um feitor, mulato ou negro de confiança,
e determina-se a ordem do dia como num convento. O
dono faz ao mesmo tempo de regedor, juiz e médico
em sua propriedade. Muitas vezes é um eclesiástico
ou vem um clérigo da vizinhança celebrar
em sua capela particular”.
biblioComo alguns frades figuraram nas primeiras desordens,
a metrópole proibiu severamente a fundação
de conventos nas três capitanias auríferas
e, caso raro, nunca variou a tal respeito. Em tanto
maior número apareceram os clérigos
dos hábito de S. Pedro, a princípio
importados, ordenados mais tarde no ribeirão
do Carmo, depois de criada a diocese de Mariana sob
d. João V, por Benedito XIV. “Desde a
nomeação do bispo de Mariana, d. Joaquim
Borges de Figueiroa (1782), se tem conferido ordem
a um sem número de sujeitos, sem necessidade
e sem escolha. Tem-se visto alguns que, tendo aprendido
ofícios mecânicos e servido de soldados
pedestres, se acham hoje feitos sacerdotes. Tendo
o doutor Francisco Xavier da Rua, governador que foi
do bispado com procuração do dito bispo,
ordenado os sacerdotes que eram precisos, não
foi bastante para que o Dr. José Justino de
Oliveira Gondim, que lhe sucedeu, deixasse de ordenar
em menos de três anos cento e um pretendentes,
dispensando sem necessidade em mulatismos e ilegitimidades.
O Dr. Inácio Correia de Sá, que sucedeu
a este José Justino no governo do bispado,
ordenou oitenta e quatro pretendentes em menos de
sete meses e entre eles um que era devedor à
fazenda real”. Estas facilidades só começaram
a desaparecer no correr do século XIX.
biblioJunte-se a tal fartura de sacerdotes a abundância
de irmandades, o gosto geral pela música, a
proximidade dos povoados nos distritos em que primeiro
se extraiu o metal amarelo, os numerosos vadios sustentados
pela hospitalidade e indiferença indígenas,
a falta de divertimentos públicos e se compreenderá
a freqüência das festas religiosas. Sobressaíam
principalmente as procissões pelo grande luxo,
pelo número de figuras simbólicas, por
um certo aparato teatral e jogralesco. No extremo
Goiás, em Traíras, Pohl assistiu a uma
festa de Santa Efigênia, padroeira dos negros,
feita com todas estas visualidades: imperador, imperatriz,
tiros de roqueira, dutos aos imperantes, cavalhadas,
lanças, leilão, etc.
biblioO mineiro e o paulista diferiam bastante de
aspecto. “O mineiro em geral é esbelto
e magro, de peito estreito, pescoço comprido,
rosto um tanto alongado, olhos negros e vivos, cabelo
preto na cabeça e no peito; tem por natureza
um nobre orgulho e no exterior um modo brando, afável
e inteligente, é sóbrio e parece gostar
de uma vida cavalheiresca, assegura Martius. Em todas
estas feições assemelha-se mais ao árdego
pernambucano que ao paulista pesadão... Seu
vestuário nacional difere do paulista. Em geral
usa jaqueta curta, de algodão ou de manchéster
preto, colete branco de botões de ouro, calça
de veludo ou de manchéster, longas botas de
couro branco, presas acima do joelho por fivelas;
um chapéu de feltro de abas largas abriga-o
do sol; a espada e não raro a espingarda são
com o guarda-chuva seus companheiros inseparáveis,
desde que sai de casa. As viagens, mesmo as mais breves,
são feitas em mulas. Os estribos e as rédeas
são de prata e do mesmo metal o cabo do facão
que enfia na bota abaixo do joelho. Nestas jornadas
as mulheres são carregadas em liteiras por
negros ou bestas, ou sentam-se, vestidas de longa
montaria azul com chapéu redondo, em uma cadeirinha
presa à mula”.
biblioA pequena estatura do paulista, o cabelo corrido,
a face pálida, os olhinhos penetrantes revelavam
a procedência americana, no entender de Eschwege,
que acrescenta em desacordo com Martius: “Sua
coragem, sua impavidez no perigo, sua agilidade e
espírito de iniciativa, sua repugnância
a canseiras, sua sede de vingança, patenteiam
a procedência selvagem pelo lado materno, assim
como sua finura e a vivacidade de seu espírito
denunciam a ascendência portuguesa pelo lado
paterno”.
biblioDe resto, chamando pesadão ao paulista,
Martius parece referir-se apenas ao aspecto físico,
pois antes escrevera: “O paulista goza em todo
o Brasil da fama de grande franqueza, impavidez e
amor romanesco às aventuras e perigos. Associa
a isto um temperamento apaixonado, que o leva à
cólera e à vingança, e seu orgulho
e inflexibilidade são temidos pelos vizinhos...
Muitos paulistas se conservaram sem mescla com os
índios; os mamelucos, conforme os graus da
mescla, têm a pele quase cor de café,
amarela ou quase branca. Traem a mistura indiana antes
de tudo a cara larga, com maçãs salientes,
olhos pretos e não grandes e certa incerteza
de olhar. A estatura elevada e ao mesmo tempo larga,
feições fortes, sentimento de liberdade
e desassombro, olhos brunos, ou raramente azuis, cheios
de fogo e afoiteza, cabelo cheio, preto e liso, musculatura
reforçada, decisão e rapidez no movimentos
são, aliás, os principais característicos
na fisionomia dos paulistas. Em geral pode-se atribuir-lhes
um caráter melancólico, misturado com
alguma coisa de colérico... Em parte alguma
do Brasil há tantos coléricos e histéricos
como aqui”.
biblioEscreve ainda o mesmo viajante:
biblio“Em S. Paulo, homens e mulheres viajam
sempre a cavalo ou em mulas; muitas vezes o homem
leva uma mulher na garupa. Os cavaleiros usam de um
chapéu de feltro pardo de abas largas, um poncho
azul, comprido e muito largo, em cujo meio há
uma abertura para a cabeça; jaqueta e calças
de algodão escuro, botas compridas por tingir,
apertadas no joelho por uma correia e um fivelão;
uma longa faca de cabo de prata, metida na bota ou
presa à cinta, serve para a comida e outros
misteres. As mulheres usam longos sobretudos e chapéus
redondos. Segundo um provérbio corrente eram
dignos de apreço na Bahia eles não elas,
em Pernambuco elas não eles, em S. Paulo elas
e elas. Não raro ouve-se dizer nesta província:
se não fôssemos os primeiros que descobriram
as minas de ouro, seríamos ainda beneméritos
da pátria graças à canjica e
à rede, que primeiros imitamos dos índios”.
biblioA canjica paulista, preparada pelo monjolo,
preguiça ou negro velho, dominava nos lugares
de águas correntes, que dispensavam os pilões:
nos sertões do Norte, onde tal abundância
de água não era comum, o mungusá
que lhe corresponde só se usava nas casas grandes,
com escravos para a pilação.
biblioAos paulistas atribui Martius a descoberta das
propriedades medicinais das plantas indígenas,
que não podiam ter aprendido com os índios.
Desde Pindamonhangaba notavam-se papudos, e em geral
os paulistas levaram o papo aos lugares onde foram.
“Muitas vezes o pescoço é todo
ocupado pela grande intumescência; entretanto,
parecem considerar esta disformidade como beleza particular,
pois não raro vêem-se mulheres com enorme
papeira à mostra, ornada de ouros e pratas,
sentadas em frente as suas casas, de cachimbo no queixo
ou fiando algodão”.
biblioNo princípio do século, começavam
a despertar da hibernação devida às
minas e aos grandes êxodos por elas provocados
em S. Paulo. A agricultura aos poucos se reanimava;
existiam engenhos de açúcar e de aguardente;
duvidava-se ainda que o clima permitisse a grande
cultura do algodão e do café. A mais
importante fonte de receita consistia no comércio
de trânsito, de Mato Grosso, de Goiás,
de parte de Minas e dos sertões do Sul. Já
funcionava a famosa feira anual de Sorocaba.
biblioUm paulista sem vivacidade poderia se chamar
o goiano, ainda notável pela aversão
à vida de casado.
biblioSegundo uma estatística de 1804, extratada
na obra de Pohl, existiam 7.273 brancos, 15.585 mulatos,
7.992 pretos, 19.285 escravos, ao todo 50.135 habitantes.
Descontando das 24.371 pessoas do sexo feminino 7.868
escravas, sobre as quais não apresenta informações,
havia casadas 809 brancas, 1.668 mulatas, 575 pretas,
ao todo 3.052, e solteiras 2.663 brancas, 6.639 mulatas,
4.179 pretas, ao todo 13.481. Por esta sinopse vê-se
também como o elemento africano era numeroso.
biblioA gente de Cuiabá tinha certa semelhança
com os mineiros no aspecto; dormitava, porém,
nela um gênio sanguinário, talvez aprendido
com os Guaicurus, que se revelou estrepitosamente
na era regencial, e com mais freqüência
se tem manifestado depois de proclamada a república.
A gente do Paraguai e Guaporé era fraca e doentia.
biblioNos campos gerais do Paraná viviam bastantes
criadores, mas a verdadeira zona pastoril do Sul ostentava-se
nas terras rio-grandenses.
biblioExceto as faldas da serra geral ainda desertas,
capões salteados e alguns trechos ribeirinhos,
o território era ocupado por pastagens suculentas,
tão propícias à propagação
de bois como de cavalos, que dispensavam rações
de sal. Abundava a água perene; nunca passavam
anos sem chuva; não havia as enredadas catingas
de outras regiões menos favorecidas. A proporção
entre o gado cavalar e vacum era muito maior do que
ao Norte: basta dizer que havia lotes de baguais,
cavalos bravios e sem dono; os donos só conheciam
os cavalos pela marca, e matavam éguas para
extrair o couro. Para viagens mais longas não
chegava uma cavalgadura; era preciso levar uma cavalhada.
biblioComo difere isto dos sertões nortistas,
com poucos cavalos, todos bem conhecidos e estudados,
e o cavalo da sela, ensinado no passo, na estrada,
na baralha, no esquipado, e várias outras marchas
de que há mestres habilidosos, promovido quase
a parente da família!
biblioQuando começou o povoamento já
pululava esta criação, procedente das
destruídas missões jesuíticas;
apossava-se cada um do que lhe convinha, e o uso da
bola e do laço, conhecido dos Charruas, dispensava
as corridas violentas pelo mato do sertão baiano-pernambucano.
O valor do gado era até certo ponto negativo;
sobejava para a população e não
havia para onde exportá-lo; consumi-lo sem
parcimônia parecia ato de prudência, pois
mais facilmente se amansava e os pastos não
se esgotariam; os trabalhos de rodeio, únicos
reclamados quando a situação se regularizou,
eram antes um divertimento que uma canseira.
biblio“Toda a guerra era contra as vitelas”,
informa Aires de Casal, “e de ordinário
uma não chegava para o jantar de dois camaradas,
porque acontecendo quererem ambos a língua,
tinham por mais acertado matar segunda do que repartir
a da primeira. Havia homem que matava uma rês
pela manhã para lhe comer o rim assado; e para
não ter o incômodo de carregar uma posta
de carne para jantar, onde quer que pousava fazia
o mesmo àquela que melhor lhe enchia o olho.
Não havia banquete em que não aparecesse
um prato de vitelinha recém-nascida”.
biblioAos poucos, a gente se desacostumou do sal,
da farinha (comer do arremesso no Pará) e de
qualquer conduto. A escassez de lenha obrigava a comer
a carne quase crua, apenas sapecada no lume produzido
por dejeções animais ou gravetos, e
comida quase sempre sem mastigar. Ao mate, beberagem
primeiro descoberta nos sertões de Guairá
e depois propagada pelos jesuítas, atribui-se
a atenuação dos males que deviam resultar
desta dieta.
biblioA superfície ligeiramente ondulada, o
descampado quase onipresente, a facilidade de alimentação,
a abundância de cavalgaduras convidavam à
locomoção. Viajava-se principalmente
no verão, quando raras vezes chovia, os rios
levavam pouca água e aumentava o número
de vaus; a importância destes em capitania onde
não havia pontes manifesta-se nos passos sem
conta que a cada instante se encontram designando
localidades. Serviam-se às vezes de pelotas,
canoas frágeis feitas de pele. De passagem
fique notado que também aqui houve uma época
do couro.
biblioDormia-se ao relento: os aperos do animal serviam
de leito. Estendiam por terra grande peça chamada
carona, o lombilho substituía o travesseiro,
sobre a carona punham o pelego e por cima de tudo
deitavam-se embrulhados no poncho e de cabeça
descoberta.
biblioAvigorou-se a tendência ao nomadismo com
a circunstância de passar por ali a fronteira,
uma fronteira disputadíssima, que qualquer
dos confinantes ambicionava estender, e de entre ambos
meterem-se os campos neutrais, em que nenhum tinha
direito de penetrar, por isso mesmo violados a cada
instante, máxime da parte do Rio Grande. Os
combates regulares não subiram a muitos, mas
as surpresas, as arreatas, os encontros singulares,
as incursões de contrabandistas constituíam
fato quotidiano. Forçosamente os rio-grandenses
tornaram-se aventureiros e soldados; só por
militares tinham atenção; a Saint-Hilaire
deram o título de coronel. A quem não
montava bem ou não sabia laçar de cavalo
xingavam de baiano ou maturango.
biblioEste desbarato semibárbaro modificou-se
graças ao aumento da população
em parte, em parte graças às secas do
Norte. O Ceará não pôde mais fornecer
a carne a que acostumara parte da gente do litoral
e experimentou-se o charque do Rio Grande; diz-se
que cearenses concorreram para a fundação
de S. Francisco de Paula, mais tarde Pelotas. Abriu-se
assim uma fonte de riqueza, o gado cresceu de valor
e as estâncias, também aqui estabelecidas
geralmente nas eminências, começaram
a ter alguma organização. Com as charqueadas
foram introduzidos os negros, que chegaram a muitas
dezenas de mil. Algumas estâncias rendiam milhares
de cruzados, esbanjados no jogo e nas apostas.
biblioNa Bahia, por 1803, cerca de quarenta navios,
de duzentas e cinqüenta toneladas cada um, empregavam-se
no comércio do charque do Rio Grande, que mal
completavam a viagem dentro de dois anos. Levavam
da Bahia aguardente, açúcar, louça,
mercadorias européias, principalmente inglesas
e alemãs, que passavam por prata de contrabando
em Maldonado e Montevidéu. Durante este tempo
as tripulações empregavam-se em carregar
couro e carne seca. Os navios chegando à Bahia
vendiam o charque e retalho, a dois vinténs
a libra. Dispondo da carga por este modo em vez de
desembarcá-la, detinham-se no porto cinco meses
e até mais, de modo que, observa Lindley, no
tempo consumido por uma só viagem podiam ser
feitas três.
biblioA agricultura nunca ficou de todo descurada.
A produção do trigo atingiu a milhares
de alqueires; cultivaram outros cereais, a própria
mandioca. Aos inconvenientes da proximidade do gado
solto obviava-se abrindo valados, fazendo sebes vivas
de sabugueiro e cactos, levantando cercas de cabeças
com chifres. Entretanto, a faixa agrícola ocupava
uma área insignificante, que só se dilatou
depois da chegada de imigrantes alemães. A
decadência na lavoura do trigo, atribuída
a certas medidas anti-econômicas tomados pelo
governo central e à deterioração
das sementes em conseqüência da ferrugem,
deve ter causas mais profundas, pois não foi
ainda possível reerguê-la.
biblioSaint-Hilaire, que percorreu a região,
pinta-nos o rio-grandense da campanha como vivo, corado,
em geral de cor branca, de estatura avantajada, sem
curiosidade intelectual, de maneiras agrestes, incrivelmente
voraz e pouco sensível, senão cruel...
Falando de alvoroço todas as vezes que se carneava
alguma rês, repara: “A idéia de
em pouco poder se fartar de carne é um dos
motivos do prazer, mas não é o único;
o maior é matar e vaca e espedaçá-la,
independente de toda a esperança de poder satisfazer
logo a sua gula. Entretanto, cumpre confessá-lo,
esta paixão é uma das que dominam os
habitantes da capitania do Rio Grande.
biblioAo mesmo autor deve-se uma observação
que explica uma porção de fatos decorridos
desde a regência. Os mineiros, afirma, não
se apegam ao seu país. Com efeito, nem um hábito
particular ali os retém, e não lhes
custa acharem outro melhor. Acresce que a inteligência,
que lhes é natural, garante-lhes por toda a
parte meios fáceis de subsistirem. Os habitantes
desta capitania, ao contrário, nunca saem de
sua terra, porque sabem que alhures seriam obrigados
a renunciar a andarem sempre a cavalo e em parte alguma
achariam carne em tamanha abundância.
biblioNa formação do rio-grandense entraram
sobretudo açorianos, nortistas, principalmente
de S. Paulo, e não poucos espanhóis
imigrados ou incorporados. Sobretudo na fronteira
meridional deu-se a penetração das duas
línguas. Havia poucos mulatos. Notava-se a
certos respeitos um quê de mocidade fogosa ausente
das outras capitanias. O combate contra seres animados
difere muito nos efeitos da luta travada contra as
massas da vegetação ou contra as inclementes
forças cósmicas, como ao Norte.
biblioÀ beira-mar
pobres pescadores arrastavam existência miserável;
as armações de baleias davam trabalho
durante uma estação apenas e apenas
em poucos pontos; a pescaria feita em maior escala,
como em Porto Seguro e alhures, não dispensava
a importação entre as espécies
de maior consumo. O contrabando universalizado zombava
de todas as medidas de repressão.
biblioOs proprietários rurais, possuindo melhores
aviamentos, casas mais espaçosas e mobílias
menos sumárias, prosseguiam na lavoura aleatória
de drogas de luxo para o estrangeiro, esbanjando as
riquezas naturais, indiferentes às culturas
dos gêneros de primeira necessidade e à
formação de mercados internos. Vítima
desta latronicultura, a escravidão africana
condenava-a por sua vez à imobilidade e ao
recuo. As crises agrícolas repetiam-se; as
valorizações disfarçavam sem
extinguir o vício congênito.
biblioOs antigos povoados, assentes, como Igaraçu
e Porto Calvo, nos limites da cabotagem fluvial, definharam
à medida que as embarcações cresceram
de calado. A prosperidade mercantil pedia o contacto
do oceano. Os centros de maior movimento eram São
Luís do Maranhão, Recife, Bahia e Rio.
biblioNas cidades costeiras o pobre índio sumia-se
ante o europeu e o negro com seus descendentes puros
ou mesclados. o preconceito de cor agonizava no exclusivismo
dos corpos armados, como o dos Henriques, composto
só de pretos, nas confrarias, de que algumas
só admitiam pretos, pardos ou brancos, na especialização
de certos padroeiros, como a Senhora do Rosário,
São Benedito, São Gonçalo Garcia.
A impedir ou sequer minorar a mestiçagem não
chegava seu alento; era antes uma tradição
meio delida do que uma força viva.
biblioO serviço doméstico tocava aos
escravos, sempre em número excessivo, pois
vivia-se com pouco, e graças à criação
miúda, aos mariscos abundantes, ao peixe barato,
aos engenhosos e múltiplos quitutes, grassavam
a prodigalidade e a imprevidência da economia
naturista. Alguns deles empregavam-se na faina dos
transportes por terra e por água; alguns aprendiam
ofícios; outros, pagando jornais convencionados
com os donos, procuravam ocupações a
seu gosto. Conversavam às vezes em língua
africana, constituíam grêmios secretos
e praticavam feitiçarias. Sua alegria nativa,
seu otimismo persistente, sua sensualidade animal
sofriam bem o cativeiro.
biblioNunca ameaçaram a ordem de modo sério,
e os carregadores davam certa animação
às ruas. “São mandados com cestos
vazios e longas varas a procurar emprego em benefícios
de seus senhores, escreve John Luccok. Mercadorias
pesadas transportam-se ao ombro entre dois parceiros
por meio destas varas, às quais se passam umas
alças, que levantam o fardo um pouco acima
do solo. Se a carga for muito grande para um parelha,
forma-se um bando de quatro, de seis e até
mais, de que um, em geral o mais inteligente, é
escolhido para dirigir o trabalho. Este para promover
a regularidade dos esforços, e especialmente
uniformizar o passo, entoa sempre um canto africano,
de música breve e simples; no fim respondem
todos em coro estridente. O coro continua enquanto
dura o trabalho, e parece aliviar o peso e alegrar
o coração”.
biblioOs mulatos, gente indócil, e rixenta,
podiam ser contidos a intervalos por atos de prepotência,
mas reassumiam logo a rebeldia originária.
Suas festas, menos cordiais que as dos negros, não
raro terminavam em desaguisados; dentre eles saíam
os assassinos e os capangas profissionais. Crescendo
em número, desconheceram, e afinal extinguiram
as distinções de raça e foram
bastantes fortes para romper com as formas do convencionalismo
vigente e viver como lhes pedia a índole irrequieta.
Para o nivelamento concorreu sobretudo a parte feminina,
com seus dengues e requebros lascivos. Spix e Martius
ouviram cantar na Bahia:
biblio
biblioUma mulata bonita
biblioNão carece de rezar,
biblioAbasta o mimo que tem
biblioPara sua alma se salvar.
biblio
biblioO convencionalismo oprimia a gente branca: funcionários
pretensiosos vindos da metrópole e abrangendo
no mesmo desdém soberano a terra e os moradores,
negociantes grosseiros e pouco lisos nas transações,
meros consignatários de seus patrícios,
que por sua vez não passavam de consignatários
de ingleses, capitalistas desconfiados, descendentes
empobrecidos de pais ricos e perdulários, irmãos
das almas, os próprios mulatos, quando a multiplicidade
dos cruzamentos disfarçava-lhes a casta, em
público moviam-se sorumbaticamente, como autômatos.
biblioToda a população parecia de língua
atada, informa ainda Luccock; não havia brinquedo
de meninada, vivacidade de rapazes, gritaria ruidosa
de gente mais entrada em anos. “O primeiro grito
geral que ouvi no Rio foi no aniversário da
rainha em 1810. Seguiu-se a um fogo queimado nesta
ocasião e foi um viva abafado, não frio,
porém tímido; parecia perguntar se podia
ser repetido”.
biblioDe sua residência, no cruzamento da rua
do Ouvidor com a da Quitanda, assistia a uma cena,
que descreve do seguinte modo: “Precisamente
neste lugar, todos os dias não santificados
pela manhã, reuniam-se os solicitadores com
os meirinhos para tratar de negócios. A generalidade
deles usava de velhos casacos pretos surrados, alguns
com bastantes remendos, e tão mal adaptados
à altura e à forma dos donos, que excitavam
a suspeita de não terem sido estes os primeiros
que os possuiram; os coletes eram de cores mais alegres,
com longos peitos bordados, grandes golas e profundas
algibeiras; os calções eram pretos e
tão curtos que mal chegavam aos lombos ou aos
joelhos, onde se prendiam com fivelas quadradas de
diamantes falsos, as meias de algodão fiado
em casa e enormes as fivelas dos sapatos. As cabeças
eram cobertas de cabeleiras empoadas e punham por
cima chapéus de bico, grandes e sebosos, em
que usualmente colocavam um tope preto. À esquerda
traziam um espadagão muito velho e estragado.
Era divertido observar com que cerimônias minuciosas
estes cavalheiros e seus subalternos dirigiam-se uns
a outros; com que ordem exata se curvavam e tiravam
os sujos chapéus; com que formas perversas
e fria deliberação combinavam-se para
esvaziar o bolso de seus clientes”.
biblioA educação reduzia-se a expungir
a vivacidade e a espontaneidade dos pupilos. Meninos
e meninas andavam nus em casa até a idade de
cinco anos; nos cinco anos seguintes usavam apenas
de camisas. Se porém iam à igreja ou
a alguma visita, vestiam com todo o rigor da gente
grande, com a diferença apenas das dimensões.
Poucos aprendiam as ler. Com a raridade dos livros
exercitava-se a leitura em manuscritos, o que explica
a perda de tantos documentos preciosos.
biblioSó os frades, a exemplo da gente de cor,
obedeciam aos ditames do temperamento, sem medo de
escândalo e até procurando-o. “Um
dos motivos da relaxação é haverem
muitos conventos e poucos religiosos, escrevia Fr.
Caetano, bispo do Pará; a causa para não
poderem satisfazer a todas as observâncias brevemente
degenera em pretexto frívolo para se eximirem
até das mais fáceis e ei-los aí
ociosos, inúteis absolutamente à igreja
e ao estado”. A tanto subiu sua desenvoltura
que dificilmente encontravam noviços nos últimos
tempos. Das freiras e recolhidas não se contavam
iguais excessos.
biblioGozavam de prestígio os padres, os genuínos
representantes da mentalidade até o começo
do segundo império, quando os substituiram
no cenário bacharéis formados pelas
academias de S. Paulo e Olinda. As virtudes da sua
vocação raros possuíam, mas o
caso de tão comum não causava estranheza.
Alguns, rompendo com o exclusivismo do latim, aprenderam
francês e até inglês, cultivavam
as ciências naturais, esposavam as idéias
dos enciclopedistas, entusiasmaram-se pelas tragédias
da revolução francesa, conheciam as
teorias de Adam Smith.
biblioEntre eles contavam-se pedreiros livres, que
já existiam em pequeno número, oficiais
portugueses e brasileiros viajados no estrangeiro,
e não se reuniam ainda em lojas. A população,
que aliás não podia conhecê-los,
pois ninguém se animava a apregoar-se como
tal, votava-lhes um terror louco; circulavam notícias
pavorosas de suas abominações sacrílegas,
entre elas e a de se aprazerem em apunhalar crucifixos.
Apesar de sua exiguidade ou por causa desta, dispunham
de certa influência e conseguiram dar escapula
ao inglês Thomas Lindley, preso na Bahia por
contrabandista.
biblio“Os principais divertimentos dos pracianos
(citizens) são as festas dos diferentes santos,
profissões de freiras, funerais suntuosos,
a semana santa, etc., celebrados rotativamente, com
grandes cerimônias, músicas e procissões
freqüentes, informa este viajante. Mal passa
um dia em que não ocorra uma ou outra destas
festas, e assim se apresenta um círculo de
oportunidade para unir a devoção e o
prazer, que é vivamente abraçado, em
particular pela mulher.
biblio“Em grandes ocasiões destas, depois
de virem da igreja, visitam-se uns a outros e saboreiam
um jantar mais farto que de costume, durante e passado
o qual bebem quantidades desmedidas de vinho. Quando
alcançam uma temperatura extraordinária
introduz-se o violino ou a guitarra, começa
o canto, logo seguido da excitante dança negra,
mistura de danças da África e dos fandangos
de Espanha e Portugal, que consiste em um indivíduo
de cada sexo dançar ao toque monótono
do instrumento, sempre no mesmo compasso, quase sem
mover as pernas, mas com todos os movimentos licenciosos
do corpo, juntado-se durante a dança em contacto
estranhamente imodesto. Os espectadores, acompanhando
a música de um coro improvisado e dando palmas,
saboreiam a cena com um gozo indescritível”.
biblioAs mulheres poucas vezes saíam a público
e iam às missas de madrugada; algumas serviam-se
de cadeirinhas, carregadas por negros de bela estampa
e rica libré; carruagens pode-se dizer não
havia. A maior parte do tempo levavam em seus aposentos,
quase em mangas de camisas, sem meias e até
sem tamancos, ouvindo das mucamas histórias
de carochinha ou bisbilhotices frescas, penteando
o cabelo, embevecidas nos cafunés. Bordavam,
faziam rendas ou doces, cantarolavam modinhas sentimentais,
comunicavam com as vizinhas pelos quintais; entretinham-se
com quitandeiras e beatas, ou abrigadas por uma rótula
discreta procuravam saber o que havia na rua. As moças
solteiras engordavam, quando se fazia esperar muito
o dia do casamento, felizes as que encontravam “casa
de Gonçalo, em que a galinha canta mais que
o galo”.
biblioDas fluminenses, diz Luccock que seus ornatos
produziam um efeito agradável, e molduravam
os encantos de uma face redonda, de feições
regulares, olhos negros, vivos e curiosos, fronte
lisa e aberta, boca expressiva de simplicidade e bom
gênio, ocupada por uma fieira de dentes brancos
e iguais, unidos a um rosto sofrivelmente bonito,
um ar risonho e um modo alegre, franco e sem malícias.
biblioTal, acrescenta, é a aparência
comum de uma moça de cerca de treze ou quatorze
anos. Aos dezoitos a natureza atingiu a maturidade
completa na brasileira. Alguns anos mais tarde torna-se
corpulenta e até pesadona; adquire uma grande
giba nas espáduas, e anda com um passo desgracioso
e cambaleante. Começa a decair, perde o bom
humor da fisionomia, e substitui-o por uma carranca;
olhar e boca exprimem ambos que se acostumou a exprimir
paixões vingativas e violentas, as faces ficam
privadas de frescura e de cor, e aos vinte e cinco
anos ou trinta transforma-se numa velha perfeitamente
enrugada.
biblioOs homens jogavam, freqüentavam cafés,
iam às casas de pasto, palestravam sobre assuntos
muito limitados, quase sempre vida alheia. Os acontecimentos
mais comezinhos deformavam-se em intermináveis
comentários maliciosos. Abundavam as alcunhas.
Mesmo a morte se desrespeitava. Se morria alguém
com fama de santo, se aparecia algum cadáver
incorrupto, estabelecia-se um reboliço na população
e a procura de relíquias assumia as mais indiscretas
formas. Se ao contrário corria que a alma se
perdera, corriam logo boatos prodigiosos, assombravam-se
as casas e sentia-se a proximidade das trevas exteriores
onde há choro e ranger de dentes. Ainda hoje
se nota isto no interior.
biblioNo Rio, e o mesmo se deveria com pouca diferença
notar nas outras cidades marítimas, a maioria
das casas era térrea. Na frente havia uma sala
assoalhada de bom tamanho; atrás ficavam as
alcovas, a cozinha, o quintal. Embaixo dos poucos
sobrados existiam geralmente vendas. A família
se reunia na varanda no fundo, as mulheres sentadas
em esteiras, os homens encostados a qualquer coisa,
ou andando de uma parte para outra. Aí jantavam
numa mesa velha estendida sobre dois cavaletes, cercada
de bancos de pau e às vezes uma ou duas cadeiras.
A principal refeição era ao meio-dia,
e então o dono, a dona da casa, os filhos sentavam-se
todos a roda; mais comumente, porém, acocoravam-se
no chão. Os alimentos molhados vinham em terrinas
ou cuias; os alimentos secos em cestas; comia-se em
pratinhos de Lisboa. Só os homens serviam-se
de faca; mulheres e meninos comiam com a mão.
biblioQuando um cavalheiro fazia qualquer visita,
se não era íntimo da casa, ia de ponto
em branco, chapéu armado, fivela nos sapatos
e nos joelhos, espada à cinta, segundo Luccock.
Ao chegar batia palmas para chamar a atenção,
e soltava um espécie de som sibilante, emitido
entre os dentes e a ponta da língua. Acudia
uma criada que de modo áspero e tom fanhoso
perguntava quem era e ia levar o recado ao patrão.
Se o visitante era algum amigo ou não reclamava
cerimônias, aparecia logo o dono da casa, levava-o
para a sala, protestando alto o prazer com que o recebia,
fazendo-lhe discursos cheios de cumprimentos, acompanhado
de reverências, e antes de entrar em negócio,
se disto se tratava, pedia-lhe muitas desculpas pela
sem-cerimônia da recepção. Se
o visitante era de cerimônia, uma criada levava-o
para a sala, donde ao entrar via muitas pessoas que
aí estavam sairem por outra porta. Aqui esperava
só, talvez meia hora, até o cavalheiro
aparecer numa espécie de trajo de meio rigor.
Ambos se inclinam profundamente a distância;
depois de haver mostrado suficiente perícia
nesta ciência, ganhando tempo para apurar a
posição e as pretensões do outro,
aproximavam-se, com dignidade e respeito correspondente
se desiguais; com familiaridade se supostos proximamente
iguais. Tratava-se e despachava-se o negócio
sem demora. Pede-se ao estranho que considere a casa
como sua, nota Pohl; se mostra agradar-se de qualquer
coisa, exige o costume que lhe seja oferecida, pedindo-se
que leve aquela insignificância.
biblioAs ruas eram estreitas, sem calçamento,
sem iluminação ou iluminadas a azeite
de peixe. A água e os esgotos ficavam entregues
à iniciativa particular. Enterravam-se os cadáveres
nas igrejas. Só a pouca população
explica a ausência de epidemias. Da higiene
pública incumbiam-se as águas da chuva,
os raios do sol e os diligentes urubus. Constituíam
exceção notória o passeio público
e o aqueduto do Rio.
biblioDepois de brutalmente extintas as primeiras
tentativas industriais, ficaram nas cidades apenas
mecânicos que trabalhavam por encomenda e a
quem se pagava só o feitio. “Quando um
oficial ganhava algumas patacas folgava até
acabar de comê-las, observa Saint-Hilaire. Apenas
possuía a ferramenta mais necessária,
e quase nunca andava provido das matérias que
devia feitiar. Assim tinha-se de fornecer couro ao
sapateiro, linha ao alfaiate, madeira ao marceneiro;
adiantava-se dinheiro para comprarem tais objetos,
mas quase sempre gastavam o dinheiro e a obra não
se fazia ou se fazia só passado um tempo considerável.
Quem tinha alguma coisa a encomendar precisava de
fazê-lo com larga antecedência. Suponhamos
por exemplo que fosse uma obra de marcenaria, era
necessário primeiro empregar amigos para arranjarem
no campo a madeira precisa; tinha-se depois de mandar
cem vezes à casa do oficial, ameaçá-lo,
e às vezes em definitivo nada conseguir. Perguntava
a um homem honrado de S. Paulo como fazia quando precisava
de um par de sapatos. Encomendo-o, disse-me, a vários
sapateiros ao mesmo tempo e entre eles acha-se ordinariamente
um que, premido pela falta de dinheiro, se resigna
a fazê-lo”.
biblioOs oficiais do Rio tinham a pretensão
de possuir grandes segredos, mas ignoravam as coisas
mais simples, narra Luccock. Tendo perdido uma chave,
foi à procura e afinal encontrou um operário
que o tirasse do aperto. “Deteve-me longo tempo,
mas em compensação apareceu-me de ponto
em branco, chapéu armado, de fivelas nos sapatos
e nos joelhos e correspondentes parafernais. À
saída remanchou ainda à espera de algum
negro que lhe carregasse o martelo, o escopro e outro
instrumento pequeno. Sugeri-lhe que eram leves, e
propus eu próprio carregar parte ou todos;
mas isto teria sido solecismo prático tamanho
como usar ele das próprias mãos. O cavalheiro
esperou pacientemente até aparecer um negro,
fez então seu trato e marchou com a devida
solenidade acompanhado de seu servo temporário.
Despachou-se depressa, arrombando a fechadura em vez
de arrancá-la; então o figurão,
fazendo-me uma profunda mesura, partiu com seu acólito”.
biblioOs mecânicos nunca formaram grêmios
profissionais à maneira da Europa: eram para
isso muito poucos, e se nas cidades podiam viver de
um só ofício, em lugares de população
menos densa precisavam de sete instrumentos para ganhar
a subsistência. Mesmo nas cidades faziam-lhes
concorrência os oficiais escravos.
biblioA falta de grêmios notava-se nas outras
classes. Continuavam as históricas pessoas
morais, mas sua ação, já enfraquecida
pela vastidão do território, acabara
de definhar desde que o absolutismo nivelador desatendeu
a seus privilégios. Se excetuarmos algumas
irmandades e associações de beneficência
como as casas de misericórdia, sempre beneméritas
e sempre vivazes, as manifestações coletivas
eram sempre passageiras: mutirão, pescarias,
vaquejadas, feiras, novenas. Entre o estado e a família
não se interpunham coordenadores de energia,
formadores de tradição, e não
havia progressos definitivos. Um indivíduo
podia tentar uma empresa e levá-la a bom êxito;
com a sua ausência ou com a sua morte perdia-se
todo o trabalho, até vir outro continuá-lo
passados anos, para afinal colher o mesmo resultado
efêmero.
biblioVida social não existia, porque não
havia sociedade; questões públicas tão
pouco interessavam e mesmo não se conheciam:
quando muito sabem se há paz ou guerra, assegura
Lindley. E’ mesmo duvidoso se sentiam, não
uma consciência nacional, mas ao menos capitanial,
embora usassem tratar-se de patrício e paisano.
Um ou outro leitor de livro estrangeiro podia falar
na possibilidade da independência futura, principalmente
depois de fundada a república dos Estado Unidos
da América do Norte e divulgada a fraqueza
lastimável de Portugal.
biblioNão se inquiria, porém, o meio
de conseguir tal independência vagamente conhecida,
tão avessa a índole do povo a questões
práticas e concretas. Preferiam divagar sobre
o que se faria depois de conquistá-la por um
modo qualquer, por uma série de sucessos imprevistos,
como afinal sucedeu. Sempre a mesma mandriice intelectual
de Bequimão e dos Mascates!
biblioCinco grupos etnográficos, ligados pela
comunidade ativa da língua e passiva da religião,
moldados pelas condições ambientes de
cinco regiões diversas, tendo pelas riquezas
naturais da terra um entusiasmo estrepitoso, sentindo
pelo português aversão ou desprezo, não
se prezando, porém, uns aos outros de modo
particular — eis em suma ao que se reduziu a
obra de três séculos.