MANO
Tendo perdido os
primeiros filhos, que foram tantos quantos os que sobreviveram, “como se a Vida
apostasse com a Morte em lhe não ceder uma só vitória,
tirando de cada túmulo uma ressurreição”, Coelho Netto desistiu do aperreado
sistema, tão mal sucedido, de encerrar e atabafar em lãs os pequeninos,
decidindo-se pelo da liberdade e dos exercícios físicos. E os outros sete
medraram. Emmanuel, o Mano, era o mais velho. Robusto, culto, modesto e bom,
ele simbolizava o tipo de atleta perfeito que Coelho Netto, sempre eqüidistante
das competições partidárias, idealizou na sua campanha pelo aprimoramento da
juventude brasileira.
No Fluminense
Football Club, Mano integrou o mais famoso conjunto de amadores da história do
football carioca, conquistando o tri-campeonato da cidade em 1917-1918-1919.
Sua morte, em conseqüência de séria contusão que sofreu num jogo do
Fluminense, ocorreu a 30 de Setembro de 1922, quando contava 24 anos
de idade.
Depois da
maior desgraça da sua vida, Coelho Netto, como forçado das letras, tendo de
escrever sem cessar para manter a subsistência da família, quando tomava lugar
à mesa, para começar o trabalho diário, só trazia um pensamento:
“Falando ou
escrevendo esquecem-me as expressões, faltam-me os termos. Só tu ficaste, tu
só, tudo mais se esvaiu”.
E, procurando
derivativo sua imensa desventura, fez da pena um rosário e desfiou em lágrimas,
dia a dia, o Livro da Saudade – “Mano”.
Paulo
Coelho Netto
Setembro
de 1956
Ele era bom. Tinha a
serenidade dos fortes. A juventude do seu corpo de atleta guardava uma alma
antiga, de orgulhosa origem, mas sempre alegre por perdoar e esquecer. Nunca
lhe saiu da boca uma queixa. Acostumara os lábios ao ritmo do louvor.
Sabia admirar. Sabia
amar.
Mano!
Quem o apelidou
assim, de pequenino, adivinhou que, depois de grande, quando olhasse, de olhos
abertos, a vida, havia de ser o que foi: o irmão... o Mano, mais moço ou mais
velho, dos outros homens que o conheceram, os amigos da sua intimidade e aqueles
que, junto de Coelho Netto e da companheira admirável desse nobre artista,
aprenderam o culto da beleza e da bondade.
Álvaro
Moreyra.
A Coelho
Netto.
Era
uma forte e meiga criatura,
Alma infantil em corpo de gigante;
E n'arena o julgáreis sempre ovante,
Da Grécia antiga olímpica figura.
Mas
como cá na terra a desventura
Apunhala o valor a cada instante,
Chega-se a Morte ao moço triunfante
P'ra tocá-lo co'a ponta d'asa escura.
Preces
da aflita mãe, que a dor crucia,
Prantos do pobre pai, que era um poeta,
Tudo o supremo transe lhe angustia.
Mas
tinha o lutador crenças de asceta,
Rompe-se em luz o nimbo da agonia...
Sorri... Mais uma vez vencera o atleta.
Carlos de
Laet
A Coelho
Netto
Rubro clarão no poente...
Desce abrasado o Sol... Por um momento,
Dir-se-ia
Que em sua marcha lenta se detém...
Contempla, a última vez, no firmamento
A estrada percorrida, desde o Oriente,
Numa larga passagem triunfal.
Vai
mergulhar no Além,
Penetrar na Agonia,
Perder-se no seu próprio sangue - a Luz...
Sabe que vai morrer... Olha o declive
Que ao túmulo conduz;
Lança depois o último olhar
De saudade final
Sobre a terra distante, sobre o mar,
E rola no horizonte... - É a noite que se eleva...
É a Treva.
Parece que na terra nada vive,
Nada existe
Tudo se esvaiu: a forma, a cor,
Que são a alma das coisas no Universo...
Tudo agora é diverso
No cenário do mundo
Que vai viver sem luz e sem calor.
O sol partiu e o céu, pálido e triste,
Tornou-se mais profundo.
Para
que serve a treva? Que razão
A faz surgir assim, tão bruscamente,
Após a fulgurante luz do dia?
Por que a noite, senão para melhor
Destacar o fulgor
Longínquo das estrelas?
Por que a noite, senão
Para aos homens dizer que todas elas
São outros tantos sóis, iguais ao Sol
Que vemos apagar-se no ocidente
Para se erguer de novo no arrebol?
Sóis que não morrem, que desaparecem
Somente ao nosso olhar e, quando descem
No horizonte, à mesma hora da descida,
Que é apenas ilusória,
Estão surgindo em plena glória
E em plena vida
Para outras regiões do espaço infindo...
Porque tudo que é lindo,
Perfeito e forte
Não pode aniquilar-se pela morte.
A
existência nos mostra cada dia
Que o fluido da Beleza ou da Energia
Jamais se exala
Para perder-se; apenas se transforma,
Se aperfeiçoa e sobe numa escala
Em que se purifica a essência ou a forma
Das coisas... Vida é apenas harmonia.
Só na aparência alguma coisa ofusca
Esta ascensão contínua. Nada existe
Que, em verdade, a perturbe e a morte não seria
A única exceção
Para a parada brusca
Na evolução fatal da Natureza.
O espírito da Força e da Beleza
Não se dilui: persiste,
Segue em demanda de outra perfeição,
E, se escapa a visão dos nossos olhos,
Deixa d'alma nos íntimos refolhos
Tênues fios de viva claridade
Que, pelo pensamento, e elas nos unem
Por todo o sempre e que, talvez, um dia
Nos servirão de guia
No mistério que envolve a Eternidade,
E onde, vestindo novas existências
As parcelas das coisas, nas essências
De um mesmo todo extinto, se reúnem...
-
Por isto quando o Sol desaparece
E o clarão do seu rastro empalidece
E se extingue na sombra, esse repouso
De morte transitória
É o início apenas de uma nova glória!
Octávio
Ribeiro da Cunha
Se o amor nos
aproximou mais fez ele unindo-nos inseparavelmente. Vendo-o, era como se nos víssemos,
aos dois, em um só reflexo - tu e eu, e, com tal visão, vivíamos felizes
contemplando-a debruçados sobre a correnteza da vida.
Hoje!...
Em vez do espelho
límpido, no qual nos mirávamos sorrindo, vejo apenas a água triste das lágrimas
que transbordam dos teus e dos meus olhos, água fúnera, turvada pela saudade,
limo que assenta no fundo do coração.
Pior que o Letes do
esquecimento é, sem dúvida, a memória, fonte onde nasce o rio da saudade,
corrente lúrida, toldada de lembranças. E é nesse rio que nos debatemos, tu e
eu, descendo juntos para o oceano ilimitado, com esperança de ainda o
encontrarmos, como se fosse possível achar no fundo da água morta a sombra que
flutuou na sua superfície.
A alegria dispersa;
a dor concentra.
É na dor que, em verdade,
sentimos que um filho é carne da nossa carne.
Ao vê-lo sofrer
vibramos doloridamente e, se ele geme, o seu gemido ressoa-nos no coração.
Os ais que lhe
escapam do martírio são frechas que nos lancinam e, se baixam do clamor à
queixa humilde, doem-nos ainda mais, como a punção de uma lanceta aguda que se
nos crava paulatinamente.
Se o enfermo sara
esquecem-se tais vozes, se elas, porém, se calam suspensas pela morte, então
represam-se-nos no íntimo, e nunca mais o coração as esquece e os gemidos nele
perduram como fica eterno nas conchas o marulho soturno do mar.
A casa não dormia.
Era a única na rua sossegada que se mantinha aberta e acesa durante a noite
toda e, ainda que silencioso, ensurdecido pelos cuidados, o movimento nela era
contínuo. Falava-se aos cochichos, e, volta e meia, no quarto em que ele
sofria, vígilo, soava a exclamação angustiosa:
“Se eu dormisse uma
hora!”
O sono, que enchia a
casa, acabrunhando aos que o desvelavam - tantas noites despertos! - só não lhe
chegava, a ele.
Os enfermeiros
revezavam-se-lhe à cabeceira e, por toda a parte, em desordem, eram pacotes de
algodão, ampolas, rolos de gaze, frascos.
De quando em quando
alguém chegava-se à luz com o termômetro.
Em todo o caso havia
esperança e, quando os pássaros começavam a cantar nas árvores e o céu
desensombrava-se em rosicler e ouro, mais se animavam os corações.
“Se eu dormisse uma
hora...!” arquejava, cansado, o pobrezinho.
O sol entrava a
jorros. Era o dia e começava na rua o movimento.
Todos contavam
vê-lo, de repente, sorrir, anunciando o alivio desejado e ele, rolando
aflitamente os olhos, agitando-se no leito, ansioso, insistia nas palavras
tristes:
“Se eu dormisse uma
hora...!”
E, assim,
passaram-se nove dias e nove noites, dias de tortura, noites em claro, longas,
exaustivas, sem sono, gemidas, até que, ao fim da tarde décima, ao lento soar
das sete horas, abriram-se-lhe muito os olhos, encheram-se-lhe de lágrimas e,
entre nós dois, ela e eu, ele começou a aquietar-se, deixou de gemer para
dormir, e adormeceu, enfim, não por uma hora, mas para não acordar mais, nunca
mais!
Na escala dos
ásperos tormentos, entre tantos que sofreu Jesus, foi o da sede o mais
acerbo e o único de que ele deu queixa.
Não se lhe ouviu
palavra quando dos tratos e afrontas com que o aviltaram no Pretório. Nas três
vezes que caiu no caminho do Calvário não soltou um gemido: calado suportou a
cravação na cruz e calado nela esteve até a hora terça da tarde.
Secaram-se-lhe,
porém, os lábios e ele entreabriu-os arquejantemente bradando aos seus algozes:
- Tenho
sede!
De tais palavras à
rendição do espírito divino mediou apenas o instante breve em que soou o
“Consummatum est!”
Mais longa que a de
Jesus foi a agonia de meu filho.
Durante dias, a todo
o instante, queixava-se ele de sede e eram todos a atendê-lo, cada qual mais
solícito,
Que intenso ardor o
abrasaria para que se não saciasse, já reclamando água mal lhe retiravam o copo
dos lábios ávidos?
Febre? nem tanto
acusava o termômetro. Que incêndio lhe arderia nas entranhas para que, apenas
sorvia, sôfrego, a água que lhe davam, no mesmo instante fosse ela absorvida,
como se caísse em forno caldo?
Não, não era febre,
se não a própria vida em luta, que reclamava o que se lhe esvaía a
golfos.
Quando o retiramos
do leito foi que se nos patenteou a causa da insaciável sede: o colchão, o
estrado, ainda o soalho, sob o leito, tudo era púrpura.
E, pois, como havia
ele de acalmar-se se a água, assim como lhe descia a goles árdegos, saía-lhe
tinta de sangue, dessorando as artérias exauridas?
E, como um vaso
partido, de que se extravasa a água que alimenta flor querida, assim pela
artéria aberta escoou-se todo o sangue daquele corpo, e a vida, flor que era o
nosso encanto, murchando pouco a pouco, feneceu à míngua do que a mantinha.
Pediu-me que o
mudasse de leito, e quis o nosso.
Podia alguém
imaginar que era o Destino que o fazia retroceder ao ponto onde principiara a
sua genitura para encerrar o círculo fatal?
Quem o diria presa
da morte vendo-o tio robusto, em pleno viço de saúde, mascarando com o sorriso
o ricto do sofrimento?
Alarmando-me o
grande aparato de socorros de que se cercava o médico e a solicitude ativa do
enfermeiro, interroguei-os aflito.
Sorriram-me
tranqüilizando-me. Ele próprio estranhou os meus cuidados impertinentes.
“Era lá possível,
diziam, que tão exuberante mocidade perecesse, frágil como uma ruína? Só um
desastre.”
Todavia eu procurava
ler nos olhos de quantos o visitavam e, desconfiado, tornei-me espião dentro da
minha casa, vigilo, atento a tudo e a todos, escutando às portas, caminhando
mansinho no silêncio das noites desveladas para surgir, a súbitas, entre os que
se lhe revezavam à cabeceira, surpreender cochichos, gestos, ver o que faziam,
ouvi-lo, a ele, inquieto, de olhos despertos e ansiosos, gemendo, a pedir
alívio ainda que à custa de martírios.
Mísero corpo! Quanto
sofreste pungido, de instante a instante, para inoculações de vida efêmera.
Por que não haviam
de dizer-me a verdade? Por que não ma disseram, se a sabiam? Ao menos eu não o
teria deixado um só instante e, aproveitando-me, sem desperdício de um segundo,
do tempo que lhe restava, tanto o havia de prender a mim que... sabe-se lá o
que é a vida e como são as raízes que a sustentam e nutrem! - talvez não fosse
tão fácil à Morte arrancar-mo do amor.
Mas confiava em
todos, nele principalmente e, quando saí da ilusão em que me mantinha a
esperança, onde o vira nascer, no leito que ele pedira, o nosso, vi-o, pouco a
pouco, aquietar-se, cerrar os olhos, dormir nos braços daquela mesma que, em
pequeno, o acalentava e que, então, o abraçava imóvel, sem lágrimas, como se a
dor a houvesse petrificado, como faz o inverno intenso com as águas múrmuras e
correntias.
Leito de nascimento,
ninho; leito de morte, esquife: princípio e fim da mesma felicidade, tu no-lo
deste, tu no-lo levaste.
Agora, quando me
deito, antes do sono vir, sinto-o comigo, a meu lado, vivo na minha lembrança,
em saudade, sombra que me ficou no coração, rastro de uma ventura que passou,
sonho com que me consolo dentro da noite triste e eterna, no qual o vejo desde
pequenino, quando ali nasceu para tão curta vida, até o doloroso instante em
que se foi para o sempre.
Ao
Rev. Sr. Padre Henrique de Magalhães,
que
o confessou e ungiu
Quando, dissimulando
a agonia, entrei no quarto para abençoá-lo e o vi arfando, imóvel,
alagaram-se-me os olhos. Quis falar: as palavras desfizeram-se-me em balbucios,
como se dissolvem em espuma as vagas de encontro às penhas.
Estatelei-me, de
mãos enclavinhadas, trêmulo. Acendeu-se-me, então, na Fé o último clarão de
esperança e minh'alma elevou-se, em surto, a Deus.
Fugindo daquele
transe, procurei a que não chorava: fria, apática diante da catástrofe, imagem
da geleira eterna que não deflui, petrificada em friul.
Expus-lhe o que me
inspirava a Crença: a conveniência de o prepararmos para a partida e ela,
encarada em mim, hirta, impassível, abriu desmesuradamente os olhos
espavoridos, parecendo medir a imensidão da nossa desventura.
Insisti.
Tremeram-lhe, de leve, os lábios como vibra a haste do arbusto ante o adejo de
um beija-flor.
Pedi a alguém que
fosse à igreja próxima buscar um sacerdote.
O
tempo que mediou entre a partida do emissário e a chegada do religioso foi tão
breve ou tanto eu nele me perdi que, ao avisarem-me da chegada do padre fiquei
surpreso como de milagre.
Sim, era ele com a
maleta em que vinham os sacramentos.
Olhamo-nos sem
palavras. Silêncio como jamais abafara a minha casa encheu-a toda. As próprias
janelas, largamente abertas, não pareciam respirar.
Pé ante pé tornei ao
quarto, certo de encontrar o enfermo na inércia em que o deixara. E que vi eu,
arrepiado de horror e no auge da mais feliz surpresa? Meu filho a olhar pela
janela aberta o céu azul, almofadado em nuvens, os ramos da árvore da rua, que
devassam o mais íntimo do nosso lar (ramos onde, de madrugada, quase conosco,
doméstico, saltita certo passarinho, e canta), tão calmo, tão sereno, que
dir-se-ia haver acordado de noite bem dormida e estar ali gozando a preguiça da
manhã.
Fora uma crise
apenas e eu, por ela, imprudentemente, me precipitara.
Que fazer? Despedir
o sacerdote? Anunciá-lo ao enfermo? Tal anúncio valeria por sentença e ainda
havia esperança em nossos corações. E ele nem sequer pensava na gravidade do
seu estado, tanto que, momentos antes, ao raiar da alva, quando a passarada
começava com os gorjeios, dissera, lembrando-se de passados tempos e pensando
em futuros dias:
“Esta é a hora
melhor no mar. Os rapazes devem estar treinando. E eu, aqui! Enfim... ainda
pode ser...”
O coração
cresceu-me, harto; as veias túrgidas puseram-se a latejar, a ímpetos; lágrimas
ardiam-me nos olhos.
Que fazer? Que
dizer?!
Foi ele que me tirou
da hesitação angustiosa, perguntando-me, a sorrir, surpreendido com a minha
atitude:
- Que tens? Porque
me olhas assim?
Que teria ele visto
nos meus olhos, percebido no meu olhar que ia tão longe. tão longe que chegava
à morte?
Animei-me a falar.
Não sei que disse, não sei!
De repente vi-o
cerrar a fronte, soerguer-se a custo, fitar-me a vista terebrante, pálido, de
lábios trêmulos e exclamar, com espanto doloroso, como se eu o houvesse
amaldiçoado: “Papai!”
É que eu rasgara
violentamente o véu misterioso mostrando, no fundo da esperança, Deus é que eu
lhe anunciara a hora suprema da Religião, hora última da terra, hora que não
soa nem declina hora incomensurável, parada, fora do dia e da noite, rosto da
Eternidade.
Houve, então, entre
nós, um olhar, e, nesse olhar, como se cruzam no beijo os amores, cruzaram-se
desesperos.
Tentei justificar o
meu procedimento:
“Que a religião e a
medicina que não falha, porque os seus remédios são aviados por Deus, e
salvam”.
As lágrimas
intrometeram-se-me pelas palavras e ele, comovido, tomou-me a mão, atraiu-me a
si e, meigo, interrogou-me.
- Você quer?
Solucei, acenando
afirmativamente.
-
E mamãe?
Respondi com o
olhar.
- Pois sim,
concordou, suave: então também eu quero.
Todo o meu fôlego
afluiu-me à garganta, sufocando-me.
Ele, sentindo a
minha angústia, sorriu-me confirmando o que dissera com um gesto de brandura.
Caminhei para a
porta. Antes, porém, de sair voltei-me. ele inclinara a cabeça e então vi as
lágrimas da sua juventude, os seus sonhos desfolhando-se às gotas, todos os
seus amores despedindo-se. Saí. O sacerdote entrou.
Quanto tempo durou a
confissão daquela alma em flor? Foi para o meu coração tão longo que ainda nele
persiste e durará enquanto eu viver, durará como um remorso dentro da minha
saudade; durará como espinho na flor da minha ternura.
Quando o padre saiu,
fui-me direito a ele. Chorava e sorria.
Chorava como homem,
com pena daquela vida talada em pleno viço. Sorria como sacerdote, por haver
achado em anos tão tenros coração tão virtuoso.
Então atrevi-me a
tornar ao quarto e, ainda hoje, pensando nesse momento grandioso e horrível,
hesito em decidir se fiz mal, se fiz bem: mal, levando àquela consciência,
ainda clara, a certeza da morte; bem, preparando para Deus quem, já de partida,
ainda nos iludia com a coragem e a robustez, ainda nos acariciava com a
meiguice e, já desprendido da terra, de asas abertas para o vôo, ainda nos abraçava,
animando aos que ficavam na vida, ele, que começava a morrer.
E, ainda hoje, nos
silêncios em que me encerro com minha alma, murmuro, em dúvida que me excrucia:
“Quem sabe se o não
entreguei cedo demais a Deus! É possível que se eu lhe não houvesse quebrado as
forças da alma, se não houvesse, imprudentemente, substituído a Esperança pela
Fé, deslocando-o da terra para o céu, ele resistisse e ainda vivesse conosco,
amado e amando-nos”.
Mas... E se, por
descuido nosso, ele partisse sem a unção que salva?!
Precipitei-me,
talvez, mas foi ainda por amor, para que tua alma, meu filho, fosse, como foi,
na tristeza daquela tarde lúgubre, direita e triunfante para o esplendor
eterno, que é o próprio olhar de Deus.
Todos se acercaram
do leito e ele, estranhando, talvez, o rosário de corações que assim o cingia,
relanceava em volta lento, interrogativo olhar de espanto.
Por vezes
crispava-se-lhe, de leve, o rosto como se frisa com a aragem a superfície da
água; as mãos moviam-se-lhe inquietas, contraindo, distendendo os dedos; o
peito arfava-lhe opresso como se sustentasse um peso esmagador.
Silêncio trágico
continha a todos, suspensos.
Que haveria? Por que
tão atento o fitava o médico tomando-lhe obstinadamente o pulso?
Eu sentia um perigo.
Parecia-me vê-lo à beira de um abismo que ele tivesse de atravessar sobre
estreita ponte frágil.
De repente,
agitando-se, abrindo um olhar imenso, perguntou em voz surda:
- Que
horas são?
Alguém respondeu
baixinho, entanto a resposta soou forte no silêncio, como pancada em lâmina
metálica: “Sete!”
Ia-se a tarde em
desmaio melancólico, já agasalhada em sombras.
Por que teria ele
feito tal pergunta? Que teria visto? Os prenúncios, talvez, da noite primitiva,
a noite que se fecha para o sempre, noite vazia, silente, sem astros, sepultura
da luz.
O coração
retransiu-se-me apertando, o fôlego sustou-se-me na garganta e meus olhos, como
atraídos, voltaram-se para o oratório buscando a cruz de bronze,
relíquia de Jerusalém, sacrossanto sinete que tem selado para a Eternidade
todos os mortos da minha família.
E as lágrimas
borbulharam-me no coração, senti-as subirem-me aos olhos, a jorros violentos, e
tive forças para contê-las.
Súbito o silêncio
estalou em pranto como um vaso hermeticamente fechado que se fizesse pedaços derramando
todo o líquido contido.
Tombei de joelhos
junto do leito agarrando-me desesperadamente ao corpo que se imobilizava.
Tudo cessara e o
olhar, que ele ainda mantinha fito em nós, extático, não tinha luz: era como o
morrão que fica ardendo nos círios e que, pouco a pouco, envolto em fumo,
vai-se extinguindo, até de todo se apagar.
Alguém chamou por
ele, em pranto.
Ai! de nós...
Às pedras deu-lhes
Deus o eco para responderem a quem lhes brada e ao que morre tudo se vai, não
fica, sequer, um pouco de som para a suprema palavra de um adeus.
É um caixão que se
fecha. Nada mais.
Onde estaria eu
quando o desceram para a minha sala de trabalho?
Onde estaria eu que
não dei pelo trânsito cruciante?
Quando
entrei no quarto e vi a cama deserta foi tal o alvoroço no meu coração que
estaquei suspenso, entendo um grito. Seria possível!? Olhei em volta... Mas
toda aquela desordem - velas ainda acesas, o silêncio, o lúgubre vazio...
Se
o corpo sai com vida deixa um misterioso sinal de si: o ausente afigura-se-nos
presente; o morto, não!
A morte arrasta tudo
consigo e ali nada mais havia, mais nada senão um sulco revolto como o que fica
nas águas à passagem de um barco - fundo, mas de breve duração; agitado, mas só
em efêmeras espumas.
Onde estaria eu quando
o desceram?
E foi diante daquele
vazio que senti toda a grandeza do meu amor. É pelo diâmetro e profundidade da
cova que se pode avaliar a extensão das raízes da árvore derrubada.
Onde estaria eu
quando o desceram? Afastaram-me, decerto, para transportá-lo. Foi melhor
assim.
Não há hora mais
triste que a do ocaso, hora do descer da luz. A noite é o irremediável, com a
consolação das estrelas, que são lágrimas.
Fizeram bem em
poupar-me à cena triste do descimento do corpo frio. Foi como se me adormecessem
para uma operação dolorosa.
Quando dei acordo de
mim tudo estava consumado.
Fechado um cofre e
atirada a chave em pleno oceano, nem por isso deverá o dono perder a esperança
de poder, um dia, reavê-lo, abri-lo e rever o seu tesouro intacto.
Não tornou do pélago
o anel lançado pelo tirano às vagas, em hóstia à Fortuna, que o recusou,
devolvendo-o nas entranhas de um peixe?
Mergulhadores, assim
como pescam pérolas, podem rebuscar, nas areias e covas submarinas, a jóia
imersa trazendo-a à tona e restituindo-a ao que a perdeu ou, em instantes de
desvario, atirou ao mar.
Todos os abismos têm
limite - de um só, o túmulo, ninguém mediu ainda a profundidade. Quantos lá têm
amores, desfeitos em saudades, tentam, em vão, alcançá-los e valem-se dos meios,
todos frustrâneos, ilusões que, em vez de consolarem, mais aumentam o
desespero.
O que se acredita
ver na placidez da Morte e a imagem do que existe no coração.
Quantos infelizes,
deixando a realidade triste pela miragem falaz, ficam na vida sem o que tinham
para guiá-los, que era a Luz da razão, apagada no mergulho em que se
precipitaram!
A pequenina chave
que fechou o teu caixão, meu filho, nunca mais terá serventia. Fez o que
lhe cumpria, nada mais tem a fazer. E eu, entretanto, guardo-a como a mais preciosa
das minhas relíquias. Para que? De que me serve se, com ela, não abro mais do
que as fontes do coração dando livre curso às lágrimas saudosas?
Vê-la, tocá-la,
tê-la perto de mim é lembrar-me de ti, fechado, como estás, para o sempre, com
o selo inviolável da Eternidade.
Em minhas mãos essa
pequenina chave, que deu a grande volta no círculo da tua Vida, encerrando-a,
pode ser comparada a um facho nas mãos de um cego - porque ainda que ele o
possua e sinta em nada lhe aproveita.
Que
mergulhador terá fôlego tão longo que lhe permita descer aos penetrais do
túmulo e de lá trazer o meu tesouro?
De que me serve a
chave, que conservo, se o cofre, que ela fechou, aprofunda-se tanto que o
próprio Pensamento não lhe chega à jazida?
Admitindo, porém,
que me fosse dado abrir o que, entre flores, fechei com mão tremente e lágrimas
a jorros, no instante em que, perdida toda a esperança, entreguei-te à cova e a
Deus, teria eu ânimo bastante para contemplar o que me devolvia o Nada, restos
de ti deixados pelo Céu e pela terra?
Para que profanar
despojos? Que restará do que foi corpo airoso, coração meigo e alma inteligente
- força, movimento e afeto: lume no olhar, idéia nas palavras, amor no gesto,
heroísmo, dedicação e fé? um arcabouço como tronco e ramos nus de árvores no
inverno.
Árvore!...
A árvore
reenfolha-se, reflore, renova-se com mais viço ao calor do sol da primavera,
prolonga a vida em ressurreições continuas. O corpo, uma vez tombado,
resolve-se em pó que se não levanta.
De que me serve
possuir a chave!... Antes eu a tivesse lançado ao mar, assim não teria ante os
olhos essa promessa que se não cumpre, esperança sempre desvanecida, chave de
um segredo que se não revelará jamais.
A alma, entretanto,
apega-se a tudo, tudo lhe serve de consolação e martírio.
E a chave aí jaz,
entre as minhas relíquias; lembrando-me o que fechei para o sempre: o teu corpo
e, com ele, entre as flores que o cercaram, toda a minha ventura.
Alma da Vida,
Primavera, tu que sempre ressurges da neve carregada de flores, tantas que as
espalhas profusamente pelos campos, enfeitas com elas serras e penhascos,
enches os vales, assoalhas lirialmente as águas, alegras as charnecas, animas
os areais estéreis e, porque ainda te sobram nas mãos viçosas, lançá-las pelos
velhos muros das ruínas, pelas covas humildes dos cemitérios, forrando-os com a
tua generosidade, por que havias de vir ao meu canteiro pequenino talar a flor
que era o encanto e o conforto de dois corações, que a defendiam, como
as folhas defendem o botão que, entre elas, nasce e vai desabrochando?
Rica, procedeste
como o avaro que, possuindo tesouros, enverga olhares de inveja para o
mealheiro do pobre e, enquanto o não consegue haver a si, não lhe
aquieta a ganância.
O que arrebataste
pouco vale na abundância da tua riqueza e era tudo no lar, agora mísero.
Era
o calor e a luz; era a alegria e a força de duas fragilidades; era a esperança
de dois simples; era a religião de dois crentes; um presente de Deus no altar
de dois devotos; a luz de dois felizes que, agora, de olhos sem pupila,
caminham às apalpadelas, como cegos a quem houvessem levado o guia, deixando-os
ao desamparo, assentados na lápide de um túmulo.
Cruel ambição a tua,
Primavera! Nem sabes o que possuis, tão copiosa é a tua florescência, e roubaste
o pouco que era a riqueza de um lar.
Tendo um rio,
sorveste a gota de orvalho que se achava engastada entre dois corações.
Sendo esplendor,
como o sol, roubaste a pequenina chama
da nossa lâmpada doméstica
Sendo fertilidade
para a Natureza toda, passaste por nós como ceifadora.
Dantes, no evento do
teu mês, minha alma rejubilava antegozando o espetáculo, sempre novo, do
rebentar dos gomos e do chilreio dos ninhos desempolhados e as primícias da tua
feracidade, antes que aparecessem na terra verde, anunciava-as eu em louvores
jucundos.
Agora, quando as
brumas do inverno forem-se, a pouco e pouco, diluindo e os dias clarearem e
aquecerem em sol e embalsamarem-se com o teu hálito, os nossos corações,
transidos de saudade, ir-se-ão velando e aos novedios da terra responderão
neles os espinhos das dores com que, sem pena, os alanceaste.
E
quando todos, em júbilo, exaltarem, felizes, a tua vinda, agradecendo as mercês
generosas que lhes distribuíres, nós, lembrados do que nos fizestes, fugiremos
de ti, das tuas flores, do teu aroma, da tua claridade, surdos aos galreios dos
implumes, ao murmúrio sonoro dos córregos vivazes, e o límpido azul do céu
parecer-nos-á retinto em roxo, a terra florida se nos afigurará sepulcro imenso
e o teu prestígio, renovadora da vida, não terá efeito em nossas almas.
Tu, que, só com a
magia dos teus eflúvios, fazes brotar no lesim da pedra a saxífraga; tu, que
dás viço à duna árida cobrindo-a de folhagens vindes, como a piedosa mãe
enfeitou de acanto o túmulo do filho; tu, que tudo animas, não conseguirás,
como todo o teu poder divino, reviçar a alegria nos corações que enlutaste.
Tu, que vences o
inverno, não vencerás a nossa tristeza, ó Força eterna, eterna criadora que
foste para nós a Morte.
Primavera, que mal
te fizemos nós?
Quanto
mais bela e vicejante fores mais nos ressentiremos da tua crueldade.
Criadora de lírios e
de rosas, que mal te fizemos?
Tudo que produzires
e despertares será, para nós, motivo de melancolia, porque nos relembrará a
traição do teu sorriso.
Quando,
na aragem das noites taciturnas, vier a nós o aroma das campinas, virá também a
imagem do que se foi e nós, sentindo-o no perfume, amaldiçoaremos o teu poder
maléfico, Primavera.
Antes o inverno com
os seus dias lacrimosos e as suas noites regeladas!
Que
nos importavam os rigores da ventania gemendo no escampo, a névoa álgida
velando o arvoredo, os aguaceiros copiosos formando torrentes pelos caminhos,
todo o cortejo lúgubre dessa funerária estação de morte se tínhamos conosco o
filho amado, aquecendo-nos a alma, como a chama aquecia o corpo, participando
do pão de nossa mesa, ele que era o nosso dia de amanhã, o nosso futuro, que
rebentara em nossa velhice?
E vieste,
entraste-nos pela casa coberta de flores, como noiva, e levaste-o contigo
escondendo-o na cova para sempre!
O lavrador, que
enterra a semente no alfobre, fá-lo para a Vida. E tu, Primavera, que fizeste
do que levaste?
Que dirão de nós os
que virem de luto no festival da tua era, cobertos de crepe entre as tuas
flores, chorando lamentosamente no coro de risos da Natureza?
Quiseste uma flor
nova e viera buscar a que tínhamos tão escondida e não temíamos a morte. E
fomos traídos pela Vida, porque foste tu que no-lo roubaste, Primavera.
Tu, que reenfolhas,
troncos que o lenhador despreza na floresta tendo-os por mortos e apodrecidos;
tu, que dás vida em flor aos pântanos, estagnados; tu, que realizas milagres de
ressurreição em toda a natureza; tu, onipotente, tu, vivificadora; tu,
antagonista da Morte; tu, inspiradora do Gênese; tu, que és o verbo de Deus, ó
estação da benção! tu, que és o raio do Sol dentro do qual erram em átomos as
messes; tu, que és a Juventude, Primavera fecunda, flor da Eternidade, que mal
te fizemos nós para que no entrasse pela casa coberta de flores, como em festa,
para matar, com o teu veneno, o filho do nosso amor, consolação das nossa horas
tristes e arrimo de nossa velhice?
Por que nos traíste,
Primavera, Vida da Natureza e Morte da Ventura nossa?
Quando o levaram
de nós o estádio começava a encher-se para um dos mais renhidos jogos do
campeonato sul-americano.
Ao alto da muralha
da mole atlética, trapejada a bandeiras e flâmulas, que espadanavam ao vento,
borrifadas de chuva, apareciam os primeiros vultos.
O movimento das duas
ruas que se cruzam dissemelhava-se em contraste irônico. Em uma, o borborinho
alacre da multidão desensofrida, que afluía ao espetáculo da luta: veículos e
turba, pregões, estropeada de patrulhas, correrias de retardatários que se
apinhavam tumultuosamente junto da bilheteira como se a quisessem tomar de
assalto.
Na outra rua,
silêncio: gente à espera, em grupos nas calçadas, às portas e às janelas; duas
longas filas de automóveis e o coche fúnebre parado diante da nossa casa em
pranto.
Na minha sala de
trabalho, de janelas abertas, revestida de luto, com um altar armado, jazia
sobre a minha mesa, entre círios e flores, o maior desastre da minha vida.
Toda a casa
regurgitava de gente: era a solidariedade dos corações amigos na desgraça, a
doce esmola de amor trazida à nossa miséria.
Por toda a parte,
profusamente, flores: sobre os móveis, pelos cantos, fora, no jardim: em
palmas, ramos e grinaldas e ainda esparsas, aqui, ali. Nunca a primavera fora
tão pródiga com o meu jardim.
Foi preciso que a
Morte nele entrasse para que os meus canteiros se adornassem tanto. Por tal
preço não os quisera eu tão vegetos.
Longo, perduradouro
vozear no estádio anunciava o início do jogo quando o sacerdote, o mesmo que o
ouvira de confissão, aproximou-se para encomendá-lo a Deus.
Era o sinal da
partida.
Uma voz sussurrou-me:
“Que iam fechar o
caixão”.
Estremeci. Seria
possível! Encheu-se-me o peito de tanta agonia que me senti opresso como se o
coração se me houvesse petrificado
Que fazer?
Último adeus ao
filho, último beijo à fronte gélida, bênção derradeira.
Retiraram-lhe o
crucifixo do peito.
Como o que embarca
entrega no portaló o bilhete de passagem, assim já lhe não era necessário o
símbolo da Fé, porque o seu corpo tinha a câmara à espera e o seu espírito
suave já devia achar-se na presença de Deus.
Tomei-lhe, a furto,
o que dele me podia ficar - algumas flores que lhe haviam murchado sobre o
peito, mortas com ele, bem em cima do seu coração.
Um a um alguém foi
apagando os círios.
Eram as últimas
esperanças que se extinguiam. A sua eterna manhã rompera. Para que luzes
noturnas?
Fecharam o caixão
florido. Que mais?!
Eu olhava em volta
de mim em busca de uma esperança e só via lágrimas em todos os olhos. Tudo
estava acabado. Dali ao túmulo, nada mais.
Levaram-no.
E a casa foi, pouco
a pouco, esvaziando-se - vazia da gente, vazia das flores, vazia,
principalmente, da felicidade, que ia com ele.
E tive coragem de o
acompanhar até à estância derradeira e vi-o baixar ao fundo da sepultura,
profundidade só comparável à do azul infinito.
E o abraço brutal da
terra sonora. pouco a pouco encerrando em si o corpo amado, fechando-se sobre
ele, abafando-o, sumindo-o até possuí-lo todo, só dela.
E ali fiquei a olhar
como quem, de cima de uma rocha, vê perder-se no horizonte a vela da última
esperança.
E, diante daquele
deserto, eu era como um náufrago em ilhéu estéril na vastidão do oceano.
Arrancaram-me do
presídio. Era a vida que me reclamava como a morte o levava, a ele.
E vim, sem
consciência, até a casa, onde revi os meus, como se uma vaga me houvesse
arrojado à praia e eu acordasse atônito.
A tarde estiara.
Dir-se-ia que a chuva fora apenas para chorar o morto, como os olhos dos que me
haviam acompanhado no doloroso transe.
Águas que não cessam
são as que jorram das fontes e dos corações. Águas que se formam nas nuvens passageiras
e nos olhos indiferentes depressa o sol e o esquecimento secam; as que brotam
das rochas e das profundas do amor, essas não estancam nunca! Se estancassem
como se mataria a sede, como se mitigaria a saudade?
No jardim, restos de
flores: ainda na minha sala os círios da vigília.
Já haviam despido do
luto as paredes, já haviam desarmado a essa e o altar e a minha sala de
trabalho voltara ao seu aspecto natural. Pairava apenas no ambiente um cheiro
morno de cera e de flores murchas. E na casa era tudo. Os corações, esses...
Onde quer que se
passasse ouvia-se convulso tremor de pranto.
Uma figura inerte,
de negro, estatelada, estéril, jazia apagada a um canto, como aqueles círios
que ainda lá estavam, de morrões negros, também apagados, sem lágrimas.
Não parecia sentir:
olhava pasmada, como alguém que se visse em um patíbulo, condenada sem culpa e,
em tamanha injustiça, não achasse palavra para bradar a sua inocência.
Pobre mãe!
Aproximei-me dela,
unimos os nossos corações feridos do mesmo golpe e as nossas dores
comunicaram-se.
Assim um rio cresce
assoberbado e na violência em que investe derruba árvores e barrancas e tais
destroços represam-no até que outro rio, nele despejando-se, engrossa-o e, os
dois, juntos, forçam, levam de vencida o empeço e correm alagadoramente.
Chorávamos humildes
quando trovejou no estádio clamor imenso de triunfo e o coliseu longamente
atroou o estrondo das aclamações vitoriosas.
Ouvindo aquele
tronejo heróico lembramo-nos de tardes, outras, iguais àquela e parecia-nos que
o nome proclamado estrepitosamente era o dele, dele que ali se fizera desde
pequenino, brincando naquele campo, nele crescendo em força e garbo, nele
batendo-se pelas cores, que eram o seu orgulho.
E seria dele o nome
que ouvíamos nas aclamações ovantes da multidão em delírio?
Sim, era o seu nome,
não saía do estádio, mas do fundo dos nossos corações porque, embora
estrondosas, todas aquelas vozes de milhares de bocas não estrugiam tão alto
como nos soavam intimamente os apelos doloridos da nossa imensa saudade.
E, no final do jogo,
com o escoar da turbamulta, a nossa rua encheu-se e os que passavam, comentando
os lances mais brilhantes da partida, não se lembravam do enterro que dali
saíra.
E, para o seu
espírito, foi melhor assim.
Era em tal alvoroço
que ele gostava de ver o seu clube, cheio, empavesado, ressoando músicas e
clamores. Quanta vez...
A casa, fechada, em
silêncio, tremia com o rumor da rua. Pobres corações!
E a tarde daquele
dia, que fora de tristeza lúgubre, desanuviara-se a pouco e pouco, galeando-se
do sol. Dir-se-ia que o céu despia o luto por aquele que chorava ou, quem sabe!
talvez assim se transfigurava para recebê-lo festivamente.
Nós é que em nada
mudamos: tal como ele nos deixou jazemos: na mesma desolação, na mesma saudade.
E como não há de ser
assim se a nossa alegria era ele e ele foi-se, não torna, não tornará nunca!
nunca mais!
Não há ainda um mês
que adormeceu em Deus o ser do meu ser, a minha criatura de amor e o leito em
que ficou, no dormitório silencioso, já se recama de flores.
As que o
acompanharam, em ramos e em capelas, fanaram-se depressa; outras
substituíram-nas e também feneceram; em compensação as sementes esparzidas pelo
jardineiro funeral, que cuida dos pequeninos canteiros mortuários, mal lhe
caíram das mãos na terra fria logo rebentaram em vida, formando uma colcha de
verdura que veste e enfeita a melancolia do jazigo.
E tal colcha
matizou-se de violetas e margaridas, dálias, cravinas e miosótis.
Quem terá realizado
esse milagre de florescência tão rápida? as nossas lágrimas? não! Tu, só tu,
Primavera.
Será o remorso de
no-lo haveres arrebatado que assim te faz solicita ou pensas, por acaso, que,
escondendo em teu manto o túmulo querido farás com que o esqueçamos com a
indiferença da terra que sorri em flores sobre a mocidade morta?
Como te enganas,
traidora!
Mais prestígio tem a
saudade em nossos corações do que tu na terra, cuja vida revigoras, porque, se
fazes nascer flores, ela ressuscita o que mataste, evoca-o a todo o instante,
trá-lo da sombra eterna e integração na vida e só não o refaz, tal como o
tínhamos, porque o corpo lá está no abismo ao qual se desce por uma escada,
cujos degraus aluem sobre o incluso como as águas se fecham sobre o náufrago.
A casa está cheia
dele: sentimo-lo em toda ela, presente, e, fora, em toda a parte.
Ouvimo-lo. São os
seus passos, é a sua voz que impregna o ambiente e sentimo-lo quando o relógio
bate, devagar, as horas: as horas em que ele acordava e vinha dar-nos os bons
dias; as horas em que ele saía; as horas, lentas e longas, da sua ausência; as
horas alegres que o traziam do trabalho e as em que, à noite, ele regressava à
casa, cauteloso, indo sempre até o nosso leito dar-nos, na vigília preocupada
em que o esperávamos, a felicidade tranqüilizadora da sua presença. Todas essas
horas continuam e ele continua a viver em todas elas.
O que nos aflige é a
angústia de o não podermos sentir como o sentíamos outrora.
Vemo-lo como imagem
refletida em espelho, vemo-lo, mas se tentamos tocá-lo, ai! de nos.
Suplício igual ao de
Tântalo é o que nos inflige a saudade.
Vê-lo, ouvi-lo no
coração, senti-lo em toda a parte, tê-lo sempre presente em nós e tão distante
como a mais remota das estrelas e todas as esperanças...
Temo-lo conosco, na
família, que o não esquece.
O seu lugar vazio espera-o
sempre.
Quando nos aparece,
projetado pelo coração, fala, mas mussitantemente apenas, sem palavras sonoras:
batem-lhe os lábios como asas de pássaro cativo. Caminha, e os passos não lhe
soam. Estende-nos os braços e nunca o alcançamos, porque, entre nós,
interpõe-se uma lâmina, como a de cristal de espelho, que se chama: infinito.
Temo-lo tão perto e
tão longe, conosco e para sempre apartado, vivo na imagem, só na imagem que é o
reflexo da saudade.
Seria, talvez,
melhor que os mortos partissem de vez, sem deixar rastro, levando consigo para
o túmulo todo o ser. Mas não! partem como o sol tramonta: deixando a terra em
escuridão, mas cheia de calor. E esse calor na terra é vida; no coração é
saudade.
Assim é na saudade
dos vivos que os mortos se eternizam, nela é que eles continuam a viver: é o
paraíso de tristeza, como o esquecimento é o inferno dos que não souberam
fazer-se amar.
E em quantos
paraísos de amor vive o espírito querido! Em quantos corações soa o seu nome em
apelo lamentoso!
As próprias coisas
parecem sentir-lhe a ausência.
Que vazio à mesa e
que silêncio! É que ele já se não assenta entre os irmãos, ainda que o seu
lugar seja mantido como se ele apenas se haja demorado e possa aparecer de um
momento para outro.
Mas ninguém lhe
serve o prato, o seu talher não se descruza, não se lhe desdobra o guardanapo,
o copo mantem-se-lhe vazio, o seu nome é pronunciado a medo, para não despertar
nos corações a dor; e a luz, que incide sobre a cadeira que ele ocupava, já não
tira a sombra que lhe traçava o perfil na parede.
Essa sombra ficou e,
para sempre, em nossos corações.
E tudo que resta
daquele corpo airoso, que era a coluna robusta do meu lar, lá está no cemitério
em flores.
Flores, eis o que de
meu filho fez a Primavera.
Todo o riso, todo o
viçor de uma sadia e honesta juventude, toda a bondade de um coração magnânimo,
toda a energia de um caráter espartano, toda a nossa esperança, todo ele enfim,
reduziu-se ao que exorna a terra estreita de um túmulo: flores.
Os que passarem por
elas, vendo-as lindas, como se ostentam e ignorando-lhes a origem dolorosa,
louvarão, decerto, a Primavera que as tirou da morte, mas os que sabem o que
elas representam e o que encobrem na terra em que nasceram, esses...
Mudar-nos... Por
que? se a casa toda está impregnada da sua presença, do seu ser, como o vaso
que conteve essência longamente lhe conserva o aroma?
Por que mudar-nos
deixando o lar onde, por vezes em eco, os seus passos ressoam, a sua voz timbra
serena, e até a sua sombra desliza pelas paredes, como inveterado hábito que se
repete inconscientemente?
Quantas vezes, do
meu leito, ouço ranger a escada e sinto-o que sobe vagarosamente, ensurdecendo
os passos para não despertar os que dormem!
Dar-se-á que os
degraus conservem a impressão do seu andar e trepidem, como os móveis estalam,
à noite, retraindo ou dilatando as fibras ao contato do ar?
As tábuas não soam
por si e, se estalidam, é que algum piso as recalca.
Paredes de pedra e
cal, assoalhos de madeira morta, é possível que dele vos lembreis às horas
justas em que ele entrava, pé ante pé, subtil, sem que o sono, que dominava a
casa, fosse perturbado?
Se o lar assim se
recorda como havemos nós de abandonar esse cantinho cheio de reminiscências,
(memória inerte em que ele persiste), porque nele viveu toda a sua alegre
infância, nele passou toda a sua adolescência e nele começava a gozar a
mocidade?
Se o túmulo, que lhe
contém o corpo, não o relega, a casa, que lhe guardou o espírito, não o havia
de repudiar, decerto.
Em todos os cantos
brincou, saltou, espalhou risos. O raio de sol que, todas as manhãs, entra pela
janela junto à qual ficava a sua cama, mal o dia aponta, lá vem insinuando-se
no mesmo filão de ouro com que, desde pequenino, lhe enfeitava o sono.
A lâmpada, que o
alumiava, acende-se todas as noites; e tudo continua como dantes.
Ao passar junto do
meu quarto sinto-o, lá dentro, andar, mover-se. Faro, à escuta. Tudo cessa.
Para que insistir?
Para que hei de, com a curiosidade ansiosa do meu desespero, violar o segredo
que já não é da vida?
Se ele ali está e
não me aparece, ele! Tão meu amigo, é porque não deseja ser visto.
Deixemo-lo com o seu
misterioso pudor. É o filho em visita ao lar paterno.
Bem-vindo seja e que
Deus o abençoe.
E se, ouvindo aos
que nos aconselhavam, nos houvéssemos mudado...?! Pobre espírito!
Quem sabe o que
sofreria recorrendo a casa e achando-a habitada por outros, transformada em
tudo - na disposição dos móveis, no arranjo dos aposentos, com outros hábitos,
outras vozes.
E a própria casa não
sentiria com ele? Talvez!
Se vamos
piedosamente visitar-lhe o túmulo no cemitério, porque havíamos de fugir ao
ambiente onde o seu espírito demora? Lá, debaixo da terra, é a morte; aqui, em
todos os ângulos, é a vida: o que ficou, o que existe, o que não parece: ele.
Mudar-nos... Isso
seria abandoná-lo, desertar o ninho da saudade, o canto em que ele viveu. O
mesmo seria arrancarmo-lo do coração desprezando-o no esquecimento. Se a casa o
retém, nós é que o havíamos de repelir? Não!
Onde uma vida se
exala fica sempre vestígio. Os tímidos receiam-no; os fortes, os que
verdadeiramente amam, com as veras da alma, instam por encontrá-lo, como quem
rastreia, em caminho, pegadas de alguém que procura.
Mudar-nos... Não!
Fiquemos onde ele perdura.
Longe, entre outras
paredes, que nunca lhe copiaram o corpo em sombra; com outras portas, que nunca
se lhe abriram; com outros aposentos nunca, em vida, visitados por ele, como o
poderíamos sentir?
Aqui, não. Aqui ele
está conosco: é a sua casa. Que nela viva.
Acordo. Ainda é
noite. O céu esfuma-se na sombra e o perfil umbroso da montanha, fronteira à
minha janela, destaca-se no dilúculo. Respira de leve a aragem.
Aclara aos poucos.
Sente-se a luz em marcha. Já as árvores aparecem e as casas realçam, brancas,
na massa da verdura.
Chia uma cigarra;
outras respondem vividas e um coro de chilreios enche o silêncio pálido. É o
despertar nos ramos.
Debruço-me à janela
e, em êxtase, contemplo o maravilhoso espetáculo do amanhecer.
O céu recama-se de
cores: e uma palheta o oriente e as tintas, que dele escorrem, broslam a
paisagem, colorindo-a.
Chove polilha de
ouro. Abre-se de todo o azul; responde a terra com o seu verde.
O primeiro raio de
sol recena um outeiro e logo as ervas rebrilham. A claridade alastra.
Enche-se o ar de
vôos ágeis. Estrídulo recresce o canto matinal dos pássaros.
Um sino soa,
límpido.
Passam trabalhadores
ainda estremunhados; rodam veículos.
Ressoa soturnamente,
longínqua, uma sereia de fábrica.
São os rumores da
vida que recomeça.
A vida... Tudo
ressurge! Entre as folhas rasteiras andam insetos minúsculos, formigas desfilam
em fieiras.
Tudo acorda e entra
em atividade: os elementos da natureza, o homem, os animais, os mínimos seres,
as coisas, porque as folhas vibram, as flores exalam, o mesmo pó levanta-se. É
a vida!...
O relógio bate
sonoramente: são os passos do tempo, as horas.
O próprio invisível
agita-se, porque é ele, o vento, que meneia, brando e brando, as folhas.
Entretanto, em todo
esse deslumbramento ativo, há escuridão e silêncio, falta alguma coisa que
minha alma procura em vão.
Já o sol rebrilha,
fúlguro. Abrem-se todas as janelas: são as casas que acordam. Foi-se o sono
dentro da noite.
E ele? Por que não
acorda? Por que não vem do sono? Por que não o despertará a luz; ela, que fez o
milagre de vencer a noite no céu, na terra e nos mares; ela, que desencantou a
natureza toda; ela, que fez desabrochar a manhã brilhante; ela, onipotente;
ela, eterna; ela divina, por que não despertará o que adormeceu?
E o sol ressurge; o
sol, que é tudo. E um pouco de terra humana resiste na morte ao reclamo
miraculoso da madrugada.
De que me serve, a
mim, todo o esplendor da tua claridade, ó Luz, se, em vez de trazer-me alegria,
mais me entristece o coração?
Fazes o dia, tiras o
sol do oriente, és a Vida e não tens força para arrancar de um túmulo um pouco
de terra.
De que te serve o
Poder? E, se o tens, porque só o manifestas no céu, ressuscitando o dia, e
deixas a terra cheia de saudades?
És como os pródigos
que se dissipam em festins e negam um mendrugo ao pobre que lhes estende a mão.
Dia dos mortos, teu
dia... Não! O teu dia chama-se “Sempre”, não é um só, de horas contadas,
limitando estreitamente o círculo das lembranças, que são os minutos da
Saudade.
O dia de hoje é como
os demais no tempo; o teu é infindo.
Dentro em pouco o
crepúsculo baixará escuro e tudo desaparecerá na sombra solitária e, mais do
que sobre os túmulos, a treva se adensará na memória efêmera dos que aguardam
um dia para recordar.
Dos círios que
alumiaram mausoléus e carneiros nada, em breve, restará senão lágrimas de cera
e as flores murcharão na terra como as lembranças nos corações volúveis.
Os círios que te
alumiam são os nossos olho cujas lágrimas não se condensam gélidas e são cada
vez mais fluentes. As flores que alfombram o teu túmulo são sempre frescas,
porque, além das que nascem de ti, das raízes do teu coração de bondade, o
nosso amor vela solícito para que te não falte, todas as manhãs, a oferenda da
nossa devoção.
Continuas a viver
conosco, ainda que separado: nós, no sofrimento; tu, no alívio; nós, onde o sol
aclara; tu, onde a noite governa. Há entre nós apenas uma lápide e é tanto,
todavia, como o espaço que separa o céu da terra.
Foi-se o teu vulto,
mas a tua essência ficou; sentimo-la conosco, como tornada a nós, de regresso
ao amor de que saiu.
Teu nome é o
estribilho da nossa melancolia: cai-nos, de vez em quando, dos lábios como caem
das árvores no outono as folhas mortas.
A Vida é a
respiração da Natureza; um ir e vir continuo. O bafejo que exalamos reentra-nos
em fôlego purificado. Assim tu: foste e tornaste ao nosso coração e nele
assistes.
Vivo, saías,
passavas horas longe de nós, mas estavas preso à vida e vinhas por ela à casa
com o teu passo senhoril e espalhavas por ela o som da tua voz, a alegria do teu
sorriso. Dividias-te com os amigos que te disputavam.
Agora és todo nosso,
não sais de nós, és nós mesmos, como é mar a água que regressa ao oceano
lançada pela nuvem que a sorveu.
Teu dia! Como se
pudéssemos destacar um dia entre tantos, só respirar, só ver luz, ouvir vozes,
viver, enfim, um só dia!
Sendo, como sempre
foste, e és, o nosso amor, estás constantemente conosco e continuamos a
chamar-te filho, como se andasses entre os teus irmãos.
Se eu não te
houvesse assistido na agonia, recolhendo, num beijo, a lágrima derradeira que
choraste, não acreditaria na tua morte, tão rápida foi ela...
Onde se viu o céu
anoitecer antes da tarde?
Se a natureza regula
o tempo, não extinguindo a Luz senão quando lhe chega o instante de apagar-se,
por que havia a Morte de abater um jovem no verdor da esperança, quando nele
mais ardia a mocidade?
Custaste tanto a
crescer! Primeiro entre nós, aninhado entre dois corações, vigiado por olhos
vígilos, aquecido a beijos; depois no berço ajoujado ao nosso leito e quando
menino, tiveste a tua cama em quarto próprio. Quanta vez, alta noite, fomos,
medrosamente, pé ante pé, escutar o teu coração, sentir teu hálito como se
adivinhássemos a traição que havia de arrebatar-te!
Na cama de menino
sonhaste os teus primeiros sonhos, meditaste os teus primeiros pensamentos e,
começavas, talvez, a sentir a solidão do Paraíso quando a Morte entrou em ti
alanceando-te o corpo esbelto.
Pobre filho! O que a
tortura fez de ti! Como tu te refugiaste na infância imaginando, assim, com tal
meiguice, esconder-te da pérfida!
Ressuscitaram na tua
boca ressequida os diminutivos carinhosos com que nos chamavas, à noite, quando
temias a escuridão.
Ouvindo-te
parecia-me que eras o pequenino que acalentávamos nos braços. Saudoso tempo!
Vinte e quatro anos
viveste dentro da nossa vida. Eras como uma torre que construíramos pouco a
pouco, dando-lhe eu, de mim, energia e coragem; e ela brandura e fé, e,
justamente quando contávamos contigo para nosso amparo, quando nos fiávamos em
ti para nossa defesa e sorríamos, um ao outro, contentes em nossa velhice, por
possuirmos a tua mocidade, veio a Morte... e deixou-nos sós. Por que?
Se a alma é eterna
como se explica que nos morresses, tu que eras a nossa alma?
Como nos iludíamos
com a Vida acreditando que a tivesses em nós quando toda ela estava contigo!
Que é da nossa
alegria? Não era nossa? Não a tínhamos em sorrisos? Onde estão eles, tais
sorrisos?
Ai! de nós! eram
reflexos de ti e tanto é isto verdade que, desde o teu desaparecimento, nunca
mais se nos descolaram os lábios nem em nossos olhos brilhou mais o lume da
felicidade.
A nossa ventura eras
tu e jazes num sepulcro.
Vinte e quatro anos
de amor esvaídos num suspiro!
E vale a pena
construir com tão carinhoso desvelo um ser, depositando nele toda a nossa
riqueza para que, a súbitas, a uma rajada do Destino, tudo alua deixando-nos à
mercê do tempo e míseros?
Como nos guiaremos
doravante na escuridão silente?
Vives, mas vives
como um sonho que se desvanece com a manhã. Sentimos-te, mas se te procuramos
não estás; és apenas lembrança, rastro na alma, dor na saudade, espinho no
coração.
A rosa de Jericó
reabre-se se a mergulham na água. Se acontecesse o mesmo com os mortos (tantas
têm sido as nossas lágrimas!) já terias ressurgido do túmulo como se emergisses
à tona de um oceano. Mas de que servem lágrimas?! Paraste na mocidade. Os teus
irmãos menores prosseguirão na vida e tu, que os precedias, quedarás na hora em
que caíste, vendo-os passar, transpor a idade em que foste ferido, entrar pelos
anos além, envelhecendo, e eles falarão de ti, o irmão mais velho, morto com
pouco mais de vinte e quatro anos.
E assim ficarás
sempre jovem na saudade dos teus, que te perderam.
Os que buscam
consolar-nos tentam convencer-nos de que Deus te chamou tão cedo porque eras
bom. E nós!? Por que nos havia Ele de ferir arrancando-te dos nossos corações?
O teu dia, meu
filho, há de durar, sem noite, enquanto vivermos para a tua saudade.
O teu dia não terá
horas, será toda a nossa existência.
Como a lâmpada
perene das capelas, símbolo da Fé pervígila, o teu retrato, ante meus olhos,
alumia-me a memória e, como fica o sacrário entre luz e penumbra, assim jaz o
meu coração na saudade.
A imagem do teu
corpo airoso, que se desfaz na terra podia desvanecer-se-me na lembrança, posto
que eu nela o sinta vivo como outrora. Todavia, como tudo que é efêmero perece,
para que o teu semblante e o teu todo me não fujam, como foge a sombra com o
corpo que a reflete, tenho a lâmpada que nos aclara e, assim, com a alma que
ficou comigo, por ser minha, e o retrato que me acompanha, conservo-te tal qual
foste.
Teu túmulo floresce,
as flores, porém, ainda que delas cuide, com esmero, o jardineiro, murcham em
breve. O teu retrato, esse perdura; é a flor imarcessível que ficou da tua
mocidade.
Pena é que lhe falte
o que na flor é perfume e em nós é alma.
Olhamo-nos a fito.
Eu vejo-te; e tu? A sombra não vê, não ouve, não sente, é um enigma que nos
segue porque, sendo filha da luz, e escura; sendo a projeção de um corpo, é
nada.
Vivo em contemplação
diante do teu retrato e, de tanto fitá-lo, já se me gravou nos olhos e, quer eu
os tenha abertos, quer fechados, vejo-te sempre.
Cego que ficasse
ver-te-ia do mesmo modo, como vejo a luz. És como um sentido novo em mim.
E como não há de ser
assim, meu filho, se continuas a viver comigo e, agora, mais do que nunca, és a
razão de ser da minha vida!
Pobre de mim! Como
me iludo! Retratos. Que valem rastros de caminhantes numa estrada sem fim!
Retratos...
Miragens... Quando de vivos chamam-se lembranças, sendo como o teu não passam
de saudades.
Antes chorasses tu!
Águas primaveris seca-as depressa o sol.
A tua mocidade
radiosa reagiria contra a tristeza e, ainda que, por vezes, turvasse o teu
coração a nuvem de saudade a sombra seria de eclipse, e não de noite eterna.
A alegria, própria
da juventude, é lume que se não apaga.
Abafem-no, embora!
quanto maior for o acúmulo de folhagem e troncos mais viva irromperá a chama
vitoriosa.
Nos carvões que
vasquejam uma gota de orvalho é quanto basta para matar na cinza a brasa
trêmula.
O sol na primavera é
vida; no inverno é morte.
O que, em ti, faria
nascer o esquecimento, em mim mais aviva a lembrança.
O sol, em campo
verde, fá-lo rebentar em flores; nos píncaros alpestres, fundindo a neve em
torrentes, põe a descoberto abismos, desnuda alcantis, escorcha escarpas, todas
as agruras e arestas da montanha merencória.
Quando se é moço o
tempo é medicina para as chagas do coração; na velhice...
Que valem ruínas! Só
resistem se as sustêm enliços de verdura, presilhas de hera que se emaranhe
pelas frinchas; soltas, logo se esboroam.
Antes chorasses tu!
Um coração de moço,
ainda na maior tristeza, se a alegria o ronda, ilumina-se e aquece-se.
Em meu coração, se a
alegria passa-lhe por perto, a saudade, que está sempre alerta, levanta-se como
cão de guarda quando pressente alguém se aproximar.
O que seriam risos
em teus lábios correm-me em lágrimas dos olhos.
Antes chorasses tu!
Mal conhecias a vida
e, com ânsia de novidades, depressa esquecerias o túmulo do morto.
Eu...
Que posso ver mais
na vida se as lágrimas me empanam os olhos e o mundo me aparece, através do
pranto, como a paisagem, em dia de chuva, nimbada pelas cordas de água.
Antes chorasses tu!
Será crível que
ainda resistas ou dar-se-á que haja fantasmas de ilusões?
Serás tu mesmo que
ficaste à flor do túmulo, flutuando na morte, e que assim me apareces como
sombra do que já não existe?
Serás tu mesma,
Esperança, que vens a mim do fundo da noite perpétua?
Contam-se estrelas
no céu, mortas há milênios, cuja luz, entretanto, ainda nos deslumbra e guia.
Serás tu como tais
astros?
Se és, em verdade, a
Esperança, por que me martirizas, tu, que sempre nos socorres como incentivo;
tu, que nos manténs as forças para que prossigamos e, na tarde da desdita,
promete-nos a manhã da felicidade?
Se és tu, benéfica,
porque te fazes cruel acordando-me a alma no coração com o timbre da sua voz,
com o rumor dos seus passos como se o trouxesses do além em visita à minha
saudade?
A tais ruídos
ilusórios, que se levantam no silêncio, encolho-me em mim mesmo, atento, e
ouço-te que me dizes em segredo: “Ei-lo aí”.
Volto-me comovido,
certo de que o vou encontrar, e só, então, me convenço de que fui vítima do teu
sortilégio, quem quer que sejas, tu, que me trazes em tormentos de enganos.
Porque zombas de
mim?
Não! Não podes ser
tu, Esperança. Tu morreste com ele, foste com ele enterrada, desapareceste para
todo o sempre com a sua mocidade.
E como me rondas
anunciando-me a sua presença, como se fosse possível realizar o milagre dos milagres
de arrancar do poder da morte a presa que ela arrebatou?
Não! Não podes ser
tu, deve ser o teu espectro que me obsidia, porque tu, Esperança, ainda que
sejas mentirosa, as tuas mentiras têm sempre um fundo de verdade - são como as
teias de aranha que, parecendo soltas no ar, prendem-se por fios tênues a ramos
ou folhas de árvores, ou como as miragens que espelham visualidades no
horizonte, mentiras que, entretanto, são projeções do real.
Mas como podes tu
reproduzir a morte, tirar vida da sepultura, ressuscitar o que jaz na terra?
Não! Não és a
Esperança, deves ser alguma advérsia.
Vou caminhando
descuidado. De repente ouço-te a voz tão perto como se saísse de mim próprio.
Escuto e dizes-me que ele ainda vive, que o vou encontrar adiante, em ponto que
costumava freqüentar.
Aguardo-o, busco-o
na multidão, procuro-o em certos grupos e avisto-o. É ele! É o seu corpo
senhoril, é o seu andar garboso. Reconheço-lhe o trajo.
Adianto-me com o
coração contente e os olhos rasos de água e a ilusão, de súbito, desfaz-se.
Só, então percebo o
logro, lembrando-me da impossibilidade do seu retorno, porque ao destino para
onde ele partiu vai-se por uma ponte estreita, que só dá passagem a um por um,
e a fila não se interrompe como o curso dos rios.
E como poderá ele
regressar se, até hoje, desde que começou na vida a marcha para o abismo,
nenhum outro conseguiu ainda remontar a correnteza perene?
Se sei que mentes
por que hei de dar ouvidos ao que me dizes? Se estou certo de que é falso tudo
quanto me segredas, como me deixo enganar, ainda contando com o que me
prometes?
Por que hás de
insistir na tortura? Por que assopras o cineral se não há nele centelha que
reanime o lume?
Que nos enganes com
a vida, compreende-se a vida existe; mas que nos tentes iludir com a morte, é
crueldade.
Que posso eu esperar
de onde tudo é nada?
E, todavia, espero.
Não me conformo com a idéia de que ele não tornará mais, nunca mais! ao meu
afeto.
Espero em vão, bem
sei! mas bendigo-te, Esperança, bendigo-te porque manténs a ilusão em minha
alma.
Se a Saudade não
tivesse, para nutrir-se, o alimento que lhe atiras, devorava-nos o coração.
Bendita sejas, pois,
Esperança, doce e triste alívio de desventurados.
Como tal ou qual a
quem se houvesse rebentado um colar de preço e se pusesse a procurar as pérolas
uma a uma por frinchas e taliscas, assim vivemos nos reunindo recordações a ver
se recompomos no fio da memória, todos os episódios da sua existência efêmera,
desde a hora feliz do seu nascimento, a pérola menor, até a cruz do doloroso instante.
Cada vez que, a um
de nós, ocorre um fato ajuntamo-lo às lembranças.
Uma pérola, porém a
maior, rolou no abismo e não há como reavê-la. As outras mesmas, que
recolhemos, quando as tentamos engranzar logo se dissolvem em lágrimas.
Toda a riqueza que
se perdeu, por mais que a busquemos ajuntar, foge-nos em bagas de pranto,
pérolas que nos caíram no coração, com as quais, se não refazemos o colar de
outrora, formamos o rosário em que rezamos por ele a oração da saudade.
Viver! Eu sei que a alma chora
E a vida é só dor ingrata.
Pranto, que a não alivia,
Olhos, que o estão a verter...
Sofra o coração, em hora!
Sofra! Mas viva! Mas bata
Cheio, ao menos, da alegria
De viver, de viver!
Raimundo
Correia
Rugem os ventos,
estalam raios, o navio, desarvorado, guina, embica, empina-se, trambolha;
entra-lhe o mar a golfos pelas bordas, afreima-se a maruja e, na profundeza, a
máquina trabalha.
Não cessa e, quanto
mais se enfuria a tormenta, mais se esforçam, os que asseguram o movimento, em
manter a fornalha acesa, a caldeira em força, as juntas bem lubrificadas para
que nada impeça a propulsão.
Em cima, é a grita
espavorida; são preces, ordens, correrias; um que acode ao leme; outro que
marinha lesto enxárcia acima. Este, calafeta abertas; aquele, entaipa
escotilhas.
E já se desligam os
cabos que suspendem aos turcos os barcos de salvamento, cuida-se a palamenta,
trazem-se salva-vidas e tudo e apresta
para a possibilidade iminente do naufrágio.
E a máquina retroa
no bojo do navio.
Aos embates da
madria toda a construção abala-se. A hélice, umas vezes aprofunda-se, outras
vezes, no levantar da popa, gira rápida no vácuo e toda a nave estremece, range
convulsamente sacudida.
Remergulha. Faz-se
tão rasa com o oceano crespo que parece ir em soçobro. Surge a ímpeto, arfando;
eleva-se mostrando a quilha, torna de chapa ao abismo, bate estrondosamente e,
com o choque, demora um instante a pique no côncavo das vagas. Um vagalhão
sustem-na, põe-na a flux.
Ei-la a escorrer dos
flancos cachoeira mar espumarento, ginga
às tontas, cambaleia ringindo e o terror cresce entre os homens e os escarcéus
cada vez mais se enfurecem, tudo é desespero. E a máquina trabalha.
Assim também procede
o coração na angústia.
Sofra o coração, embora!
Sofra! Mas viva ! Mas bata
Cheio, ao menos, da alegria
De viver, de viver!
A alegria de viver!
Isso não torna ao coração. As máquinas de aço e bronze, se conseguem vencer os
temporais, quando os navios chegam ao porto são examinadas peça por peça e, nem
por serem de metais fortíssimos, deixam de trazer mossa.
Entram, porém, os
artífices com o trabalho e, onde encontram falhas, reparam; onde descobrem
eiva, corrigem; se um êmbolo ou mancal sofreu dano, logo o substituem e a
máquina, refeita, torna ao seu oficio, íntegra como dantes e nela nem sal das
ondas se conserva porque tudo é limpado, lixado e ajustado.
O coração, esse...
quando chega ao porto de bonança, serenando, é que mais sofre.
Amaina-se o
temporal, limpam-se os ares, abre-se o céu em luz, abranda-se em brisa o
vendaval, tudo torna à calma do bom tempo, o coração quebrado, esse... quem o
conserta?
Que artífice é capaz
de substituir nele as peças que a tormenta inutilizou?
Move-se, vive e
bate... mas como vive. Ai! dele... Bate. De que lhe serve bater?
Ao sair do estaleiro
o navio corre ao mar e a hélice contra as águas e revolve-as e, cada volta em
que gira, leva-a para diante.
O coração, inclinado
sobre o abismo, bate em vão, porque toda a sua força perde-se no vácuo, como a
da hélice, quando o navio mergulha no côncavo das vagas.
O navio prossegue,
singra mar em fora, vai a novos rumos, a novas praias. O coração, de que lhe
serve bater se não sai do vazio da saudade?
Mas é preciso
viver... Pois seja! Que o coração faça o seu ofício:
Sofra! Mas viva! Mas bata
Cheio, ao menos, da alegria
De viver, de viver!
Leva a tempestade o
ninho e a ave, órfã e desabrigada, esvoaça tonta e aflita. Vai de árvore a
árvore, salta de ramo em ramo ansiosa; eleva-se no ar, libra-se em pairo, torna
ao chão, olha, pesquisa e, do que foi, nem a mais tênue achega encontra.
Dolorida, ainda que
tudo se lhe balde, revoa em volta da árvore em que teve o pouso e a prole, até
que, de todo desanimada, abala, fugindo ao sítio da desventura.
Longe, porém, em
verdes silvas, cantando aqui, ali palhiço e folhas, tece outro ninho,
reinstala-se em tépido aconchego e dorme até que rompe a madrugada, e ei-la
desperta, pronta para voar de novo, cantar ao sol, feliz.
Teu nome!
Anda de boca em boca
como, de ramo em ramo, voa e revoa a ave desditosa. Ouço, a todo o instante, o
doce nome ao qual dantes respondias. Mas o ninho em que ele vivia foi-se levado
pela tempestade, caiu da árvore do amor, desfez-se em pó no chão.
Debalde soas, pobre
nome! Não és mais que som. Andas nas falas, voas nos suspiros, sinto-te nas
lágrimas.
Isso, porém, que
monta se não assentas, porque o corpo, que era o teu pousadouro, desapareceu
para sempre.
O desespero da ave
cessa desde que ela refaz o ninho em outro sítio. Teu nome, esse... ai! de nós!
nunca mais se firmará na vida, andará de boca em boca, de lembrança em
lembrança em nossa saudade, como a ave, de ramo em ramo, nas árvores da
floresta, mas sem poder fazer de novo o ninho, reinstalar-se e adormecer, para
sair com a luz da manhã, reentrar na vida alegremente, ao sol.
Pobre nome! E é tudo
que resta do que se foi na tormenta.
Já entrando no
gabinete, detive-me, porém, à porta, comovido com aquele culto suave vendo-a escolher no ramo que, todas as
manhã, lhe é levado pelo florista, as mais belas rosas, de preferência os
botões com que ornamenta o retrato do filho amado, posto entre o grande
tinteiro de bronze e a caixa dos cigarros.
Deixei-me estar
quieto como se assistisse a uma cerimônia religiosa. E outra coisa não era
aquele ofício de saudade, diante da mesa que fora o altar em que ele estivera
exposto toda uma noite, entre as colunas flamejantes dos ciriais, com um
crucifixo sobre o peito, e cercado de flores.
Com que enlevo ela
colocava uma a uma no vaso, as rosas escolhidas!
Inclinava a cabeça
para contemplá-las, a ver se estavam bem. Endireitava uma, chegava outra mais
ao centro, punha os botões às bordas para que desabrochassem livremente, sem
empeço.
Por fim, tomou o
retrato delicadamente, a mãos ambas, chegou-o aos lábios e reteve-o, muito
tempo num beijo. Depô-lo no lugar próprio e pôs-se a falar baixinho.
De repente, em
ímpeto de desespero, ajoelhando-se, com os braços estendidos sobre a mesa, de
mãos postas, suplicava... O que? E, por entre lágrimas, agitada por soluços, a
voz saía-lhe humilde, entrecortada e aflita.
Que diria a pobre
mãe naquela ascese dolorosa?
Adiantei-me pé ante
pé. O alto tapete abafava-me o rumor dos passos e assim, sem ser sentido, pude
chegar até junto dela, e ouvi-la.
Rezava. A Deus? Não,
ao espírito do filho. Rezava diante da imagem da sua grande, infinita saudade,
pedindo-lhe o milagre da sua presença, um aceno, que fosse, do Além, para
consolo da sua alma vazia.
Senti com ela, e,
docemente, para não assustá-la, chamei-a.
Apesar da meiguice
com que a tirei do arroubo, sobressaltou-se, estremecendo assustada. Ajudei-a a levantar-se, passei-lhe um braço pela cinta
e, beijando-a na fronte, disse-lhe compadecido:
- Falavas-lhe? - Ela
fitou-me com os olhos rasos de água. - Também eu converso com ele, disse-lhe -
não como tu, dirigindo-me ao seu retrato - converso com ele dentro de mim: são
as nossas almas que se falam. Tu queres o absurdo.
- Como absurdo?
- Sim. Queres que
uma sombra te ouça; que o nada te responda. É absurdo. O retrato é um simples
cartão de visita, lembra-nos a sua passagem, só isto; ele, ele mesmo, paira em
volta de nós como a luz, envolve-nos como o ambiente, penetra-nos como o ar que
respiramos.
Eu sinto-o. Juro-te
que o sinto e o que talvez te pareça indiferença, é tranqüilidade que tenho
pela certeza em que estou firmado de que o não perdi de mim.
- Também eu o sinto
- suspirou ela; - mas quisera vê-lo, ainda que fosse por um segundo. Que ele me
aparecesse em um relâmpago e eu não sofreria mais. Por que não havemos nós de
ver os nossos mortos? Quando conseguiremos passar da sombra para a claridade do
Além! Deus devia ser bom para as mães...
- Deus é bom.
- Bom...! - disse
meneando tristemente com a cabeça. - Bom... Bom e nega-nos o pequenino consolo
que lhe pedimos com tantas lágrimas. Não mo quer mostrar durante a vigília,
mostre-mo durante o sono, num sonho.
Quando dormimos
desprendemo-nos do corpo, a alma faz como um pássaro que se ala do ramo onde
tem o ninho. Pois bem, no sono, por que não mo deixa ver enquanto durmo? Seria
um sonho, um sonho feliz. Nem isso. Por que?
- Por que? Ai! de
nós, aí! da vida se conseguíssemos desvendar o segredo da Morte. O azul é o
azul da alma. Quando viajamos que fazemos nós no largo oceano - atravessamos a
cortina diáfana, vencendo-a, deixando-a atrás? Não, porque ela sempre se nos
opõe, ao longe. E por que a temos diante dos olhos sustamos a marcha? Não:
prosseguimos com a certeza de topar em porto onde tomemos pé.
Ninguém se deixa
ficar no oceano, à matroca - procura um rumo, norteia-se, toma um destino,
rompe o azul. É preciso ter coragem e bússola para andar nos mares; é preciso
ter crença e fé para levar a alma além da dúvida. Desesperos são temporais e é
justamente nos temporais que se conhecem os mareantes.
Se, no furor da
tormenta, com os ventos desencadeados e o mar grosso, a tripulação descorçoa e
abandona o governo do navio, não serão, decerto, as vagas que o hão de salvar
do soçobro. É preciso ter fé, e tu duvidas.
- Eu quisera ver,
ter uma prova, por menor que fosse.
- Não as tens porque
as buscas materialmente. No escuro não poderás achar o perdido; procura com luz
e a Luz, para pesquisas tais, e a fé. Espera, continua a esperar, espera sempre
e um dia, talvez, quem sabe...!
Como pensas?
Concentrando-te, isto é: encerrando-te em ti mesma. É em nos mesmos que
encontramos os nossos mortos. Eles vêm a nos, como a luz; nós não podemos ir a
eles.
Achas que Deus não é
bom porque cerra, em impenetrável sigilo, o segredo da Morte. Engano teu. Que
seria a vida, senão horrenda tortura, se tal mistério não existisse? Fosse o
Além o Nada, o inferno ou o Paraíso... Se fosse o Nada, todos viveriam a
lamentar o perecimento, a destruição definitiva; se fosse o inferno, que dor
saberem todos que os aguardava o tormento; se fosse o Paraíso, não haveria
felicidade na terra porque, comparando a via contingente e sofredora com a
delicia da existência paradisíaca, tudo fariam para desertar este mundo
precário, com ânsia do outro, de eternidade feliz. E os berços, que se aureolam
de sorrisos, cercar-se-iam de lamentações, porque viver seria tanto como penar.
Achas que Deus não é
bom, porque não consente que o vejas. O nosso egoísmo é que nos agrava o
sofrimento. Tu, em verdade, não choras o filho que deixou de viver, que está
livre de todos os males que nos torturam: choras o filho que perdeste, o bem
que te foi levado, o amor que te falta. Choras sobre ti mesma e julgas chorar
sobre o seu túmulo.
- E isto basta-te?
consola-te?
- Sim, basta-me,
consola-me como me basta, para consolação de tudo quanto tenho sofrido, a
certeza, em que estou, de que Deus existe. E se tu invocas o espírito do morto
é porque estás certas de que ele não desapareceu com a morte, não se desfez
como o corpo e agora, mais do que quando convivia conosco, triunfal, puro e
eterno, tão puro como o teu amor, em que ele se encarnou, e eterno, tão puro
como a Essência a que regressou.
- E achas que faço
mal em trazê-lo assim enfeitado de flores?
- Mal? Por que mal?
É um culto e todos os cultos, quando neles há sentimento, como nesse em que
pões toda a alma, são belos e dignos de respeito.
Falo-te assim para
que não chores tanto. Flores são carinhos; lágrimas são tormentos e, se ainda o
chamas de filho e o queres venturoso, porque o hás de perturbar,
entristecendo-o com tantas lágrimas?
Flores, sim quantas queiras. O que a morte podia levar,
levou. O que nos resta ficará conosco eternamente, a saudade, e chorá-lo é
devolver ao coração as lágrimas que dele tiramos.
Que resulta da nossa
aliança com a luz? Sombra, nada mais.
Alegria é luz e
assim como na maior claridade as sombras tornam-se mais negras, mais a tristeza
se agrava se dela, em volta, a alegria exulta,
O silêncio é alivio:
calma. Na quietude em que me refugio chego a não acreditar na tua morte porque
te sinto em mim, comigo, como se vivo foras.
À noite as sombras não
aparecem; todas se recolhem aos corpos que as expuseram. De dia, porém,
destacam-se, prolongam-se com a terra.
No apogeu meridiano,
não suportando a claridade fúlgida, acolhem-se ao de que saíram, como se
concentra na dor um coração ferido se, em torno dele, há expansões de vivida
alegria.
Felizmente, porém, o
sol pouco se demora no zênite e logo que declina projetam-se, de novo, as
sombras, até que todas se fundem em uma única, que é a noite.
Isolo-me, não porque
aborreça a vida e inveje a felicidade alheia, mas para forrar-me no alvoroço da
alegria.
Que o coração
adormeça tranqüilamente, no silêncio, e sonhe, como quem dorme.
Sonhando, anda que
em vigília, - porque recordar é sonhar de olhos abertos - vê o que foi,
reconstitui, um a um, os dias venturosos até aquele que ficou eterno na
memória, como jazem imóveis sobre as horas que não soam mais os ponteiros de um
relógio cuja máquina parou.
Seis meses já haviam
passado e, todavia, ninguém ousava abrir o piano. Mais do que escrúpulo havia
medo.
Como que se temia o
instrumento: negro, alongado a um canto da sala, em forma de altar, tendo
sempre em cima um vaso de flores.
Rondávamo-lo sem
ânimo de o tocar. De quando em quando uma das meninas folheava um álbum, de
preferência o colecionado por ele, com as peças de sua predileção. Marejavam-se
os olhos e, em silêncio, tornavam os volumes aos seus lugares, na estante.
E o piano permanecia
mudo.
Um dia, porém, com
receio de que as cordas se estragassem, abrimo-lo e a enervação metálica do
instrumento rebrilhou ao sol.
Levantada a tampa do
teclado, como um lábio que se arregaçasse em riso irônico, o fio das teclas
apareceu ebúrneo.
Acercamo-nos todos
do piano, olhando-o como se o víssemos pela primeira vez e dele esperássemos
pressagamente revelação de segredo sombrio. Um momento ali ficamos, tácitos e
quedos.
A mãe foi a primeira
a afastar-se; as meninas seguiram-na às surdas, como se temessem, com o rumor
dos passos, despertar o mistério. Bem sabiam elas que o instrumento havia de as
fazer sofrer e a mim, e a todos, à própria casa que ele, dantes, alegrava com
as suas melodias.
Seria pelo som? Se
por tal fosse por que não nos comoveriam as vozes de tantos outros pianos que
soam na vizinhança e só a daquele nos havia de entristecer?
É que as outras são vozes
alheias, de outros lares. Nunca soaram para ele, nunca ele as despertara
fazendo-as traduzir o que trazia na memória.
Ali passava ele
horas e horas recordando trechos ou, entre nós, recolhido em êxtase, ouvia a
mãe repassar as melodias que tanto amava.
E como as sentia!
Com que enlevo, verdadeiramente religioso, ficava a ouvi-las, quieto, imóvel,
sonhando. Enfim...
Um dia - era
necessário que a casa retomasse o rumo na serenidade, reentrando na vida
costumeira - abriram o piano e as cordas, que dormiam, despertaram.
Um frêmito percorreu
todas a casa, a própria luz tornou-se tíbia e pálida, como acontece com a das
lâmpadas de vigília quando entra na alcova o sol, e todos os olhos velaram-se
de lágrimas.
Foi como se ele
houvesse tornado: sentimo-lo presente.
E o instrumento
gemia, soluçava. A própria musica, tão alegre outrora, vinha em pranto.
Seria o instrumento
que a modificava ou os nossos corações? Eles, decerto.
O mesmo seria
trasfegarmos de fonte a vasos que contivessem ou houvessem contido essência a
água pura que logo se infundiria em aroma.
A música,
impregnando-se de saudade, recordava e, com tal transporte, já não ouvíamos o
instrumento, senão a ele, a voz dele e víamo-lo, sentíamo-lo, tínhamo-lo
conosco e, a cada nota que vibrava, o coração respondia com uma lágrima,
mandada aos olhos.
Ó arte misteriosa,
arte etérea e evocadora! De que força superior dispões para que ressuscites
mortos e exsurjas do túmulo, redivivos, os que se foram; as vozes, que se
calaram; o corpo, porque o sentimos; o espírito, porque o percebemos no
encantamento sonoro! Será a música sortilega como os conjuros dos nigromantes,
que têm poder de trazer da Morte as
presas sepulcrais?
O certo é que a
música realizou o milagre que os nossos corações deprecavam.
Ele veio por ela,
acudiu à invocação dos sons, desceu do Além e pairou sobre nós.
E toda a casa ficou,
um momento, em alvoroço como a granja da parábola, de onde desertara o filho
pródigo, quando os seareiros, avistando-o na estrada, largaram o serviço e
correram alvissareiramente a dar a boa nova aos pais e aos irmãos do que
tornava.
E quando a mais
triste das mães se assentou ao piano, abriu o álbum que ele lhe dera e começou
a executar débil, tremulamente e chorando, foi ele quem mais atentamente a
ouviu, porque todos nós o sentimos, não aqui, ali, mas em nós mesmos, como
todos vêem e sentem a luz ou o perfume em uma sala, se nela há sol ou flores
vivas.
Ó arte miraculosa! E
nós que temíamos ouvir-te! Nós que tanto tempo evitamos o altar da
ressurreição, de onde ele saiu nos sons, como se evola o aroma nas espiras de
fumo dos incensórios, vindo a nós, envolvendo-nos, visitando-nos com a sua
presença imaterial, enchendo com ela o grande vazio da nossa saudade, imenso,
sem termo como o infinito.
Já agora que
importam as lágrimas! sabemos como atraí-lo. Ele adorava a música, buscava-a
onde ela soasse. Por que não o havemos de chamar aos nossos corações com a voz
harmoniosa?
E o piano, outrora
temido, é hoje o nosso companheiro e confidente.
Abrimo-lo, e, em
contraste com o sepulcro, que não nos restitui o que, avaramente, guarda, ele,
com a vibração das suas cordas, traz-nos o espírito adorado, atrai-o do Além e
fá-lo vir até nós, conviver conosco, senão em corpo carnal, na essência que
dele se acha integrada em Deus, da qual conservamos a lembrança na memória do
coração, que é a saudade.
Dantes não havia
homem mais rico do que eu, e o meu tesouro chamava-se – memória.
O que eu tinha ali
acumulado o com que ordem! Desde a infância a ajuntar por dia...
E tanto era eu
desejar como ser logo atendido.
No dia último dos
dez do meu martírio quando me convenci que morrias, não sei que se passou em
mim.
Foi como se
reduzissem a cinzas todo o meu tesouro.
Falando ou
escrevendo esquecem-me as expressões, faltam-me os termos. Só tu ficaste, tu só, tudo mais se esvaiu.
Assenhoreaste-te da
casa das relíquias e nela imperas, solitário e dono.
E, agora, se recorro
à memória por um nome, é o teu que, de pronto, me responde; se procuro recompor
uma imagem, é a tua que se me afigura;
se atento a um som remoto, ouço-te voz; se insisto em recordar uma cena, vejo
te, e como? Infante, menino, adolescente ou jovem, como te perdi? Brincando,
estudando, na arena, no trabalho, à mesa, na alegria da família, forte, feliz
em suma? Não! Vejo-te sempre na hora
extrema, estendido no leito arfando encarado em mim, com o crucifixo ao peito,
entre as mãos gélidas, diluindo o derradeiro olhar em lágrimas.
Que alivio seria
para mim perder o que me resta da memória!...
Mas não! Perder esse
pouco, que é tudo. seria esquecer-te, nunca mais sentir-te, proceder com a tua
lembrança como faz o túmulo com o teu corpo.
Não! Pereça tudo!
Esqueça eu tudo, contanto que fiques no fundo da memória, tu, como fica a
esperança no coração do mais desventurado.
Fica-me em caminho a
casa em que nascente. Vejo-a diariamente e, olhando-a, lembro-me da manhã de
alvoroço quando dissipaste o silêncio daquele lar com a alegra do teu primeiro
choro.
Como me ecoou no
coração a tua voz deserta: sons apenas, vazios; espaços em que deviam, com o
tempo, desabrochar palavras, flores que não se trazem do céu, por serem
efêmeras, próprias da terra.
Lembro-me de ti ao
colo de tua mãe, tão pequenino e tão chegado ao seio como se fosses o seu
próprio coração.
No breve instante
que dura a minha passagem por esse oriente toda a tua vida passa-me pela alma,
atravessa-a de golpe, cinde-a com a velocidade da luz.
Quantos sonhos ali
entretecemos com idéias felizes, desenrolando infindavelmente o novelo de ouro
das nossas esperanças!
Sete irmãozinhos
teus já nos haviam deixado sós. Sete vezes, chorando, foram levar os
enjeitadinhos da vida à roda lúgubre dos que, expostos na terra, são recolhidos
no céu.
Sete vezes havíamos
perdido os bens que Deus nos dera.
Temendo que te
acontecesse o mesmo redobrávamos, à noite, a vigilância para que a Morte, ladra
dos nossos amores, não nos entrasse pelo sono furtando-te também.
Se te aquietavas
serenamente desconfiávamos da tranqüilidade; se te agitavas temíamos que fosse
de febre. E tanto desvelávamos em volta do teu berço que despertavas assustado
aos gritos.
Que alegria quando
te ouvíamos chorar!
E tua mãe, sorrindo,
dava-te logo o seio e, inclinada sobre ti, mais do que o leite, o que te
oferecia era a própria alma. Tais eram as cenas de amor, iluminuras da minha
felicidade.
Aconselharam-me a
mudar-me para casa mas desafogada, que tivesse jardim onde respirasses ar
livre, pudesses gozar o sol, passar as manhãs entre árvores.
Achei perto o que
desejava. Casa ampla, terreno vasto, arvoredo e flores. Ali sim! Acordavas com
o canto dos passarinhos.
Eras pequenino, de
colo, quando me apartei de ti. Durante sete dilatados meses, errando por
brenhas, correndo o mar e rios, parando em vilas sertanejas e em cidades,
acompanhei o dealbar da tua vida pelas cartas de tua mãe.
Em uma anunciou-me
ela os teus primeiros passos; em outra o teu primeiro dente; em outra a tua
primeira palavra. E eu via-te no meu pensamento, sentia-te dentro de mim.
Quando regressei
contavas um ano e três meses.
Ao entrar em casa,
vendo-te formoso, com os cabelos em cachos, os dentinhos alvos à flor do
sorriso, como se acabasse de mamar e trouxesse ainda a boca cheia de leite,
olhando-me espantadamente, com a inocência a brilhar dentro dos olhos, fui-me
direito a ti de braços estendidos.
Refugiste arisco
para junto de tua mãe, com um beicinho de choro, que me fez sorrir.
Não me conhecias.
Era natural. Pouco a pouco porém, fui conquistando a tua confiança e já na
tarde desse venturoso dia éramos amigos íntimos.
E tu, tomando-lhe
pela mão, levaste-me a percorrer o teu pequenino paraíso, a chácara em que te
criaste, entre árvores, uma das quais a ameixieira, foi a tua ama mais
solícita, dando-te os frutos dos seus galhos e agasalhando-te à sua sombra,
onde brincavas, e, quanta vez! dormias.
Desde então até o
dia triste se nos separamos foi por ausências breves.
Cuidava eu, na minha
confiança, que assim seria sempre até que me soasse a hora de sair na viagem
infinita.
S foste tu que
partiste!
Eu deixei-te
pequenino, quando não sentias ainda a minha falta: deixei-te, mas regressei. Tu
me deixaste cheio das tuas raízes, já me havias tomado todo o coração... e não
voltas, não voltarás nunca mais!
Passo diariamente
perto da casa em que nasceste,
olhando-a, porém, logo me lembro do túmulo em que jazes. Tu, não: teu
corpo criado por nós, a nossa parte humana, que a divina foi por Deus reavida e
lá está com Ele, longe de nós, longe da terra, tão longe!
Longe, todavia está
o sol e aclara-nos; longe estão os demais astros, e vemo-los. Só tu não nos dás
sinal de ti a não ser pela saudade em
que te transformaste e que não nos
deixa, tão viva em nós que eu, às vezes, tenho medo de que te estejamos a
prender conosco, privando-te do Paraíso, encarcerado, como te trazemos, em
nossos corações.
Mas se deles saíres
que nos ficará neste mundo, perdida a única consolação que nos resta, que é a
tua, lembrança?
Vive, vive em nós,
no mais íntimo da nossa alma: vive na saudade como antes vivias, em esperança,
no mais profundo do nosso amor.
A súbitas, sem causa,
constringe-se-me o coração. Enche-se-me o peito de ânsia. Trava-se-me a
respiração em angústia asfixiante.
Abre-se-me um hiato na existência como se fendem abismos
na terra quando a convulsionam cataclismos.
Deve ser assim o
morrer, o instante em que a alma, soltos os liames que a retém ao corpo, emerge
em surto demandando o espaço para ascender ao céu, liberta.
O que se passa em
mim em tais momentos lembra-se essas bolhas de ar que afluem na profundeza dos
lagos e, mal chegam à tona, dissolvem-se integrando-se na atmosfera.
Sinto que alguma
coisa se desprende do meu ser, como se desprende uma pétala da flor.
Arrasam-se-me os
olhos de água e o coração, em sobressalto, precipita as pancadas.
És tu que passas por
mim. És tu que me fazes vibrar de comoção.
És tu que me atravessas instantaneamente a memória como um pássaro, em vôo
de frecha, corta, alígero, o espaço.
Pássaros...!
E que são as saudades senão aves de arribação? Ao invés, porém das andorinhas,
que, a maneira dos heliantos, andam sempre procurando o sol e, as
primeiras brumas, reunidas em caravanas, partem, céus em flora, em busca de
climas tropicais, elas emigram no estio e é justamente no inverno que nos
chegam.
Coração alegre não
lhes serve: gostam de fazer os ninhos à sombra da melancolia e aí vivem e
procriam.
No mais rigoroso da tristeza, quando as lágrimas são
mais copiosas, levantam-se em revoadas e escurecem e entristecem ainda mais o
que, já de si, é lúgubre: o coração magoado.
Se no momento, tais
evocações excruciam-me, deixam-me depois a alma aliviada, como certos bálsamos
que, no instante em que são aplicados às feridas, exacerbam-lhes as dores para
as lenirem depois!
E por que assim se
converte a angústia em conforto?
Porque, por ela, me convenço da tua sobrevivência.
Se tornas, posto que
só em espírito, é porque existes.
O nada não se
levanta, não atende, não se manifesta. E tu surges, vens a mim, anuncias-te
presente, ainda que invisível.
Caminhando ao longo
do silvedo eis que nos chega um aroma.
Senti-lo e logo saber que flor o exala é tudo um instante. E a flor ? Onde?
Escondida na balsa, oculta nas frontes ou refolhada nos aningais do lago,
algures, invisível, mas presente.
É o que se dá quando
meu coração se retranse de saudade. Entristeço-me, logo, porém, consolo-me
sentindo-te.
Melhor seria que eu
te visse, que vivesses conosco. Mas o
maior tormento, depois que te partiste, era imaginarmos que te havíamos perdido
para o sempre. Não!
Estás longe, mas
existes, não desapareceste porque o essencial de ti a parte eterna do que foste, vive.
O que lá está, na
terra, é o casulo: a borboleta voa livre, na luz, e, de quando em quando,
saudosa, baixa do céu à terra e pousa de leve em nossos corações.
Noite lúgubre.
Estortegam-se
agoniadamente as árvores ao vento. Bátegas
rufam nas telhas. Por
entre as frinchas das janelas
afuzilam clarões.
Rápido esfria em
regelo. À rajada mais forte o arvorado rumoreja estabanadamente. A enxurrada
chofra, gorgoleja torrencial, rasgada, de quando em quando, por
automóveis que passam.
Troam, estrepitam,
ribombam trovões.
No bater das portas
e das janelas tem-se a impressão de que andam a forçar a casa.
Acendem-se luzes.
São as crianças que despertaram sobressaltadas com os fragores.
A estampido mais
rijo ei-las de pé, espavoridas. Correm a refugiar-se junto a nós.
E o estridor
aumenta.
Deflagram explosões
seguindo-se-lhes silêncio pávido.
De repente a chuva
jorra cheia e grossa estalando na rua.
O vento uiva
rondando o espaço; distancia-se, torna, envolve a casa como matilha que se
encarniça furiosamente em presa.
Luzem relâmpagos
mais freqüentes. A própria luz das
lâmpadas vasqueja, freme em crispações de espamo e, a súbitas, apaga-se.
E a escuridão, que
amedronta, laiva-se de livores convulsos.
Penso nos que se
acham lá fora, à intempérie. Quantos!
Penso em ti!
Sentirás no teu
túmulo o rigor da tormenta? Não creio.
Se tal se desse com
mais razão terias sentido a que se desencadeou em nossos corações quando, com a
respiração já flébil, nos arquejos dos últimos anélitos, tinhas em nós os olhos
fitos e marejados de água.
Nada sentias - nem
os soluços, nem as deprecações, nem as vozes desesperadas com que, através de
lágrimas, bradávamos para que não partisses.
Se não sentiste
naquele angustioso instante, quando ainda te não arrancaras de todo a nossa
esperança. preso à vida pelo olhar, que poderás sentir agora, silêncio cm que jazes, nessa profundidade, a
maior de todas as profundidades, onde, se riso chega o nosso amor, não chegará,
decerto, a raiva das tempestades!
Como explicar tais
surtos?
A mim mesmo, surpreso, lanço esta pergunta.
Que ele venha,
invocado pela saudade, quando o coração, que se não resigna, o chama, é
natural. Não há túmulo que resista a tal reclamo, pesem-lhe, embora, em cima,
mármores e granito, metais e terra fúnera: o prestígio do amor tudo consegue.
Se a gota de água
perene abre sulcos e atravessa penhascos, que não farão as lágrimas, muito mais
poderosas, por virem de fonte divina?
Assim, compreende-se
que a invocação do amor consiga trazer da morte, em espírito, aqueles que
desaparecem, mas que, de improviso, espontaneamente, eles nos surjam,
entrem-nos pelo coração... só se neles
também perdura o amor, se a saudade insiste em os prender à vida para que, por
ela, tornem, como a andorinha regressa do exílio ao ninho antigo, mal se
dissolve a neve que a repeliu para
outro clima.
Ainda que o não
esqueça instantes há, porém, em que o não sinto, tanto ele se aquieta como
adormecido no fundo da memória. Basta, porém, um rumor leve de lembrança, uma
subtil reminiscência para que ele desperte.
Assim, porém, como
na vida quando os trabalhos nos solicitam e saímos por eles, deixando em casa
os filhos, cada qual naquilo que lhe consente a idade - um, no estudo; outro,
brincando e o pequenino no berço ou no aconchego do colo maternal, sem que
deles nos esqueçamos, posto que os não tenhamos presentes, assim, também horas
há em que nos abstraímos dos mortos e se isso importasse em esquecimento da
mesma ingratidão se poderiam igualmente queixar os vivos.
Em tais momentos
quem nos encontra no giro do trabalho, falando a um e outro, rindo com eles,
não dirá que toda essa aparência de alegria ou indiferença assenta em
melancolia.
Profundezas, quem as
sonda? Penetrais, quem os alcança?
Julgue-se o oceano
pela superfície que rebrilha ao sol em frisos ondulantes, riso efêmero das
águas que se desfaz em espumas.
Julgue-se a brenha
pelo que dela se avista, verdura matizada pela florescência dos ramos.
Julgue-se o infinito
pelo azul que o olhar abrange. Quem sabe lá o segredo do abismo, o mistério da
selva, o arcano da altura.
O coração é a
profundeza em que jazem os sentimentos, em que se ocultam as paixões: amor e
ódios, saudades e remorsos, todo o bem e todo o mal.
A noite é bem a
imagem da morte.
Vai-se o sol e as
sombras parciais desaparecem, fundindo-se na escuridão universal, que é a
Treva. Vai-se a alma, que é luz, e o corpo, sombra da terra, torna ao de que
veio: a Terra.
E, assim como o sol,
e retorno, refaz o dia, assim a alma, depois do tramonto e da depuração,
regressa à vida e ilumina outro ser, efêmero como o dia.
Mas essa luz
instantânea, luz que brilha e extingue-se, relâmpago que apenas serve para
mostrar-me o deserto, claridade que fulgura tão só para que eu veja toda
a imensa extensão da minha desventura, quem a acende, e por que?
Como explicar tais
surtos, esse ressurgimento do morto dentro da minha saudade? Quem o invoca e
que chamado atende? Será Deus que o mutila para consolo da minha alma ou será
ele próprio que se desprende da Eternidade e, a súbitas como para certificar-se
de que não morreu no meu amor, desce em visita ao coração, que era o seu ninho?
Não sei.
Na maior serenidade,
tudo em calma: o céu azul! com o sol em pleno, as árvores imóveis nos ramos as
aves alacres cantando. De repente, sem nuvem que a anuncie, sopra de longe, das
montanhas, frias, ríspida rajada.
Curvam-se as
frondes, sobe a poeira em torvelins, abrumam-se os ares, negros bulcões
empastam, escurecem o céu em cariz de borrasca.
Mas o sol esgueira
um raio, abre, por fim, a larga alara de ouro. Reacende-se a claridade,
limpa-se de todo o azul, tornam os pássaros ao vôo e a vida serenamente
continua.
Assim, por vezes, no
meu coração.
Trabalho na quiete
do meu gabinete ou cruzo a multidão nas ruas: movimento ou placidez, rumor de
vida ou silêncio. Atento em dar forma a
uma idéia, torturando, polindo e repolindo a frase eu sigo distraído do
turbilhão tumultuário, tanto como folha morta levada ao léu da
correnteza. Nele não penso. Acha-se onde o amor o recolheu quando a morte o prostrou,
no mais recôndito do coração, onde a saudade conserva carinhosamente o seu
tesouro.
De repente o coração
me estremece, como abalroado e, no alvoroço que o agita, transbordam os seus
veios sentimentais e logo se me marejam de lágrimas os olhos.
Que encontro tê-lo-á
abalado assim, ao pobre coração tão
quieto, para que dele tanto se ressinta? Que rajada passou por ele toldando-lhe
a alegria, perturbando-lhe a tranqüilidade, como esses improvisos ventos das
montanhas frias que, inopinadamente, se levantam, sopram ríspidos carreando
nuvens que escurentam o sol, retorcem angustiadamente as árvores e tomam
um céu
claro acumulado bulcão de cúmulos tempestuosos?
Rajada de saudade,
vinda não se sabe de onde nem por que. De onde? senão da morte; por que, senão
por ciúme, desconfiança, talvez, de que haja sido esquecido para surpreender a
alma, apanhá-la distraída e ver se nela o lugar que era, outrora, seu foi
ocupado ou esquecido, enchendo-se de nova alegria ou deixando em indiferença
como os terrenos que, por abandono, desaparecem em maninho agreste.
Como te enganas,
espírito amoroso!
Vem! E sempre que
apareças, baixando de onde assistes, acharás o teu lugar florido de saudades,
flores que não morrem nunca porque, para regá-las, há no coração uma fonte que
não cessa de correr e cada vez em maior cópia.
Vem na vigília ou no
sono, vem! e acharás o teu lugar tal como o deixaste, e verificarás que és nele
dono e único senhor; que nada do que te pertencia, e te pertence, foi ali
tocado que continuas a ser nele quem dantes foste e agora és mais que nunca e
vives e sobre o que de ti ficou não tem poder a morte, porque é a mesma Vida,
que não perece, Vida como a da Eternidade, por ter a sua origem em Deus:
a alma.
Vem ou como quando
atendes carinhosamente ao apelo da minha a saudade ou surgindo, em meio da
minha alegria ou do afã do trabalho, como costumas aparecer inesperadamente,
sempre bem-vindo, para consolo e martírio da minha saudade.
Como se há de
esquecer toda uma vida, que se prendia a nossa, se o operado, a quem amputam um
membro, durante muito tempo guarda a impressão de ainda o possuir?
Se as dores ficam
assim vivas, como se alguma das suas raízes não houvesse sido extirpada, se o
sofrimento persiste em reminiscências, ainda depois de curado, como se não há
de perpetuar, mesmo que a morte a leve?
Geme o enfermo dores
que o não pungem só pelo hábito, em que estava, de as sofrer; e não há de
chorar o que não se conforma com a desdita de haver perdido um ser amado?
Se de um membro
apenas fica tão viva recordação no corpo como não há de subsistir em saudade na
alma a lembrança de um ente estremecido?
O que se levanta do
leito e dá pela ausência do que lhe foi amputado custa a convencer-se do que
vê, porque continua a sentir, posto que em ilusão, o que, dantes, o
atormentava. E o que perde um amor há
de esquecê-lo? Não!
Sinto-te como se
estivesses comigo. Levaram-te de mim, a todo o instante, porém, tenho-te
presente.
E a ti não são dores
que te recordam a minha alma, mas venturas, pelo que sofro ainda mais o bem
perdido.
Se o operado não
esquece o que o fazia gemer, como me não hei de eu lembrar do que me fazia
sorrir?
Tanto se me fixou na
mente o episódio lúgubre daquele imenso instante que, todas as noites, mal
apago a lâmpada à minha cabeceira, a escuridão acende-se em luz lívida e nessa
claridade fátua, instantaneamente, a cena reproduz-se vem projeção fantástica.
Triste ressurreição
da morte!
Vejo-o no leito, tal
como o tive ante a minha impotência desgraçada, extinguindo-se pouco a pouco,
flébil: de olhos abertos, fitos, lábios hiantes, mudos.
Tão grande era o
silêncio no aposento como só mesmo pode ser nos túmulos. Era a morte que
entrava com ele, como a noite entra com a treva e a madrugada com a luz.
Abraçado com o
moribundo eu sentia-o ir pouco a pouco esfriando. O silêncio já o havia
penetrado parando-lhe o coração.
Pois assim havia de
cessar aquela vida em flor?
Como prendê-la a
mim? Como defender aquele ser querido que me era arrebatado dos braços sem que toda a minha força, toda a minha fé, que
explodia em clamores a Deus, e o espanto
em que se petrificara a pobre mãe surpresa, o pudessem reter?
Quem há capaz de
suster a luz ou a sombra, deter o dia ou a noite?
Pobre filho! De que
lhe valia a mocidade? Vinte e quatro anos! Plena juventude! E ali jazia, mais
frágil do que quando eu o vira, recém-nascido, naquele mesmo leito, entre os
braços daquela mesma criatura que o encarava extática sem compreender que ele, seu filho, sempre tão meigo, nem sequer
se voltasse para olhá-la, a ela, sua mãe, que o chamava em desvairo, docemente,
baixinho, com uma voz que lhe saia trêmula, débil, chorando, do mais fundo do
coração.
E tudo, em volta, parecia sentir: as próprias paredes,
os móveis, a mesma luz que tremia, como se soluçasse.
Sobre o peito
robusto do jovem atleta, como em
calvário, alguém pousara um crucifixo de bronze.
Soluços faziam a
pulsação do silêncio,
A vida, entanto,
prosseguia fora no seu afã ruidoso e,
indiferente, contínuo, acompanhando o tempo, o relógio picava os segundos
como se desfiasse um rosário, conta a conta.
E o corpo juvenil
imobilizou-se de todo, adormeceu sereno e fechou-se sobre ele a vida como se
unem as águas sobre o náufrago que afunda.
O pranto desatou-se
em volta.
Ela só não teve
lágrimas: estava como árido deserto, ardendo em sede, na sua infinita e estéril
desventura.
A dor imensa que me
enchia todo o coração não achava passagem bastante para expandir-se, salvo se o
rebentasse.
E assim,
enclausurada, mantinha-a naquela aparência de impassibilidade pétrea, igual a
que estatelou Maria junto à cruz.
E, todas as noites,
é certo reproduzir-se a cena lúgubre. Eu já a espero e mal apago a lâmpada à
minha cabeceira, preparo-me para o triste transe que se renova na escuridão,
dentro dum halo feral, que outra coisa não e senão saudade, luz que alumia os
mortos.
Através dos minutos
como em poeira de entrada, os dias giram velozes na vertigem do Tempo.
Dealba, fulge o sol;
empalidece a tarde; cinza-se o
crepúsculo e a noite obumbra-se. Treva, de todo negra ou cravejada de
astros.
Eis, de novo. a
manhã clara. Sob o dia, reluma; logo, porém. começa a declinar e enubla-se.
Anoitece.
E não cessa o
movimento: dias sobre noites, noites sobre dias.
Aquele instante,
porém, subsiste eterno, o mesmo em que para mim, encerrou-se o ciclo da
ventura.
Dias e noite são
raios da roda que não pára; o lúgubre momento é fixo, como o eixo em volta do
qual o Tempo célere circuita.
Anos que eu viva,
séculos que vivesse, ainda que, por desdita, me tornasse eterno, toda a minha
existência os meus dias, anos, séculos
infindos haviam de girar em torno do minuto trágico em que o vi tombar da
juventude no túmulo, como flor talada em pleno viço que caísse num lago e,
ferindo as águas nelas abrisse círculos progressivos, até os extremos das
margens.
Assim também chegará
até o fim da minha vida a lembrança do instante em que o perdi de mim em torno
do qual os dias passam, passam os meses, hão de passar os anos sem que eu
os sinta, porque todo me concentro no
momento em que ele caiu para o sempre, eixo de onde partem, abrindo-se
infinitamente e, cada vez maiores, as saudades no meu coração, como as
enciclias se frisam e dilatam na água ferida em um ponto, pela flor
decídua.
Sentem-na os
míseros leões cativos; sentem-na nos eflúvios; sentem-na no aroma que lhes
chega com a aragem; sentem-na no cheiro cálido da terra adusta; sentem-na, a era da explosão da seiva, era
em que se enfeita e alegra a selva. Sentem-na e fremem de nostalgia.
A ânsia de rever os
sítios florestais e as dunas do deserto torna-os ferozes. Então, irritados,
levantam-se, de ímpeto, na jaula, põem-se a rondá-la iterativamente,
chegam aos varões, tentam mordê-los, grifam-nos a unhadas e, não os podendo
quebrar, arfam aos rugidos surdos.
Como a esperança não
os abandona deitam-se junto aos ferros inflexíveis e ali ficam, de olhos fitos
no vago, o olfato esperto, arejando nas auras a olência do que não podem
alcançar, do que lhes foi tomado para o sempre.
Vêem o que olham?
Não! vêem o que sentem.
E o que sentem eles,
os míseros leões? Sentem o que lhes acorda na memória - a brenha verde: espessa
e sombria aqui; aberta em clareira além, com os voluteios cristalinos da água,
os antros obscuros onde branqueia, esparsa, a ossamenta das presas, sentem os companheiros
livres: uns, deitados sob ramarias, outros à espreita, nos juncais, à margem
dos rios largos; ainda outros, resupinos, brincando com os graciosos
cachorrinhos.
E colham tristes,
alongam infinitamente o olhar querendo ver além do seu, além da linha do
horizonte a selva, as dunas, o que perderam no jamais.
Como alcançá-lo? Como sair daquela
prisão alerta em grades que ainda lhes tornam mais triste o cativeiro com a
ironia de lhes deixarem ver a liberdade?
Fora melhor, menos
cruel, sem dúvida, prenderem-nos
em ergástulo, onde não chegasse fisga de sol, onde não penetrasse o acre
perfume de silvedo: ergástulo profundo, bem negro de escuridade
opaca como a da cegueira; silêncios
como a surdez, de onde se não vissem aspectos, nem chegasse rumor de vida e
tudo se resolvesse em olvido.
Mas não! Presos em
jaula, os leões olham e vêem, respiram o ar balsâmico, ouvem sussurros de
árvores e aqueles mesmos ferros, por entre os quais avistam a vida, dela os
separam inexoravelmente.
Míseros leões! E é
no tempo em que florescem os bosques que o instinto se lhes aguça e mais os
atormenta.
Assim, quando tudo é
alegria e festa, na era de maior ventura para os livres, é que os leões cativos
atroam as noites indo e vindo na jaula em fúria desesperada.
Melhor seria que os
sepultassem em covas onde remasse escuridão eterna.
A jaula estreita, em
que me agito sem sossego, é a minha angústia, agravada a todo o instante por
lembranças, agora ainda mais intensas pelo tempo que se vem aproximando,
florindo as árvores e desabotoando em alegria os corações felizes.
Sinto-o presente,
vejo-o através dos varões da minha jaula, como os leões vêem o deserto e a
selva - recordando.
Por que há de vir de
tão longe, ao presídio onde peno, a lembrança constante do bem que se me foi,
como chega ao faro dos felinos cativos a fragrância das florestas?
E agora, mais do que
nunca, punge-me a saudade, porque os dias são de ventura.
Natal! Tempo do
convívio familiar, tempo em que todos se reúnem - os que se acham fora acodem à
casa pressurosos e a mesa rodeia-se e amores.
E ele?
Assim como o aroma
das brenhas irrita, enfurece os leões cativos, assim essa alegria da vida
aumenta o meu desespero.
Fora melhor para as
feras que as encerrassem em covis subterrâneos, sem luz de sol, sem ar de
silvas, onde tudo fosse negrume, umidade e bafio de sepulcro.
A nós fora melhor
que Deus nos apagasse a memória.
Lembrar é como
avistar através de grades, sentir o intangível, ouvir sem poder escutar;
lembrar é viver no mundo das ilusões, entre espetros e sombras.
Neste tempo suave,
todo do bonança, tempo em que os pais se revêem nos filhos e, com a mesma fé,
no altar doméstico, comemoram a crença e o amor, o coração vibra mais sensível
à ternura.
Todos os lares
preparam-se para a comunhão feliz na grande noite de Cristo e, eu... Eu sofro
como sofrem os beluinos sentindo na aragem o perfume das selvas que florescem.
Como poderei ter
alma para celebrar um natalício, ainda o do próprio Deus, quando só penso na
morte e, em vez de berço, o que se me opõe aos olhos é um sepulcro?
O aroma que respiro
é de flores funerais; os sinos que tangem hosanas soam-me a finados.
O meu Natal é a
saudade e, através das grades da jaula em que me agito desesperadamente, vejo o
céu, o céu longínquo, o céu infinito... e nada mais!
Sete palmos exatos
mede a minha mesa, tantos como um túmulo. Não lhe sabia eu a extensão e nunca
atenderia a tal grandeza, para mim maior do que a do mais vasto império, se a
não houvesse tomado com o teu corpo.
Não há chão mais
fértil do que a tábua desse móvel, solo em que mourejo há trinta e três anos,
sem repouso, granjeando a lenha, o pão e o linho e jamais deixou de medrar,
ainda que o escopelismo da maldade por vezes tenha procurado abafá-la.
Por mais ásperos que
hajam sido os temporais - e quantos me têm passado pela vida - nunca me sucedeu
tornar desse abençoado alfobre, que rego com o meu suor, de mãos vazias.
Em qualquer dos seus
pontos pode ser posto um sacrário por que, em toda ela, não há um milímetro
inquinado.
Nunca a pena com que
lavro abriu sulco para má semente: cova para protérvias, esconderijo para
amealhar suborno. O que dela vem a flux pouco é, mas desse pouco é puro, sem
cizânia, e sempre me bastou, e jamais dele me servi com remorso.
Mal amanhece busco-a
e ponho-me logo a trabalhar e, assim como o lavrador enche os carros de ceifa,
assim vou enchendo páginas com os meus
sonhos.
E a imaginação, como
as abelhas e as borboletas, que trazem pólen para fecundar as flores, traz,
igualmente, para os meus devaneios, imagens e alegorias com que se ornamenta o
agro dos meus escritos.
Nessa mesa fundei
alicerces e levantei construções: ela é o meu pequeno império, o meu domínio, o
meu diversório e o meu celeiro, o meu retiro de paz e o meu horto de oliveiras.
Sete palmos! Toda
uma vida no espaço que tomou, estendido, um corpo morto: o teu, meu filho!
Foi nessa mesa que
passaste a tua derradeira noite em nossa companhia, em tua casa, casa de teus
pais e de teus irmãos.
Foi nesse campo de
trabalho, transformado em essa, que ficaste exposto aos nossos olhos toda uma
noite, a última e definitiva, noite subterrânea, impermeável à luz.
Ficaste onde ficam
meus livros, na banca em que exerço o meu labor ingrato à qual, em pequenino,
vinhas engatinhando e distraias-me com os teus tartareios infantis, que eram
como botões das palavras que, pouco a pouco, se te desabrochavam na boca.
Foi nessa mesa que
aprendeste a ler com tua mãe e garranchastes, de mão adunca. os primeiros
gatafunhos.
E, quanta vez, à
noite, enquanto eu trabalhava e ela sorria, contemplando-te de longe, escondida
na sombra, tu, com os teus soldadinhos de chumbo, improvisavas batalhas, e o
meu tinteiro era fortaleza e eram os meus livros e mais objetos espalhados,
baluartes pugnacíssimos contra os quais impelias os teus batalhões de estanho.
E eu, suspendendo o
que fazia, entrava no teu brinquedo, mais pueril do que tu, porque tomava a
sério os combates e, a golpes de caneta ou espátula, arrasava as hostes que
sitiavam um dicionário ou que procuravam escalar o porta-cartas.
E como terminavam as
guerras das tuas conquistas? Com os soldados espalhados e os tachos da
cabeleira do general no campo da batalha, porque a cabecinha linda, que tantos
planos terríveis engendrara, não resistia ao sono e, inclinando-se sobre os
bracinhos enrodilhados, ali ficava como a dos anjos rafaelitas, até que a ama,
tomando ao colo o herói, que eras tu, deixava a mesa sem o seu gracioso ornato.
Agora, quando me
sento para trabalhar, o que logo me aparece aos olhos é o teu corpo imóvel,
rígido, vestido de negro, cercado de flores, entre círios, com um crucifixo
nas mãos enclavinhadas. E depois no
caixão em que te levaram de nós... Por fim, desfeita a visão a mesa reaparece,
disposta, como outrora, antes do desastre, com os apetrechos de trabalho.
Tu é que és agora a
minha inspiração, tudo me vem de ti e, assim como o teu corpo enche o âmbito da
cova, a tua imagem ocupa a minha mesa, como se nela houvesse ficado impressa e
a saudade, que é o que me resta de ti, enche-me a alma.
E tudo quanto
imagino e busco traduzir em palavras ressente-se de ti - assim a água que brota
de terreno mineralizado satura-se das substâncias que nele jazem e o ar que
circula em silva em flor impregna-se de aroma.
Tornaste a minha
mesa um campo santo. Nela demoraste horas: toda uma noite e toda uma manhã;
dela saíste para o sempre, mas o que eu nela escrevo sente-se do que de ti lhe
ficou.
Às vezes, no
silêncio da casa adormecida, trabalhando, ouço trepidações e uma voz que parece
vir dentro de risos incitando a combate. E a mesa enche-se de soldadinhos e uma
cabecinha trêfega, aureolada de cachos, agita-se nervosa... Cessa a trepidação,
aquietam-se os soldados, a cabecinha inclina-se...
Ó visão do passado,
espetro da ventura, saudade! E tudo se
resolve; infelizmente, em tristeza e, em vez de vitória, terminada com o sono
do guerreiro, sono de que ele acordava com o renascer da luz, alegrando em
rumor a casa toda, o que eu, então, vejo, é a derrota, o corpo inerte que
adormeceu para o sempre entre flores e círios.
E é tudo que me
resta na mesa em que trabalho, mesa que
era o meu império, o meu domínio, o meu alfobre feliz, toda a minha riqueza,
onde eu semeava e colhia à farta.
E não havia chão
mais fértil do que a tábua desse móvel.
Hoje... que se pode
tirar de um cemitério?
Que se pode semear
nos sete palmos de um túmulo?
Lágrimas não
florescem e bom é que assim seja, porque seriam letais, como as da mancenilha,
as flores que produzissem.