José de Alencar

A Pata da Gazela

I

Estava parada na Rua da Quitanda, próximo à da Assembléia, uma linda vitória, puxada por soberbos cavalos do Cabo.

Dentro do carro havia duas moças; uma delas, alta e esbelta, tinha uma presença encantadora; a outra, de pequena estatura, muito delicada de talhe, era talvez mais linda que sua companheira.

Estavam ambas elegantemente vestidas, e conversavam a respeito das compras que já tinham realizado ou das que ainda pretendiam fazer.

— Daqui aonde vamos? perguntou a mais baixa, vestida de roxo claro.

— Ao escritório de papai: talvez ele queira vir conosco. Na volta passaremos pela Rua do Ouvidor, respondeu a mais esbelta, cujo talhe era desenhado por um roupão cinzento.

O vestido roxo debruçou-se de modo a olhar para fora, no sentido contrário àquele em que seguia o carro, enquanto o roupão, recostando-se nas almofadas, consultava uma carteirinha de lembranças, onde naturalmente escrevera a nota de suas encomendas.

— O lacaio ficou-se de uma vez! disse o vestido roxo com um movimento de impaciência.

— É verdade! respondeu distraidamente a companheira.

Estas palavras confirmavam o que aliás indicava o simples aspecto da carruagem: as senhoras estavam à espera do lacaio, mandado a algum ponto próximo. A impaciência da moça de vestido roxo era partilhada pelos fogosos cavalos, que dificilmente conseguia sofrear um cocheiro agaloado.

Depois de alguns momentos de espera, sobressaltou-se o roupão cinzento, e conchegando-se mais às almofadas, como para ocultar-se no fundo da carruagem, murmurou:

— Laura!... Laura!...

E como sua amiga não a ouvisse, puxou-lhe pela manga.

— O que é, Amélia?

— Não vês? Aquele moço que está ali defronte nos olhando.

— Que. tem isto? disse Laura sorrindo.

— Não gosto! replicou Amélia com um movimento de contrariedade. Há quanto tempo está ali e sem tirar os olhos de mim?

— Volta-lhe as costas!

— Vamos para diante.

— Como quiseres.

Avisado o cocheiro, avançou alguns passos, de modo a tirar ao curioso a vista do interior do carro; mas o mancebo não desanimou por isso, e passando de uma a outra porta, tomou posição conveniente para contemplar a moça com admiração franca e apaixonada.

Simples no traje, e pouco favorecido a respeito de beleza; os dotes naturais que excitavam nesse moço alguma atenção eram uma vasta fronte meditativa e os grandes olhos pardos, cheios do brilho profundo e fosforescente que naquele momento derramavam pelo semblante de Amélia.

Havia minutos que, percorrendo a Rua da Quitanda em sentido oposto à direção do carro, avistara a moça recostada nas almofadas, e sentira a seu aspecto viva impressão. Sem disfarce ou acanhamento, recostando-se à ombreira de uma porta de escritório, esqueceu-se naquela ardente contemplação.

O coração é um solo. Vale onde brotam as paixões, como os outros vales da natureza inanimada, ele tem suas estações, suas quadras de aridez ou de seiva, de esterilidade ou de abundância.

Depois das grandes borrascas e chuvas, os calores do sol produzem na terra uma fermentação, que forma o húmus; a semente, caindo aí, brota com rapidez. Depois das grandes dores e das lágrimas torrenciais, forma-se também no coração do homem um húmus poderoso, uma exuberância de sentimento que precisa de expandir-se. Então um olhar, um sorriso, que aí penetre, é semente de paixão, e pulula com vigor extremo.

O moço parecia estar nessas condições: ele trajava luto pesado, não somente nas roupas negras, como na cor macilenta das faces nuas, e na mágoa que lhe escurecia a fronte.

Notando Amélia a insistência do mancebo, ficou vivamente contrariada. Aquele olhar profundo, que parecia despedir os fogos surdos de uma labareda oculta, incutia nela um desassossego íntimo. Agitava-se impaciente, como uma criatura no meio de um sono inquieto ou mesmo de um ligeiro pesadelo.

Até que abriu o chapeuzinho-de-sol, para interceptar a contemplação apaixonada de que era objeto. Nesta ocasião, Laura, que freqüentemente se debruçava para ver quando vinha o lacaio, retraiu o corpo com vivacidade:

— Enfim; aí vem!

— Felizmente! disse Amélia.

O lacaio aproximava-se a passos medidos; trazia na mão um embrulho de papel azul, que o atrito dos dedos e a oscilação dos objetos envoltos desfizera, obrigando o portador a apertá-lo de vez em quando.

Julgando ao cabo de alguns instantes que o lacaio já tocava o estribo da carruagem, Amélia, tomando um tom imperativo, disse para o cocheiro:

— Vamos! vamos!

Ao aceno que lhe fez o cocheiro, o lacaio correu, chegando a tempo de apanhar o carro, que partia ao trote largo da fogosa parelha. Deitar o embrulho na caixa da vitória, rodear em dois saltos e galgar o estribo da almofada, foi para o criado, habituado a essa manobra, negócio de um instante. Não percebera ele, porém, que abrindo-se o papel com a corrida, um dos objetos nele contidos escorregara e, justamente na ocasião de deitar o embrulho na caixa do carro, caíra na calçada.

Laura, que se inclinara com vivo interesse para tomar o embrulho das mãos do lacaio, tivera um pressentimento do acidente, ao ver o papel desenrolado. Fechando-o rapidamente e escondendo-o por baixo do assento da vitória, ela debruçou-se ainda uma vez para verificar se com efeito alguma coisa havia caído. Ao mesmo tempo acompanhava o movimento com estas palavras de contrariedade:

— Como ele manda isto! Por mais que se lhe recomende!

Laura nada viu, porque já a vitória rodava ligeiramente sobre os paralelepípedos.

Nesse momento, porém, dobrando a Rua da Assembléia, se aproximara um moço elegante não só no traje do melhor gosto, como na graça de sua pessoa: era sem dúvida um dos príncipes da moda, um dos leões da Rua do Ouvidor; mas desse podemos assegurar pelo seu parecer distinto que não tinha usurpado o título.

O mancebo viu casualmente o lacaio quando passara por ele correndo, e percebeu que um objeto caíra do embrulho. Naturalmente não se dignaria abaixar para apanhá-lo, nem mesmo deitar-lhe um olhar, se não visse aparecer ao lado da vitória o rosto de uma senhora, que o aspecto da carruagem indicava pertencer à melhor sociedade.

Então apressou-se, para ter ocasião de fazer uma fineza, e pretexto de conhecer a senhora, que lhe parecera bonita. Os leões são apaixonadíssimos de tais encontros; acham-lhes um sainete que destrói a monotonia das relações habituais.

Quando o moço ergueu-se com o objeto na mão, já o carro dobrava a Rua Sete de Setembro. Ficou ele um momento indeciso, olhando em torno, como se esperasse alguma informação a respeito da pessoa a quem pertencia o carro. Sem dúvida a senhora era conhecida em alguma loja de fazendas; talvez tivesse aí feito compras.

Não obtendo, porém, informações, nem colhendo resultado da pergunta que fizera a um caixeiro próximo, resolveu-se a meter o objeto no bolso e seguir seu caminho.

 

II

Horácio de Almeida, o nosso leão, voltou a casa à hora do costume, quatro da tarde.

Os sucessivos encontros da Rua do Ouvidor; a conversa no Bernardo; a visita indispensável ao alfaiate; as anedotas do Alcázar na noite antecedente; a crônica anacreôntica do Rio de Janeiro, chistosamente comentada; algumas rajadas de maledicência, que é a pimenta social; todas essas ocupações importantes, que absorvem a vida do leão, distraíram Horácio a ponto de se esquecer ele do objeto guardado no bolso do paletó.

Como admitir que um príncipe da moda não aproveitasse a aventura do carro, para sobre ela bordar um romance de rua, com que excitasse a curiosidade dos amigos? Realmente é admirável; e seria incompreensível se não fosse a circunstância de ter poucos passos adiante encontrado uma das mais ricas herdeiras do Brasil, a quem o nosso leão arrastava... ia dizer a asa, mas isso seria anacronismo; dizia-se no tempo em que os leões se chamavam galos; hoje deve dizer-se arrastar a juba; é mais bonito e indica mais submissão. Arrastar a asa é enfunar-se; arrastar a juba é prostrar-se.

Foi só quando, encostado em sua otomana, descansava para o jantar, que Horácio, procurando a carteira de charutos no bolso do fraque, lembrou-se do objeto. Teve então curiosidade de examiná-lo: sabia o que era; na ocasião de apanhá-lo reconhecera o pé de uma botina de senhora; mas não fizera grande reparo.

Agora, porém, que de novo o tinha diante dos olhos, a sós em seu aposento, e despreocupado da idéia de o restituir, Horácio achou o objeto digno de séria atenção; e aproximando-se da janela, começou um exame consciencioso.

Era uma botina, já o sabemos; mas que botina! Um primor de pelica e seda, a concha mimosa de uma pérola, a faceira irmã do lindo chapim de ouro da borralheira; em uma palavra a botina desabrochada em flor, sob a inspiração de algum artista ignoto, de algum poeta de ceiró e torquês.

Não era, porém, a perfeição da obra, nem mesmo a excessiva delicadeza da forma, o que seduzia o nosso leão; eram sobretudo os debuxos suaves, as ondulações voluptuosas que tinham deixado na pelica os contornos do pézinho desconhecido. A botina fora servida, e muitas vezes; embora estivesse ainda bem conservada, o desmaio de sua primitiva cor bronzeada e o esfrolamento da sola indicavam bastante uso.

Se fosse um calçado em folha, saído da loja, não teria grande valor aos olhos do nosso leão, habituado não só a ver, como a calçar, as obras primas de Milliès e Campàs. Talvez reparando muito naquela peça que tinha nas mãos, notasse maior elegância no corte, e um apuro escrupuloso na execução; porém mais natural seria escapar-lhe essa mínima circunstância.

Mas a botina achada já não era um artigo de loja, e sim o traste mimoso de alguma beleza, o gentil companheiro de uma moça formosa, de quem ainda guardava a impressão e o perfume. O rosto estufava mostrando o firme relevo do pézinho arqueado. Na sola se desenhava a curva graciosa da planta sutil, que só nas extremidades beijava o chão, como o silfo que frisa a superfície do lago com a ponta das asas.

Há um aroma, que só tem uma flor na terra, o aroma da mulher bonita: fragrância voluptuosa que se exala ao mesmo tempo do corpo e da alma; perfume inebriante que penetra no coração como o amor volatilizado. A botina estava impregnada desse aroma delicioso; o delicado tubo de seda, que se elevava como a corola de um lírio, derramava, como a flor, ondas suaves.

O mancebo colocara longe de si o charuto para não desvanecer com o fumo os bafejos daquele odor suave. Não havia aí o menor laivo de essência artificial preparada pela arte do perfumismo; era a pura exalação de uma cútis acetinada, esse hálito de saúde que perspira através da fina e macia tez, e como através das pétalas de uma rosa.

De repente uma idéia perpassou no espírito do moço, que o fez estremecer. Essa botina grácil, em que mal caberia sua mão aristocrática, essa botina mais mimosa do que sua luva de pelica, não podia ter um número maior do que o de seus anos, vinte e nove!

— Será de uma menina! murmurou ele um tanto desconsolado.

Examinou novamente a obra-prima, voltou-a de todos os lados, apalpou docemente o salto e o bico, dobrou a orla da haste, sondou o interior da concha, que servira de regaço ao feiticeiro pézinho. Depois de alguns instantes deste exame profundo e minucioso, um sorriso expandiu o semblante de Horácio

— É de moça, é de mulher! murmurou ele. Aqui estão os sinais evidentes; não podem falhar. A fábula de Édipo é uma

verdade eterna. no enigma da esfinge está realmente o mito da vida. O homem é o animal que de manhã anda sobre quatro pés; ao meio-dia sobre dois; à tarde sobre três. Na infância, a criatura, como a planta, conserva-se rasteira, brota, pulula, mas conchega-se mais ao solo de que recebe toda a nutrição; as mãos servem-lhe de pés. Depois da juventude, na época da expansão, a criatura se lança para o espaço, exalta-se; é a árvore que hasteia e procura as nuvens; a planta pede ao céu os orvalhos e a luz do sol; a alma pede a crença, a fé, a esperança, de que se geram as flores, que nós chamamos paixões. Na velhice, o homem se inclina de novo para a terra, como o tronco carcomido; é o pó, que, depois de revoar no espaço, deposita-se outra vez no chão. Então o velho precisa do bordão; uma das mãos torna-se pé e calça esse coturno da mais triste das tragédias humanas, a decrepitude.

Horácio observou de novo atentamente o objeto que tinha entre as mãos.

— A menina de quinze anos já não é a corça de quatro patas; não está mais na alvorada da vida, na puerícia; também ainda não chegou ao meio-dia do qual aproxima-se. Contudo, seu andar conserva ainda aquela atração para a terra; é pesado; calca o chão com força; tem o quer que seja de sacudido, que revela os impulsos da alma para desprender-se do pó e elevar-se; assemelha a singradura do batel, que ora se levanta, ora se submerge. Se esta botina fosse de uma menina, aqui estariam impressos esses caracteres de sua idade. A sola, em vez de levemente triturada nas extremidades, estaria estragada; o salto cambado. É uma observação que todo sapateiro confirmaria: o menino gasta o calçado pela sola, o homem pelo couro; a razão, o sapateiro a ignora, mas o filósofo a conhece: o menino é o inseto que rasteja, a larva; o homem é o inseto que voa, o besouro; aquele anda com o ventre, este com a asa.

Horácio sorriu.

— Esta botina é de moça; e moça em todo o viço da juventude: a sola apenas roçada junto à ponta, o salto quase intato, não estão descrevendo com a maior eloqüência a sutileza do passo ligeiro? Eu sinto, posso dizer eu vejo, esse andar gentil, que manifesta a deusa, como disse o poeta; a deusa, a Vênus deste olimpo em que vivemos, a mulher. Só quando toda seiva se precipita para o coração, quando germinam os botões que mais tarde abrirão em flor, só nesse momento de assunção é que a mulher tem este andar sublime e augusto. É o andar do passarinho que, roçando a relva, sente o impulso das asas; é o andar do astro nascente, caminhando para a ascensão; é o andar do anjo que, mesmo tocando a terra, parece prestes a fugir ao céu; e é, finalmente, a elação d'alma que aspira de Deus os eflúvios do amor, do amor, único ambiente do coração!

Nisto o moço descobriu na fivela do laço da botina alguma coisa que lhe excitou vivo reparo; chegando-se à luz, viu as voltas

de um fio, que prendeu entre as brancas unhas afiladas, verdadeiras garras de leão da moda. Com alguma paciência retirou um longo cabelo castanho e muito crespo.

— Outra prova de que aliás não carecia! Este cabelo é de mulher; não há menina que possa ter. Quatro palmos, além do que se partiu naturalmente! Bem se vê que é uma palmeira frondosa, e não um arbusto! Tem o cabelo castanho e crespo, duas coisas lindas sem dúvida, embora minha paixão seja a trança basta e lisa, negra como uma asa de corvo. Esse negrume dá à mulher o quer que seja de satânico: lembra que ela também gerou se da terra; não é anjo somente; não é somente filha do céu.

Eu não posso suportar a mulher-serafim, que parece desdenhar do mundo onde vive, e do pó de que é feita.

Horácio voltou a botina.

— Mas seja embora castanha, ou mesmo loura, que é uma cor insípida de cabelo! Que me importa isto? Tenho alguma coisa com seu cabelo? O que amo nela é o pé: este pé silfo, este pé anjo, que me fascina, que me arrebata, que me enlouquece!...

Horácio, que até então se contentava com olhar e apalpar a botina, inclinou-se e beijou-a no rosto; mas tímida e respeitosamente. Não era essa a imagem do pé sedutor, que ele adorava como um ídolo?

— Mas onde encontrá-lo? como reconhecê-lo? exclamou dolorosamente Horácio, sentindo a realidade da situação.

Nenhum indício que lhe revelasse o nome da mulher a quem pertencia essa gentil botina, ou lhe indicasse ao menos os traços de sua passagem A lembrança vaga de libré de um lacaio era o único vestígio que restava, mas com este dificilmente poderia descobrir o objeto de sua adoração Há tantos lacaios no Rio de Janeiro; e tantas librés que se confundem! Talvez nunca mais encontrasse aquele que procurava; e encontrando, nem o reconhecesse

— Desgraçado! dizia o leão. Quase nem o olhaste; mas podias tu adivinhar, Horácio, que tesouro deixara cair aquele bruto?

O mancebo inclinara ao peito a bela cabeça esmorecida; a ventura lhe tinha sorrido de longe, para escarnecer dele, o leão mais querido das belezas fluminenses, o Átila do Cassino, o Genserico da Rua do Ouvidor

De repente ergueu-se dum ímpeto:

— Hei de possuí-lo!... exclamou ele com o tom com que Alexandre se prometeu o império da Ásia.

 

III

Ninguém imagina que belos talentos sorve essa voragem do mundo que chamam a vida elegante.

São como as árvores luxuriantes que se vestem de linda folhagem, e consomem toda a seiva nessa gala estéril e efêmera. Nunca elas dão fruto, nem sequer flor.

Horácio de Almeida era uma de tantas inteligências desperdiçadas no incessante bulício da moda.

Muitos poetas, dos que têm seu nome estampado em rosto de livro não empregaram na fábrica de seus versos o aticismo, a inspiração e a graça com que o nosso leão torneava no baile um galanteio, ou aguçava um epigrama.

Pintores são festejados, que não sabem o segredo dos toques delicados, e do supremo gosto, que Horácio imprimia no laço de sua gravata, em suas maneiras distintas, nos mínimos acidentes de seu traje apurado.

E a fisiologia?

Poucos homens conheciam como Horácio o coração da mulher; porque bem raros o teriam estudado com tanta assiduidade. O mais sábio professor ficaria estupefato da lucidez admirável, com que o leão costumava ler nesse caos da paixão, que a anatomia chamou coração de mulher.

A razão é simples. O professor estudou no gabinete; consultou as obras dos mestres, coligiu observações alheias, e arranjou um sistema sobre o que não sofre regras: sobre a paixão cuja essência é o imprevisto, o anômalo, o indefinível.

Ao contrário, Horácio tinha estudado na realidade da vida; devassara os refolhos do pólipo, lhe sentira as pulsações, e fizera experiências in anima Vili. Não fatigou sua memória com a inútil bagagem dos termos técnicos e das noções científicas: lia os hieróglifos do amor com a linguagem garrida do homem da moda.

A perspicácia do olhar, a profundeza da investigação e a certeza de observação, com que o nosso leão sondava o abismo do coração e rastreava no semblante da mulher os vagos sintomas de uma inclinação nascente, ou de uma afeição expirante, só os grandes médicos possuem tão altos dotes.

Assim gastava Almeida a mocidade, desfolhando seu belo talento pelas salas e pontos de reunião. As riquezas de sua elevada inteligência, as ia ele esparzindo nas elegantes futilidades de um ócio tão laborioso, como é o far niente de um leão.

Consumir o tempo não se apercebendo de sua passagem; livrar-se do fardo pesado das horas sem ocupação; há nada mais difícil para o homem que ignora o trabalho?

Se o Almeida poupasse desse tempo tão esperdiçado alguns momentos no dia para dedicá-los a um fim sério e útil, à ciência, à literatura, à arte, que belos triunfos não obteria sua rica imaginação servida por um espírito cintilante?

Mas o nosso leão tinha a este respeito idéias excêntricas.

— A política, dizia ele, quando não dá em especulação, passa a mistificação. A ciência, se escapa de mania, torna-se uma gleba em que o sábio trabalha para o néscio. Literatura e arte são plágios; quem pode fazer poesia e romance ao vivo, não se dá ao trabalho de reproduzi-los; nem contempla estátuas, quem lhes admira os modelos animados e palpitantes.

Com tais paradoxos, Horácio não achava emprego mais digno para a inteligência, do que a difícil ciência de consumir gradualmente a vida e atravessar sem fadiga e sem reflexão por este vale de lágrimas, em que todos peregrinamos

A mulher era para ele a obra suprema, o verbo da criação. Toda a religião como toda a felicidade, toda a ciência como toda a poesia, Deus a tinha encarnado nesse misto incompreensível do sublime e do torpe, do celeste e do satânico: amálgama de luz e cinzas, de lodo e néctar.

— Amar é adorar a Deus na sua ara mais santa, a mulher. Amar é estudar a lei da criação em seu mais profundo mistério, a mulher. Amar é admirar o belo em sua mais esplêndida revelação; é fazer poemas e estátuas como nunca as realizou o gênio humano.

Mas o que sentia Horácio era apenas o culto da forma, o fanatismo do prazer.

O amor, o verdadeiro amor consiste na possessão mútua de duas almas; e essa, pode o homem iludir-se alguma vez, mas quando se realiza, é indissolúvel. Nada separa duas almas gêmeas que prende o vínculo de sua origem divina.

O mancebo admirava na mulher a formosura unicamente: apenas artista, ele procurava um tipo. Durante dez anos atravessara os salões, como uma galeria de estátuas animadas e vivos painéis, parando um instante em face dessas obras-primas da natureza.

Vieram uns após outros todos os tipos: a beleza ardente das regiões tépidas, ou a suave gentileza da rosa dos Alpes; o moreno voluptuoso ou a alvura do jaspe; a fronte soberana e altiva ou o gesto gracioso e meigo; o talhe opulento e garboso ou as formas esbeltas e flexíveis.

Seu gosto foi-se apurando; e ao cabo de algum tempo tornou-se difícil. A beleza comum já não o satisfazia; era preciso a obra-prima para excitar-lhe a atenção e comovê-lo.

Mas os sentidos se gastam; os mesmos primores da formosura caíram na monotonia. Já o leão não sentia pela mais bela mulher aqueles entusiasmos ardentes da primeira mocidade. Seu olhar era frio e severo como o de um crítico.

Então, começou o moço a amar, ou antes a admirar, a mulher em detalhe. Sua alma embotada carecia de um sainete. Foi a princípio uma boca bonita, cofre de pérolas, de sorrisos, de beijos e harmonias. Veio depois uma trança densa e negra, como a asa da procela que se inflama. Uma cintura de sílfide, um colo de cisne, um requebro sedutor, um sinal da face, uma graça especial, um não sei que: tudo recebeu culto do nosso leão.

Como um conviva, a quem as iguarias do banquete já não excitam, sua alma babujava na sala essas gulosinas. Mas afinal embotou-se; e o prazer não foi para ela mais do que a vulgar satisfação de um hábito.

O moço cortejava as senhoras como uma ocupação indispensável à sua vida, como o desempenho da tarefa diária; mas sem a menor comoção.

Amar era um entretenimento do espírito, como passear a cavalo, freqüentar o teatro, jogar uma partida de bilhar.

O amor já não tinha novidades nem segredos para ele, que o gozara em todas as formas; na comédia e no drama; no idílio e na ode. Como Richelieu, diziam até que ele já o havia calcado com o tacão da bota.

Nestas circunstâncias bem se compreende a impressão profunda que nele produzia a mimosa botina, achada naquela manhã.

Almeida tinha admirado a mulher em todos os tipos e em todos os seus encantos; mas nunca a tinha amado sob a forma sedutora de um pézinho faceiro. Era realmente para surpreender. Como lhe passara despercebido esse condão mágico da mulher, a ele que julgava ter esgotado todas as emoções do amor?

Sucedeu, como era natural, que uma vez percutidas as energias dessa alma enervada por longa apatia, a reação foi violenta. Inflamou-se a imaginação e especialmente com o toque do mistério que trazia a aventura. Se o dono da botina, o sonhado pézinho, se mostrasse desde logo, não produziria o mesmo efeito; não teria o sabor do desconhecido, que é irmão do proibido.

Imagine, quem conhecer o coração humano, a veemência dessa paixão, excitada pelo tédio do passado e alimentada por uma imaginação ociosa. De que loucuras não é capaz o homem que se torna ludíbrio de sua fantasia?

As extravagâncias de Horácio, contemplando a botina, verdadeiras infantilidades de homem feito, bem revelavam a agitação dessa existência, embotada para o verdadeiro amor e gasta pelo prazer.

Não se riam, homens sérios e graves, não zombem de semelhantes extravagâncias; são elas o delírio da febre do materialismo que ataca o século.

Essa paixão de Horácio, o que é senão aberração da alma, consagrada ao culto da matéria? A voracidade insaciável do desejo vai criando dessas monstruosidades incompreensíveis.

Sucede a esta embriaguez do amor o mesmo que à embriaguez do álcool. A princípio basta-lhe o vinho fino e aristocrático; depois carece da aguardente; e por fim já não a satisfaz a infusão do gengibre em rum, isto é, a larva de um vulcão preparada à guisa de grogue.

IV

Ao mesmo tempo que o nosso leão, entrava Leopoldo de Castro na modesta habitação que então ocupava na Glória.

Quando lhe fugira a celeste visão, o mancebo foi seguindo com o passo e com os olhos o carro que levava sua alma presa àquele rosto encantador. O passo era rápido e o olhar ardente; um ansiava por chegar; o outro quisera atrair pela força da paixão, pelo ímã das centelhas magnéticas que desferia a alma.

Fosse ilusão dos sentidos perturbados pela comoção interior, ou breve e confusa percepção da realidade, julgou o moço ver, no momento do dobrar o carro pela Rua Sete de Setembro, um talhe esbelto inclinar-se para a frente, e aparecer de relance um rosto alvo, donde escapou-se vivo e rápido olhar.

Leopoldo não tinha o intento de alcançar, nem mesmo seguir, o carro que fugia com velocidade; mas embalava-o a esperança de que um obstáculo qualquer, impedindo por instantes o livre transito, lhe permitisse outra vez contemplar a moça. Quando, porém, isso não sucedesse, consolava-o a idéia de conhecer a direção que tomaria a linda vitória.

— Se eu soubesse ao menos para que lado mora ela!... Esse ponto seria o meu horizonte, o meu céu. Me voltaria para ali quando adorasse a Deus e quando conversasse com ela. Amaria as estrelas, as nuvens e até as borrascas dessa banda do firmamento; amaria as ruas, as calçadas e até a poeira desse arrabalde da cidade.

O mancebo vagou assim durante duas horas, percorrendo as ruas sem destino. Não era tanto a esperança de ver a moça, ou somente o carro, como a necessidade de ocupar seu espírito, o que o impelia nessa perseguição de uma sombra.

— Eu tornarei a vê-la, pensava ele consigo; e ela me há de amar, tenho convicção. O amor é um magnetismo; eu acredito que o magnetismo se resume nele; que a lei da atração não é senão a lei da simpatia; os pólos são a cabeça e o coração, na terra como no homem. Se ela for a mesma que eu vi com os olhos de minha alma, a mesma que se revelou à minha paixão, aquela a que devo unir-me eternamente para formar um ser mais perfeito, eu caminharei para ela, como ela para mim, impelidos por uma força misteriosa, por mútua aspiração.

Com o animo repousado por essa convicção que nele se derramara, entrou Leopoldo em casa. Aí o esperava o isolamento em que se ia escoando sua vida, depois da perda de uma irmã a quem adorava.

Nessa irmã tinha ele resumido todas as afeições da família, prematuramente arrebatada à sua ternura; o amor filial, que não tivera tempo de expandir-se, a amizade de um irmão, seu companheiro de infância, todos esses sentimentos cortados em flor, ele os transportara para aquele ente querido, que era a imagem de sua mãe.

Essa perda deixara um vácuo imenso no coração de Leopoldo; a princípio enchera-o a dor, depois a saudade; agora essa mesma terna saudade sentia-se desamparada na profunda solidão daquele coração ermo. O mancebo carecia de uma afeição para povoar esse deserto de sua alma, de uma voz que repercutisse nesse lúgubre silêncio. É tão doce partilhar sua melancolia, ou seu prazer, com um outro eu, com um amigo ou uma esposa. São dois ombros para a cruz, e dois peitos para a alegria; alivia-se o peso, mas duplica-se o gozo.

Ao cair da tarde, quando o crepúsculo já desdobrava sobre a cidade o véu de gaza pardacenta, Leopoldo, sentado à janela de peitoril de sua casa, fumava um charuto, com os olhos engolfados no azul diáfano do céu, onde cintilava a primeira estrela. A seus pés desdobrava-se a baía plácida e serena como um lago, com a sua graciosa cintura de montanhas, caprichosamente recortadas.

O espírito do moço não se embebia decerto na perspectiva dessa encantadora natureza, sempre admirada e sempre nova. Ao contrário, abandonava-se todo às recordações de seu encontro pela manhã e aos enlevos que lhe deixara a contemplação da linda moça. Passava e repassava em sua memória, como em um cadinho, todas as circunstâncias mínimas deste grande e importante acontecimento, desde o momento em que assomou a visão até que desapareceu por último ao dobrar o canto da rua.

Achava nisso o mesmo prazer que um menino guloso experimenta em chupar novamente os favos já saboreados: lá ficou um raio de mel, que o lábio ávido colhe. Para Leopoldo esses raios de mel eram os olhares, os movimentos, os sorrisos da moça, avivados pela maior contenção do espírito.

Houve uma ocasião em que o mancebo quis representar em sua lembrança a imagem da moça; naturalmente começou

interrogando sua memória a respeito dos traços principais. Como era ela? Alta ou baixa, torneada ou esbelta, loura ou morena? Que cor tinham seus olhos?

A nenhuma dessas interrogações satisfez a memória; porque não recebera a impressão particular de cada um dos traços da moça. Não obstante, a aparição encantadora ressurgia dentro de sua alma; ele a revia tal como se desenhara a seus olhos algumas horas antes. Era a imagem diáfana de um sonho que tomara vulto gracioso de mulher.

— Não me lembro de seus traços, não posso lembrar-me!... murmurava no íntimo. Eu a contemplei, como se contempla uma luz brilhante: vê-se a chama, o esplendor, e nem se repara no espectro que a flama envolve como uma roupagem. Ela é minha luz; não sei a cor e a forma que tem, mas sei que cintila, que me deslumbra; que inunda meu ser de uma aurora celeste. Não poderia descrevê-la, como um poeta... Mas que importa? Pois que eu a sinto em mim; pois que eu a possuo em meu coração?

As pálpebras do mancebo cerraram-se coando apenas uma réstia de olhar, que se embebia nas alvas espirais da fumaça do charuto. Percebia-se que naquela névoa se debuxava à sua imaginação a sedutora imagem, diante da qual ele caía em êxtases de uma doçura inefável.

— Quem sabe? Talvez não seja ela o que nos bailes se chama uma moça bonita; talvez não tenha as feições lindas e o talhe elegante. Mas eu a amo!... O amor é sol do coração; imprime-lhe o brilho e o matiz! Vênus, a deusa da formosura, surgindo da espuma das ondas, não é outra coisa senão o mito da mulher amada, surgindo dentre as puras ilusões do coração! O que eu admiro nela, o que me enleva, é sua beleza celeste; é o anjo que transparece através do invólucro terrestre; é a alma pura e imaculada que se derrama de seus lábios em sorrisos, e a envolve como a cintilação de uma estrela.

Leopoldo já não estava só na existência; tinha para acompanhá-lo na esperança essa doce aparição, como para partilhar a saudade tinha a memória querida de sua irmã. O coração aproximou as duas imagens; ligou-as por algum vínculo misterioso; e criou assim uma família ideal, em cujo seio viveu para o futuro, como para o passado.

Nas horas do trabalho, o moço absorvia-se completamente nas ocupações habituais e cerrava sua alma para não deixar que as misérias do mundo aí penetrando profanassem o templo de sua adoração, o templo da esperança e da saudade. Fora dessas longas horas, encerrava-se naquele asilo e aí vivia.

Alguns dias depois do encontro da Rua da Quitanda, o Castro percorrendo distraidamente os jornais da manhã, deu com os olhos sobre os anúncios de espetáculo, coisa que desde muito tempo não existia para ele. Representava-se no Teatro Lírico a Lúcia de Lamermoor, o mais sublime poema de melancolia, que já se escreveu na língua dos anjos.

O mancebo teve um desejo irresistível de ir aquela noite ao espetáculo, apesar de conservar ainda o luto pesado. Não

compreendia esse capricho de seu coração; atribuiu-o ao encanto das reminiscências daquela música tão triste, e também daquele amor tão estremecido, que os homens quiseram romper, mas a fatalidade uniu para sempre no túmulo. Ele ia saturar-se de tristeza; não havia, portanto, profanação de uma dor santa.

Eram perto de dez horas; cantava-se o final do segundo ato da ópera, e Leopoldo, sentado em uma cadeira, do lado direito, estava completamente absorvido no canto magistral de Lagrange e Mirate. Um momento, porém, ergueu os olhos, e volvendo-os lentamente, fitou-os em um camarote de segunda ordem. Estremeceu; o olhar morno e baço que se escapava de sua pupila iluminou-se de fogos sombrios e ardentes.

Vira a mulher amada.

Amélia estava nessa noite em uma de suas horas de inspiração, a mulher bela tem, como o homem de inteligência, em certos momentos influições enérgicas de poesia; nessas ocasiões ambos irradiam- a mulher fica esplêndida, o homem sublime.

O talhe esbelto da moça desenhava-se através da nívea transparência de um lindo vestido de tarlatana com laivos escarlates. Coroava-lhe a fronte o diadema de suas belas tranças, donde resvalavam dois cachos soberbos, que brincavam sobre o colo. Os cabeleireiros chamam esses cachos de arrependimentos, repentirs. Por que motivo? A alma que se arrepende envolve-se daquela forma; o pesar a confrange. Já se vê que os cabeleireiros também são poetas.

Não foi, porém, o suave perfil da moça, nem os contornos maciços de suas formas gentis, o que arrebatou o espírito do mancebo. Ele só viu a luz, o brilho d'alma, rorejando do sorriso. Contemplava a rosa, embebia-se nela, sem contar-lhe as pétalas.

Amélia, que apoiava o lindo braço sobre a almofada de veludo da balaustrada, prestava atenção à cena, recolhendo `as vezes a vista para discorrê-la vagamente pelos camarotes fronteiros. Depois que o pano caiu, conservou-se na mesma posição, conversando com sua mãe e Laura que ali estava de visita. Então voltou rapidamente o rosto, e deixou cair sobre a platéia um olhar súbito e vivo. Foi uma centelha elétrica, listrando no espaço, para logo apagar-se.

Revelou-se no semblante da moça alguma inquietação e visível incômodo. Quis disfarçar, mas afinal ergueu-se, para ocultar-se no interior do camarote, por detrás de Laura, a qual ocupava o outro lugar da frente.

O olhar que deitara à platéia encontrou o olhar profundo e ardente de Leopoldo; e batendo de encontro a esse raio brilhante, reagiu como estilete para feri-la no coração.

Leopoldo notou vagamente esse movimento; mas como entre a coluna e o busto de Laura ele via a sombra da mulher a quem amava, não se interrompeu seu enlevo. De vez em quando passava-lhe pelo rosto um lampejo sutil, no qual pressentia o olhar furtivo da moça.

V

Estava a subir o pano.

Amélia resolvera ficar onde estava, e não tomar o lugar da frente, apesar de Laura ter voltado a seu camarote. Mas essa resolução, tão solidamente calcada em seu coração, caiu de repente: bastou um olhar. Vira na platéia, encostado à balaustrada da orquestra, um elegante cavalheiro.

Era Horácio.

O sorriso brando que manava dos lábios da moça, como a onda pura e cristalina de um ribeiro, desapareceu então sob outro sorriso mais brilhante, que borbulhava como a frol da cascata. Era o sorriso da vaidade, como o outro era da inocência.

A moça colocou-se na frente, fazendo realçar com a graça de seus movimentos a suprema elegância do talhe. Demorou-se mais do que era preciso nesse ato; e sentando-se, houve em seu corpo um impulso quase imperceptível de misteriosa expansão. Dir-se-ia que ela se queria debuxar no quadro iluminado do camarote.

A causa desse elance não o adivinham? O leão tinha assestado seu binóculo de marfim; e a moça com um irresistível assomo de faceirice abandonava-se ao olhar do mancebo.

Durante o ato, Amélia distraiu mais a atenção do semblante pálido de Leopoldo. Enleava os olhos na figura elegante de Horácio; prendia-se ao fino buço negro que sombreava o lábio desdenhoso do leão; embebia-se toda na graça de sua atitude, tentando assim resistir à curiosidade incômoda que atraía sua atenção para o importuno desconhecido.

Não sei por que, Leopoldo, cuja adoração era infatigável como a emanação de uma chama perene, sentiu naquela ocasião a necessidade de dar um repouso à sua contemplação. Então como se a luz que o deslumbrava se fosse tornando mais doce, ele pôde ver destacar-se o perfil gracioso da moça.

— Tem o cabelo castanho! E pena! Acreditava que a mulher a quem amasse algum dia. havia de ser loura. É a cor do reflexo da luz, deve ser a cor desse véu casto que Deus fez para o pudor. A madeixa foi dada à mulher para recatar a face que enrubesce e o seio que palpita; essa gaza preciosa deve ser de ouro, ou antes de graça e esplendor.

O moço já não olhava para Amélia; com as pálpebras cerradas estava agora vendo-a na penumbra d'alma.

— Mas para mim é indiferente que tenha o cabelo castanho; podia tê-lo negro como a treva. Eu a amo, amo sua alma, sua essência pura e imaculada! Se Deus me enviou um anjo para consolar-me em minha aflição, para amparar-me em meu isolamento, para encher de inefáveis júbilos meu ser saturado de amarguras, posso eu queixar-me porque o Senhor o vestiu de uma simples túnica de là, e não de um suntuoso manto de ouro? Eu gostava dos cabelos louros: pois agora só gosto, só quero, só vejo uns cabelos castanhos, porque pertencem a ela, se impregnam de seu perfume e respiram seu hálito!

Terminara o ato. Leopoldo, contemplando a moça, pela primeira vez lembrou-se de saber quem era, na sociedade, aquela mulher que lhe pertencia pelo pensamento. Tinha-se habituado a considerá-la como uma coisa sua; parecia-lhe que ninguém mais existia senão eles dois.

Volveu os olhos em busca de algum conhecido, a quem dirigisse a pergunta. Não encontrou; mas ao cabo de alguns instantes descobriu o leão em seu posto.

— Ah! lá está Horácio que pode me informar, ele conhece todo o mundo! Justamente agora pôs o binóculo para o camarote. Como desejava sair, dirigiu-se para aquele lado; mas o leão, inquieto e preocupado, saíra açodadamente, e subia de um pulo as escadas que o separavam da segunda ordem.

— Aquela mão é irmã do meu adorado pézinho! Não tem a graça dele, sem dúvida, nem se compara com aquele mimo de amor; mas há um certo ar de família, um quer que seja!...

Assim cogitando, Horácio chegara à porta de um camarote, e pela fresta fitara com disfarce o olhar em Laura, cuja mão, excessivamente pequena e calçada por uma luva muito justa, custava a segurar o binóculo de madrepérola.

O moço, apenas reconheceu o vestido de seda violeta e a mãozinha que lhe servira de fanal, abaixou o olhar para a fímbria do vestido a ver se descobria alguma coisa, o peito, a ponta, a sombra ao menos do pézinho mimoso, do ídolo de sua alma. Mas não foi possível: o vestido arrastava no chão; nenhum movimento fazia ondular a seda; e contudo o mancebo ali ficou imóvel, palpitante de emoção, como se esperasse dos lábios da mulher amada o monossílabo que devia decidir de seu destino.

A paixão que o mancebo concebera pela dona incógnita da botina achada, longe de se desvanecer, adquirira uma veemência extrema. Horácio, o feliz conquistador, o coração fogoso e inflamável, nunca ardera por mulher alguma como agora ardia por aquele pézinho idolatrado. Era um verdadeiro amor de leão, terrível e indômito; era um delírio, uma raiva.

Seus amigos já não o reconheciam; ele aparecia nos bailes, nos teatros, nos pontos de reunião, de relance, como um meteoro, seguindo após uma idéia fixa, ou uma sombra que fugia diante de seus passos. Conversou-se muito na Rua do Ouvidor a este respeito. Uns atribuíam o fato inaudito à primeira derrota.

— Horácio, dizia um de seus amigos, como Napoleão, só devia ser derrotado uma vez. Mas essa vez foi Waterloo!

— Que pensa então?

— Que o pobre rapaz caminha para o seu rochedo de Santa Helena. Ou casa aí com alguma mulher feia e rica, ou engorda como um cevado.

Outros lembravam-se de algum desarranjo de fortuna, ou de alguma veleidade política, para explicar o mistério. Mas sabia-se que o moço tinha bom e seguro rendimento; e quanto à política, ele a comparava a uma embriaguez causada pela mais ordinária zurrapa de taberna.

Muitas vezes disse, gracejando, a seus amigos:

— Quando me quiser embriagar, em vez de zurrapa, beberei champanhe. É mais fino, e também mais barato, porque não deixa uma irritação de estômago, cujo preço é muito melhor ao de uma caixa de superior clicquot.

A causa real da mudança do leão, ninguém pois a sabia nem a suspeitava.

Depois do achado da botina, sua vida tomara um aspecto muito diferente. Naquela mesma tarde em que o deixamos na sua casa de Botafogo, terminado o jantar, mandou aprontar o tílburi e voltou à cidade. Seu aparecimento àquela hora na Rua do Ouvidor causou estranheza: um leão de raça, como ele, não passeia ao escurecer, sobretudo no centro do comércio, onde só ficam os que trabalham. Seria misturar-se com os leopardos que aproveitam a ausência dos reis da moda, para restolhar alguma caça retardada.

Correu Horácio todas as lojas de calçado à procura de informações. Para disfarçar sua paixão, inventara uma aposta, como pretexto à sua curiosidade. A um freguês como ele, não se recusava tão pequeno favor, sobretudo quando levava o sainete de uma anedota de bom-tom. A todos eles o leão se dirigia mais ou menos nestes termos:

— Fiz uma aposta com uma senhora: que em todo o Rio de Janeiro não se encontram três moças de 18 anos que calcem n° 29. Tenho todo o empenho em ganhar a aposta, não tanto pelos botões de punho, como porque, se ela perder, há de ser obrigada a mostrar-me seu pé, para eu verificar se é realmente desse tamanho. Peço-lhe, pois, que me dê uma nota das freguesas a quem costuma vender calçado deste número.

Nesta pesquisa gastou Horácio muitos dias, sem colher o menor resultado. Os poucos pares de calçado n° 29, vendidos pelas diferentes lojas, eram destinados a meninas de doze anos ou a pessoas desconhecidas, cuja idade se ignorava. Apesar de tudo o leão não desanimava; todas as manhãs, ao acordar, levantava um plano de campanha, que punha em prática durante o dia.

Horácio sentira-se de repente tomado de indefinível ternura por uma classe, de que antes só se lembrava para amaldiçoá-la: a classe dos sapateiros. Quando via um sujeito de avental de couro e sovela, o leão sentia-se atraído para aquele indivíduo, que talvez encerrasse o segredo de sua felicidade, seu futuro, sua existência. Outras vezes, porém, tinha de repente uns acessos de ciúme selvagem. Lembrando-se que esse operário talvez já houvesse tomado medida ao adorado pézinho; que essas mãos calosas teriam tocado a cútis acetinada do anjo de seus pensamentos, o mancebo sentia em si o furor de Otelo e procurava um punhal no seio; felizmente só achava a carteira, a adaga de ouro com que neste século se assassina mais cruelmente.

Depois de consumir as horas em suas indagações, ia contemplar a botina, prenda querida de seu amor, e prosseguia à noite sua porfia incansável. Corria os espetáculos e bailes, com o olhar rastejando para descobrir por baixo da orla do vestido, o ignoto deus de suas adorações. Não dançava para observar melhor o arregaçado dos vestidos; de ordinário andava pelas escadas e portas, a fim de aproveitar o ensejo da subida e descida; muitas vezes ia fumar junto ao lugar onde se colocavam os lacaios, na esperança de conhecer o portador da botina.

Quando as rainhas da moda, as deusas do salão, surpresas e atônitas, o viam passar sem distingui-las com uma palavra ou uma fineza, ele, atirando-lhes um olhar de compaixão, dizia consigo.

— Coitadas! não sabem que o leão viu a pata da gazela e fareja-lhe o rastro. Que lhe importam as garras da pantera?...

Recolhendo, Horácio acendia duas velas transparentes e colocava-as a um e outro lado da almofada de veludo escarlate, sobre uma mesinha de charão, embutida de madrepérolas. Tirava de um elegante cofre de platina a mimosa botina, e com respeitosa delicadeza deitava-a sobre a almofada, de modo que se visse perfeitamente a graciosa forma do pé que habitara aquele ninho de amor.

Então acendia o charuto, sentava-se numa cadeira de espreguiçar, defronte, porém distante, para que o fumo não se impregnasse na botina, e ficava em muda e arrebatada contemplação até alta noite.

Sobre aquela botina via elevar-se como sobre um pedestal, um vulto de estátua, mas vago, indistinto; e contudo esse esboço sem formas sedutoras, aquela sombra sem alma e sem calor, lhe parecia de uma beleza deslumbrante. Não era ela a mulher a que pertencia o mais formoso pé do mundo, o mimo, a obra-prima da natureza?

Recordava-se das mulheres mais bonitas que tinha visto, das mais lindas senhoras a quem amara com paixão, e sua memória as trazia todas, uma após outra, para as colocar ao lado daquela figura vaga e desvanecida, que planava sobre a almofada como sobre uma nuvem de ouro. Como elas fugiam abatidas e humilhadas diante de seu impetuoso desdém!

— Não são dignas, murmurava ele, nem de beijarem o chão pisado pela fada desta botina!

Eis qual tinha sido a vida de Horácio até o momento em que o vamos encontrar no mesmo lugar defronte da porta entreaberta do camarote. Laura percebeu-o afinal, e sorriu-lhe com ternura. A atenção do rei da moda era uma fineza, um ar de seu real agrado; cumpria-lhe agradecer.

Fitando com mais força o olhar na pupila da moça como para travar-lhe da vontade, Horácio abaixou lentamente esse olhar até a fímbria do vestido de chamalote com uma insistência significativa. Laura fez-se escarlate; e a porta do camarote, rapidamente fechada, a subtraiu às vistas ardentes do leão.

— É ela! exclamou o coração do mancebo afogado em júbilo. Não há dúvida. Para sentir esse pudor exagerado e incompreensível é preciso ter ali oculto um pé como aquele que eu sonhei. Um pé?... Não; um mimo, uma maravilha, um tesouro, um céu!... É o pudor da violeta, que se esconde na sombra; é o pudor da pérola, oculta na concha; é o pudor do diamante, sumido no seio da terra; é o pudor da estrela, imergindo-se no azul.

O leão desceu as escadas murmurando:

— Vê-lo e morrer.

Pouco depois terminou o espetáculo. Amélia com um ressaibo de melancolia na fronte, embuçou-se na peliça e desceu. Ela perdera de vista Horácio, e só o tornara a ver parado em frente à porta do camarote de Laura. Desamparada pelo encanto do gentil mancebo, sofrera todo o resto do espetáculo o desassossego que lhe incutia o olhar de Leopoldo. Por mais que voltasse o rosto, sentia a fosforescência estranha desse olhar repulsivo, que entretanto a prendia, mau grado seu.

Leopoldo esperava no corredor da entrada a passagem da moça, quando avistou a seu lado Horácio. O leão sôfrego e impaciente volvia o olhar em várias direções; naturalmente procurava alguém, e receava que lhe escapasse.

— Adeus, Horácio.

— Boa noite, Leopoldo.

Amélia apareceu nesse momento.

— Conheces aquela moça, Horácio?

— Qual?... Espera!

Horácio tinha avistado Laura, que descia o lanço da escada oposta, e correra pressuroso, com os olhos fitos na fímbria de seda. Seu olhar tinha tal força que parecia um croque a levantar a orla do vestido. Debalde; nem a sombra do pé: o encorpado estofo arrastava pesadamente pelo chão.

Chegou a moça à porta, onde o carro a esperava. Horácio teve um vislumbre de esperança, porém nova decepção o esperava. Não viu mais do que uma nuvem de sedas ondular e sumir-se.

O leão fez um movimento de desespero.

— Senhor! por que em vez de homem não me fizeste estribo de um carro! Teria a felicidade de ser pisado por aquele pézinho.

VI

Seriam duas horas da tarde.

Durante a manhã tinha caído sobre a cidade uma forte neblina, que molhara as calçadas.

Leopoldo dirigia-se a casa pela Rua dos Ourives. Naturalmente vinha pensando na desconhecida que não vira desde a noite do teatro. Sua paixão era intensa e ardente; mas vivia de si mesma, nutria-se da própria seiva. Esperava com plena confiança de seu amor.

A pequena distância do canto da Rua do Ouvidor viu ele de repente a moça que passava na companhia de outras pessoas. Amélia voltara o rosto. Seu olhar cruzou rapidamente com o olhar do mancebo. Ela estremeceu com o costumado calafrio, e acelerou o passo.

Vendo-a sumir-se, encoberta pela esquina, o mancebo também se apressou para acompanhá-la; mas chegou tarde. A moça e as pessoas, que iam em sua companhia, acabavam de entrar em um carro: na elegante vitória que já conhecemos. Leopoldo apenas vira um pé, que na precipitação de subir, levantara demais a saia.

Sem consciência do que fazia, precipitou-se para a portinhola do carro. O lacaio que a fechava nesse momento, embargou-lhe o passo. Quando o carro partiu na direção de São Francisco de Paula, Amélia inclinou-se e lançou de esguelha um olhar vivo para a esquina.

Leopoldo ficara na calçada imóvel e extático de surpresa.

O pé que seus olhos descobriram, era uma enormidade, um monstro, um aleijão. Ao tamanho descomunal para uma senhora, juntava a disformidade. Pesado, chato, sem arqueação e perfil, parecia mais uma base, uma prancha, um tronco, do que um pé humano e sobretudo o pé de uma moça.

Os traços especiais da beleza de Amélia não tinham deixado na memória de Leopoldo a mínima impressão, da primeira vez que a vira, apesar de contemplá-la demoradamente. Entretanto o defeito não lhe escapou, embora passasse de relance diante de seus olhos.

Parece uma singularidade; mas não é. Ninguém conta as pétalas da flor que admira; ninguém repara na forma especial de cada uma das partes de que se compõe um todo gracioso; porém a menor mácula se destaca imediatamente.

É por isso que certos homens, não podendo distinguir-se entre a gente sisuda e honesta, fazem-se nódoas da sociedade; tornam-se vícios e torpezas. Assim adquirem a celebridade, que não obteriam com sua virtude ambígua e seu mesquinho talento.

O Castro, que não admirara o matiz da rosa, notou a mácula e desgostou-se dela. Ele sentia-se com forças para amar o feio e o desgracioso, mas não o disforme, o horrível. Essa aberração da figura humana, embora em um ponto só, lhe parecia o sintoma, senão o efeito, de uma monstruosidade moral.

Triste, acabrunhado por pensamentos acerbos, o moço continuou seu caminho pela Rua dos Ouvires em direção a casa. Mal havia andado alguns passos, arrependeu-se; não queria levar à sua habitação esse primeiro transbordamento de um dissabor tão profundo; era melhor deixá-lo escoar-se antes de recolher à solidão habitual. Se tivesse alguma coisa a fazer! Qualquer ocupação bem aborrecida e maçante, que lhe servisse de antídoto ao desgosto íntimo!

Excogitou. Havia ali perto, na Rua Sete de Setembro, uma pequena loja de sapateiro, ou antes uma tenda, porque além do balcão via-se apenas uma tosca vidraça, contendo a obra de três oficiais que aí trabalhavam.

A loja pertencia a um mestre fluminense, que trabalhara por algum tempo na casa do Guilherme e do Campàs, e se iniciara portanto em todos os segredos da arte. Ninguém a exercia com mais habilidade, esmero e entusiasmo do que ele; sua obra, quando queria, não tinha que invejar ao produto das melhores fábricas de Paris, se não o excedia na elegância e delicadeza.

A razão cardeal de toda a superioridade humana é sem dúvida a vontade. O poder nasce do querer. Sempre que o homem aplique a veemência e perseverante energia de sua alma a um fim, ele vencerá os obstáculos, e se não atingir o alvo, fará pelo menos coisas admiráveis. Mas para que o homem se entregue assim a uma idéia e se cative a um pensamento, é necessário ser atraído irresistivelmente, ser impelido pelo entusiasmo.

É o entusiasmo que faz o poeta e o artista, o sábio e o guerreiro; é o entusiasmo que faz o homem-idéia diferente do homem-máquina. A fábula de Prometeu' não exprime senão a alegoria desse fogo celeste d'alma, que anima as estátuas de Galatéia, embora depois dilacere o coração como a águia do rochedo. Uma faísca dessa eletricidade moral opera maravilhas iguais à centelha do raio. O que é o telégrafo a par com a eloqüência?

O Matos tinha o entusiasmo de sua arte; descobrira nela segredos e encantos desconhecidos aos mercenários. Para ele o calçado era uma escultura; copiava em seda e couro, assim como o cinzel copia em gesso e mármore. Os outros artistas da forma reproduzem todo o vulto humano ou pelo menos o busto; ele só tinha um assunto, o pé. Mas que importância não tomava a seus olhos esta parte do corpo! Era preciso ouvi-lo, em algum momento de arroubo, para fazer idéia de sua admiração por esse membro da criatura racional.

Depois de trabalhar muitos anos em casas francesas, o mestre fluminense resolveu estabelecer-se por sua conta. Alugou uma pequena loja de duas portas, onde trabalhava com dois oficiais. A necessidade de ganhar o pão o obrigava a tornar-se mercenário, fazendo obra de carregação para vender barato. Mas no meio dessa tarefa ingrata tinha ele suas delícias de artista. Meia dúzia de fregueses, conhecedores da habilidade do sapateiro, preferiam seu calçado ao melhor de Paris, e o pagavam generosamente. Essas raras encomendas, o Matos as executava com enlevo; revia-se em sua obra, verdadeiro primor.

Leopoldo não era um freguês da última classe; ele não conhecia a voluptuosidade de um calçado macio, antes luva do que sapato; seu pé não era um enfant gaté, um benjamim acostumado a essas delícias; desde a infância o habituara a uma vida rude e austera entre a sola rija e o bezerro. Além de que seus haveres não chegavam para tais prodigalidades.

O moço pertencia à classe dos fregueses da obra de carregação, e preferia a loja do Matos pela modicidade do preço, e boa qualidade do cabedal, como do trabalho.

Que misteriosa associação de idéias trouxera à lembrança de Leopoldo, naquele momento, a tenda do sapateiro? E por que motivo se dirigiu ele para ali onde estivera na véspera, e não para qualquer outro lugar, em que poderia melhor espancar seu dissabor?

O motivo, nem ele mesmo o sabia naquele instante.

— Bom dia! As botinas estão prontas? disse entrando.

O Matos, que atendia a alguns fregueses perto da vidraça, olhou-o surpreso:

— Não disse ontem a V. Sa que só para o fim da semana?

— É verdade!

— Tinha entre mãos esta encomenda. Mas já acabei; agora posso ajudar os companheiros.

O Matos indicara alguns pares de calçado que estavam no mostrador sobre folhas de papel e prontos a serem embrulhados.

Leopoldo, chegando-se para o balcão, principiou a examinar a obra acabada, com a distraída curiosidade de quem deseja esperdiçar alguns momentos, para escapar a um aborrecimento ou para apressar um prazer. Era trabalho fino do mestre, e contudo não excitaria grande atenção da parte do moço, se não fosse um par de botinas de senhora já usadas e meio encobertas pelo papel com outra obra. A medida era enorme no comprimento e na altura; por isso, como pelo feitio, devia excitar-lhe reparo.

Na véspera quando viera à loja, casualmente observara a obra que o Matos estava acabando. Vendo há pouco na Rua do Ouvidor o pé monstruoso da moça, tivera uma confusa e tênue reminiscência das botinas da loja. Fora esse o fio misterioso que o conduzira insensivelmente àquela casa. Agora compreendia a encadeação: a botina monstro pertencia sem dúvida ao pé aleijão.

Leopoldo depois que entrevira sob a orla do vestido o pé da moça, ainda alimentava uma dúvida, que pretendia cevar com todas as sutilezas e argúcias de seu espírito. Talvez ele visse mal; talvez a sombra, o estribo do carro, qualquer outro objeto o tivesse iludido. O aleijão só existia em sua imaginação; fora um desvario dos sentidos. Com efeito, como supor que uma senhora pudesse andar graciosamente com semelhante pata de elefante?

Mas as botinas aí estavam sobre o balcão que não lhe deixavam a menor dúvida. O pé disforme existia; era aquele o seu molde, o seu corpo de delito, e por ele se podia ver quanto devia ser horrível a realidade. Agora Leopoldo podia apreciar os traços parciais que lhe tinham escapado pela manhã; esse pé era cheio de bossas como um tubérculo; não arremedava nem de longe o contorno dessa parte do corpo humano: era uma posta de carne, um cepo!

Junto dessa deformidade morta, inventada para cobrir a deformidade viva, havia outra obra que chamara a atenção do mancebo por sua singularidade. À primeira vista era um volume semelhante ao das botinas monstruosas embora de linhas regulares: parecia uma ligeira almofada preta sobre a qual se elevasse uma botina de senhora, muito elegante apesar de comprida. O tubo cinzento ficava oculto sob frocos de cetim escarlate. Do rosto ao bico descia um galho de rosas, cujas hastes cingiam graciosamente, como uma grinalda, toda a volta do pé até o calcanhar.

Uma das botinas ainda tinha dentro a fôrma; enquanto a outra já estava sem ela. Naturalmente o Matos procedia àquela operação quando foi distraído pelos fregueses e compradores; deixara-a pois em meio, deitando em cima da obra, para encobri-la, uma folha de papel.

A fôrma não podia passar despercebida ao observador. Vendo pouco antes a botina disforme, Leopoldo a tinha considerado o modelo exato do pé monstruoso, que ele avistara. Enganara-se: a botina era já o disfarce, a máscara do aleijão. Sua cópia ali estava em horrível nudez, no grosseiro toco de pau, cheio de buracos e protuberâncias.

Mas se essa observação acabou de esmagar o coração do mancebo, levou insensivelmente seu espírito a apreciar pela primeira vez a superioridade do Matos em sua arte. Ali estava a imagem do aleijão, o calçado que outros sapateiros lhe fariam para cobrir a monstruosidade, sem a dissimular. Entretanto, o mestre fluminense conseguira, por um esforço feliz, desvanecer a deformidade sob a aparência de uma botina elegante.

A almofada sobre que parecia descansar a botina, era um solado alto porém oco, onde as carnes moles do pé monstruoso, comprimidas pela botina superior, podiam abrigar-se.

Os frocos de cetim e as grinaldas de rosas enchiam as covas e desvaneciam as protuberâncias ósseas, com muita delicadeza, sem avolumar o tamanho do coturno. Na sola negra se debuxava, em proporção à botina superior, a alva palmilha com seus contornos harmoniosos; de modo que olhando-se andar a pessoa, não se perceberia facilmente o tamanho do calçado.

Acabara o Matos de aviar os fregueses, e chegando-se para o balcão, incomodou-se com ver o moço a observar a obra; ia talvez interrompê-lo rispidamente, quando percebeu em seu rosto uma expressão viva de ardente admiração. O artista ficou lisonjeado com esse elogio tão eloqüente em sua mudez; e à contrariedade sucedeu a satisfação do amor-próprio.

Foi Leopoldo, que, percebendo junto de si o sapateiro parado, afastou-se do balcão, receando ter sido indiscreto. Ia sair, quando entrou na loja um lacaio de libré azul com vivos de escarlate e branco. O mancebo o reconheceu pelas feições; era o mesmo que o impedira de chegar à portinhola do carro, na Rua do Ouvidor.

— Ah! exclamou o Matos, avistando o criado. Está quase pronto.

— Não posso esperar! replicou o lacaio com a insolência do rafeiro de casa rica.

— É só embrulhar.

Leopoldo disfarçava; fingindo olhar o calçado exposto na vidraça, viu de esguelha o sapateiro tirar a fôrma da outra botina, bater o ponto e dar o último polimento à sua obra; feito o que arranjou o embrulho.

— Está bem amarrado? perguntou o lacaio. Olhe que da outra vez já se perdeu uma botina por sua causa, e eu é que levei a culpa.

— Não tenha susto; desta vez está bem seguro, respondeu o Matos.

Foi-se o lacaio; e Leopoldo com o semblante carregado de tristeza, despediu-se, arrependido de ter ido à loja. Que saudades tinha da sua dúvida!

— A dúvida, pensava ele, é ainda um raio de esperança!

VII

A esse tempo Horácio, sentado em uma poltrona na casa de Bernardo, fumava o seu conchita, com o olhar, ora na calçada, ora no espelho fronteiro, à espreita do menor vulto de mulher.

O leão pensava:

— Choveu; as ruas ainda estão molhadas. Qual é a senhora que tendo um pé mimoso e uma perna bonita, não aproveita um destes dias para atravessar a Rua do Ouvidor? Se deixarem escapar estes pretextos de mostrar semelhantes maravilhas, morrerão elas desconhecidas, apenas vistas por um dono avaro, mas nunca admiradas, porque a admiração é sentimento que precisa da luz plena, da grande expansão. Se a Vênus de Praxíteles existisse, mas só para mim, palavra de honra que sua beleza não excitaria em minha alma o menor entusiasmo.

Nessa ocasião Amélia passava diante da loja, e voltando-se recebeu a cortesia do leão, a quem respondeu com um sorriso amável. Parando na vidraça, achou ela pretexto para entrar, e comprou uma galanteria Durante esse tempo Horácio recebeu por diversas vezes o olhar e o sorriso da moça.

Acompanhando com a vista o passo airoso e sutil de Amélia, Horácio exclamou, dirigindo-se ao caixeiro do Bernardo:

— Que passo gracioso! É o andar da garça!

Estas palavras foram ditas em voz bastante alta, para que a moça ouvisse; um ligeiro estremecimento que se notou na suave ondulação do talhe revelou que o leão lograra seu desejo. A moça ouvira com efeito a fineza.

Recostado de novo na poltrona o leão continuou a pensar:

— Realmente, que elegância no andar! Eu seria capaz de apostar que esse andar era do pézinho, do meu adorado pézinho, se já não tivesse descoberto a dona do primor. Mas Laura não vem!... O criado me disse que ao meio-dia, e é quase uma hora! Terá mudado de resolução?... Não duvido, com aquele zelo feroz que tem por sua jóia, talvez não quisesse vir para não ser obrigada a mostrá-la. Um avaro não fecha com mais cuidado a burra, do que ela esconde seu tesouro. Que pecado! Subtrair ao mundo essa maravilha que Deus fez para ser admirada! Ah! eu desejava ser uma nação; assim como há demônios-legiões, por que não pode haver homens-povos? Se o fosse, daria um trono a essa mulher, somente para que ela instituísse o beija-pé. Como eu seria cortesão! Como eu a beijaria por minhas cem bocas de súdito!

O mancebo sobressaltou-se; vira uma sombra que assomava no espelho fronteiro. Era Laura. Que devia fazer? Correr à porta para ser visto pela moça ou deixar-se ficar na poltrona para melhor descobrir o pé adorado?

A atitude do leão revelava a hesitação de seu espírito; com o corpo lançado à frente parecia fazer um esforço para se conservar sentado. Laura, que de seu lado já o tinha avistado no espelho, ficara em um estado de perturbação indizível.

— Que tem, prima? perguntou-lhe um senhor que a acompanhava.

— Nada! balbuciou a moça.

A princípio Laura fizera um movimento para recuar, mas arrependendo-se avançou com afoiteza, e passou rapidamente pela frente da loja, sem volver um olhar para dentro. Por mais que o leão se derreasse na poltrona, não logrou ver coisa alguma; a senhora arrastava a fímbria do vestido pela calçada coberta de lama, com o mesmo descuido que teria se caminhasse sobre rico tapete.

— Está zangada comigo; está furiosa! Desde a noite do teatro que não me pode ver; e parece que preparou-se para o assalto, porque achei as avenidas da praça já tomadas e vigorosamente defendidas. A mucama é uma Górgona, o porteiro um Cérbero; apenas consegui abrandar o moleque, porque é um idiota!... Nunca vi uma ferocidade igual; creio que a leoa da floresta não defende seu cachorrinho com sanha igual à desta leoa de sala. Parece incrível; mas eu conheço de quanto é capaz a vaidade da mulher. Todo este furor não é mais do que um assomo de faceirice; percebeu que estou apaixonado pelo pézinho mimoso, e quer-me trazer atado como um cativo ao seu carro de triunfo. Realmente uma moça bonita não pode ter maior satisfação: ver-me a mim, Horácio de Almeida, o primeiro conquistador do Rio de Janeiro, curvar-se humilde, não a seu olhar, a seu sorriso, à beleza de seu rosto, ou à graça de seu talhe, mas à planta de seus pés divinos! Fazer-me tapete de seus passos!... Que pode mais desejar a rainha dos salões fluminenses?

O moço mordeu a ponta do bigode negro e ficou alguns instantes muito pensativo.

— É preciso mudar o plano de ataque! Comecei à maneira de César, atacando com impetuosidade. Vou contemporizar conforme a escola de Fábio; simulo uma retirada; o inimigo avança, eu o envolvo; corto-lhe a retirada, e ele rende-se. Arraso o Humaitá daquele vestido que defende o meu pézinho adorado como uma casamata. A indiferença é a serpente tentadora da mulher.

Em conseqüência destas reflexões, Horácio deixou-se ficar onde estava, e não seguiu a moça. Quando supôs que ela já ia distante, foi procurar algures, em um bilhar, o preservativo contra a tentação de cortejá-la, ou antes o seu pézinho.

— Ela há de reparar no meu eclipse! murmurou com certa confiança.

Entretanto Laura, descendo a Rua do Ouvidor, encontrara pouco adiante, na casa do Masset, Amélia em companhia da mãe. As duas amigas não podendo vir juntas, tinham ajustado seu encontro para aquele ponto. O primo despediu-se, e as senhoras continuaram seu itinerário pelas diferentes lojas e casas de modas.

Ao cabo de duas ou três horas, tomaram o carro que estava parado próximo à Rua dos Ouvires e partiram na direção do Catete. A poucos passos dali, Amélia perguntou ao lacaio sentado na almofada:

— Trouxe?

— Sim, senhora; está aí dentro.

— Bem!

O carro aproximava-se do Largo da Lapa, quando Amélia disse:

— Podíamos ir agora ao Passeio Público?

— Tão tarde! replicou Laura.

— Deixa-te disso! observou a mãe da moça.

— Por quê, mamãe? Há tanto tempo que lá não vamos.

— Não há nada de novo.

— Ora, eu queria ver a garça. Ainda não a vi.

— Viste, sim!

— Mas não reparei numa coisa!...

— Em quê?

— Uma coisa. Depois direi.

Tanto insistiu que a mãe cedeu a seu capricho, e deu ordem ao cocheiro que chegasse até o portão do Passeio Público. As senhoras desapareceram na curva de uma das alamedas do parque, em direção ao lago. Amélia queria ver o andar da garça, que Horácio tinha comparado ao seu.

Nessa ocasião passava o tílburi do nosso leão, que vinha do lado da Ajuda. Um atropelo, produzido por uma gôndola mal conduzida, ia atirando o tílburi sobre o carro parado no portão do Passeio Público. Este incidente chamou a atenção do moço para o cocheiro, que derreado sobre a almofada não se movera.

A memória apresenta às vezes um fenômeno curioso; conserva por muito tempo oculta e sopitada uma impressão de que não temos a menor consciência. De repente, porém, uma circunstância qualquer evoca essa reminiscência apagada; e ela ressurge com vigor e fidelidade.

Foi o que sucedeu a Horácio. Minutos antes, por maiores esforços que fizesse para recordar-se da libré do lacaio, portador da botina perdida, não o conseguiria decerto. Entretanto bastou-lhe ver a roupa do cocheiro, para acudir-lhe imediatamente ao espírito a imagem desvanecida. Era esse o carro, que vira quinze dias antes na Rua da Quitanda; não havia dúvida.

O leão mandou parar o tílburi e entrou no Passeio Público; depois de percorrer inutilmente várias alamedas, afinal descobriu entre as árvores, além do lago, as ondulações dos vestidos de algumas senhoras acompanhadas por um lacaio, e tomou apressadamente aquela direção.

O terreno estava úmido da chuva da manhã; e por isso o pé dos passeadores deixava o rasto impresso na branca e fina areia das alamedas. Notando esta circunstância, Horácio procurou o vestígio de alguma botina irmã da que achara, e guardava como uma relíquia; ficou ébrio de contentamento reconhecendo entre muitas pegadas o leve debuxo que deixara no chão o mimoso pézinho.

Se não fosse o anelo de alcançar as senhoras e reconhecer a dona incógnita do tesouro, Horácio se houvera ajoelhado a beijar o rasto da fada de seus amores; mas as senhoras caminhavam rapidamente para o portão.

Por mais que se apressasse o leão, chegando à saída, apenas viu o carro que partia. Felizmente adiantando-se pôde reconhecer Amélia, que lhe sorriu e inclinou-se para acompanhá-lo com os olhos.

— E ela! Que pateta sou eu! Devia ter adivinhado. Há pouco, vendo-a passar pela Rua do Ouvidor, tive um pressentimento! Aquele andar cheio de graça não podia enganar.

No dia. seguinte o leão fez-se apresentar ao pai de Amélia, abastado consignatário de café, estabelecido à Rua Direita. O encontro deu-se na Praça do Comércio. Horácio aí foi a pretexto de comprar apólices; e um amigo, corretor de fundos, prestou-lhe aquele serviço. O negociante ofereceu a casa ao moço que aceitou a fineza com efusão de contentamento.

O Sr. Pereira Sales habitava nas Laranjeiras uma bela chácara. Amélia era filha única, e seu dote, convertido em cem apólices, só esperava o noivo. Quanto à mulher, tinha uma boa pensão instituída no montepio geral. Seguro assim o futuro, vivia o negociante com certa largueza, economizando pouco ou nada de seus lucros anuais.

Quando Horácio teve conhecimento destas particularidades domésticas, sorriu.— Bem! O meu pézinho tem um dote para seu calçado. Pode andar com luxo!

A primeira vez que Horácio visitou a família de Pereira Sales, encontrou Laura na sala; a moça fora passar a noite com a

amiga, e conversava jovialmente. Apenas viu o leão, demudou-se; e instantes depois, inventou um pretexto para retirar-se, apesar das instâncias de Amélia.

Horácio pouca ou nenhuma atenção deu à mudança que se tinha operado em Laura, em sua retirada repentina. Desde que a moça não era a dona feliz do mais lindo pé do mundo, tornava-se para ele uma criatura indiferente; tanto mais quanto sua alma estava ali de rojo beijando a fímbria de seda, que lhe ocultava o tão ansiado tesouro.

Em Amélia, várias impressões produziu a apresentação do moço. No primeiro momento acreditou que o leão viera atraído por ela; mais tarde, lembrando-se do teatro, suspeitou que fosse apenas um meio de aproximar-se de Laura; finalmente ocorreu-lhe que podia não passar de um encontro casual de seu pai, e de uma delicadeza da parte de Horácio.

Suas dúvidas porém se dissiparam poucos dias depois.

Uma noite a moça, impelida por um movimento de faceirice, soltou estas palavras, no meio de uma conversa com o leão:

— Laura está uma ingrata! Há tanto tempo que não vem passar uma noite comigo.

Ao mesmo tempo fitava os olhos no moço para ver a expressão de sua fisionomia.

— É uma fineza de sua amiga, que eu agradeço de coração, respondeu Horácio.

— Uma fineza?... perguntou Amélia pressentindo laivos de ironia.

— Quando sua amiga está aqui, a senhora sem dúvida não a deixa!

— É muito natural.

— Já vê pois que eu tenho razão. Se ela viesse...

— Eu teria ciúmes, D. Amélia,

A moça corou.

— Pois amanhã Laura há de passar a noite comigo.

Estas palavras foram ditas com o estouvamento da menina, que procura disfarçar um prazer sob a máscara da contrariedade. Mas a máscara é tão risonha, que não ilude.

— Quer-me tanto mal assim? perguntou Horácio. Não admira; uma paixão ardente e impetuosa, como eu sinto pela senhora,

não devia ter outra sorte. O verdadeiro amor foi e será sempre infeliz; não há mulher que o compreenda.

Amélia com as faces a arder não sabia que fizesse; sua mão trêmula brincava com as flores de um vaso, que vacilou sobre o consolo e caiu no chão. O fracasso da porcelana, despedaçando-se, chamou a atenção das pessoas que estavam na sala; assim rompeu-se o enleio de Amélia.

A moça retirou-se confusa para o interior da casa. Momentos depois entrou de novo na sala, já serena e prazenteira. Seus olhos procuraram Horácio, para oferecer-lhe o meigo sorriso que trazia nos lábios.

Esse sorriso dizia em sua eloqüência muda o seguinte:

— Se nunca a mulher soube compreender a verdadeira paixão, serei eu a primeira.

Foi esta pelo menos a tradução de Horácio, perfeito filólogo do amor, e habituado a decifrar esses hieróglifos dos lábios de mulher.

VIII

Não abandonemos o pobre Leopoldo à sua amarga decepção.

O moço chegara a casa mergulhado na tristeza profunda, que sobre ele derramaram os acontecimentos da manhã. Talvez a morte de Amélia não lhe causasse tamanho pesar, como o daquela cruel decepção que estava presentemente curtindo.

O aleijão excita geralmente uma invencível repugnância, repassada de terror. A aberração da forma humana abate o orgulho do bípede implume, fazendo-o descer abaixo do orangotango. Ao mesmo tempo, é ameaça viva a uma das mais caras aspirações do homem: a esperança de renascer em outra criatura, gerada de seu ser. Se a fatalidade pesar sobre a prole querida?

Imagine-se que dor era a do mancebo, quando via a deformidade surgir de repente para esmagar em seu coração a imagem da mulher amada, da virgem de seus castos sonhos?

O contraste sobretudo era terrível. Se Amélia fosse feia, o senão do pé não passara de um defeito; não quebraria a harmonia do todo. Mas Amélia era linda, e não somente linda; tinha a beleza regular, suave e pura que se pode chamar a melodia da forma. A desproporção grosseira de um membro tornava-se pois, nessa estátua perfeita, uma verdadeira monstruosidade. Era um berro no meio de uma sinfonia; era um disparate da natureza, uma superfetação do horrível no belo. Fazia lembrar os ídolos e fetiches do Oriente, onde a imaginação doentia do povo reúne em uma só imagem o símbolo dos maiores contrastes.

Nessa angústia passou Leopoldo o resto daquele dia e os que se lhe seguiram.

— Não amo a sua beleza material, oh, não! pensava o mancebo. O que eu adoro nela é a beleza moral, a alma nobre e pura, a criatura celeste, a luz, o anjo. Qualquer que fosse o invólucro de seu espírito imaculado, creio que havia de adorá-la tanto, como a adorei desde o momento em que primeiro a vi.

"Fosse ela feia para os outros, que chamam formosura o que lhes encanta os sentidos, para mim seria sempre bela, porque meus olhos haviam de vê-la através de seu esplêndido sorriso. O que é o corpo humano no fim de contas? O que é o contorno suave de um talhe elegante, e a cútis acetinada de um rosto ou de um colo mimoso? Um pouco de matéria a que a luz transmite a cor, o espírito e a vida. Tirem-lhe esses dois alentos, e verão que lodo impuro e nauseante ficam sendo aquelas formas sedutoras."

"Pois luz e espírito não eram a essência da alma de Amélia? Quando essa alma a vestia com uma túnica resplandecente, que mulher se lhe podia comparar em lindeza? Então não era somente formosa, flutuava em um éter de beleza deslumbrante."

"Mas ela não é feia, é aleijada!..."

Um soluço afogou as tristes lucubrações do mancebo. Ele repassou outra vez na mente as circunstâncias de sua triste descoberta; quis duvidar, combateu pertinazmente sua própria razão que lhe apresentava a realidade, e afinal sucumbiu, curvando-se à implacável certeza. Tinha visto uma vez, e como essa não bastasse, o acaso lhe oferecera ocasião de apalpar a verdade e saciar-se dela.

— Não se admira a Vênus de Milo, uma estátua mutilada? dizia o mancebo relutando contra sua viva repugnância. Não se

admira o primor da arte grega, apesar de não restar dela mais do que uma cabeça e um torso de mulher? Essa beleza truncada não vale a beleza aleijada? A mutilação não repugna tanto ou mais do que a deformidade?

A razão de Leopoldo não o deixava embalar-se muito tempo nesse pensamento consolador Replicava logo, refutando vigorosamente as argúcias do coração:

— A estátua mutilada, que excita a admiração do mundo, não é a cópia integral da beleza que lhe servia de tipo, mas um

fragmento apenas dessa cópia. A alma, que se extasia na contemplação desse fragmento, recompõe o ideal do artista. Admira-se a Vênus de Milo, como se admira um esboço não acabado de Rafael; como se admira a pétala de uma rosa, arrancada da corola. Mas, fosse embora aquele primor de estatuária a reprodução exata de uma mulher, a mutilação respeita a beleza; o aleijão a deturpa. Se a mulher que se ama perdesse um pé, seria desgraçada; com um pé monstruoso, é mais do que desgraçada, é repulsiva.

Leopoldo deixava-se convencer por estas sugestões:

— Infelizmente assim é. Mas por que há de ser assim? A mutilação é um fato humano; o aleijão é um fato natural. Essa aberração do princípio criador, esse desvio da forma primitiva, indicam sem dúvida um vício na essência do organismo. Não se tem verificado que nos corpos mal conformados de nascença habita sempre uma alma enferma? Nos corcundas sobretudo, porque a espinha dorsal é o tronco da inteligência. A deformidade de um membro, de um ramo apenas, não denota eiva tão profunda do espírito, é certo, mas revela que a alma não é nobre e superior. Não se concebe o anjo dentro de um aleijão.

O resultado destas cogitações era a gota de fel espremido, que ia filtrando a pouco e pouco no coração e acabaria por saturar todas as doces reminiscências dos últimos dias. Leopoldo convenceu-se que não devia amar a desconhecida; mas, ao contrário, arrancar de sua alma os germes da paixão nascente.

Tomando esta.resolução, o moço, que vivia muito retirado depois de suas desgraças de família, esteve a lembrar-se de algumas antigas relações. Veio-lhe o desejo de cultivá-las de novo. Um instinto lhe dizia que para gastar as primícias de um coração virgem, não há como o atrito do mundo.

Entre as casas que outrora freqüentava, escolheu para a primeira noite a de D. Clementina, amiga íntima de sua irmã. Era uma senhora já no declínio da idade e da formosura; gostava muito de dançar, e por isso reunia constantemente em sua sala as moças de sua amizade. Logo que se achavam presentes quatro pares, a dona da casa dava o sinal, o marido arredava a mesa do centro, o filho, menino de quinze anos, sentava-se ao piano e...

— Chassé-croisé! gritava D. Clementina.

Nesta casa Leopoldo tinha certeza, não só de ser bem recebido, como de encontrar bastante arruído para aturdir-se e abafar uns gemidos que sentia às vezes repercutirem no coração. Tinham decorrido cinco dias depois da decepção; às oito horas da noite entrou o moço na sala de D. Clementina, que o recebeu com surpresa cheia de amabilidades.

Além de estimado, acontecia que ele era justamente o quarto par. Tirado o dono da casa, o Sr. Campos, o filho Alfredo, e três velhas, inválidas da dança, havia na sala cinco senhoras para dois cavalheiros; servindo uma senhora de cavalheiro, ainda faltava metade de um par.

Quando a campainha anunciou mais uma visita, D. Clementina de olhos fitos na porta da sala, dispôs-se a receber o recém-chegado com o seu mais afável sorriso. Vendo Leopoldo, correu a ele, e desfolhando-lhe um ramalhete de amabilidades, trançou-lhe o braço; antes que o moço tomasse pé na sala, era arrebatado pela quadrilha, a compasso de galope.

Realmente ele não podia escolher melhor. A agitação daquela dança rápida, sem pausa; a confusão que os pares criavam de propósito para aumentar a animação; os risos e gracejos que provocavam os menores incidentes da quadrilha; todo esse rumor e atropelo tinham por tal forma sacudido o espírito de Leopoldo, que as idéias e recordações tristes lhe caíram, como as folhas secas de uma árvore, abalada pelo vento rijo do outono.

Sentiu o coração vazio, porém tranqüilo; o prazer vivo e cintilante daquela reunião, apenas roçava-lhe pela superfície; não penetrava, mas também já não transudavam-lhe do íntimo as amarguras de que nos últimos dias se tinha saturado.

De repente operou-se na perspectiva da sala uma transformação inesperada. Amélia entrara; e sua graça difundiu-se com um influxo celeste, no meneio de seu talhe elegante, na suavidade de sua voz, na irradiação de seus olhares.

Leopoldo embebeu-se naquela suave aparição, como da primeira vez que a vira, mas para percorrer em um ápice, as fases de seu amor, e cair de novo na esmagadora decepção.

De repente aquela estátua luminosa escureceu a seus olhos deixando apenas um resíduo negro: esqueleto calcinado que arrastava uma deformidade. Debalde Amélia se ostentava no fulgor de sua beleza, toucada pelos primeiros arrebóis do amor; debalde as ondulações de seu corpo debuxavam formas encantadoras, e o sorriso de seus lábios destilava uma fragrância mística de beijos puros; os olhos de Leopoldo não viam nenhum desses encantos. Através dos folhos do vestido roçagante, sua vista fitava-se implacável no pé monstruoso que lhe esmagava o coração como a pata grosseira de um animal.

Todos os encantos dessa criatura, ele os despia de seu manto sedutor e dissecava-os com frio rancor. A inflexão voluptuosa do talhe provinha da resistência que opunha ao andar o enorme pé; o passo ligeiro era um esforço supremo para disfarçar o aleijão, o sorriso gracioso um enleio para prender os olhos estranhos, não permitindo que eles se abaixassem até à fímbria do vestido.

E por isso mesmo o olhar de Leopoldo, olhar frio, cruel, inexorável, se tinha cravado na orla da saia elegante, donde não havia forças para arrancá-lo.

Amélia sentiu esse olhar cruciante e estremeceu, tomada de um vago terror. Imediatamente sentou-se, e arranjando as dobras do vestido, procurou disfarçar; mas em vão: o olhar do moço continuava fito no mesmo ponto e produzia nela uma sensação incômoda.

— É D. Amélia, filha de um negociante, chamado Sales. Não conhece?

Estas palavras foram dirigidas a Leopoldo por D. Clementina, que sentando-se a seu lado, acompanhou-lhe o olhar fito.

— Não, minha senhora.

— Então vou apresentá-lo.

— Obrigado, D. Clementina; depois.

— Não acha muito galante?

Leopoldo hesitou:

— Oh! muito! . . .

Viera-lhe nessa ocasião o mesmo ímpeto que sentem de ordinário os amantes em igual situação: o de criticar e desmerecer nas prendas da mulher que os faz sofrer. É uma reação natural do coração; Leopoldo, porém, julgou indigno de si tal procedimento; tinha o direito de afastar-se, de fugir com horror dessa mulher, mas não o de ofendê-la. A culpa de amá-la era sua, e não dela.

Aproveitou um momento de distração da dona da casa, para tomar o chapéu e esquivar-se sem que o percebessem.

Amélia, porém, o viu; seus olhos ficaram por algum tempo presos na porta por onde acabava o moço de sair. Quando, passado um instante, caiu em si, ficou surpreendida. Que tinha ela com aquele desconhecido?

Ao chegar, vendo o rosto pálido e os olhos profundos, que tão desagradável impressão haviam deixado em seu espírito, a moça havia sentido um mal-estar íntimo. Vinha com a alma cheia das primeiras delícias de um amor nascente; com as doces emoções da declaração de Horácio. A presença de Leopoldo foi um travo.

Mas também para que viera? Por que não ficara em sua casa esperando Horácio?

Vão lá sondar o coração feminino. Agora que sabia-se amada, a moça queria gozar de seu triunfo, e ver humilde e abatido a seus pés o rei da moda, o soberbo leão. O meio era fazer-se ardentemente desejada, tornar-se difícil e esquiva, embora lhe custasse o sacrifício dos momentos agradáveis que podia passar junto de Horácio.

A presença de Leopoldo em casa de D. Clementina a incomodara, e entretanto seu olhar parecia agora sentir a ausência do mancebo.

A princípio havia ali uma pessoa demais; agora faltava alguma coisa. Se não era um homem, era uma curiosidade, uma emoção.

— Amélia!

A moça voltou-se para ouvir D. Clementina que a chamava.

— Quero apresentar-lhe um moço, que a acha muito bonita.

Dizendo estas palavras, a dona da casa corria os olhos pela sala à busca de alguém.

— Não o vejo agora.

— Quem é?

— O Castro... Conhece?...

— Não, senhora.

— Querem ver que já se retirou?

Amélia pôde reter o monossílabo que ia cair-lhe do lábio, confirmando a suposição da dona da casa. Tinha adivinhado que se tratava do seu desconhecido.

— Então ele me acha bonita?

— O Castro?... Muito. Creio que ficou apaixonado! Se visse os olhos que lhe deitava quando a senhora chegou!

— Então foi de paixão que ele fugiu?

— Quem sabe? A paixão é como o vinho que em uns dá para rir, e em outros para chorar. Há namorados que perseguem, e outros que fogem!

Amélia julgou prudente desviar a conversa daquele assunto escabroso, no qual D. Clementina se comprazia, porque lhe recordava sua mocidade já desvanecida.

IX

Depois daquela noite Leopoldo viu Amélia duas ou três vezes; e de todas sentiu a mesma impressão que lhe causara a presença da moça em casa de D. Clementina.

Era o mesmo desencanto, a mesma insistência de seu espírito para enxergar a formosura da donzela através de um prisma deforme e caricato. Nessas ocasiões ele sofria diante da moça a fascinação do horrível, como o poeta sofre muitas vezes a fascinação do belo em face de um objeto desgracioso. Era então um poeta pelo avesso; um vate do monstruoso. Tinha na imaginação um gnomo de Victor Hugo: criava Quasímodos e Gwynplaines do sexo feminino com uma fecundidade espantosa.

Quando porém a moça desaparecia de seus olhos, operava-se em seu espírito completa mutação. Esquecia completamente o aleijão, para só lembrar a linda e graciosa figura, que poucos momentos antes sua vista repelia. Amélia ausente vingava Amélia presente. O coração do mancebo detestava tanto esta, quanto adorava ainda a outra.

— Este amor é um inferno, pensava ele; tem um vício orgânico. Há de viver de dores e lágrimas; há de alimentar-se de minhas tristezas. E assim irá definhando até morrer de consunção, depois que me tiver devorado todo o coração. Que importa? Servirei de pasto a este abutre. O que somos nós afinal de contas? Uma presa; enquanto vivos, a presa das moléstias e das paixões próprias ou alheias; depois de mortos, a presa dos vermes ou das chamas.

Com tal disposição de espírito voltou ele dias depois à casa de D. Clementina. Nesta noite havia uma pequena partida; Leopoldo contava, pois, encontrar Amélia.

Ali estava com efeito, vestida de escarlate e branco; e adornada com a sua graça arrebatadora. Quando o moço entrou, ela dançava com as costas voltadas para a porta e não o viu; porém, momentos depois virou o rosto como se obedecesse a um impulso estranho, e encontrou o olhar ardente de Leopoldo.

A moça fez insensivelmente um movimento para afastar-se, que entretanto a aproximou da porta. Aquele olhar que a atraía ao mesmo tempo que a repelia, causou-lhe um desvanecimento misturado de terror. Felizmente a terceira figura da marca da contradança começava, e a distraiu de sua emoção.

Estava ela outra vez parada conversando com o par, quando sentiu um calafrio; sem ver, conheceu que o mancebo se aproximava, que seus lábios se abriam para dirigir-lhe a palavra:

— Minha senhora, terei a honra de dançar com V. Exa a seguinte quadrilha...

Continham uma pergunta ou uma asseveração estas palavras? Fora impossível dizê-lo. O tom parecia mais afirmativo do que interrogativo, porém o olhar do mancebo esperava, se não exigia resposta.

A confusão da dança permitiu a Amélia esquivar-se, sem responder. Quando, terminada a quadrilha, voltou a seu lugar, ficou perplexa. Tinha ela se comprometido ou não a dançar a seguinte quadrilha com Leopoldo? Não respondera, é certo; mas recordava-se vagamente de ter feito uma leve inclinação com a cabeça. Sem dúvida o moço vira esse movimento e o tomara por um sinal de assentimento.

Quando um de seus inúmeros admiradores vinha pedir-lhe a próxima quadrilha, ela respondia hesitando que já tinha par; apenas o cavalheiro se afastava, arrependia-se de não o ter aceitado, rompendo assim o compromisso tácito; e ficava ansiosa por outro convite. Entretanto novo par se apresentava, que recebia a mesma recusa.

Nesse jogo, muitas vezes repetido, passou o intervalo. O piano deu o sinal da quadrilha; Leopoldo aproximou-se de Amélia, e inclinando-se, sentiu no seu estremecer o braço tépido de Amélia. A moça não teve consciência do que se passou até o momento em que o moço a conduziu a seu lugar. Recordava-se apenas de que seu par lhe falara por muito tempo, com a voz baixa, porém palpitante de emoção.

Assim fora. Passada a primeira confusão da quadrilhas Leopoldo, fitando o olhar no semblante da moça, deu expansão aos sentimentos que lhe tumultuavam dentro d' alma. Com a fronte baixa e as faces cheias de rubores, Amélia parecia absorvida e reconcentrada enquanto o moço falava. Dir-se-ia que ela não o ouvia.

— A senhora acredita, D. Amélia, na atração irresistível, que impele duas almas entre si, e as chama fatalmente a se unirem e absorverem uma na outra?... Eu acreditava nessa força misteriosa, mas ainda não tinha chegado o momento de experimentá-la em mim, de sentir em meu ser este elo divino que prende as almas através do tempo e da matéria. Senti-o há vinte dias, quando a vi pela primeira vez, quando a senhora se revelou ao meu coração.

Leopoldo referiu as emoções que sentira, na ocasião de seu primeiro encontro com Amélia; a impressão que ela deixara em seu espírito; e os sonhos em que se embalara sua imaginação nos dias seguintes.

— Tive então, continuou o mancebo com acento profundo e comovido, tive, então, e depois, a prova de que esse enlevo de meu ser. essa abstração de minha existência para absorver-se noutra, era a atração moral e nada mais. Via, admirava, adorava na senhora uma coisa somente: sua alma. Não sabia, ainda hoje não sei, se a mulher que eu amo é bonita para os outros; sei que para mim é de uma beleza divina. Perdesse ela a graça e a formosura que aos outros seduz, para mim seria a mesma; eu havia de adorá-la com o mesmo ardor. Sua alma é filha de Deus, e como ele de uma magnificência imortal. É uma estrela que não tem eclipse.

Leopoldo inclinou a fronte para falar quase ao ouvido da moça:

— Outrora julgava impossível que se amasse o horrível. Agora reconheço que tudo é possível ao amor verdadeiro, ao amor puro e imaterial. Não só reconheço, mas sinto-me capaz de nutrir uma dessas paixões mártires! Oh! sinto-me capaz de amar o anjo ainda mesmo encarnado em um aleijão! . . .

Leopoldo falou ainda por muito tempo de seu amor a Amélia, sem que ela se animasse a interrompê-lo. Aquela palavra ardente, impetuosa, embora vendada por certo pudor d'alma, a subjugava; ela não tinha coragem, nem mesmo vontade de subtrair-se à sua influência.

Quando Amélia, conduzida por Leopoldo, se dirigia a uma cadeira, D. Clementina aproximou-se:

— Ah! Eu queria apresentá-lo, disse a Leopoldo; mas não teve paciência para esperar.

Depois reclinando ao ouvido de Amélia, perguntou-lhe:

— Então? Não lhe disse que a achava muito bonita?

— Ao contrário, D. Clementina; deu-me a entender que me acha horrível.

— Ande lá.

— Deveras!

— É impossível.

Amélia, sentando-se, evocou a lembrança de Horácio, para fazer no seu espírito o paralelo entre o elegante leão e o estranho mancebo com quem acabava de dançar. Um tinha todas as prendas que seduzem a imaginação: era formoso, trajava com esmero, conversava com muita graça. O outro não possuía nenhum desses atrativos; seu exterior alheava as simpatias; quando falava difundia a tristeza no espírito dos que o escutavam.

A moça não concebia que se preferisse Leopoldo a Horácio; e contudo não podia esquivar-se completamente à influência daquela imagem pálida, que lhe aparecia no meio dos sonhos mais brilhantes

Muitas vezes, depois de algumas horas agradáveis passadas junto do leão, quando a moça, recolhida à sua alcova, repassava na memória os doces protestos de amor que ainda lhe ressoavam ao ouvido, de repente surgia a lembrança de Leopoldo. Parecia-lhe então que da fronte do mancebo se desprendia uma sombra para anuviar seus pensamentos risonhos.

Horácio, sabendo onde Amélia passava as noites em que ele a não via, mostrara desejos de freqüentar a casa de D. Clementina; a moça porém opôs-se. Duas razoes atuaram em seu espírito.

Aquela casa servia-lhe de abrigo contra a sedução que exercia em seu espírito a elegância de Horácio. Quando sentia-se vencida, fugia para ali, onde recobrava forças para resistir de domar completamente o leão, soberbo de suas conquistas passadas.

Era essa uma das razoes; a outra era o receio de achar-se em face dos dois moços, repartida entre a sedução de um e a fascinação do outro. Pressentia que desse conflito, resultaria alguma coisa, que ela não podia definir, mas que a enchia de sustos e inquietações.

Por isso exigiu de Horácio que não fosse à casa de D. Clementina:

— Costumam lá ir algumas dessas pessoas que se ocupam em inventar novidades Sua apresentação, Sr. Horácio, daria pretexto a algum romance.

— Mas por que ainda freqüenta semelhante casa?

— Pedidos... bem sabe; nem sempre uma pessoa se pode recusar. Mas se o senhor aparecer lá, eu deixarei de ir.

— Esteja tranqüila.

Amélia continuou a passar de vez em quando uma noite em casa de D Clementina. A princípio não tinha dia certo, e sucedeu por isso que Leopoldo desencontrou-se dela duas vezes. Uma noite porém o moço perguntou-lhe:

— Vem sábado?

— Talvez.

Desde então o dia escolhido era o sábado, a menos que não precedesse aviso especial da dona da casa para alguma partida. Nunca mais houve desencontro; Amélia achava sempre o mancebo no seu posto, defronte da porta para vê-la entrar.

Em uma dessa noites deu-se um incidente que é preciso referir.

Falava-se a respeito de uma senhora casada, a quem o marido causava sérios desgostos. Pessoa que sabia das particularidades dessa família explicava o fato à sua maneira.

— Ela era muito linda, o marido a adorava; casou-se por paixão. Poucos dias depois de casada, teve ela uma grave moléstia que a reduziu àquele estado. Não há paixão que resista!

— Com efeito, sabe ser feia!

— Ninguém acreditará que foi bonita.

— Pois foi uma beleza.

Leopoldo, que ouvia calado, interveio:

— O marido nunca a amou!

— Asseguro-lhe que teve uma paixão louca.

— E eu afirmo-lhe que não; que ele nunca teve paixão pela mulher. O que ele adorava era unicamente a sua beleza, a forma; isto é, um acidente. O homem que ama a mulher destinada a ser companheira de sua existência, o complemento de seu ser imperfeito, não despreza essa mulher, porque a desgraça a feriu no invólucro material de sua alma. Ele pode sofrer com aquela desgraça; mas deve redobrar de amor e adoração, para que nem seus olhos vejam o defeito, nem ela, a mulher amada, se lembre nunca de que o tem para ele, embora o tenha bem claro para os indiferentes.

— É bonito de dizer! acudiu um apreciador das mulheres formosas.

— Todos dizem o mesmo, mas fogem das feias, observou uma senhora idosa, talvez por experiência própria.

— O que eu digo, minha senhora, já o experimentei em mim mesmo, replicou Leopoldo.

— Ah!

O mancebo cravou em Amélia um olhar eloqüente, e disse com a palavra lenta e calma:

— É verdade; já o experimentei em mim. Por que hei de ocultá-lo? Minha alma já passou por esta dura prova, e saiu triunfante. Hoje sei que tenho forças para amar até os defeitos da mulher que Deus me destinou.

Amélia perturbou-se com aquelas palavras, e o olhar ardente que parecia gravá-las em sua alma. Nessa noite retirou-se pensativa; e por muito tempo a figura pálida de Leopoldo esvoaçou na penumbra de seu leito de virgem.

X

Pela manhã se dissiparam essas névoas que no espírito de Amélia deixara a noite antecedente.

Era domingo. A moça, envolta em seu roupão alvo, com os cabelos soltos pelas espáduas, encostou o rosto à vidraça da janela. Afastando a cortina de cassa branca, podia enxergar perfeitamente a rua, sem que de fora vissem o seu gracioso desalinho.

Não tardou que se ouvisse um tropel de cavalo. Era o leão que ia dar seu passeio matutino. Vendo agitar-se a cortina, e desenhar-se no vidro a ponta de uns dedos cor-de-rosa, Horácio cortejou enviando um sorriso à janela.

À noite o moço dirigiu-se à casa do Sales; Amélia o esperava. A sala estava cheia de visitas. Entrando, o olhar de Horácio encontrou um olhar terno que o saudava de longe.

Mas o sorriso se desfez com a perturbação que de repente sentiu a moça. A vista do leão tinha descido até o tapete, e se fixara com uma insistência visível na fímbria do vestido, ligeiramente arregaçada. Horácio julgou que pudesse lobrigar a ponta do pézinho que idolatrava.

A moça concertou as dobras da saia de modo a interceptar o olhar curioso; e disfarçou conversando com uma amiga.

Desde princípio notara Amélia aquele sestro de Horácio. Quando ela o supunha mais embebido em seus encantos, mais rendido à sua beleza, surpreendia o olhar do moço a rastejar pelo chão, procurando insinuar-se por baixo da orla de seu vestido.

Muitas vezes ela perdia os seus mais ternos sorrisos, porque o moço, em vez de procurar-lhe no rosto a esperança de ser amado, esquecia-se a catar sobre o tapete alguma idéia que não se animava a revelar. Já tinha sucedido, durante que ela tocava, distrair-se o leão, e com a atenção presa no pedal, nem ouvir a peça de música.

Horácio a amava sem dúvida; já lhe tinha dado provas de que sentia por ela uma paixão veemente. Ele, o rei da moda, o festejado conquistador, para quem todas as portas e todos os corações abriam-se como a gruta encantada de Aladino, a uma só palavra; ele ali estava cativo da vontade dela, e atado ao seu carro triunfal. Que prova mais eloqüente de profundo amor, do que essa submissão espontânea do altivo leão?

A força nunca se revela tanto como na posse de si mesma, no vigor com que se domina. Hércules, fiando aos pés de Onfale, é o último canto, o epílogo sublime da epopéia da forca humana. Exterminando a fera, a natureza e até os deuses, Hércules foi grande; abatendo a si mesmo, foi maior, porque venceu o vencedor.

Amélia compreendia que homenagem eloqüente à sua beleza havia naquela adoração do elegante cavalheiro; sentia-se orgulhosa com esse amor, que tantas mulheres lhe invejavam; considerava-se rainha, desde que via a seus pés subjugado e humilde o rei da moda.

Mas lá no íntimo alguma coisa lhe remordia quando notava a pertinácia com que o olhar de Horácio procurava a fímbria de seu vestido. Nesses momentos sentia n'alma um alvoroço; chegava a suspeitar que Horácio não lhe tinha amor, e estava escarnecendo dela com uma paixão fingida.

A verdade, porém, é a que sabemos. Horácio tinha paixão louca pelo pézinho de que só conhecia a botina e o rasto; fazendo a corte a Amélia, ele prestava culto ao deus ignoto, que adorava sob aquela forma encantadora. Pelo cuidado que tinha a moça em não desconcertar os babados de seu vestido comprido demais, conheceu ele o zelo com que a dona recatava o tesouro. Contudo não desesperou; o cuidado da moça havia de adormecer um momento; podia mesmo sobrevir um acidente inesperado que realizasse a sua mais cara esperança.

Até aquela noite todos os esforços se tinham frustrado; à sua insistência a moça tinha oposto a pertinácia do capricho feminino. Quanto mais atento ele estava para aproveitar qualquer descuido, mais alerta ela ficava para não cometer a mínima falta.

Horácio porém resolveu dar o golpe; e com essa intenção, fora à casa de Sales, no domingo em que estamos.

Quando se ofereceu ocasião, travou com Amélia, recostada à janela, o seguinte diálogo:

— Como é bonita! disse ele contemplando a moça com enlevo.

— Ainda não tinha percebido? perguntou ela com irônica faceirice.

— Não, D. Amélia, não; porque de cada vez a acho mais bonita; todos os dias a senhora muda a meus olhos; torna-se outra, mais linda, mais formosa, do que era aquela que eu conhecia anteriormente. Como hoje, acredite, nunca a vi.

— Que tenho eu demais?

— Não sei; tem uma auréola de beleza! Seus olhos desferem raios de luz tão pura; sua boca sorri como a flor em botão, que abriu com a frescura da noite. Os anéis de seus cabelos castanhos parecem impregnados de um fluido misterioso, que se derrama em torno. Mas de toda a sua formosura há uma coisa sobretudo que eu admiro, que eu adoro. Não é, nem seus olhos brilhantes, nem seus lábios mimosos, nem seu talhe elegante, nem suas tranças tão opulentas; não é nada disto!

— O que é então?

— Para que dizê-lo? Para que revelar a minha paixão a quem dela escarnece? Se eu o confessasse, cessariam o suplício que tenho sofrido, as ânsias que estou curtindo? Não; haviam de aumentar se isso fosse possível. A senhora teria prazer em torturar-me ainda mais.

— Explique-se: confesso que não o entendo. Que suplício tem o senhor sofrido?

— A mulher é caprichosa, muitas vezes faz padecer aquele que a ama sinceramente, e só por espírito de contradição. Uma coisa inocente, um favor pequenino... permite aos estranhos e indiferentes, e entretanto recusa ao homem que morre de paixão por ela. Não é uma crueldade? A senhora pergunta, D. Amélia, que suplício tenho eu sofrido. Este, de ser consumido a fogo lento por um desejo, que um gesto seu podia tornar em gozo infinito!

A moça, com as faces incendidas em rubor, lutava no alvoroço e confusão, que iam se apoderando de toda sua pessoa.

— Entende agora, D. Amélia?

— Não! murmurou trêmula.

— Pois não percebeu ainda, que há uma coisa que eu sobretudo amo na senhora? Tanto percebeu, que fez o propósito de escondê-la a meus olhos, cansados de a procurarem a cada instante. Não está contente ainda de ver-me arrastando assim a alma pelo pó, no vão intento de entrever de longe o objeto de minhas adorações?

O leão fitou um olhar fascinador no semblante da moça.

— Para que negar, D. Amélia? A senhora o sabe, e finge ignorar para mais torturar-me.

— Eu, não!

— A senhora sabe por quem deliro de paixão, por quem darei a minha vida sem hesitar. Se não soubesse, já eu teria visto e admirado esse pézinho mimoso, que me mata com seu rigor.

Uma visita que entrava na sala, deu a Amélia um pretexto para fugir, disfarçando seu rubor e perturbação, no afã da recepção das senhoras que chegavam.

Ao retirar-se, Horácio achou ensejo de trocar uma palavra com a moça, enquanto lhe apertava a mão:

— Não seja cruel!

— Oh! cruel não sou eu, replicou a moça com expressão de ressentimento.

Mais tarde, em sua alcova, enquanto desfazia o penteado, soltando os lindos anéis do cabelo castanho, Amélia recordou-se das palavras apaixonadas que ouvira de Leopoldo na véspera, e comparou-as com as queixas de Horácio. A linguagem do primeiro tinha a eloqüência da paixão; parecia vir do íntimo, do mais profundo do coração. A linguagem do segundo tinha a graça da sedução: era a vibração passageira das cordas d'alma.

Mas a palavra do leão vinha envolta em um sorriso gracioso, sombreado por um bigode fino e elegante!

Durante uma semana, Amélia não viu Horácio, por uma razão muito simples. O moço, de arrufado, não apareceu durante dois dias; quando se resolveu a aparecer, a moça despeitada inventou um incômodo, e não desceu à sala de visita, pelo dobro do tempo. Se Horácio sustentasse a luta, podia haver sério rompimento.

O leão porém estava domado; tinha achado a sua Diana. No quinto dia foi humildemente render preito e homenagem à suserana de seu coração. Amélia o recebeu como rainha magnânima; e tratou-o nesse dia com amabilidade extrema. Pela primeira vez, Horácio pôde beijar-lhe a ponta dos dedos.

Animado com esse acolhimento, o leão arriscou de novo a grande questão. Fitando o olhar no rosto da moça e abaixando-o à orla do vestido, disse em tom suplicante:

— Me deixa ver?

— Não, respondeu a moça com vivacidade, e demudando-se:

— Quando cessará este capricho?

— Nunca.

Horácio teve um assomo de impaciência.

— Bem. Não me quer mostrar a mim, Horácio de Almeida; pois há de mostrá-lo a uma pessoa.

— A quem? perguntou a moça irritada.

— A seu marido.

Amélia tornou-se pálida, e sentiu passar-lhe nos olhos uma vertigem; mas recobrou-se logo à idéia de que as palavras de Horácio não passavam de um galanteio.

— Se algum dia me casar, replicou ela sorrindo, há de ser com a condição de não mostrar.

— Havemos de discutir essa condição.

— Vamos mudar de conversa?

— Como quiser; temos muito tempo para continuá-la.

Enquanto Amélia o olhava surpresa, Horácio voltando-se para o grupo das senhoras, tomou parte na conversação geral.

— Já sabem a novidade, minhas senhoras?

— Qual delas? Há tantas.

— A novidade nova, a ultimamente inventada, que eu acabo de receber em primeira mão, de caminho para aqui.

— Algum casamento, aposto.

— E eu sei de quem.

— Não adivinhou. Talvez que a novidade de amanhã seja algum casamento; quem sabe? respondeu Horácio, relanceando um olhar para Amélia. Mas a novidade de hoje, é apenas um baile, um baile, um baile de estrondo.

— Aonde?

— No Cassino?

— No clube?

— Em casa de Azevedo.

— É verdade! Eu já tinha ouvido dizer!

— Quer a senhora fazer de velha a minha novidade. O que se dizia era que o Azevedo tinha tenção de dar um baile, mas disso à realização vai uma grande distância. Eu desejo muita coisa que não alcanço, e nem ao menos posso ver. Foi hoje e ao jantar que resolveu-se a grande questão, por ocasião de uma saúde. Um amigo que vinha de lá, encontrando-me a dois passos daqui, me deu a notícia do grande acontecimento. Portanto, minhas senhoras, preparem-se!

— Quando é o dia?

— No primeiro do mês próximo. Ponham desde já em contribuição as lojas e modistas; eu, o que posso, é oferecer-me com muito gosto para admirá-las a todas, e achar a cada uma de per si mais elegante do que as outras juntas. Se Páris me tivesse ouvido, não haveria guerra de Tróia.

— Nem Homero por conseguinte, replicou um literato.

— Homeros sempre os há. Quando não encontram os heróis já feitos, inventam-nos, e com tal habilidade, que esses grandes homens postiços parecem verdadeiros, como os dentes de osana, e os coques das moças. O mesmo sucede com os Anacreontes, cuja raça é muito maior; quando não acham ninfas para cantar, qualquer bruxa lhes serve de pretexto ou de cabide para pendurarem a lira.

Amélia ficara triste e preocupada; escutava a palavra volúvel do moço com um sentimento indefinível de angústia; parecia-lhe que era seu amor por ela, que Horácio rasgava aos pedacinhos, como uma página querida, abandonando-os ao sopro do vento, ao capricho daquela conversa.

Uma amiga reparando na tristeza da filha de Sales e no olhar que em certa ocasião lhe deitara Horácio, disse ao ouvido da moça sentada a seu lado:

— Amélia ficou lograda!

— Como?

— Creio que Horácio está justo com outra.

— Quem lhe disse?

— A tristeza de Amélia, e o olhar que o sujeito lhe deitou, quando falava de um casamento que se há de saber amanhã.

— É verdade. Com quem será?

— Naturalmente com alguma fazendeira de mil contos. Depois que saírem da igreja, o marido leva-a para o colégio do

Hitchings; e deixa-a lá como pensionista, enquanto ele vai a Paris aperfeiçoar-se na escola dos maridos.

"Esta senhora é uma sátira viva; sua conversa parece um fogo de artifício; dir-se-ia que o seu gracioso traje é todo composto de alfinetes, que ela vai deixando em sua passagem envoltos em sorrisos açucarados, como confeitos de carnaval.

"Oculto seu nome porque é muito conhecida na boa sociedade do Rio de Janeiro, e não quero comprometê-la com os noivos presentes e futuros das fazendeiras ricas."

Depois de ter durante alguns instantes ainda polvilhado a conversa com sua palavra elegante e chistosa, Horácio tomou o chapéu e retirou-se. Não eram nove horas; esta circunstância mais entristeceu Amélia, e mais excitou a atenção da moça maliciosa.

À porta da casa de Sales encontrou Horácio seu tílburi. Mandou o cocheiro esperá-lo no Largo do Machado, e ele, tendo acendido o charuto e vestido o sobretudo, seguiu a pé. Queria pensar.

Horácio pertencia à escola daqueles que entendem, que nunca é tarde para arrepender-se o homem de um compromisso. Ele compreendia o alea jacta est por esta forma prudente e razoável. César, tendo lançado a ponte sobre o Rubicão, via de longe em Roma a ditadura, e mais tarde a púrpura imperial, portanto fez ele muito bem em passar, sobretudo desde que o rio já não opunha obstáculo. Mas se em vez do poder, César encontrasse no caminho a derrota, a ponte lançada lhe serviria para voltar às Gálias, e ele teria o cuidado de queimá-la depois que tornasse a passar.

Como César, ele tinha lançado a ponte com aquela palavra dita a Amélia, em um momento de despeito. Devia porém passar o Rubicão do casamento?

Era sobre tão importante questão que o leão queria refletir, fazendo a pé o trajeto entre as Laranjeiras e o Largo do Machado.

— O casamento é o suplício de Prometeu, pensava ele; um homem atado ao rochedo da família, com o coração devorado pelo tédio; uma criatura dividida em duas metades, que se contrariam a cada instante, porque estão ligadas. Em vez do romance, do idílio, do drama, a prosa monótona de uma história que se lê todos os dias. Esse prazer incomparável de sentir-se todo dentro de si, de resumir-se no seu único eu, de dispor livremente de sua pessoa e vida, não o tem o marido a menos que seja um biltre. O casamento dilata a superfície da alma; em vez de sofrer-se no seu coração apenas, sofre-se na mulher, no filho, e em cada um dos fios dessa grande teia humana que se chama família.

Horácio recordou-se de alguns de seus amigos que haviam casado, e achou nessas reminiscências a prova de sua opinião.

— O casamento é tudo isso; mas que importa, desde que não há outro meio de realizar o meu desejo e satisfazer esta paixão ardente e impetuosa? Daria a vida inteira, e sem hesitar, pela felicidade que eu sonho. Pois se eu a daria de uma vez, por que não a emprestarei sob hipoteca?

Tendo chegado ao Largo do Machado, o moço entrou no tílburi, que o conduziu a casa.

Aí, contemplando a mimosa botina, guardada como uma relíquia encheu-se cada vez mais da resolução que havia tomado.

XI

Eram onze horas da manhã.

Amélia estudava ao piano os exercícios de Herz. As janelas cerradas deixavam entrar frouxa claridade, coada pela cassa transparente das cortinas

Nesse crepúsculo artificial a beleza da moça tomava uns tons suaves e meigos, que mais seduziam.

Os lindos cabelos, ainda úmidos do banho, cobriam-lhe as espáduas de uma túnica de veludo castanho. O bajó de cassa que trazia no seu desalinho matutino, conchegado à cútis, coloria-se com os reflexos rosados do colo mimoso.

Tanta graça e formosura, realçadas pela singeleza do traje e pela naturalidade da posição, ficavam ali ocultas na doce penumbra da sala e recatadas à admiração. Às duas horas Amélia costumava subir à sua alcova para se pentear; e o gracioso desalinho desaparecia, substituído por um traje mais apurado e elegante. Era a flor singela que o vento desfolha na mata e passa efêmera e desconhecida.

Tantas moças despendem um avultado cabedal de sorrisos, de olhares e gestos, e põem em contribuição a seda, a renda e a moda para realçarem sua formosura! Mal sabem, entretanto, que nunca são elas tão bonitas e feiticeiras como um certo momento de sedutora negligência, quando parece que a beleza desabrocha de seu gracioso botão.

A porta da sala abriu-se e deu entrada ao Sr. Sales Pereira.

O aspecto do negociante era grave; mas da gravidade serena que anuncia uma preocupação agradável. Trazia na mão uma carta aberta.

Amélia assustou-se vendo entrar na sala o pai, que ela supunha na cidade. Como todos os negociantes, o Sr. Sales Pereira passava a manhã em seu escritório; partia logo depois do almoço e só voltava à hora do jantar A surpresa da moça era pois natural.

— Ah! papai! exclamara ela, voltando-se ao rumor da porta. Já veio do escritório?

— Ainda não fui, respondeu Sales Pereira sorrindo. Recebi uma carta, que me obrigou a demorar-me até agora para conversar com tua mãe e... contigo, a quem o objeto mais interessa.

— A mim? O que será, papai? Algum convite de baile?

— Lê, disse o negociante apresentando-lhe a carta.

Amélia correu os olhos pelo papel, e seu rosto cobriu-se de vivos rubores. O coração palpitava-lhe com tanta força que debuxava no linho o contorno dos lindos seios.

A carta era de Horácio, que pedia ao negociante a mão da filha.

Acabando de a ler, a moça de olhos baixos e o corpo trêmulo, parecia vendar-se com sua inocência para subtrair-se ao olhar terno e curioso de seu pai. Nesse momento ela desejava, se possível fosse, esconder-se dentro de si mesma.

— Que devo eu responder, Amélia? perguntou o negociante.

— O que papai quiser! balbuciou a menina.

— Estás bem certa de que meu desejo é o teu? Se eu não aceitar a honra que nos quer fazer o Sr. Horácio de Almeida?

As pálpebras da moça ergueram-se, desvendando seus olhos límpidos. — Papai não acha bom?

— Se ele te for indiferente, eu por mim não tenho grande empenho. É um excelente moço; tem alguma coisa de seu; mas anda em certa roda que não me agrada.

— Que roda, papai?

— De moços da moda.

— Porque é solteiro.

— Então o que decides?

— Desde que papai e mamãe desejam, eu...

— Nós não desejamos coisa alguma; queremos saber tua vontade.

Amélia emudeceu.

— Bem, já vejo que não é de teu gosto. Vou responder ao homem com um não.

Sales Pereira encaminhou-se para a porta.

— Mas, papai!... murmurou a moça.

— Que temos?... Fala, que já me demorei muito. Quase meio-dia!

— Vai responder já?

- Já.

— Deixe para amanhã.

— Nada; são coisas que se decidem logo.

— O que vai responder então?

— Que não.

— Mas eu não disse isto!

— Tu nada disseste.

— Pois se eu não gostasse, diria logo.

— Ah! neste caso, gostou?

Amélia sorrindo acenou com a cabeça.

— Não entendo esta linguagem. Vamos a saber. Amas a Horácio?

A moça fez um supremo esforço:

— Amo! disse ela escondendo o rosto no seio do pai.

O negociante beijou-a na fronte com ternura e carinho.

— Ah! minha sonsa, não queria confessar o que tinha aqui dentro deste coraçãozinho! E eu que pensava que ele só queria bem a mim?

— Oh! papai!

— Bem, bem, não tenho ciúmes! Vai consolar tua mãe, que eu vou responder ao homem mais feliz deste Rio de Janeiro.

O negociante voltou ao gabinete, e Amélia dirigiu-se ao interior. Sua mãe estava no quarto, com os olhos ainda úmidos de lágrimas. Quem não conhece essas lágrimas abençoadas, que a mãe derrama pelos filhos, e que são bálsamos para as aflições e orvalhos para as flores da ventura?

D. Leonor beijou a filha e estreitou-a ao seio como receosa de que lha arrancassem dos braços. Seu coração ora alegrava-se com a felicidade próxima da moça, ora se entristecia com a lembrança da separação.

De repente Amélia sobressaltou-se com uma idéia que lhe acudiu; e deixando a mãe, correu ao gabinete do negociante. Achou-o sentado à escrivaninha, passando por cima da carta que terminara, um rolete de mata-borrão.

O pai sorriu vendo entrar a filha.— Curiosa!

— Já acabou? disse a moça recostando-se com gentileza à poltrona.

— Vê se está de teu gosto, disse o Sales cingindo-lhe a cintura com o braço.

Amélia leu a carta rapidamente; ela já sabia de antemão que faltava alguma coisa.

— Então, que tal? perguntou o negociante com certo desvanecimento.

— Está muito boa, papai. Só acho uma coisa.

— O quê?

O negociante sofreu uma decepção. Pensava ter feito uma obra-prima com aquela carta, escrita em seu mais belo estilo comercial, mas recheada de alguns rasgos sentimentais.

— Não acha, papai, que ele ficará todo cheio de si, obtendo logo, assim com tanta facilidade, o que deseja? A carta é de hoje; responder no mesmo dia... mostra muita vontade demais.

— Que mal há nisso? Para que deixá-lo na dúvida, quando podes torná-lo feliz desde já?

— Papai pensa que ele duvida?

— Ah! Já sabe então! Muito bem!

— Eu não lhe disse nada, papai.

— Então como sabe ele? Adivinhou?

— Não adivinhou nada. Papai bem sabe como são esses senhores da moda; cuidam que todas as moças andam morrendo por eles, e que a dificuldade está somente em escolher. Como eu não quero que o Sr. Horácio me julgue uma de suas conquistas, estou resolvida, papai, a pensar bem durante quinze dias, antes de dar a resposta.

— Portanto esta carta não serve, disse o Sales com um suspiro.

— Há de servir, mas daqui a quinze dias. Agora papai deve dizer unicamente, que tendo-me consultado, eu pedi algum tempo para dar a resposta.

O negociante escreveu, e Amélia esperou até que partiu a carta, confiada a um criado.

Momentos depois, Sales saía para a cidade, e Amélia entrava em sua alcova, descantando trechos de árias e romances. Não se podia dizer que estivesse alegre, apesar do tom garrido com que modulava, e do fresco riso que trinava em seus lábios.

O que ela sentia era um alvoroço íntimo, uma sôfrega agitação, estado indefinível d'alma prurida por mil desejos e contida por mil receios.

Vejamos se é possível descobrir o que passava ali, dentro daquele seio mimoso.

Desvanecida a primeira comoção produzida pela carta de Horácio, Amélia recordara-se do que tinha ocorrido na véspera, e sobretudo das palavras proferidas pelo moço. Sua vaidade revoltou-se como era natural.

— Hei de mostrar-lhe que não basta querer, para ser meu marido; e que não basta ser meu marido para ver...

Foi então que se dirigiu ao gabinete do pai e adiou a resposta definitiva. Voltando, sentiu lá num cantinho do coração uns receios que estavam nascendo. Não fosse Horácio zangar-se com a demoras e retirar o pedido? Quinze dias talvez fossem demais.

Eis qual era o estado de animo de Amélia: orgulho de ver subjugado a seus pés o rei da moda; prazer de o ter cativo de uma

palavra sua durante muitos dias; arrependimento do que fizera; susto do que podia acontecer; gozo da ventura que sorria; tais foram os sentimentos desencontrados que vibraram na alma da moça.

Nessa tarde Amélia preparou-se com maior esmero do que se fosse a um baile. Seu adorno simples, um modesto vestido branco com fitas azuis, tomou-lhe mais tempo, do que não levaria a compor um traje suntuoso.

Ela esperava Horácio.

Toda a noite passou, indo do sofá à janela, e da janela ao consolo, onde estava a pêndula de alabastro.

As horas se escoaram, sem que o tílburi do moço parasse à porta do negociante.

No dia seguinte, Amélia perguntou ao criado se a carta fora entregue a Horácio.

— Entreguei em mão, quando entrava no tílburi.

— E que disse ele?

— Nada; leu e riu-se.

— Ah! ele riu-se, murmurou Amélia consigo. Pois eu lhe mostrarei.

Desde então, empenhada sua vaidade, os sustos se desvaneceram. Estava decidida a não ceder. Horácio depois de vencido tentava ainda resistir-lhe? Pois havia de subjugá-lo completamente.

À noite foi à casa de D. Clementina, onde estava reunida a roda do costume. Leopoldo ali se achava também e cumprimentou-a com um modo triste e resignado.

Deve existir urna corrente magnética entre os homens, um fluido que serve de veículo ao pensamento recôndito e ainda não divulgado. Não se explicam de outro modo certas revelações de um fato somente conhecido de poucas pessoas e por estas recatado. A emoção, que desperta esse fato n'alma de alguns, repercute n'alma de outros, e produz uma espécie de intuição.

Na casa de D. Clementina sabia-se já que Amélia fora pedida em casamento, embora se ignorasse o nome do pretendente, talvez por não ser conhecido das pessoas presentes. Sales Pereira, a mulher e a filha não tinham dito a menor palavra sobre o objeto da carta de Horácio; mas a impressão produzida por essa carta, a preocupação que deixara nas pessoas da família, as conversas íntimas e recatadas, não escaparam aos escravos.

Daí gerou-se o boato, que já tinha passado à casa de D. Clementina.

— Ah! chegou a Amélia Sales! Sabia que vai casar-se? Já foi pedida, disse uma senhora a Leopoldo.

— Não, senhora, não sabia, respondeu o moço com mágoa, mas sem perturbar-se.

— Com quem? perguntou outra moça.

— Com um moço bonito e rico. Disseram-me o nome, mas já não me lembro.

Nisso Amélia entrou na sala, onde foi muito festejada pelas amigas e conhecidas.

As alusões e gracejos a respeito do segredo incomodaram a moça, embora por outro lado lhe causassem certo desvanecimento.

Pelo meio da noite, Leopoldo aproximou-se de Amélia para lhe pedir uma contradança. Tinham dançado a primeira marca sem trocar palavra; afinal o mancebo rompeu o silêncio:

— É verdade que foi pedida em casamento?

Amélia empalideceu; quis disfarçar iludindo a pergunta, mas encontrou o olhar de Leopoldo, olhar tão doce e sincero, que não se animou a enganá-lo.

— É verdade, murmurou em voz quase imperceptível. Mas ainda não respondi.

— Estimo que seja muito feliz.

— Obrigada.

Amélia ficou surpresa; ela supunha que Leopoldo tinha-lhe ardente paixão, e que portanto sentiria profundo pesar, senão desespero, com a notícia de seu casamento. Em vez disso, o mancebo mostrava uma resignação serena.

— Quando comecei a amá-la, D. Amélia, disse Leopoldo depois de alguns instantes, acreditei na felicidade, e esperei alcançá-la neste mundo. Minha alma pressentiu a aproximação da irmã que Deus lhe destinara e cuidou atraí-la e embebê-la em seu seio. Mas essa ilusão se desvaneceu logo. Soube qual era sua posição, e compreendi que a senhora não me podia pertencer. Resignei-me, pois, a amar unicamente sua alma; essa, ninguém me pode roubar, nem mesmo a senhora, porque Deus a fez para mim. Eu estava desde muito preparado para a notícia de seu casamento; ela não me surpreendeu, embora me entristecesse. Até agora adorei sua alma, como se adora a imagem da Virgem no templo; de agora em diante terei de adorar essa alma querida, como se adora uma santa no sepulcro.

Leopoldo falou por algum tempo ainda, e a moça, que a princípio se acanhara com a expansão viva desse amor tão puro, bebia as palavras ardentes do mancebo como fluido que derramava em sua alma suave calor.

Nessa noite, ao recolher-se, ia absorvida neste pensamento:

— Por que julgou ele impossível que eu o amasse? Sem dúvida não o amo; mas talvez... Se eu não conhecesse Horácio... Quem sabe?

Nisto lembrou-se que já se tinham passado dois dias depois do pedido, e portanto faltavam treze para a decisão.

— Se ele não vier antes disso? Se não vier... respondo que não. Está decidido.

XII

Correram os dias sem que Horácio aparecesse em casa do Sales Pereira. Amélia, apesar de seu esforço, não podia conter a impaciência. Ela adivinhava que o leão estava despeitado com a resposta, e queria obrigá-la a conceder-lhe imediatamente o que pedira: a sua mão, e com a mão o pézinho que ele adorava.

Por vezes a moça foi até à porta do gabinete do pai, na intenção de dizer-lhe que escrevesse a Horácio enviando-lhe o consentimento; mas voltava envergonhada de sua fraqueza; enxugava alguma lágrimas que lhe saltavam dos olhos; e fazia novos protestos de não ceder.

Nestas ocasiões ela contemplava a imagem de Horácio com alguma severidade. Lembrava-se da volubilidade com que ele falava-lhe de seu amor; do sorriso sempre faceiro que tinha nos lábios e servia para vestir a palavra alegre ou triste, zombeteira ou comovida, e finalmente da insistência que mostrava em ver-lhe o pé.

Então acudia a Amélia uma circunstância que a princípio lhe escapara: fora sua recusa à impertinência do leão, que o obrigara a pedi-la em casamento no dia seguinte.

— Será apenas um capricho? Não me terá ele verdadeiro amor?... Se não me engano, o que ele ama em mim, não sou eu, mas uma mulher que imaginou; sirvo-lhe apenas de pretexto, como tantas outras antes de mim.

O resultado destas observações era protestar a moça que daria um não ao pedido de Horácio. Mas quando seu pai lhe perguntava sorrindo:

— Ainda não?

Ela corava, abanava a cabeça e fugia, dizendo consigo que ainda faltavam alguns dias para o prazo marcado.

Para ocupar as noites e distrair o espírito dessa constante preocupação amiudou as visitas à casa de D. Clementina. Ali com a influição do olhar profundo e da palavra eloqüente de Leopoldo, esquecia as contrariedades e inquietações. Na volta trazia algumas doces reminiscências, e sobretudo um certo arroubo do coração, que durava algum tempo, e a preservava de suas anteriores preocupações.

Já haviam passado doze dias depois da carta, e Amélia estava mais que nunca resolvida a romper com Horácio, quando se deu entre ambos um encontro.

Foi no teatro.

Amena que a princípio evitou as ocasiões de encontrar-se com Horácio, lembrou-se que sua presença podia provocá-lo, e obteve do pai que a levasse ao espetáculo. Subindo a escada do Teatro Lírico, avistou Horácio que vinha do lado oposto.

Apesar de estar prevenida, a moça teve um sobressalto; mas pôde recobrar-se antes que o leão se apercebesse de sua presença. Foi com fria altivez e indiferença que ela correspondeu ao cumprimento de Horácio, sem demorar o passo enquanto ele trocava um aperto de mão com o Sales Pereira.

Esta indiferença porém, e sobretudo o gesto que Amélia fez para arregaçar o vestido quando subia o segundo lanço de escada, ataram de novo o leão ao jugo.

— Desta vez, pensou ele, se eu estivesse adiante, via ao menos a ponta do meu pézinho!

Teria Amélia simulado aquele gesto de propósito? É natural; ela queria subjugar outra vez o cativo que escapara; usava de todos os seus recursos.

Vencido, o moço acompanhou a família até à porta do camarote e demorou-se aí a conversar com o negociante. Entretanto Amélia, sem dar-lhe a mínima atenção, percorria com o binóculo os camarotes trocando com a mãe observações a respeito das moças e seus lindos adereços.

Durante o resto da noite, a moça mostrou a mesma calculada indiferença, a ponto de irritar o mancebo. Apesar de se ter rendido, sentiu ele um ímpeto de revolta, e deixou sua cadeira junto à orquestra com intenção de visitar um camarote fronteiro ao do Sales Pereira. Lá estava uma linda moça de seu conhecimento, uma das estrelas de sua coroa de rei da moda.

Sentar-se-ia junto dela, e estabeleceria um diálogo entretecido de sorrisos, de olhares e meias confidências como por ai se dão tantos nos bailes e espetáculos: verdadeira cena mímica de amor representada perante o público. Com esse entretenimento, Horácio comprometeria seriamente a reputação de uma senhora; mas vingar-se-ia de Amélia, excitando-lhe ciúmes.

Chegava já o leão à porta do camarote quando ocorreu-lhe este pensamento:

Faltava apenas um ato para terminar o espetáculo; se ele mostrasse afastamento, Amélia irritada persistiria em seu desdém durante o resto da noite; e quem sabe que resolução tomaria sob a influência desse despeito?

Horácio teve medo e recuou. Já se tinha submetido no começo da noite; o melhor expediente era perseverar. Naturalmente

Amélia, no fim do espetáculo, abrandaria o seu rigor.

Começara o ato. Horácio deixou passar algum tempo, e dirigiu-se ao camarote de Amélia. A moça que já tinha reparado na ausência do leão, cuja cadeira estava desocupada, adivinhou-lhe a presença, ouvindo abrir-se a porta. Seu primeiro movimento foi voltar o rosto; mas reprimiu-se a tempo, e disfarçou dirigindo o binóculo para o fundo da sala. Apesar do império que tinha sobre si, Amélia estava ao cabo das forças. Se naquele momento Horácio fingisse uma retirada, ela não resistiria. Felizmente o leão não se lembrava disso e tinha resolvido esperar a saída para trocar algumas palavras com a moça.

Terminou o espetáculo afinal. Horácio ofereceu o braço a Amélia:

— Muito lhe ofendi com meu pedido, D. Amélia?

A moça calou-se.

— Não lhe mereço nem uma palavra?

— Parece que o senhor lhe dá bem pouco apreço.

— Que injustiça!

— Quem passou tantos dias sem ela pode bem esperar ainda os dois que faltam.

— Então sou eu o culpado dessa demora! Quem me condenou a ela?

— E o senhor nem ao menos procurou abreviá-la: achou mais cômodo esperar tranqüilamente! Pois continue a esperar.

— Mas, D. Amélia! Depois da resposta de seu pai, se eu me apresentasse em sua casa, tornar-me-ia importuno. Cuida que não sofri, passando tantos dias sem vê-la? Ingrata! Quantas vezes, não podendo resistir, fui até à porta de sua casa, e passei, impelido pelo receio de indispô-la contra mim? Se ela me amasse, pensava eu, teria aceitado logo: não o fez; quer refletir; devo deixá-la tranqüila e respeitar a sua resolução. Que vou eu lá fazer? Obrigá-la a me aborrecer.

Horácio mentia; ele se ausentara da casa do Sales Pereira, somente para vencer a resistência da moça por uma simulada indiferença.

O carro do negociante aproximou-se:

— Vai sem me deixar uma esperança?

— Não é aqui o lugar de pedi-la.

— Então amanhã?

— Se quiser!

No dia seguinte à noite o leão estava em casa do negociante. Amélia o recebera com um resto de ressentimento, que se desfez com os primeiros galanteios. Sucedeu o que era natural: depois de uma abstinência de tantos dias, esses corações tinham a sede de ternura, e beberam um no outro a largos sorvos.

Quando o leão se retirou, ele sabia que dois dias depois receberia oficialmente, por uma carta do negociante, o sim que ouvira naquela noite entre um sorriso e um rubor.

Quanto a Amélia, depois que a ausência do moço rompeu o encanto e deixou-lhe unicamente a consciência do compromisso tomado, lembrou-se involuntariamente de Leopoldo, cuja imagem pálida e triste desenhou-se em sua imaginação.

— Ele há de sofrer muito! pensou a moça suspirando.

No dia seguinte havia reunião em casa de D. Clementina. Amélia recordou-se disso e fez tenção de ir. Naquele momento julgou-se obrigada a comunicar sua última resolução a Leopoldo. Pareceu-lhe que seria uma deslealdade deixá-lo na ignorância de seu casamento, até que viesse a sabê-lo por algum estranho.

Mais tarde surgiram os escrúpulos. Tendo aceitado a mão de Horácio, não era bonito animar uma afeição, que deixava de ser inocente. Embora nunca retribuísse a paixão de Leopoldo, podiam supor que não a repelias Demais, sendo natural que Horácio fosse passar a noite em sua casa, ela procederia muito mal, trocando sua companhia pela de um rival.

Enquanto as horas do dia se escoavam, estas e outras razoes disputavam no espírito da moça a decisão que ela devia tomar. Afinal interveio o coração.

— Tenho pena dele!

E às oito horas estava em casa de D. Clementina. Nessa noite a moça, cujo espírito jovial simpatizava com as cores frescas e risonhas, escolheu um vestuário sombrio. Era uma faceirice melancólica. Aquela menina de 18 anos, que na véspera, muito espontaneamente se prometera a um homem elegante de seu gosto e escolha, afigurava-se agora uma vítima do dever, sacrificando-se heroicamente ao compromisso contraído.

Essa convicção dominava Amélia ao entrar na sala, e ressumbrava não só nas fitas pretas de seu traje, como na languida flexão da fronte e no olhar cheio de mágoas. Ela se julgava sinceramente coagida por uma força irresistível, que a arrancava a um amor profundo e santo, como a flor que o vento arrebata ao tronco onde se enlaçara.

Leopoldo compreendeu a melancolia de Amélia, e adivinhou que essa mulher estava perdida para ele no mundo, mas que sua essência divina lhe pertencia, para todo o sempre. Sentiu pois a mágoa da saudade, que precede a longa ausência. Quando se tornariam a encontrar as duas metades dessa alma, separadas por uma contingência da matéria?

Pela noite adiante Leopoldo aproximou-se de Amélia, porém só lhe falou de coisas indiferentes, ao contrário do que ela esperava. Se o moço a interrogasse a respeito do casamento, aproveitaria o momento para confessar-lhe; mas ele nem de leve tocou nesse ponto.

Na ocasião de se despedirem a moça fez um esforço.

— Já sabe? perguntou com voz trêmula e quase imperceptível.

— Adivinhei! disse o mancebo fitando nela os olhos tristes.

Amélia ficou um instante indecisa, em face dele, como se esperasse mais alguma palavra; Leopoldo dissera tudo naquele olhar, em que difundira sua alma.

— Adeus! murmurou a moça afinal.

XIII

A casa nobre de Azevedo resplandecia. A melhor sociedade da corte concorrera ao suntuoso baile.

Toda a aristocracia, a beleza, o talento, a riqueza, a posição e até a decrépita fidalguia, estavam dignamente representadas nas ricas e vastas salas, adereçadas com luxo e elegância: duas coisas que nem sempre se encontram reunidas.

Eram nove horas. Ainda o baile não começara, e notava-se na reunião a gravidade solene, o grande ar de cerimônia, que serve de prólogo às festas esplêndidas. Os cavalheiros percorriam lentamente as salas, observando o íris deslumbrante que formavam os lindos vestidos das senhoras; mas admirando especialmente as estrelas que brilhavam nessa via-láctea.

Amélia acabava de sentar-se.

Horácio foi logo saudá-la, e cumprimentou-a pelo bom gosto e delicadeza de seu traje.

Realmente não se podia imaginar um adorno mais gracioso. O vestido era de escumilha rubescente, formando regaços onde brilhavam aljôfares de cristal; nos cabelos castanhos trazia uma grinalda de pequenos botões de rosa, borrifados de gotas de orvalho.

Um poeta diria que a moça tinha cortado seu traje das finas gazas da manhã; ou que a aurora vestindo as névoas rosadas, descera do céu para disputar as admirações da noite.

— Dançaremos a primeira, disse Horácio.

A moça corou:

— Sim.

Laura passava. Amélia chamou-a, mostrando-lhe um lugar a seu lado. Horácio afastou-se para deixar as duas amigas em liberdade; mas principalmente para poupar a Laura a contrariedade de sua presença. Desde a noite do teatro o leão compreendera que a moça lhe votava antipatia.

Conversando com a amiga, Amélia descobriu defronte, no vão de uma janela, o vulto de Leopoldo, absorvido em contemplá-la com um olhar profundo e intenso, que servia de válvula às exuberâncias de sua alma. Sentindo-se sob a influência desse olhar, a moça inclinou a fronte, como um sinal de submissão, e abandonou-se à contemplação do mancebo.

De vez em quando procurava ler de relance no rosto de Leopoldo as impressões de seu espírito, os movimentos de sua alma. Pressentiu que o moço desejava aproximar-se dela para lhe falar, mas não se animava; a solenidade da festa, a grande concorrência, a proximidade de Laura, tolhiam o mancebo, cujo caráter fora da intimidade se confrangia, por uma espécie de pudor, próprio das almas virgens.

Amélia sentiu um desvanecimento, descobrindo aquela fraqueza no homem cujo olhar a dominava, e lembrando-se que ela podia nesse instante protegê-lo Não há para a fragilidade da mulher maior orgulho e prazer, do que observar a fragilidade no homem. Vinga-se da tirania do sexo forte.

— Vamos sentar-nos de outro lado, Laura?

— Para quê? Estamos tão bem aqui.

— Dali vê-se melhor a sala; e deve estar mais fresco.

— Como quiseres.

As duas moças atravessaram a sala e foram tomar lugar justamente no vão da janela onde Leopoldo se achava. Amélia conservou-se algum tempo de pé, com o pretexto de arranjar a cadeira, mas para dar ocasião a Leopoldo de falar-lhe. O mancebo adiantou-se com efeito e cumprimentou.

Amélia estendeu-lhe a mão com interesse, para animá-lo.

— Terei a felicidade de dançar uma quadrilha...

— Qual?

— A última!

— A última? repetiu Amélia rindo-se.

— Sim; depois que tiver dançado com todos, replicou o moço completando seu pensamento com o olhar.

— Então a sexta.

A orquestra abriu o baile com uma brilhante sinfonia, depois da qual deram o sinal da primeira quadrilha. Rompeu-se então a simetria, e formou-se o turbilhão.

Durante a contradança, Horácio não se esqueceu do pézinho adorado; e procurou todos os meios de o descobrir nalgum momento de confusão ou descuido. Chegou até a fingir estouvamento em algumas das marcas com o fim de embaraçar o vestido da moça.

— Eu me sento! disse-lhe Amélia irritada.

— Bárbara, non hai cor! replicou-lhe Horácio com as palavras do romance.

— O seu coração está no botim? perguntou-lhe a moça com despeito. — O meu, a senhora bem o sabe, já não me pertence, pois lho dei há muito tempo; e ando-o agora procurando no chão, onde creio que o deixou esmagado um tirano que eu adoro e me repele. Mas conto com a senhora para movê-lo em meu favor. Sim?

— Não, respondeu a moça agastada.

— Realmente eu não compreendo. Será possível que a senhora tenha ciúmes dele? perguntou Horácio gracejando.

A moça olhou-o com expressão.

— Tenho sim, tenho ciúmes!

Terminada a quadrilha, Horácio, depois de algumas voltas de passeio pela sala, deixou a moça no seu lugar e desceu a escada de mármore que levava ao jardim, iluminado com lampiões de diversas cores. Havia ao lado da casa, e ao longo de uma latada, mesas de ferro para tomar sorvetes e refrescos. Horácio, dirigindo-se para esse lugar, avistou Leopoldo sentado a uma das mesas.

— Oh! por cá também, Leopoldo?

— É verdade; contra meus hábitos.

— Está esplêndido! Não achas?

— Sem dúvida. Mas parece que não tem grande interesse para ti.

— Por que pensas assim?

— Vens te esconder aqui, quando se dança. Devias deixar isso para mim, que sou uma espécie de misantropo, uma alma errante neste mundo das fadas.

— Para ser franco, devo-te confessar, que neste baile, onde se acham reunidas as mais bonitas mulheres do Rio de Janeiro, onde nada falta do que pode tornar brilhante uma festa, nem o luxo, nem a riqueza, nem a concorrência, nem as notabilidades de toda espécie, neste baile só há uma coisa que me interessa; uma coisa bem pequenina, e por isso mesmo de um encanto inexprimível

— Que condão será esse tão poderoso?

— Disseste a palavra. E um condão, um verdadeiro condão de fada, que me transformou de repente, e fez do senhor um escravo humilde e submisso.

— Mas no fim de contas o que é?

— Um pézinho!

Tendo proferido esta palavra, Horácio julgou ter dito tudo quanto era possível exprimir na linguagem humana. Um pézinho, era aquele ente adorado que ele entrevia nos sonhos dourados de sua imaginação; era o primor, que deixara impressa a sua forma delicada na mimosa botina. O moço desenhava na fantasia aquele ídolo de suas adorações; e acreditava que Leopoldo devia, como ele, extasiar-se ante a maravilha da natureza.

Longe disso, Leopoldo depreendera das palavras do amigo, que ele estava sob a influência de uma paixão materialista; que ele amava a forma, e levava sua idolatria a ponto de adorar não a forma completa, a imagem viva e palpitante da mulher, mas um fragmento, um trecho apenas dessa forma.

— Pois para mim também, disse Leopoldo, só há neste baile como neste mundo uma coisa que me ilumina a existência.

— A glória?... aposto.

— Um sorriso, apenas.

Horácio não pôde reprimir um gesto desdenhoso. O sorriso era para ele uma das coisas mais triviais; tinha-os colhido tantas vezes, e em lábios tão puros e mimosos, que já não lhe excitavam a atenção. Eram como as flores de um vaso que todos os dias se substituem.

— Vais dançar? perguntou o leão.

— Agora não.

— Pois façamos uma coisa. Conta-me a história de teu sorriso, que eu te contarei a história de meu pézinho.

— Começa então. Cabe-te a preferência, disse Leopoldo.

— Eu a aceito; porque o objeto de meu culto não tem igual no mundo.

Horácio acendeu o charuto. Ele não tinha o menor interesse em saber a história de Leopoldo; o que desejava era um pretexto para falar do objeto de sua adoração, e vazar o que tinha n'alma.

— Há cerca de dois meses, passando pela Rua da Quitanda, achei por acaso sobre a calçada um objeto que tinha caído de

um carro. Era uma botina, mas que botina!... um mimo, um primor, uma coisa divina!

"Não podes fazer idéia, não, Leopoldo. Sabes que tenho amado mulheres lindas de todos os tipos, alvas ou morenas; formosuras de todas as raças, desde a loura escocesa até a brasileira de tranças negras; adorei-as, uma depois de outras, e às vezes ao mesmo tempo, essas diferentes irradiações de beleza. Pois confesso-te que nunca o sorriso ou o beijo da mais sedutora dentre elas me fez palpitar o coração como aquela botina.

"Pensem os fisiologistas como quiserem, o pé é a parte mais distinta do corpo humano; sem ele a estatura não teria a nobreza que Deus só concedeu à criatura racional.

"O pé revela o caráter, a raça e a educação. Cada uma das feições e dos gestos desse órgão de nossa vontade tem uma expressão eloqüente. Há quem não adivinhe em um pé delicado e nervoso a alma de fina têmpera? Ao contrário um pé chato e pesado é a prova infalível de um gênio tardo e pachorrento.

"Virgílio, o poeta mais elegante que tem existido compreendeu que Vênus ocultasse nos olhos do filho, na selva líbica, a beleza imortal de seus olhos, de seu sorriso, de suas formas sedutoras; mas não aquilo que era sua essência divina, sua graça olímpica. Foi pelo andar que ela revelou-se deusa; et vera incessu patuit dea.

"Nunca sentiste o doce contato do pé da mulher amada? É uma sensação deliciosa que penetra nos seios d'alma. Podes apertar-lhe a mão, cingi-la ao seio, beijá-la. Nada vale aquele toque sutil que abala até a última fibra.

"Faze pois idéia do que eu sentia. E a botina não era senão a estátua ou a efígie do pé encantador que a havia calçado. Ali estavam impressos seus graciosos contornos, sua forma suave.

"Apaixonei-me por esse pézinho, que eu nunca vira, que não conhecia. Sagrei-lhe minha alma como ao ignoto deo de minhas adorações."

Horácio exagerou então os esforços por ele empregados para descobrir o misterioso ídolo de suas adorações, e referiu os fatos que já conhecemos. Teve porém a discrição, rara em um leão, de não revelar os nomes; receava ainda que lhe arrebatassem a conquista.

— Finalmente, concluiu ele, o acaso me fez descobrir a dona do pézinho que em vão buscava. Hás de crer, Leopoldo? Conhecia essa moça, que é realmente encantadora; diversas vezes achei-me com ela em sociedade e nunca sentira à sua vista a menor comoção. Mas quando soube que a ela pertencia o tesouro, adorei-a. Para ver o pézinho que sonhei, estou disposto a fazer a maior das loucuras, casar-me!...

— É esta a tua história?

— Dize antes meu poema. Sinto não ser poeta para escrevê-lo.

— Pois, se me permites franqueza, dir-te-ei que realmente o desenlace que lhe pretendes dar será uma loucura. O casamento, quando não une duas almas irmãs criadas uma para a outra, é uma espécie de grilheta que prende dois galés; o suplício de duas existências condenadas a se arrastarem mutuamente Tu não amas essa moça, Horácio.

— Não a amo?

— Não!

— Quando lhe vou fazer o sacrifício que nenhuma outra mulher obteve de mim?

— Não passa de um capricho. Essa moça é para ti um pé e nada mais.

— A mulher que amamos tem sempre um encanto, uma graça especial. Às vezes são os cabelos; outras os olhos; tu amas o sorriso; eu o pé.

Leopoldo levantou os ombros.

— Sem dúvida. A alma da mulher, como a do homem, se revela em cada pessoa por uma feição mais distinta, por uma expressão mais eloqüente. Mas não é isto que sucede contigo. Tu sentes a idolatria da beleza material; procuraste sempre na mulher a forma, o amor plástico; à força de admirar os mais lindos rostos e os talhes mais sedutores, ficaste com o sentido embotado, precisavas de algum sainete que estimulasse teu gosto. Viste ou imaginaste um pézinho mimoso e gentil: tornou-se logo para ti o tipo, o ideal da beleza material, que te habituaste a adorar.

Horácio soltou uma risada:

— Olha, Leopoldo, cá para mim o platonismo em amor seria um absurdo incompreensível se não fosse uma refinada hipocrisia. Esses mesmos que adoram a mulher como um anjo, de que se nutrem senão da contemplação de beleza material que tratas com tamanho desprezo? É possível que uma mulher feia seja amada por aberração do gosto; mas fazer disso uma regra geral!...

— Ninguém pretende semelhante coisa. A beleza é um encanto, uma graça, um invólucro da mulher; mas não deve ser exclusivamente a mulher, como a pétala é a flor, e a centelha é a luz.

— Sofisma! Tira a beleza à mulher amada e verás o que fica; o mesmo que fica da flor que murcha e da chama que se apaga: pó ou cinza.

— Queres que te prove o contrário? Ouve a minha história.

— Ah! é verdade. A história de teu sorriso?

— Sim.

XIV

O Almeida acendeu outro charuto.

— Meu romance, disse Castro, começou como o teu na Rua da Quitanda. Passando ali uma manhã, vi uma moça, que produziu em mim profunda impressão. Parei para contemplá-la; mas o que eu admirava nela, não era seu talhe elegante e seu rosto gracioso: era unicamente a emanação de sua alma pura, o seu casto e ingênuo sorriso.

"Quando o carro partiu, arrebatando-a a meus olhos, conservei sua imagem gravada em minha alma. Não penses, porém, que eu revia a sua figura, os seus traços. Não: era uma forma imaterial, uma visão vaga e indistinta. Não me lembrava como eram suas feições; qual era a cor de seus olhos ou de seus cabelos; mas parecia-me que eu via sua alma refletida na minha.

"Senti que amava essa moça, e afaguei este sentimento, que enchia meu ser de alegrias inefáveis. Bastava-me ver de tempos a tempos a minha desconhecida e trocar com ela um olhar, ou beber-lhe de longe nos lábios o sorriso, que era emanação de seu ser.

"Estava-me reservada uma dura provança. Um dia vendo a minha desconhecida entrar no carro, descobri que ela tinha um defeito... um aleijão, é preciso dizer a palavra. A fímbria do vestido roçagando mostrou-me um pé deforme."

— Ah! exclamou Horácio, não podendo reprimir um sorriso.

— O acaso tornou-se nesse dia de uma previdência cruel. O que eu tinha visto de relance era um vulto confuso, um volume exagerado talvez pela imaginação. Podia acariciar essa ilusão, e desvanecer a impressão desagradável que sofrera; mas o desengano não se demorou. Passando nessa mesma hora pela loja onde compro calçado, vi sobre o mostrador uma botina, verdadeiro contraste da que tu achaste, Horácio!

— É curioso!

— Não havia que duvidar; era o molde do pé deforme que eu acabava de ver, mas o molde fiel!... Todos os traços fisionômicos do aleijão ali estavam bem debuxados, sobretudo na fôrma que servira para o calçado, e que ali se achava ao lado dele. Poupa-me a descrição do que vi. Era repulsivo; isto basta.

"Imagina o que devia sofrer! Não era o feio, não; era o horrível, o estupendo, que de repente caíra como um peso enorme sobre meu coração, para espremer dele, com o último soro, um amor profundo e veemente.

"A luta foi terrível, mas breve. O amor triunfou, porque era o afeto d'alma, e não o culto plástico da beleza. Hoje, se alguma vez me lembro do que vi, entristeço-me pelo desgosto que ela há de ter de sua deformidade; mas sinto que por isso mesmo a amo, e a devo amar ainda mais.

"Compara agora o teu com o meu amor, e dize em consciência se tenho ou não razão. Para aniquilar o teu, não era preciso

um aleijão; bastava substituir por uma forma comum esse primor que tu sonhaste, esse pézinho de silfo ou de deusa, que talvez não passe de uma ilusão."

— Ilusão!... Se eu tive a mesma prova que tu! Mas demos a questão por finda. Nem tu conseguirás me convencer, nem eu quero reviver lembranças que te pesam; Desculpa-me ter falado nisto. Como podia eu imaginar uma tal coincidência!

— É verdade!

Os dois amigos deram algumas voltas no jardim, falando de coisas indiferentes, e entrando nas salas, separaram-se.

Horácio procurou Amélia durante algum tempo; afinal, passando pela porta do toucador, viu a mão da moça que entreabria a cortina de veludo verde.

— Está triste, disse-lhe o mancebo conduzindo-a ao salão.

— Estou fatigada, respondeu a moça com frio desdém.

Horácio conhecia profundamente a fisiologia da mulher que ama; tantas vezes tinha lido e relido o livro misterioso do coração feminino, que não podia escapar-lhe a menor alteração do texto. O tom de Amélia o surpreendeu; alguma coisa havia. O que era? O que podia ser?

Poucos momentos antes ele a deixara amável e terna; uma hora depois vinha encontrá-la desdenhosa e fria.

— Ciúmes, naturalmente! pensou o leão com certo desvanecimento. Contaram-lhe alguma ou ela imaginou!

O moço resolveu sondar o coração da noiva:

— A senhora tem mais alguma coisa além da fadiga, confesse.

— Ilude-se!

— Talvez! Concordo, para não contrariá-la ainda mais.

Deram alguns passos silenciosos.

— Vá amanhã jantar conosco, sim? disse Amélia voltando-se para o cavalheiro com um sorriso inefável.

A transição não podia ser mais brusca: uma aurora no seio da noite, tal era aquele sorriso orvalhado de meiguices e graças encantadoras.

Outro, que não fosse Horácio teria respondido sem a menor hesitação o sim, que suplicavam lábios tão mimosos. Mas esse astuto César dos salões, perito na tática da guerra à mulher, não era homem que perdesse tão bom ensejo de alcançar o triunfo completo. O adversário lhe dera a vantagem da posição: cumpria aproveitá-la.

— Amanhã?

A moça fez com a cabeça um gentil aceno.

— Não irei.

— Obrigada.

— Não devo ir.

— Por quê?

— Se eu fosse, pediria ainda uma vez aquilo que lhe tenho pedido tantas, e que a senhora me tem recusado tão cruelmente.

— Ah!

— Bem vê!... Iria contrariá-la, aborrecê-la...

— Cuida?...

Esta palavra tinha uma reticência, e essa reticência era um sorriso que entreabria o céu de uma alma cândida.

— Então amanhã?... disse Horácio.

— Vai?

— E se eu pedir?

— Experimente!

Amélia sentou-se, e Horácio, ébrio de ventura, desceu outra vez ao jardim para desafogar as exuberâncias de sua alma. Nunca a primeira entrevista da mulher que mais amara produzira nele tão profunda emoção. Para achar alguma coisa comparável com o que então sentia fora necessário remontar aos dias da juventude, aos tempos das primeiras pulsações de um coração virgem.

Sua paixão por Amélia tinha realmente uma virgindade. O conquistador havia amado na mulher todas as graças e encantos, mas nunca até então havia adorado um pé. Devia pois experimentar realmente as sensações inebriantes de um primeiro amor.

Na sala dançava-se a sexta quadrilha.

— Acho-a pensativa, disse Leopoldo, reparando que o lindo rosto de seu par, ordinariamente animado por uma gentileza vivaz, estava agora amortecido pela reflexão.

Amélia fitou nele seus grandes olhos ingênuos.

— E não tenho razão?...

Leopoldo calou-se. Tinha compreendido o pensamento de Amélia. Na véspera de decidir de seu destino, de ligar eternamente sua existência, a mulher deve ter desses instantes de recolhimento íntimo. A dúvida agita-se no seio da fé mais profunda, o receio no âmago da esperança mais risonha. As flores do coração, como as da natureza, têm um verme, que as babuja.

Que podia Leopoldo dizer a essa alma perplexa? Aumentar-lhe a dúvida, dar força às vacilações, não seria digno; parecia-lhe uma sedução. Confortá-la em sua fé, animar-lhe a esperança, apontar-lhe para um futuro cheio de venturas, fora nobre e generoso; mas faltava-lhe abnegação para tanto.

Terminada a contradança, Amélia pelo braço do par deu uma volta pela sala. A um aceno de seu leque, Horácio, que estava conversando em um grupo, chegou-se.

— Chame papai. São horas!

Enquanto o leão procurava o Sales para preveni-lo do desejo de sua filha, Amélia dirigiu-se ao toucador.

Leopoldo ficara surpreso de ver a moça falar a Horácio, e com um tom bem expressivo de intimidade.

— Não pensava que se conhecessem... tanto! disse ele com a voz comovida.

— Pois é com ele...

O rubor que tingiu as faces da donzela rematou a frase com a sublime eloqüência do pudor.

— Não sabia? perguntou a moça para disfarçar.

— Não!

— Como o Sr. diz este não!

Com efeito a voz de Leopoldo tivera uma vibração profunda, quando pronunciara aquele simples monossílabo.

— Desejava que não fosse ele? perguntou a moça com certa ansiedade.

— Por quê?

Aproximava-se Horácio dando o braço a D. Leonor, e seguido pelo negociante. Amélia separou-se de seu cavalheiro, e levantando a cortina de veludo do toucador, voltou-se:

— Há de me dizer! insistiu.

— É preciso? perguntou Leopoldo, e seu olhar desceu lentamente do rosto da moça à fímbria do vestido.

Amélia empalideceu; a cortina, escapando de sua mão trêmula, ocultou-a.

— Conhecias Amélia? perguntou Horácio, enquanto esperava que as senhoras saíssem do toucador.

— Estás admirado, sem dúvida! retorquiu Leopoldo secamente.

O leão fitou no companheiro um olhar interrogador; mas ocorreu-lhe de repente uma idéia, que lhe trouxe aos lábios um sorriso de ironia. Lembrara-se do aleijão.

A mulher amada por Leopoldo não podia ser Amélia. Mas quem sabe se o idealista capaz de adorar uma monstruosidade, o espírito severo que desdenhava a beleza material, não sofria a sedução irresistível do mimoso pézinho?

— Admirado de quê? De te ver convertido à idolatria da beleza material? . . .

Amélia que saía do toucador, embuçada em sua capa de caxemira escarlate, tomou o braço do noivo e desceu as escadas.

Quando partia o carro de Sales, Leopoldo que também se retirava, encontrou Horácio na porta.

— A ilusão é a única realidade desta vida! disse ele sorrindo.

— O quê?

— Adeus!

XV

Seriam quatro horas da tarde. Amélia, já vestida para o jantar, esperava o noivo trabalhando em um bordado de tapeçaria. A seu lado, em uma linda banca de costura forrada de pau-cetim, havia, além dos utensílios necessários, uma profusão de seda frouxa de várias cores.

No cetim branco, estendido pelo elegante bastidor de mogno, via-se o risco de um par de sandálias, que pareciam destinadas a alguma fada, tão pequena, mimosa e delicada era a forma do pé.

Um dos esboços estava ainda intato; no outro porém via-se já um florão de rosas bordadas a seda frouxa, e no centro a letra L, feita com torçal de ouro. Era naturalmente a inicial do nome, em cuja tenção a moça trabalhava.

Amélia estava nesse dia talvez menos formosa, porém em compensação mais sedutora. Certa expressão languida, ou de cansaço ou de melancolia, embotava a flor de sua habitual lindeza, desmaiando o matiz dos lábios e das faces, velando o brilho dos olhos pardos. Seu traje branco ainda mais ameigava a sua fisionomia.

Não há para arrebatar os sentidos como essa languidez da mulher amada. Parece que ela verga com a exuberância do amor, como a planta muito viçosa, quando concentra a seiva que não brota em flor. O homem querido se regozija, pensando que suas palavras e suas carícias podem, como os orvalhos celestes, reanimar e expandir o coração da mulher amada.

Talvez em Amélia não fosse esse desmaio senão o efeito da fadiga do baile, e das cismas da noite maldormida.

Enquanto bordava, o ouvido da moça atento esperava algum rumor que lhe anunciasse a chegada do noivo. Um carro parou à porta; e momentos depois soaram na sala de visitas os passos de alguém.

Era Horácio.

Vendo a moça na saleta próxima, o leão dirigiu-se a ela, com a familiaridade a que lhe dava direito seu título de noivo. Trocados os cumprimentos usuais, sentou-se junto ao bastidor.

— O que está bordando?

Amélia fez um gesto para cobrir o bordado:

— Deixe ver! insistiu o moço.

— Não vale a pena!

— Ah!

Esta exclamação desfez-se nos lábios do mancebo em um sorriso de júbilo.

— É um presente de anos para uma amiga! disse Amélia.

— Não são para a senhora?

— Não, respondeu a moça admirada.

— Está zombando comigo!

— Veja!

A unha de nácar da moça mostrou o L bordado a ouro.

— Pois há quem tenha este pézinho mimoso, a não ser minha noiva? disse Horácio rindo-se.

— Eu? exclamou Amélia enrubescendo. Pobre de mim!

— Lembra-se do que me prometeu ontem à noite?

Uma nuvem de tristeza cobriu o lindo semblante da moça; com a fronte pendida e os olhos baixos, parecia contraída por uma dor íntima.

— Amélia!

— Ontem... não tive animo de contrariá-lo. Fiz mal; desculpe-me.

— Então sua promessa? disse o moço com ironia.

Amélia voltou o rosto como para esconder uma lágrima.

— Acredite. O que me pede... não posso... não tenho forças para fazer. Se o senhor soubesse!... E entretanto deve saber, porque... Eu lhe suplico, não falemos disso agora; depois eu lhe direi. Prometo-lhe.

— Não se dê a este trabalho. Já sei quanto basta: zombou de mim.

Horácio levantou-se visivelmente despeitado, e volveu os passos pela sala. Amélia continuou a bordar talvez para disfarçar o seu vexame.

Decorridos alguns instantes, Horácio, lançando um olhar para a moça, ocupada com seu bordado, viu alguma coisa que o sobressaltou. A fímbria do vestido, suspensa na travessa do bastidor, devia descobrir o pé da moça para quem estivesse sentado à sua esquerda.

O leão aproximou-se na esperança de surpreender o avaro tesouro que se roubava a seus olhos.

— Não sabia que bordava tão bem!

— Ora! Não tenho paciência para estes trabalhos. Se não fosse uma dívida...

— Como? Não é mais presente de anos?

— Uma e outra coisa.

— Ou talvez nem uma nem outra, disse Horácio adoçando o tom de ironia.

— Que necessidade tinha eu de enganá-lo? disse Amélia com um doce ressentimento. Uma amiga minha...

— Cujo nome não consta.

— É segredo! atalhou a moça com faceirice.

— Ah! É segredo?

— Inviolável. Ela não quer por coisa alguma que saibam, nem mesmo suspeitem...

— Que é sua amiga?

— Ora!... Que tem um pé deste tamanho, disse a moça mostrando o bordado.

— Deveras? acudiu Horácio.

— Ela pensa que é um aleijão e sente uma tristeza...

— Na verdade, possui um tesouro, um primor! Admira como sua amiga já não morreu de desgosto.

— Mas, falando sério: não é natural que uma moça tenha o pé de uma menina de sete anos.

— Não sei se é natural; mas sublime, asseguro-lhe que é. Há certas graças na mulher que devem ficar sempre meninas; as huris, as fadas, as deusas, são assim.

— Com efeito! Se eu fosse ciumenta!

— De sua amiga?... De uma amiga tão íntima?... Era quase ter ciúmes de si mesma! disse Horácio gracejando.

— O que o senhor quer, sei eu. É ver se adivinha.

Horácio tinha sustentado esta conversa com interesse extremo, menos pelas palavras da moça, do que pelos movimentos da fímbria do vestido. A saia, arregaçando gradualmente com a inflexão do talhe gentil da moça reclinada sobre o bastidor, prometia brevemente descobrir o tesouro, tão estremecido pelo mancebo.

Amélia, ocupada com seu trabalho e distraída com a conversa, se esquecera daquele constante cuidado que ela tinha em compor a orla do vestido. Durante a conversa apenas uma vez tirara os olhos do bordado, para lançar uma vista furtiva ao leão.

— Mas então essa amiga misteriosa... A senhora ia contar uma história, se não me engano.

— História, não senhor. Queria explicar-lhe por que este bordado é o pagamento de uma dívida.

— Justamente.

— Pois essa minha amiga incomodava-se muito quando tinha de comprar botinas; custava achar um par que lhe servisse. As de senhora eram muito grandes; as de menina eram muito baixas. Afinal encontrou um sapateiro, que trabalha tão bem como os melhores de Paris.

— É exato.

— Como exato? O senhor sabe?

— A senhora não fala do Campàs? disse Horácio um tanto perturbado.

— Não, senhor.

— Pensei.

— Haverá dois meses, indo eu à cidade, minha amiga, que tinha feito uma encomenda de botinas, pediu-me para ver se estava pronta. Quando o criado a trouxe para o carro onde o esperava, caiu um pé de botina já usado, que fora para modelo. Minha amiga ficou muito aflita; e eu fiz tenção de dar-lhe no dia de seus anos umas chinelas bordadas por mim. Bem vê que não o enganei.

Proferindo as últimas palavras, Amélia sempre ocupada com seu bordado, debruçou-se completamente sobre o bastidor para desembaraçar o fio de seda frouxo. Este movimento produziu o que Horácio esperava. A saia, retraída pela travessa do bastidor, descobriu até o artelho o pé da moça.

O moço estremeceu com a forte emoção; e fechou os olhos, atordoado.

O que vira era uma coisa indefinível, estupenda. Era o aleijão, a monstruosidade de que lhe falara Leopoldo. Aquela massa informe; aquela enormidade cheia de cavernas e protuberâncias, ele a tinha ali em face, diante dos olhos, escarnecendo do seu amor, como um desses caturras hediondos das lendas da Idade Média.

— Diga-me uma coisa: ontem depois que saímos, o senhor conversou com aquele moço que dançou comigo? O Leopoldo, não é?

Não recebendo resposta, Amélia ergueu a cabeça para interrogar o noivo com o olhar. O aspecto demudado de Horácio, o sorriso pungente que amarrotava seu bigode artístico, a vista ansiada que ele tinha fixa no monstro, lhe revelaram subitamente o que sucedera.

Um grito de aflição escapou-se do peito da moça, que afastou violentamente de si o bastidor, causa do acidente, e colheu os largos volantes da saia, ocultando o que ela por tanto tempo defendera contra a curiosidade sôfrega do moço. Por alguns instantes os noivos permaneceram mudos e confusos, sentindo-se repelidos um pelo outro, e contudo não ousando afastar-se. É um suplício cruel esse que inflige a presença de um ente que faz corar de vergonha.

Afinal Horácio levantou-se e deu alguns passos a esmo. Amélia aproveitou-se desse movimento para fugir da sala. Ficando só, o leão dardejou para o interior um olhar terrível; e tomando o chapéu, desceu rapidamente as escadas.

Agora ele compreendia tudo; e as palavras que Leopoldo lhe dissera na véspera, ao sair do baile, lhe repercutiam ao ouvido, como uma gargalhada satânica:— "A ilusão é a única realidade deste mundo".

— Como pude eu tanto tempo iludir-me com o excessivo recato de Amélia? Como não desconfiei do pudor selvagem que velava semelhante a um dragão sobre o terrível segredo?" Não há moça, seja ela o anjo da pudicícia, que não mostre ao menos a pontinha do pé, quando o tem mimoso e gentil. Eu devia saber disso, mas estava cego. Todos cochilamos, sem ser Homeros; eu que me prezo de conhecer a mulher, portei-me como um calouro.

"Consumir dois meses a correr após um sombra, e quando esperava que a sombra tomasse corpo, ela se desvanece... Qual! Antes se desvanecesse; mas ao contrário toma um vulto medonho, enorme, esquálido. Faz-me quase lembrar o verso de Camões."

Horácio soltou uma gargalhada:

— Realmente eu não sei qual de nós dois ficou mais corrido. Se ela de mostrar a toesa; se eu de a ver.

"Sonhar uma pérola, e encontrar um seixo; imaginar um mimo, e achar uma brutalidade; desejar um botão de rosa, e colher uma túbara!

"Se os rapazes souberem disto, estou desonrado. Como posso eu mais apresentar-me na Rua do Ouvidor, quando a coisa divulgar-se? Todo o asno terá direito de atirar-me o coice, como ao leão moribundo da fábula."

Horácio começou a refletir se fizera bem saindo tão precipitadamente da casa de Sales. Moderou o passo, e olhou o relógio. Eram perto de cinco horas. Se voltasse, chegaria tarde; demais, como explicar a retirada e a volta?

— Em todo caso, pensou o leão, a fortuna não me desamparou de todo. Assim como a ilusão durou até hoje, podia prolongar-se mais algumas semanas, e... Tremo de horror, quando me lembro que eu podia ser atado àquele mourão, àquele poste! Ser condenado a arrastar uma trave por toda a vida? Que suplício!

"Se eu pudesse imaginar que o Onipotente, criador de tantas maravilhas, se ocupa com a minha ridícula individualidade e se interessa pelos pecados que eu tenho cometido, me ajoelhava aqui mesmo na rua, e lhe renderia graças pela minha salvação.

"Quem se livrasse de ser esmagado por uma rocha, não escaparia de tão grande perigo como eu. Casar-se um homem com aquele pé, seria predestinar-se para o homicídio."

Passava um carro, que parou de repente.

— Ainda por aqui, Almeida? disse o Sales deitando a cabeça fora do carro.

— É verdade... saí, mas...

— Entre, que hão de estar à nossa espera. São cinco horas; demorei-me hoje além do costume; por causa mesmo do senhor, maganão! Certos arranjos.

Horácio procurou rir, mas fez uma careta que desculpou com um calo. Ele, o leão, sempre elegante, correto e irrepreensível no traje como nas maneiras, tinha perdido completamente a serenidade de espírito.

As senhoras estavam reunidas na saleta. Amélia ficou surpreendida, vendo Horácio de volta com seu pai; e reprimiu o contentamento que sentia. Mas este durou pouco. Ela conheceu logo que o leão obedecera mais às conveniências, do que ao afeto que lhe tinha.

Contudo essa volta significava alguma coisa. Ela, Amélia, não causava horror a seu noivo.

O jantar foi animado pela conversa viva e espirituosa de Horácio, que havia recuperado seu sangue-frio. Uma circunstância porém não escapou a Amélia, que passou despercebida às outras pessoas; o leão, apesar de sentado à sua esquerda, não achou um momento para trocar com ela uma palavra. Ao contrário, manteve sempre a conversação geral, para impedir o diálogo íntimo, que ele receava.

Terminando o jantar, Horácio achou um pretexto para retirar-se logo.

— O que se passou, D. Amélia, é mais do que um segredo para mim; eu nada sei, esqueci, disse ele despedindo-se.

Tocando apenas na mão que a moça lhe estendera, saiu.

Amélia deu um passo para chamá-lo, mas apoiando-se ao recosto do sofá, permaneceu imóvel, escutando os passos do noivo até que se perderam ao longe.

XVI

Fazia uma semana que Horácio não aparecia em casa de Sales.

Amélia tinha por duas vezes mandado saber do noivo. Da primeira contentou-se com um recado; da segunda enviou-lhe uma saudade.

O negociante de sua parte havia passado por casa do moço, que pretextou um defluxo para justificar sua ausência; e prometeu aparecer no dia seguinte.

Horácio compreendia a necessidade de sair da posição difícil em que se achava, mas debalde procurava um meio. Cansado de cogitar, entendeu que o melhor era confiar-se à inspiração do momento.

No dia seguinte à noite, dirigiu-se à casa do negociante.

As duas senhoras estavam sentadas junto à mesa; a mãe lia, a filha pensava. Amélia estava triste, sua mãe supunha que eram saudades.

Quando Horácio entrou, D. Leonor o festejou com verdadeiro prazer. Amélia sentiu um vislumbre de esperança, que iluminou o sorriso de seus lábios.

— Felizmente! exclamou D. Leonor. Esta casa era uma fonte dos suspiros!

A conversação começou friamente, e foi se arrastando por algum tempo. — Não tem saído? perguntou Horácio depois de uma pausa.

— Não; Amélia não tem querido.

— Por quê? perguntou o moço voltando-se para a noiva.

— Então não sabe? acudiu D. Leonor.

— Porque não se ofereceu ocasião, disse Amélia.

— Mas tem recebido visitas?

— Algumas.

— O Leopoldo não apareceu?

— Não freqüenta nossa casa, respondeu a moça.

— Ah!... cuidei.

— Se ele nos visitasse, o senhor o teria encontrado aqui muitas vezes. — Podíamos nos desencontrar, disse Horácio com um sorriso motejador. Amélia percebeu que o moço estava procurando um pretexto para despeitar-se. D. Leonor tendo continuado a leitura interrompida, estava alheia à conversação.

— Foi em casa do Azevedo que o apresentaram à senhora?

— Não; conheço-o de muito tempo; há perto de dois meses.

— De onde, se não é segredo?

— Segredo, por quê? Ele freqüenta a casa de D. Clementina que recebe às quintas-feiras. Constantemente nos encontramos aí. É uma reunião muito agradável; estamos quase em família, sem a menor cerimônia.

— Ah! nunca me convidou para essas reuniões; eu teria muito prazer em acompanhá-la, mas talvez fosse importuno, como já vou sendo aqui.

— O senhor está habituado a viver na alta sociedade; havia de aborrecer-se.

— Mas a senhora não se aborrecia; ao contrário divertia-se bastante.

— Alguma coisa.

— E Leopoldo era seu par?

— Era.

— Par constante?

— Não sei se era constante ou não; quase sempre ele dançava comigo, porque lá não há muito onde escolher; os pares são poucos.

— Ótimo sistema! Assim não se repara.

— Em quê?

— Em certa assiduidade! Ainda mesmo que uma moça já tenha noivo arranjado, há gente que exige da parte dessa moça certa reserva, porque enfim o outro pode não querer aceitar a responsabilidade de tudo! É uma impertinência, concordo, mas o mundo tem destes caprichos.

— Isso se entende naturalmente com as moças que têm noivo arranjado, retorquiu Amélia frisando a palavra, e não com aquelas, cuja mão se pediu talvez para satisfazer uma simples fantasia.

A moça levantou-se da mesa lançando ao leão um olhar desdenhoso, e foi sentar-se ao piano. Enquanto ela tocava uma variação de Thalberg, Horácio para fazer alguma coisa, se entreteve em arranjar as figuras chinesas de um jogo de paciência. Nunca ele precisara tanto de prover-se dessa virtude evangélica.

Decorridos alguns instantes o leão ergueu-se da mesa, deu algumas voltas pela sala, e aproximou-se do piano, como para ver a elegância com que a moça dedilhava.

— A senhora acha muito natural, D. Amélia, que uma noiva freqüente assiduamente uma casa onde não tem entrada o homem com quem vai casar-se; acha natural que essa moça tenha em tais reuniões um par efetivo que provavelmente cultiva uma dessas amizades cândidas dos romances de Balzac, verdadeiros lírios do vale, que vivem de orvalhos e de sombras. Eu, porém, sou um espírito prosaico e material; tenho a infelicidade de não acreditar na atração misteriosa dos espíritos, no consórcio ideal ias almas irmãs, nos sonhos etéreos, nos eflúvios celestes, em toda essa gíria sentimental. Para mim, inteligência grosseira, tudo isso não passa de uma hipocrisia do primeiro tartufo deste mundo, o amor. É um tiranete que toma todas as figuras e posições; faz-se menino ou velho, anjo ou demônio, poeta ou banqueiro... Estou incomodando-a talvez?

— Não; acabe.

A moça fazia com uma ligeira surdina o acompanhamento das palavras do leão; mas à última frase, ela retirou as mãos do teclado. Foi esse o motivo da pergunta de Horácio.

— A senhora deve sentir muito, e Leopoldo com maior razão, de serem privados de uma distração que tanto lhes agrada!

— Compreendo, replicou Amélia. O senhor me proíbe que eu vá à casa de D. Clementina?

— Que idéia! Não tenho direito de proibir; ainda não sou seu marido; a senhora é completamente livre de suas ações, pode ir à casa de D. Clementina, ou onde lhe aprouver; assim como eu posso, querendo, passar as noites no Clube ou no Alcázar.

Amélia soltou uma risada.

— Pensava que os leões estavam isentos dessa fragilidade do ciúme.

— Perdão; não se trata de ciúme, nem sei o que isso é. A questão reduz-se a uma antipatia de caracteres, a uma contradição de gênios, que deve ter para o futuro graves conseqüências. A senhora é idealista, eu sou materialista. Um quisera viver no mundo dos sonhos, outro neste vale das lágrimas e das realidades. A senhora procurando-me no céu entre as estrelas e os anjos, e não me achando aí, sofreria uma cruel decepção; entretanto que eu na terra, ficarei reduzido à sombra da mulher que amei.

— Não é tão pouco, para quem se contentava com um pé de criança, disse Amélia com ironia.

— Mas esse pé era a realidade, a expressão a mais sublime dela!

— Custa-lhe pouco a possuir essa realidade. Mande fabricá-la em cera: sairá ainda mais perfeita.

— Ainda não perdi a esperança de encontrá-la.

O chá interrompeu o diálogo. Os dois noivos aproximaram da mesa oval, onde o criado acabava de colocar a bandeja.

A fisionomia de Amélia perdera a expressão de tristeza e desânimo que tinha a princípio; a conversa lhe deixara no semblante alguns tons vivos.

Ocupada em dispor as xícaras para enchê-las, os gestos sempre macios da moça revelavam certa crispação nervosa.

Horácio ficara contrariado, porque não tivera tempo de precipitar o casus belli. Receava que se demorasse ainda o rompimento que ele tanto desejava.

— Mamãe, disse Amélia com intenção, amanhã é quinta-feira. Vamos passar a noite em casa de D. Clementina?

— Se quiseres.

— Não devemos faltar; deixamos de ir a semana passada.

— Foi logo depois do baile do Azevedo.

— Não o convido, disse Amélia voltando-se para Horácio, porque o senhor não freqüenta essas reuniões de gente pobre.

— Sem dúvida; tenho medo de evaporar-me em devaneios e suspiros, respondeu Horácio, cruzando com a moça um olhar de desafio.

Ele sentiu que Amélia o provocava, e exultou. A moça estava disposta a resistir; o rompimento era infalível e pronto.

— Eu gosto bem dessas partidas; a noite passa tão agradável.

Aproveitando-se de um momento em que D. Leonor se afastou, Horácio atirou à moça rapidamente estas palavras:

— Pois se a senhora voltar à casa de D. Clementina, eu não voltarei mais aqui.

Amélia estremeceu.

Um quarto de hora depois, Horácio retirou-se. Quando se despedia das senhoras, disse o leão à moça apertando-lhe a mão:

— Desejo que se divirta muito amanhã.

— Aonde? perguntou D. Leonor.

— Em casa de D. Clementina. Não vai, D. Amélia?

A moça hesitou um instante. O ofego de seu colo traiu uma luta violenta, mas rápida.

Sua resolução, antes que ela a exprimisse, manifestou-se na altivez do porte, que uma vibração íntima erigira.

— Vou sem falta!

Horácio, soltando a mão da moça, que foi bater inerte nos folhos do vestido, cortejou profundamente:

— Seja muito feliz.

Apenas o leão desapareceu na porta, Amélia abraçando e beijando a mãe, subiu precipitadamente a sua alcova; atirou-se a uma conversadeira, e desafogou em pranto e soluços a dor que tinha recalcado desde muitos dias.

A maior parte da noite foi para ela de vigília. Viu correrem as horas; cada momento que se escoava era uma esperança, uma ilusão que se desfolhava da flor viçosa de sua alma.

Aqueles que se separam das pessoas ou dos sítios queridos, conhecem bem esse travo de coração que chamamos saudade; e sabem quanto é cruel o momento da separação.

Mas não há despedida cruciante como seja a da alma pelo amor que nutriu durante muito tempo. Há aí mais do que uma separação: é quase a mutilação moral.

Amélia compreendera que tudo acabara entre Horácio e ela. Desde o dia do jantar receara esse resultado; mas ainda alimentava uma esperança. Naquela noite a esperança murchara, se não foi ela própria, Amélia, quem a desfolhara.

Agora na calada da noite, em sua alcova que lhe parecia um ermo, ela tinha medo do isolamento em que se achava. Algumas vezes sua alma sentia-se como que asfixiada pelo silêncio e pela treva que a submergiam.

XVII

Como dissera a Amélia, na sua última visita, Horácio não tinha perdido a esperança de encontrar o que ele chamava a

realidade de seu amor: o pézinho gentil e mimoso do qual ele possuía a botina.

Iludira-se nas suas investigações; era preciso recomeçar.

Tal era o pensamento que preocupava o leão, recostado naquela mesma poltrona, onde o vimos no primeiro dia. Seu olhar embebido nos frocos de fumaça do puro havana, rasteava nas espirais diáfanas a imagem confusa de seus pensamentos.

Tinham decorrido três dias depois do seu rompimento com Amélia. Logo na seguinte manhã, o leão para não dar tempo ao arrependimento da moça, escreveu uma carta ao Sales, manifestando seu receio de que a antipatia de gênios tornasse infeliz uma união que todos ardentemente desejavam.

O negociante mostrou a carta à filha, que lhe disse com um sorriso forçado:

— Ele tem razão!

A carta de Horácio teve resposta no mesmo dia. O Sales encontrando-o na Rua do Ouvidor recusou-lhe o cumprimento.

O leão, satisfeito com esse pronto desenlace que evitava longas explicações, achou-se a poucos passos de distância em frente de Leopoldo.

— Oh! Tu me trazes felicidade! exclamou o leão, apertando-lhe a mão. Sempre que nos encontramos, ou está para acontecer ou já tem acontecido alguma coisa de bom para mim.

— Não sabes quanto estimo!... Assim eu sou uma espécie de astro propício, sob cuja influência nasceste.

— Queres ver? Havia muito tempo que não te via, quando nos encontramos no baile do Azevedo. Pois nessa noite decidiu-se meu destino.

— Ah! e sob o meu influxo benéfico?

— Está visto. Lembras-te que eu te disse que estava disposto a todos os sacrifícios até o do casamento para possuir aquele pézinho!...

— Lembro-me.

— O único obstáculo era uma espécie de promessa ou arranjo de família. Felizmente a menina, a tal Amélia, compreendeu que perdia seu tempo, e arrufou-se na noite do baile por uma ninharia. Eu aproveitei o pretexto; escrevi ao pai retirando minha palavra, e agora mesmo ele me acaba de responder. Estou livre como o ar, e contente como um rapaz que sai do colégio.

— Neste caso dou-te meus parabéns.

— E tu como vais com o sorriso?

— Sem novidade.

— Dize-me uma coisa, no dia em que a viste pela primeira vez, ela estava só ou com outra moça? Faço-te esta pergunta porque foi na Rua da Quitanda e quase pelo mesmo tempo que eu achei a botina.

— Eram duas, respondeu Leopoldo sorrindo.

— Em uma vitória?

— Sim.

— A outra era mais baixa?

— Não afirmo.

— Adeus.

O leão separou-se do amigo, e repassando as particularidades de sua conversa com Amélia perto do bastidor e no dia do jantar, começou a combiná-las com as informações de Leopoldo e com as circunstâncias do encontro no Passeio Público, onde vira o sinal impresso na areia pelo mimoso pézinho.

Agora, fumando seu charuto depois do jantar, o leão resumia todas as suas reflexões, e chegava a este resultado:

— Decididamente o pézinho é de uma moça que ia com Amélia, no dia em que se perdeu a botina e no dia em que eu a vi de longe no Passeio Público. Essa moça, cuja inicial é um L, não é outra senão Laura. Aquele pudor feroz era um indício infalível. Amélia procurava imitá-lo por motivo bem diverso: mas não o conseguiu.

O moço chegou-se à banquinha onde estava o cofre de pau-rosa e contemplou a botina.

À noite, o leão foi a uma partida. Sua estrela o favorecia. Laura lá estava. Dirigiu-lhe algumas banalidades graciosas, que ela a princípio recebeu com manifesta esquivança, mas depois com timidez.

Horácio compreendia a razão do procedimento da moça. Para tranqüilizá-la, teve o cuidado de nunca abaixar a vista à fímbria do vestido, e mostrar-se enlevado pelo colo gracioso da gentil senhora. A lição que recebera anteriormente, o tornou de uma prudência consumada.

No fim da noite o leão conseguira restabelecer a confiança no espírito de Laura, desvanecendo-lhe a suspeita deixada pela cena do teatro. Era o essencial; com os meios de sedução de que dispunha, e a inclinação que a moça revelava por ele, contava certa a conquista. A questão era de tempo.

Antes de quinze dias freqüentava a casa da moça e estava na intimidade da família.

Laura perdera o marido aos 17 anos, pouco tempo depois de casada. Era rica; não lhe faltavam pretendentes atraídos pelo dote e pela beleza; mas ela não parecia disposta a tentar segunda vez a felicidade conjugal, embora não tivesse passado da lua-de-mel. É natural que o desejo lhe chegasse com o primeiro fio de neve; quando fossem rareando os apaixonados que a cercavam.

Uma manhã, Horácio passando a pé, como costumava, pela casa da moça, viu-a, por entre as grades, sentada no jardim ocupada em fazer um ramo de flores. Entrou e foi ter com ela, à sombra de uma latada de madressilvas.

Laura deu-lhe lugar perto de si; e começaram a conversar sobre flores, modas e mil futilidades.

Eram dez horas do dia. O sol brilhava em céu límpido; uma aragem fresca sussurrava entre as folhas; os coleiros trinavam nas ramas das laranjeiras. Esse concerto de perfumes e harmonias convidava o coração a abrir-se e cantar o seu hino de amor.

Laura reclinou a fonte e emudeceu, com os olhos embebidos no seio de uma rosa, que tinha no regaço. Horácio tomou-lhe a mão, que ela cedeu com tênue resistência.

— Sabe desde quando eu a amo, Laura? Desde o dia em que a vi pela primeira vez passar em um carro. Foi, se não me engano, na Rua da Quitanda; ia com a filha do Sales. Lembra-se?

A moça fez um gesto afirmativo.

— Depois encontrei-a no teatro. A princípio seus olhos me deixaram conceber alguma esperança; mas o desengano foi cruel. Nem imagina como sofri! Cuidei que não houvesse mulher capaz de obrigar-me a voltar às ingenuidades dos 18 anos. Um dia ainda me lembro, via-a de longe entrar no Passeio Público; apressei-me para ter o prazer de cortejá-la, receber um olhar. Debalde corri todas as ruas; quando voltei à porta fiquei desesperado. A senhora tinha saído, sempre com a filha do Sales. Recorda-se?

— Recordo-me, respondeu a moça. Mas era por mim que fazia tudo isso?

- Duvida, Laura?

— Nega que esteve apaixonado por Amélia? Até diziam que já a tinha pedido.

— Que ingratidão! Não sabe então por que me fiz apresentar em casa do Sales? Para vê-la; era preciso procurar um meio; a senhora já não se lembra da dureza com que me tratava.

— E por isso consolava-se com Amélia?

— Se amasse, Laura, havia de saber o que é o ciúme, e as loucuras que ele nos obriga a fazer! Mas a senhora não ama!

— Quem lhe disse?

— Essa frieza.

— E o que eu sofri?... balbuciou a moca pondo os olhos languidos no semblante do mancebo.

— Perdão, Laura, exclamou Horácio ajoelhando. Eu era um louco, indigno de teu amor; e não mereço tanta felicidade. Mas deixa-me implorar o meu perdão; deixa-me beijar teus pés, que...

— Ah! .. .

Horácio proferiu aquelas palavras apaixonadas, de joelhos diante da moca que sorria inclinada para ele; de repente abaixou-se para beijar-lhe os pés, esse objeto de sua adoração. Foi então que ela soltando um grito de espanto, o repeliu para longe de si com horror.

Contudo, o moço, que preparara toda aquela cena para chegar à realização do desejo por tanto tempo afagado, conseguira ver... mas não o que esperava: um pézinho mimoso e gentil; e sim dois pés ingleses de sofrível tamanho, que lhe pareciam descansar sobre uma almofada preta.

O semblante de Laura se tinha demudado de uma maneira espantosa; em suas faces intumescidas respirava uma expressão feroz de ódio e vingança.

Horácio compreendeu que naquele momento qualquer explicação era impossível. O que tinha de melhor a fazer era eclipsar-se. No fim de contas esse desenlace lhe convinha, pois cortava todas as dificuldades da retirada.

Cortejou e saiu.

A alguns passos da casa, o leão não pôde conter uma gargalhada, que lhe estava a sufocar, e desabafou-a. Realmente havia de que rir; duas vezes mistificado em sua paixão, ele, o rei da moda, o conquistador sempre feliz.

Insensivelmente começou a refletir sobre o ocorrido. Por mais que se desse tratos à imaginação, não podia decifrar o enigma. A botina que achara fora perdida por uma das duas moças; mas não pertencia a nenhuma. Seria encomenda de outra amiga, e talvez para alguma menina de dez anos?

De repente surgiu no espírito de Horácio uma idéia tão original, como a situação em que se achava.

— Eu vi os dois pés de Laura; mas de Amélia, só vi um; é verdade que esse valia por três. Mas... Não resta dúvida. A natureza tem destes caprichos. A maravilha a par do monstro, o mimo em face da deformidade! É o princípio do contraste, que rege o mundo. Eu vi o direito, o aleijão. O esquerdo ficou oculto como a pérola e o diamante.

Compenetrado dessa idéia, de que o pézinho adorado pertencia a Amélia, a quem a natureza em compensação aleijara o outro, Horácio admitiu a possibilidade de que sua paixão pela moça revivesse, embora menos ardente, ou mais positiva.

Ter aquele pézinho em suas mãos, senti-lo estremecer e palpitar de emoção, cobri-lo de beijos, acariciar a rósea cútis diáfana tecida de veias azuis, brincar-lhe com as unhas crespas, como conchinhas de nácar, cingir ao seio esse gnomo gentil, titilante de amor e volúpia!...

Não podia haver para o leão maior delícia neste mundo. Ele daria por ela todo o quinhão de prazer que porventura lhe estava reservado para o resto da existência.

Foi engolfado nestes devaneios que Horácio apeou-se à Rua Direita de um tílburi, que tomara no Largo do Machado.

Seguindo para a Rua do Ouvidor, a passo lento e descuidado, o leão aspirava o ar da cidade, como o ocioso que não sabe em que há de consumir o dia e fareja uma aventura qualquer.

De repente avistou coisa que o pôs alerta. Um carro que subia a Rua do Ouvidor passou por ele; era o cupê do Sales. O rosto encantador de Amélia apareceu-lhe a princípio de relance na penumbra que azulava o acolchoado de damasco, e depois em plena luz moldurado pelo quadro do postigo.

Acompanhando com o olhar a carruagem, Horácio a viu rodar por algum tempo vagarosamente por causa de embaraço no transito e parar próximo à esquina da Rua dos Ourives. O lacaio, com a mão na aldraba, esperava naturalmente ordem para abrir.

Horácio apressou o passo. Por duas vezes avistara a fronte de Amélia coroada com um chapeuzinho de palha da Itália, assomando no postigo, a fim de percorrer a rua com o olhar. A idéia de que a moça lhe desejava falar passou pela mente do leão, que a repeliu, sem contudo considerá-la impossível.

Em todo caso ele acreditou que mais ou menos tinha parte naquela parada do carro, e não se enganava.

— Para que mandaste parar? perguntou D. Leonor.

— Quero comprar luvas no Masset, respondeu a filha.

— Ficou atrás.

— Podemos ir a pé.

Quando o leão chegou a dez braças do carro, a portinhola abriu-se, e Amélia, em companhia de sua mãe, saltou na calçada. A moça tinha um roupão cor de café, de extrema simplicidade, porém muito elegante; as luvas eram da mesma cor de cinza das fitas do chapéu de palha.

As duas senhoras dirigiram-se para a casa do Masset. Horácio procurou cortejá-las na passagem, mas elas não lhe deram ocasião. Contudo o leão reparou que a moça disfarçadamente voltou o rosto para olhá-lo.

Enquanto as senhoras compravam luvas, Horácio as esperava em frente da casa do Valais, a alguns passos do carro. Pouco tardaram. Amélia vinha só na frente. Felizmente o transito pela calçada diminuiu naquele instante, de modo que o conquistador pôde ver a gosto a moça aproximar-se dele. Levados por impulso irresistível os olhares do mancebo abaixavam-se para os volantes do vestido, e rastejaram no chão que a moça pisava.

Amélia percebeu a insistência do olhar, e um ligeiro sorriso fugiu-lhe dos lábios. Imaginando que na calçada havia lama, colheu com ambas as mãos a frente da saia, e com tanto estouvamento que descobriu os pés até o colo da perna.

Horácio ficou fulminado.

Vira pousados na calçada dois pézinhos mimosos que palpitavam dentro de botinas de merinó cor de cinza. Pareciam um par de rolinhas, arrulhando na praia e beijando-se com o biquinho rosado. Durante o rápido instante, que seus olhos puderam admirar esses primores de graça e gentileza, não escaparam a Horácio as ondulações voluptuosas e os contornos suaves dos dois silfos. Nunca ele observara no talhe elegante da mais formosa mulher requebros tão aveludados, como tinha aquele dorso arqueado e aquela palmilha sutil.

Tamanho foi o pasmo de Horácio, que sr deu por si quando a moça, passando por ele, entrou na carruagem. Voltou-se então precipitadamente, sem consciência do que ia fazer; mas a parelha já tinha partido a trote largo.

Momentos depois o leão descia a Rua do Ouvidor completamente absorto. Seu lábio distraído ia debulhando, sem o sentir, alguns trechos dos lindos versos do conselheiro José Bonifácio:

"Padres, não me negueis, se estais em calma, "Um coração no pé, na perna um'alma!"

XVIII

Laura e Amélia eram primas e amigas de infância; havia entre elas apenas a diferença de dezoito meses.

Desde a idade de três ou quatro anos, isto é, desde que deixou as faixas, Laura usou sempre de roupas compridas. Isso causava reparo a todos que viam a menina trajada como uma senhora. Muitos achavam extravagante e ridículo o capricho e censuravam a mãe.

Esta ouvia as censuras de suas amigas, assim como os motejos estranhos, e calava-se; mas não alterava o vestuário da menina. A ternura e piedade materna lhe davam a paciência necessária para arrostar com as zombarias do mundo.

Laura tinha um aleijão; nascera com os pés disformes. Para mais agravar o desgosto dos pais, essa monstruosidade vinha ligada a uma beleza angélica. A senhora avaliou do infortúnio de sua filha, e preparou-se para todos os sacrifícios. Consultas foram dirigidas aos melhores médicos da Europa; chegou a empreender uma viagem para tentar os recursos da ciência; foram todos ineficazes.

Desenganada afinal, dedicou-se a esconder a desgraça de sua filha, a fim de que ela não fosse obrigada a envergonhar-se na sociedade. Durante muito tempo Laura não teve outra criada, além de sua mãe. À custa de esforços constantes, de uma vigilância incessante de cada dia e cada hora, conseguiu a senhora manter esse segredo de família, do qual dependia a felicidade da filha.

Atingindo a idade de oito anos, a menina com o instinto da mulher, compreendera seu infortúnio; e desde então descansou a mãe daquele cuidado incessante. Ficando moça casou-se, e seu marido que a amava estremecidamente, morreu ignorando o segredo.

Com bastante mágoa sua, Amélia surpreendeu o segredo da prima e amiga.

A filha de Sales tinha dois pézinhos de fada, breves, arqueados, com uns dedos que pareciam botões de rosa. O desgosto e vexame que isso causava à moça, ninguém o imagina. Ela supunha-se aleijada; apesar de seus 18 anos, seus pés eram de menina.

Assim o mesmo cuidado com que Laura escondia a sua monstruosidade, punha ela em ocultar essa graça e prenda da natureza. Naquele tempo não se tinha introduzido ainda a moda dos vestidos curtos; bem ao contrário, o tom era arrastar desdenhosamente pelo chão a longa fímbria do vestido.

Um dia que Laura passou em sua casa, Amélia teve curiosidade de comparar seu pézinho com o da prima, para saber se a diferença era excessiva. Enquanto a outra endireitava o penteado no toucador, realizou ela seu intento.

Avalie-se da vergonha e aflição de Laura; o desespero de Amélia foi maior ainda. Não perdoava a si mesma o ter causado tão grande pesar à prima, a quem ela queria muito bem. Para mitigar essa dor profunda, Laura esqueceu a sua.

Desde então as duas amigas se consolavam mutuamente. Laura admirava o pézinho de Amélia; esta, ou sinceramente, ou para atenuar a mágoa da prima, chegava a invejar o seu infortúnio.

Aborrecida de não encontrar nas lojas calçado que lhe servisse, Amélia tinha descoberto por acaso o sapateiro da Rua Sete de Setembro. Conhecendo a habilidade do Matos, pensou que ele pudesse disfarçar o defeito da prima. Não se enganou; o artista realizara a obra-prima de paciência, que Leopoldo tivera ocasião de apreciar por um acaso.

Amélia fez a Laura o sacrifício de expor-se para não comprometer o segredo da amiga. O sapateiro não a conhecia, nunca a tinha visto, recebia as encomendas por intermédio de um criado que pagava à vista. Fácil foi portanto iludi-lo.

Na ocasião em que as duas primas esperavam de carro na Rua da Quitanda, o lacaio vinha da casa do sapateiro, o qual vexado com a pressa, esquecera as recomendações de fechar bem o embrulho.

As pretensões de Horácio vieram pouco depois arrefecer a amizade das duas primas: já não se viam tão amiúde; mas não obstante Amélia continuou a prestar a Laura o mesmo serviço, e essa, coagida pela necessidade, foi obrigada a aceitá-lo.

Iam as coisas por esse teor, quando teve lugar o baile do Azevedo.

Depois da primeira quadrilha, Amélia foi ao toucador. Era este em uma sala que dava para o jardim. Aproximando-se de uma janela entreaberta, obscurecida pela sombra do cortinado da cama, viu a moça os dois amigos no momento em que eles vieram sentar-se no banco, justamente colocado por baixo da janela.

A casa era abarracada. Amélia encostada no portal da janela, descobria os dois cavalheiros por entre a folhagem, e ouvia distintamente suas palavras.

Aí, imóvel, mas agitada por comoções diversas, escutou ela a história do pé e a história do sorriso. Já os dois amigos se tinham afastado, e a moça permanecia no mesmo lugar como estática.

A narração de Horácio, e as observações que fizera Leopoldo a esse respeito, revelaram à moça uma coisa que já anteriormente se havia apresentado, embora indistinta, vaga e confusa a seu espírito.

O que Horácio amava nela, não era mais do que uma forma, um capricho, um sonho de sua imaginação enferma. Ela compreendeu essa aberração dos sentidos em um homem gasto para o amor e saciado de prazeres. A mulher era para o leão uma coisa comum e vulgar, incapaz de produzir-lhe emoções fortes. Tinha-as admirado de todos os tipos e de todos os caracteres. Seu coração exausto precisava de alguma coisa nova, original e extravagante.

Amélia compreendeu isto, não por uma análise, que seu espírito casto não poderia fazer, mas por uma intuição d,alma.

Quando de novo encontrou Horácio no baile, suas maneiras não podiam que se não ressentissem do estado de seu coração. Tratou o leão secamente; mas logo tornou-se amável; ocorreu-lhe uma idéia; quis pôr à prova o amor do noivo, antes de confiar-lhe seu destino.

Foi na sua alcova, durante a insônia, que ela recordou-se da história de Leopoldo, e comparou seu amor ao de Horácio. Repassando na mente as palavras comovidas do primeiro, pensando naquele afeto tão desprendido das misérias humanas, tão d,alma, Amélia sentia-se como purificada dos desejos do sedutor.

Esse amor puro e imaterial era um batismo para seu coração virgem.

A moça conheceu que o engano de Leopoldo provinha de uma ilusão da vista, no momento de entrar no carro com Laura; ilusão confirmada pela presença do lacaio na loja do sapateiro. Chegou a estimar esse incidente que pôs em relevo a alma nobre e generosa do mancebo.

Acudiu-lhe à lembrança sua primeira conversa em casa de D. Clementina. As palavras que então lhe pareceram ininteligíveis, tinham agora um sentido. Compreendia toda a sublimidade do coração que dizia com uma profunda convicção:

— Sinto-me capaz de amar o horrível, sinto-me capaz de nutrir uma dessas paixões mártires, de amar o anjo ainda mesmo encarnado no aleijão.

— Esse me ama realmente, a mim, e não à sua fantasia! murmurou a moça com tristeza.

No dia seguinte, depois de uma noite de insônia, preparou-se para receber Horácio e submetê-lo à prova. O Matos conservava um par das antigas botinas de Laura, o qual lhe fora para modelo. Mandou Amélia buscá-lo; e encheu-o de algodão para acomodar nessa enormidade o seu mimoso pézinho.

O bordado do bastidor foi expressamente inventado. Procurando uma letra para indicar a pessoa a quem destinava o pretendido presente, insensivelmente traçou um L. Era a inicial de Laura, que lhe acudira à mente; ou era a lembrança de Leopoldo, que lhe esvoaçava ainda na imaginação? Foi uma e outra coisa. Serviu-se do pretexto da amiga para evocar o nome do homem, que tão profundamente a amava.

Depois da cena que teve lugar na tarde do jantar, Amélia arrependeu-se. Receava ter-se excedido; bastava-lhe matar a ilusão do mancebo, não devia ter excitado o horror. Mas o afeto de Leopoldo a tornara exigente; ela queria ser amada por Horácio da mesma forma, com aquela sublime abnegação.

Durante alguns dias, alimentou a esperança de conservar a afeição do noivo, e regozijava-se com a idéia da surpresa que lhe guardava.

A ausência do leão a foi desenganando de dia em dia. Travou-se então uma luta em seu espírito. Devia esquecer o homem que não amava nela senão uma fantasia?

O tom de Horácio na última noite a irritou. Seu amor-próprio indignou-se com o menoscabo do moço, e súbita revelação de sua alma lhe advertiu que esse casamento causaria sua desgraça.

No dia seguinte ao do rompimento, Amélia foi, como havia dito na véspera, à casa de D. Clementina. Era a primeira vez que tornava a ver Leopoldo depois do baile.

Estiveram juntos alguns momentos. Como de costume Leopoldo falou, e a moça embebeu-se daquelas palavras apaixonadas como de um eflúvio suave.

Em um momento de pausa, disse Amélia:

— O senhor passou por nossa casa na terça-feira?

— É verdade. Por que pergunta?

— Eu estava no jardim. Vi-o quando passava; cuidei que ia entrar.

— Não me animava.

— Por quê?... Mamãe já lhe ofereceu nossa casa.

— Tenho receio de ser importuno.

— Pouco saímos agora; à exceção das noites que passamos aqui, estamos sempre sós; mamãe lendo e eu tocando ou fazendo algum trabalho de lã.

— E ninguém mais? perguntou Leopoldo, fitando na moça um olhar interrogador.

— Ninguém! respondeu Amélia em tom grave.

Leopoldo ficou suspenso, buscando compreender o pensamento da moça. Era mágoa do bem perdido, ou temor do mal frustrado, que assim lhe anuviara a fisionomia?

Mas o sorriso prazenteiro iluminou o semblante da moça:

— Sabe? Naquela noite do baile, me contaram uma história muito interessante, disse ela.

— Não se pode saber?

— O senhor pode. Foi a história de um sorriso, disse Amélia sublinhando a palavra com um gesto faceiro.

— Quem lhe contou? Foi ele?

— Foi o senhor.

— Eu?

— O senhor mesmo. Já não se lembra?

— Quer gracejar?

— O senhor estava no jardim conversando com seu amigo, e eu na janela do toucador.

Leopoldo adivinhou.

— Então ouviu tudo?

— Tudo!...

— E... perdoou-me?

— Não; não tinha de quê, mas...

E seus belos olhos límpidos repousaram no semblante do moço.

— Mas compreendi!

Nesse momento D. Leonor chamou Amélia.

XIX

Quando recobrou-se da surpresa em que tinha ficado, Horácio não achou em si mais do que o desejo veemente e irresistível de possuir o ídolo por tanto tempo sonhado.

— Serão meus! murmurou consigo. Serão meus a todo preço. Se for necessário um escândalo, não hesitarei. Mas Amélia não deve ter-se esquecido de mim já tão depressa; ela me tinha afeição. Vou pedir-lhe perdão de meu engano. Sujeitar-me-ei a todas as condições. Que sacrifícios são bastantes para pagar a felicidade de beijar aqueles dois mimos da natureza!

Instintivamente Horácio seguiu na direção da casa do Sales, com intenção de restabelecer as relações interrompidas. Não sabia ele de que modo se houvesse em tal empenho; fiava da inspiração do momento.

Já não estava o negociante no escritório; nesse dia se retirara mais cedo.

Malograda sua esperança, o leão foi caminhando pela Rua Direita sem direção, como quem não sabe o que fazer. O instinto que no deserto guia o rei dos animais à sebe odorífera onde retouçam as gazelas, o conduzia naturalmente para a Rua do Ouvidor.

Tinha chegado à esquina, quando passou defronte um moço, que seguiu pela calçada Carceler. Horácio acompanhou-o com a vista, querendo nele reconhecer seu amigo Leopoldo que havia cerca de um mês não vira.

Se com efeito o moço era Leopoldo, tinha ele sofrido grande transformação. Em vez do rapaz descuidado no seu traje, brusco em suas maneiras, sempre de cabelos arrepiados e barba revolta, aparecia um cavalheiro de boa presença, com a sóbria elegância que tão bem assenta nos homens sisudos. Essa espécie de elegância é apenas um ligeiro perfume, e não uma incrustação como a que usam os moços à moda.

Com seu fino tato e longa experiência, Horácio, reconhecendo o amigo, adivinhou o segredo daquela súbita metamorfose. Ele sabia que só há um condão capaz de produzir tais encantos: é o olhar da mulher amada e amante.

Ame alguém e não saiba se é retribuído. Toda sua existência se projeta nesse impulso d'alma, que se arroja para outro ser e anseia por nele infundir-se. Vive-se fora de si mesmo, alheio a seu próprio eu; como o peregrino perdido longe da pátria, o homem exilado de sua pessoa erra no espaço, em demanda de um abrigo.

Desde, porém, que o homem tem certeza de ser amado, em vez de expandir-se, recolhe-se e concentra-se para saturar-se de felicidade. Já não se alheia e esquece de si; ao contrário, sente-se elevado acima do que era; respeita em sua pessoa o homem amado.

Nessa ocasião é natural a cada um observar-se constantemente e julgar de si com extrema severidade. Surgem aspirações estranhas; o fraco lembra-se de ser um herói; o filósofo inveja a beleza do casquilho; o espírito positivo habituado a voar terra a terra bate o coto das asas para remontar-se ao ideal da poesia.

Não é só no homem que se opera essa metamorfose: mas em toda a natureza. Quando se arreiam os pássaros de sua mais bela plumagem, quando gorjeiam as melodias mais brilhantes, se não é na quadra dos amores?

Vendo Leopoldo parado na calçada Carceler, Horácio dirigiu-se com disfarce para aquela parte, com intenção de travar conversa e esclarecer de todo em todo o mistério. Foi trabalho perdido; o moço acabava de saltar em um tílburi, que rodava já pela Praça de Pedro II.

Desapontado, voltou Horácio sobre os passos.

— Amélia o ama!... Ou pelo menos ele o acredita!

Sorriu-se o leão.

— Que fenômeno curioso produz o despeito na mulher! É uma semelhança da luz reflexa. Irritado pela decepção, humilhado em sua vaidade, o amor da mulher desdenhada refrange como o raio do sol repelido por corpo brilhante e vai impregnar-se em outro homem. Ela cuida sentir por esse plastão uma paixão ardente, que nada mais é do que o ímpeto de seu despeito. Seria capaz de conceder a esse comparsa o que recusaria à afeição mais terna e extremosa. O assomo do ciúme, supõe ela ser veemência da afeição, e confunde com os extremos de amor o delírio da vingança. Amélia está passando por esta crise naturalmente. Leopoldo foi o plastão; ela o ama com todo o furor do ódio que me tem.

Outro sorriso frisou o lábio do leão.

— Ela me odeia! Ora!... O ódio o que é senão a efervescência do amor? O afeto suave e terno é como o moscatel de Setúbal ou o vinho de Constança. O amor fero e irado é como o champanhe que ferve e espuma.

Chegando à casa, Horácio escreveu a Amélia uma carta, que apenas continha estas palavras:

"Deve estar satisfeita, pois me tem de novo a seus pés, e desta vez humilde e suplicante. A melhor coroa do triunfo é o perdão."

Saindo o leão a espairecer, dirigiu os passos para a casa do Sales; esperava encontrar algum criado que se incumbisse de entregar a carta.

Quem sabe? Talvez nessa mesma ocasião se decidisse de sua sorte. A moça lhe permitiria falar-lhe.

Era noite fechada; o céu, carregado de nuvens, anunciava próxima borrasca. A frente da casa do negociante estava às escuras; contudo quem observasse bem, perceberia a coar-se pelos interstícios das janelas um tênue reflexo de luz interior. No portão da chácara a meio cerrado, ninguém aparecia.

O leão penetrou no jardim. Nesse momento um carro parou à porta da casa: três pessoas saíram dele. Em um Horácio viu, estremecendo, roupas de sacerdote. Só então refletiu o moço no aspecto soturno do edifício. Inquieto, sobressaltado, adiantou-se pelo jardim na esperança de encontrar pessoa a quem interrogasse.

As janelas laterais estavam esclarecidas; e pelo jogo das sombras no quadro iluminado, conheceu o moço que reinava no interior alguma agitação.

Que fazer? Apresentar-se na casa, depois do que passara, e antes de qualquer explicação. não era razoável.

A dois passos ficava uma frondosa mangueira, em cujos galhos tinham fabricado uma espécie de belveder ou caramanchão. Conduzia ao alto uma escadinha de caracol cingindo o tronco da árvore.

Por acaso avistou o leão a mangueira, e subindo sem hesitar, achou-se justamente fronteiro às janelas iluminadas. Em princípio a claridade súbita ofuscou-lhe a vista, e não pôde ele distinguir o que se passava no interior.

Mas afinal o deslumbramento dos olhos cedeu ao deslumbramento d'alma.

Ele via, e duvidava.

Um altar erguido, círios acesos, o sacerdote oficiando, Amélia e Leopoldo de joelhos, ao lado Sales, D. Leonor, e dois amigos que serviam de testemunhas: eis o quadro que se ofereceu aos olhos de Horácio. Tinha visto na comédia da vida muitos lances dramáticos, mas nenhum tão imprevisto e curioso.

A surpresa do leão provinha de um engano seu. Ele acreditava que Amélia o tinha amado, quando a moça não sentira por ele mais do que o desvanecimento de ver cativo de seus encantos o rei da moda, o feliz conquistador dos salões.

Quem Amélia amou desde o princípio, foi Leopoldo. A vaidade, o galanteio que se nutre de brilhantes futilidades, a seduziam por momentos, e rendiam ao capricho de Horácio. Mas passado esse enlevo, sua alma sentia a atração irresistível que a impelia para o seu pólo.

Disso que durante dois meses passava na vida íntima da moça, ela própria não se apercebia; foi depois da cena do baile, que ela entrou em si, e compreendeu as sublevações recônditas de sua alma, e o drama que aí se agitava desde muito.

Leopoldo começara a freqüentar a casa de Sales poucos dias depois da partida de D. Clementina. As duas almas, por tanto tempo separadas, só esperavam o momento de se unirem ou antes de se entranharem uma na outra. Às tardes, no jardim, entre cortinas de flores, elas celebravam esse místico himeneu do amor, único eterno e indissolúvel, porque se faz no seio do Criador.

Pelo voto de todos se apressou o dia do casamento, que os noivos exigiram se fizesse inteiramente à capucha, e sem prévia participação. A razão desse empenho, só Amélia a sabia e nunca a disse. Eram escrúpulo de seu pudor: depois do que tinha acontecido, não queria que lhe dessem outra vez o título de noiva.

Terminada a cerimônia, e feitas as felicitações do costume, correram os minutos em agradável conversação.

Eram onze horas, quando Leopoldo entrou no toucador em que sua noiva o esperava. Sentada em uma conversadeira, Amélia sorriu para seu marido; porém através das largas dobras do roupão de cambraia, percebia-se o tremor involuntário que agitava seu lindo talhe.

— É meu presente! disse ela com timidez.

E apresentou ao noivo um objeto envolto em papel de seda, atado com fita azul.

Abrindo, achou Leopoldo dois mimosos pantufos de cetim branco, os mesmos que Amélia começara a bordar no dia seguinte ao baile.

O moço enleado, não compreendia. Insensivelmente seu olhar desceu à fímbria do roupão. Sobre a almofada de veludo e entre os folhos da cambraia, apareciam as unhas rosadas de dois pézinhos divinos.

Uma onda de rubor derramou-se pelo semblante da moça, cujos lábios balbuciaram uma palavra.

— Calce!

Leopoldo ajoelhou aos pés da noiva.

O temporal, desabando nesse momento, bateu com violência nos vidros da janela, que fechou-se.

Horácio desceu do seu observatório, e escalando a grade de ferro do jardim, ganhou a casa, onde chegou todo alagado. Enquanto filosoficamente esperava que seu criado lhe preparasse uma xícara de café, abriu um livro, que acertou ser La Fontaine.

Leu ao acaso: era a fábula do leão amoroso.

— É verdade! murmurou soltando uma fumaça de charuto. O leão deixou que lhe cerceassem as garras; foi esmagado pela pata da gazela.

 

 

N.B.— Escrevo tílburi, champanhe, etc. porque entendo que devemos imprimir certo cunho português nas palavras estrangeiras adotadas pelo uso. Assim fizeram nossos antepassados, escrevendo trumó, trenó, bufete e tantas outras palavras de origem francesa.