Machado
de Assis
AS ACADEMIAS DE SIÃO
Conhecem as academias de Sião? Bem sei que em Sião nunca houve
academias: mas suponhamos que sim, e que eram quatro, e escutem-me.
I
As
estrelas, quando viam subir, através da noite, muitos vaga-lumes cor de
leite, costumavam dizer que eram os suspiros do rei de Sião, que se divertia
com as suas trezentas concubinas. E, piscando o olho umas as outras,
perguntavam:
-
Reais suspiros, em que é que se ocupa esta noite o lindo Kalafangko?
Ao
que os vaga-lumes respondiam com gravidade:
-
Nós somos os pensamentos sublimes das quatro academias de Sião; trazemos
conosco toda a sabedoria do universo.
Uma
noite, foram em tal quantidade os vaga-lumes, que as estrelas, de medrosas,
refugiaram-se nas alcovas, e eles tomaram conta de uma parte do espaço, onde se
fixaram para sempre com o nome de Via-Láctea.
Deu
lugar a essa enorme ascensão de pensamentos o fato de quererem as quatro
academias de Sião resolver este singular problema: - por que é que há homens
femininos e mulheres masculinas? E o que as induziu a isso foi a índole do
jovem rei. Kalafangko era virtualmente uma dama. Tudo nele respirava a mais
esquisita feminilidade: tinha os olhos doces, a voz argentina, atitudes moles e
obedientes e um cordial horror às armas. Os guerreiros siameses gemiam, mas a
nação vivia alegre, tudo eram danças, comédias e cantigas, à maneira do rei que
não cuidava de outra coisa. Daí a ilusão das estrelas.
Vai
senão quando, uma das academias achou esta solução ao problema:
-
Umas almas são masculinas, outras femininas. A anomalia que se observa é uma
questão de corpos errados.
-
Nego, bradaram as outras três; a alma é neutra; nada tem com o contraste
exterior.
Não
foi preciso mais para que as vielas e águas de Bangkok se tingissem de sangue
acadêmico. Veio primeiramente a controvérsia, depois a descompostura, e
finalmente a pancada. No princípio da descompostura tudo andou menos mal;
nenhuma das rivais arremessou um impropério que não fosse escrupulosamente
derivado do sânscrito, que era a língua acadêmica, o latim de Sião. Mas dali em
diante perderam a vergonha. A rivalidade desgrenhou-se, pôs as mãos na cintura,
baixou à lama, à pedrada, ao murro, ao gesto vil, até que a academia sexual,
exasperada, resolveu dar cabo das outras, e organizou um plano sinistro...
Ventos que passais, se quisésseis levar convosco estas folhas de papel, para
que eu não contasse a tragédia de Sião! Custa-me (ai de mim), custa-me escrever
a singular desforra. Os acadêmicos armaram-se em segredo, e foram ter com os
outros, justamente quando estes, curvados sobre o famoso problema, faziam subir
ao céu uma nuvem de vaga-lumes. Nem preâmbulo, nem piedade. Caíram-lhes em
cima, espumando de raiva. Os que puderam fugir, não fugiram pôr muitas horas;
perseguidos e atacados, morreram na beira do rio, a bordo das lanchas, ou nas
vielas escusas. Ao todo, trinta e oito cadáveres. Cortaram uma orelha aos
principais, e fizeram delas colares e braceletes para o presidente vencedor, o
sublime U-Tong. Ébrios da vitória, celebraram o feito com um grande festim, no
qual cantaram este hino magnífico: "Glória a nós, que somos o arroz da
ciência e a luminária do universo".
A
cidade acordou estupefata. O terror apoderou-se da multidão. Ninguém podia
absolver uma ação tão crua e feia; alguns chegavam mesmo a duvidar do que
viam... Uma só pessoa aprovou tudo: foi a bela Kinnara, a flor das concubinas
régias.
II
Molemente deitado aos pés da
bela Kinnara, o jovem rei pedia-lhe uma cantiga.
- Não dou outra cantiga que não seja esta: creio na alma sexual.
- Crês no absurdo, Kinnara.
- Vossa Majestade crê então
na alma neutra?
- Outro absurdo, Kinnara.
Não, não creio na alma neutra, nem na alma sexual.
- Mas então em que é que Vossa Majestade crê, se não crê em nenhuma delas?
- Creio nos teus olhos Kinnara, que são o sol e a luz do universo.
- Mas cumpre-lhe escolher: - ou crer na alma neutra, e punir a
academia viva, ou crer na alma sexual, e absolvê-la.
- Que deliciosa que é a tua boca, minha doce Kinnara! Creio na tua
boca: é a fonte da sabedoria.
Kinnara levantou-se agitada. Assim como o rei era o homem
feminino, ela era a mulher máscula, - um búfalo com penas de cisne. Era o
búfalo que andava agora no aposento, mas daí a pouco foi o cisne que parou, e,
inclinando o pescoço, pediu e obteve do rei, entre duas carícias, um decreto em
que a doutrina da alma sexual foi
declarada legítima e ortodoxa, e a outra absurda e perversa. Nesse mesmo dia,
foi o decreto mandado à academia triunfante, aos pagodes, mandarins, a todo o
reino. A academia pôs luminárias; restabeleceu-se a paz pública.
III
Entretanto,
a bela Kinnara tinha um plano engenhoso e secreto. Uma noite, como o rei
examinasse alguns papéis do Estado, perguntou-lhe ela se os impostos eram pagos
com pontualidade.
-
Ohimé! exclamou
ele, repetindo essa palavra que lhe ficara de um missionário italiano. Poucos
impostos têm sido pagos. Eu não quisera mandar cortar a cabeça aos
contribuintes... Não, isso nunca... Sangue? sangue? não, não quero sangue...
- E
se eu lhe der um remédio a tudo?
- Qual?
-
Vossa Majestade decretou que as almas eram femininas e masculinas, disse
Kinnara depois de um beijo. Suponha que os nossos corpos estão trocados. Basta
restituir cada alma ao corpo que lhe pertence. Troquemos os nossos...
Kalafangko
riu muito da idéia, e perguntou-lhe como é que fariam a troca. Ela respondeu
que pelo método Mukunda, rei dos hindus, que se meteu no cadáver de um brâmane,
enquanto um truão se metia no dele Mukunda, - velha lenda passada aos turcos,
persas e cristãos. Sim, mas a fórmula da invocação? Kinnara declarou que a
possuía; um velho bonzo achara cópia dela nas ruínas de um templo.
- Valeu?
- Não creio no meu próprio
decreto, redargüiu ele rindo; mas vá lá, se for verdade, troquemos... mas por
um semestre, não mais. No fim do semestre destrocaremos os corpos.
Ajustaram
que seria nessa mesma noite. Quando toda a cidade dormia, eles mandaram vir a
piroga real, meteram-se dentro e deixaram-se ir à toa. Nenhum dos remadores os
via. Quando a aurora começou a aparecer, fustigando as vacas rútilas, Kinnara
proferiu a misteriosa invocação; a alma desprendeu-se-lhe, e ficou pairando, à
espera que o corpo do rei vagasse também. O dela caíra no tapete.
-
Pronto? disse Kalafangko.
-
Pronto, aqui estou no ar, esperando. Desculpe Vossa Majestade a indignidade da
minha pessoa...
Mas
a alma do rei não ouviu o resto. Lépida e cintilante, deixou o seu vaso físico
e penetrou no corpo de Kinnara, enquanto a desta se apoderava do despojo real.
Ambos os corpos ergueram-se e olharam um para o outro, imagine-se com que
assombro. Era a situação do Buoso e da cobra, segundo conta o velho Dante; mas
vede aqui a minha audácia. O poeta manda calar Ovídio e Lucano, por achar que a
sua metamorfose vale mais que a deles dois. Eu mando-os calar a todos três.
Buoso e a cobra não se encontram mais, ao passo que os meus dois heróis, uma
vez trocados continuam a falar e a viver juntos - coisa evidentemente mais
dantesca, em que me pese à modéstia.
-
Realmente, disse Kalafangko, isto de olhar para mim mesmo e dar-me majestade é
esquisito. Vossa Majestade não sente a mesma coisa?
Um e
outro estavam bem, como pessoas que acham finalmente uma casa adequada.
Kalafangko espreguiçava-se todo nas curvas femininas de Kinnara. Esta
inteiriçava-se no tronco rijo de Kalafangko. Sião tinha, finalmente, um rei.
IV
A
primeira ação de Kalafangko (daqui em diante entenda-se que é o corpo do rei
com a alma de Kinnara, e Kinnara o corpo da bela siamesa com a alma do
Kalafangko) foi nada menos que dar as maiores honrarias à academia sexual. Não
elevou os seus membros ao mandarinato, pois eram mais homens de pensamento que
de ação e administração, dados à filosofia e à literatura, mas decretou que
todos se prosternassem diante deles, como é de uso aos mandarins. Além disso,
fez-lhes grandes presentes, coisas raras ou de valia, crocodilos empalhados,
cadeiras de marfim, aparelhos de esmeralda para almoço, diamantes, relíquias. A
academia, grata a tantos benefícios, pediu mais o direito de usar oficialmente
o título de Claridade do Mundo, que lhe foi outorgado.
Feito isso, cuidou
Kalafangko da fazenda pública, da justiça, do culto e do cerimonial. A nação
começou de sentir o peso grosso, para falar como o excelso Camões, pois nada
menos de onze contribuintes remissos foram logo decapitados. Naturalmente os
outros, preferindo a cabeça ao dinheiro, correram a pagar as taxas, e tudo se
regularizou. A justiça e a legislação tiveram grandes melhoras. Construíram-se
novos Pagodes; e a religião pareceu até ganhar outro impulso, desde que
Kalafangko, copiando as antigas artes espanholas, mandou queimar uma dúzia de
pobres missionários cristãos que por lá andavam; ação que os bonzos da terra
chamaram a pérola do reinado.
Faltava
uma guerra. Kalafangko, com um pretexto mais ou menos diplomático, atacou a
outro reino, e fez a campanha mais breve e gloriosa do século. Na volta a
Bangkok, achou grandes festas esplêndidas. Trezentos barcos, forrados de seda
escarlate e azul, foram recebe-lo. Cada um destes tinha na proa um cisne ou um
dragão de ouro, e era tripulado pela mais fina gente da cidade; músicas e
aclamações atroaram os ares. De noite, acabadas as festas, sussurrou-lhe ao
ouvido à bela concubina:
-
Meu jovem guerreiro, paga-me as saudades que curti na ausência; dize-me que a
melhor das festas é a tua meiga Kinnara.
Kalafangko
respondeu com um beijo.
- Os
teus beiços têm o frio da morte ou do desdém, suspirou ela.
Era
verdade, o rei estava distraído e preocupado; meditava uma tragédia. Ia-se
aproximando o termo do prazo em que deviam destrocar os corpos, e ele cuidava
em iludir a cláusula, matando a linda siamesa. Hesitava por não saber se
padeceria com a morte dela visto que o corpo era seu, ou mesmo se teria de
sucumbir também. Era esta a dúvida de Kalafangko; mas a idéia da morte
sombreava-lhe a fronte, enquanto ele afagava ao peito um frasquinho com veneno,
imitado dos Bórgias.
De
repente, pensou na douta academia; podia consultá-la, não claramente, mas por
hipótese. Mandou chamar os acadêmicos; vieram todos menos o presidente, o
ilustre U-Tong, que estava enfermo. Eram treze; prosternaram-se e disseram ao
modo de Sião:
-
Nós, desprezíveis palhas, corremos ao chamado de Kalafangko.
-
Erguei-vos, disse benevolamente o rei.
- O
lugar da poeira é o chão, teimaram eles com os cotovelos e joelhos em terra.
- Pois
serei o vento que subleva a poeira, redargüiu Kalafangko; e, com um gesto cheio
de graça e tolerância, estendeu-lhes as mãos.
Em
seguida, começou a falar de coisas diversas, para que o principal assunto
viesse de si mesmo; falou nas últimas notícias do ocidente e nas leis de Manu.
Referindo-se U-Tong, perguntou-lhes se realmente era um grande sábio, como
parecia; mas, vendo que mastigavam a resposta, ordenou-lhes que dissessem a
verdade inteira. Com exemplar unanimidade, confessaram eles que U-Tong era um
dos mais singulares estúpidos do reino, espírito raso, sem valor, nada sabendo
e incapaz de aprender nada. Kalafangko estava pasmado. Um estúpido?
-
Custa-nos dizê-lo, mas não é outra coisa; é um espírito raso e chocho. O
coração é excelente, caráter puro, elevado...
Kalafangko,
quando voltou a si do espanto, mandou embora os acadêmicos, sem lhes perguntar
o que queria. Um estúpido? Era mister tirá-lo da cadeira sem molestá-lo. Três
dias depois, U-Tong compareceu ao chamado do rei. Este perguntou-lhe carinhosamente
pela saúde; depois disse que queria mandar alguém ao Japão estudar uns
documentos, negócio que só podia ser confiado a pessoa esclarecida. Qual dos
seus colegas da academia lhe parecia idôneo para tal mister? Compreende-se o
plano artificioso do rei: era ouvir dois ou três nomes, e concluir que a todos
preferia o do próprio U-Tong; mas eis aqui o que este lhe respondeu:
-
Real Senhor, perdoai a familiaridade da palavra: são treze camelos, com a
diferença que os camelos são modestos, e eles não; comparam-se ao Sol e à Lua.
Mas, na verdade, nunca a Lua nem o Sol cobriram mais singulares pulhas do que
esses treze... Compreendo o assombro de Vossa Majestade; mas eu não seria digno
de mim se não dissesse isto com lealdade, embora confidencialmente...
Kalafangko
tinha a boca aberta. Treze camelos? Treze, treze. U-Tong ressalvou tão-somente
o coração de todos, que declarou excelente; nada superior a eles pelo lado do
caráter. Kalafangko, com um fino gesto de complacência, despediu o sublime
U-Tong, e ficou pensativo. Quais fossem as suas reflexões, não o soube ninguém.
Sabe-se que ele mandou chamar os outros acadêmicos, mas desta vez
separadamente, a fim de não dar na vista, e para obter maior expansão. O
primeiro que chegou, ignorando aliás a opinião de U-Tong, confirmou-a
integralmente com a única emenda de serem doze os camelos, Ou treze, contando o
próprio U-Tong. O segundo não teve opinião diferente, nem o terceiro, nem os
restantes acadêmicos. Diferiam no estilo; uns diziam camelos, outros usavam circunlóquios
e metáforas, que vinham a dar na mesma coisa. E, entretanto, nenhuma injúria ao
caráter moral das pessoas. Kalafangko estava atônito.
Mas
não foi esse o último espanto do rei. Não podendo consultar a academia, tratou
de deliberar por si, no que gastou dois dias, até que a linda Kinnara lhe
segredou que era mãe. Esta notícia fê-lo recuar do crime. Como destruir o vaso
eleito da flor que tinha de vir com a primavera próxima? Jurou ao Céu e à Terra
que o filho havia de nascer e viver. Chegou ao fim do semestre; chegou o
momento de destrocar os corpos.
Como
da primeira vez, meteram-se no barco real, à noite, e deixaram-se ir águas
abaixo, ambos de má vontade, saudosos do corpo que iam restituir um ao outro.
Quando as vacas cintilantes da madrugada começaram de pisar vagarosamente o
céu, proferiram eles a fórmula misteriosa, e cada alma foi devolvida ao corpo
anterior. Kinnara, tornando ao seu, teve a comoção materna, como tivera a
paterna, quando ocupava o corpo de Kalafangko. Parecia-lhe até que era ao mesmo
tempo mãe e pai da criança.
-
Pai e mãe? repetiu o príncipe restituído à forma anterior.
Foram
interrompidos por uma deleitosa música, ao longe. Era algum junco ou piroga que
subia o rio, pois a música aproximava-se rapidamente. Já então o Sol alagava de
luz as águas e as margens verdes, dando ao quadro um tom de vida e renascença,
que de algum modo fazia esquecer aos dois amantes a restituição física. E a
música vinha chegando, agora mais distinta, até que numa curva do rio, apareceu
aos olhos de ambos um barco magnífico, adornado de plumas e flâmulas. Vinham
dentro os quatorze membros da academia (contando U-Tong) e todos em coro
mandavam aos ares o velho hino:
"Glória a nós, que
somos o arroz da ciência e a claridade do mundo!"
A
bela. Kinnara (antigo Kalafangko) tinha os olhos esbugalhados de assombro. Não
podia entender como é que quatorze varões reunidos em academia eram a claridade
do mundo, e separadamente uma multidão de camelos. Kalafangko, consultado por
ela, não achou explicação. Se alguém descobrir alguma, pode obsequiar uma das
mais graciosas damas do Oriente, mandando-lha em carta fechada, e, para maior
segurança, sobrescrita ao nosso cônsul em Xangai, China.
Fonte:
Contos Consagrados - Machado de Assis - Coleção Prestigio - Ediouro - s/d.