Machado de Assis
A VIDA
ETERNA
É
opinião unânime que não há estado comparável àquele que nem é sono nem vigília,
quando, desafogado o espírito de aflições, procura algum repouso às lides da
existência. Eu de mim digo que ainda não achei hora de mais prazer, sobretudo
quando tenho o estômago satisfeito e aspiro a fumaça de um bom charuto de
Havana.
Depois
de uma ceia copiosa e delicada, em companhia de meu excelente amigo o Dr. Vaz,
que me apareceu em casa depois de dois anos de ausência, fomos eu e ele para a
minha alcova, e aí entramos a falar de coisas passadas, como dois velhos para
quem já não tem futuro a gramática da vida.
Vaz
estava assentado numa cadeira de espaldar, toda forrada de couro, igual às que
ainda hoje se encontram nas sacristias; e eu estendi-me em um sofá também de
couro. Ambos fumávamos dois excelentes charutos que me haviam mandado de
presente alguns dias antes.
A
conversa, pouco animada ao princípio, foi esmorecendo cada vez mais, até que eu
e ele, sem deixarmos o charuto da boca, cerramos os olhos e entramos no estado
a que aludi acima, ouvindo os ratos que passeavam no forro da casa, mas
inteiramente esquecidos um do outro.
Era natural passarmos dali
ao sono completo, e eu lá chegaria, se não ouvisse bater à porta três
fortíssimas pancadas. Levantei-me sobressaltado; Vaz continuava na mesma
posição, o que me fez supor que estivesse dormindo, porque as pancadas deviam
ter-lhe produzido a mesma impressão se ele se achasse meio acordado como eu.
Fui
ver quem me batia à porta. Era um sujeito alto e magro embuçado em um capote.
Apenas lhe abri a porta, o homem entrou sem me pedir licença, e nem
dizer coisa nenhuma. Esperei que me
expusesse o motivo da sua visita, e esperei debalde, porque o desconhecido
sentou-se comodamente em uma cadeira, cruzou as pernas, tirou o chapéu e
começou a tocar com os dedos na copa do dito chapéu uma coisa que eu não pude
saber o que era, mas que devia ser alguma sinfonia de doidos, porque o homem
parecia vir direitinho da Praia Vermelha.
Relanceei
os olhos para o meu amigo, que dormia a sono solto na cadeira de espaldar. Os
ratos continuavam a sua saturnal no forro.
Conservei-me
de pé durante poucos instantes a ver se o desconhecido se resolvia a dizer
alguma coisa, e durante esse tempo, apesar da impressão desagradável que o
homem produzia em mim, examinei-lhe as feições e o vestuário.
Já
disse que vinha embrulhado em um capote; ao sentar-se, abriu-se-lhe o capote, e
vi que o homem calçava umas botas de couro branco, vestia calça de pano amarelo
e um colete verde, cores estas que, se estão bem numa bandeira, não se pode com
justiça dizer que adornem e aformoseiem o corpo humano.
As
feições eram mais estranhas que o vestuário; tinha os olhos vesgos, um grande
bigode, um nariz à moda de César, boca rasgada, queixo saliente e beiços roxos.
As sobrancelhas eram fartas, as pestanas longas, a testa estreita, coroando
tudo uns cabelos grisalhos e em desordem.
O
desconhecido, depois de tocar a sua música na copa do chapéu, levantou os olhos
para mim, e disse-me:
-
Sente-se, meu rico senhor!
Era atrevimento receber eu
ordens em minha própria casa. O meu primeiro dever era mandar o sujeito embora;
contudo, o tom em que ele falou era tão intimativo que eu insensivelmente
obedeci e fui sentar-me no sofá. Dai pude ver melhor a cara do homem, à luz do
lampião que pendia do teto, e achei-a pior do que antes.
-
Chamo-me Tobias e sou formado em matemáticas.
Inclinei-me
levemente.
O
desconhecido continuou:
-
Desconfio que hei de morrer amanhã; não se espante; tenho certeza de que amanhã
vou para o outro mundo. Isso é o menos; morrer é dormir, to die, to sleep; entretanto,
não quero ir deste mundo sem cumprir um dever imperioso e indispensável. Veja isto.
O
desconhecido tirou do bolso um quadrinho e entregou-me. Era uma miniatura;
representava uma moça formosíssima de feições. Restituí o quadro ao meu
interlocutor esperando a explicação.
-
Esse retrato, continuou ele olhando para a miniatura, é de minha filha Eusébia,
moça de vinte e dois anos, senhora de uma riqueza igual à de um Creso, porque é
a minha única herdeira.
Eu
me espantaria do contraste que havia entre a riqueza e a aparência do
desconhecido se não tivesse já a convicção de que tratava com um doido. O que
eu estava a ver era o meio de pôr o homem pela porta fora; mas confesso que
receava algum conflito, e por isso esperei o resultado daquilo tudo.
Entretanto
perguntava a mim mesmo como é que os meus escravos deixaram entrar um
desconhecido até a porta do meu quarto, apesar das ordens especiais que eu
havia dado em contrário. Já eu calculava mentalmente a natureza do castigo que
lhes daria por causa de tamanha incúria ou cumplicidade, quando o desconhecido
atirou-me estas palavras à cara:
-
Antes de morrer quero que o senhor se case com Eusébia; é esta a proposta que
venho fazer-lhe; sendo que, no caso de aceitar o casamento, já aqui lhe deixo
este maço de notas do banco para alfinetes, e no caso de recusar mando-lhe
simplesmente uma bala à cabeça com este revólver que aqui trago.
E
pôs à mesa o maço de bilhetes do banco e o revólver engatilhado.
A
cena tomava um aspecto dramático. O meu primeiro ímpeto foi acordar o Dr. Vaz,
a ver se ajudado por ele punha o homem pela porta fora; mas receei, e com
razão, que vendo um gesto meu nesse sentido, o desconhecido executasse a segunda
parte do seu discurso.
Só
havia um meio: ladear.
-
Meu rico Sr. Tobias, é inútil dizer-lhe que eu sinto imensa satisfação com a
proposta que me faz, e está longe de mim a idéia de recusar a mão de tão
formosa criatura, e mais os seus contos de réis. Entretanto, peço-lhe que
repare na minha idade; tenho setenta anos; a Sra. D. Eusébia apenas conta vinte
e dois. Não lhe parece um sacrifício
isto que vamos impor à sua filha?
Tobias
sorriu, olhou para o revólver, e entrou a tocar com os dedos na copa do chapéu.
-
Longe de mim, continuei eu, a idéia de ofende-lo; pelo contrário, se eu
consultasse unicamente a minha ambição não diria palavra; mas é no interesse
mesmo dessa gentilíssima dama, que eu já vou amando apesar dos meus setenta, é
no interesse dela que eu lhe observo a disparidade que entre nós existe.
Estas
palavras disse-as eu em voz alta a ver se o Dr. Vaz acordava; mas o meu amigo
continuava mergulhado na cadeira e no sono.
-
Não quero saber de sua idade, disse Tobias pondo o chapéu na cabeça e segurando
no revólver; o que eu quero é que se case com Eusébia, e hoje mesmo. Se recusa,
mato-o.
Tobias
apontou-me o revólver. Que faria eu naquela alternativa, senão aceitar a moça e
a riqueza, apesar de todos os meus escrúpulos?
-
Caso! exclamei.
Tobias
guardou o revólver na algibeira, e disse
-
Pois bem, vista-se.
-
Já?
-
Sem demora. Vista-se enquanto eu leio.
Levantou-se, foi à minha
estante, tirou um volume do "D. Quixote", e foi sentar-se outra vez;
e enquanto eu, mais morto que vivo, ia buscar ao guarda-roupa a minha casaca, o
desconhecido tomou uns óculos e preparou-se para ler.
-
Quem é este sujeito que está dormindo tão tranqüilo? perguntou ele enquanto
limpava os óculos.
- O
Dr. Vaz, meu amigo; quer que lhe apresente?
-
Não, senhor, não é preciso, respondeu Tobias sorrindo maliciosamente.
Vesti-me
com vagar para dar tempo a que algum incidente viesse interromper aquela cena
desagradável para mim. Além disso,
estava trêmulo, não atinava com a roupa, nem com a maneira de a vestir.
De
quando em quando deitava um olhar para o desconhecido, que lia tranqüilamente a
obra do imortal Cervantes.
O
meu relógio bateu onze horas.
Subitamente
lembrou-me que, uma vez na rua, podia eu ter o recurso de encontrar um policial
a quem comunicaria a minha situação, conseguindo ver-me livre do meu importuno
sogro.
Outro
recurso havia, e melhor que esse; vinha a ser acordar o Dr. Vaz na ocasião da
partida (coisa natural) e ajudado por ele desfazer-me do incógnito Tobias.
Efetivamente,
vesti-me o mais depressa que pude, e declarei-me as ordens do Sr. Tobias, que
fechou o livro, foi pô-lo na estante, rebuçou-se no capote, e disse:
-
Vamos!
-
Peço-lhe entretanto para acordar o Dr. Vaz, que não pode ficar aqui, visto que
tem de voltar para casa, disse-lhe eu dando um passo para a cadeira onde dormia
o Vaz.
-
Não é preciso, atalhou Tobias; voltamos dentro de pouco tempo.
Não
insisti; restava-me o recurso do policial, ou de algum escravo se pudesse
falar-lhe a tempo; o escravo era impossível.
Quando saímos do quarto o desconhecido deu-me o braço e desceu comigo
rapidamente as escadas até a rua.
À
porta de casa havia um carro.
Tobias
convidou-me a entrar nele.
Não
tendo previsto este incidente, senti fraquear-me as pernas e perdi de todo a
esperança de escapar do meu algoz. Resistir era impossível e arriscado; o homem
estava armado com um argumento poderoso; e além disso, pensava eu, não se
discute com um doido.
Entramos
no carro.
Não
sei quanto tempo andamos, nem por que caminho fomos; calculo que não ficou no
Rio de Janeiro canto por onde não passássemos.
No fim de longos e aflitivos séculos de angústia, parou o carro diante
de uma casa toda iluminada por dentro.
É
aqui, disse o meu companheiro, desçamos.
A
casa era um verdadeiro palácio; a entrada era ornada de colunas de ordem dórica,
o vestíbulo calçado de mármore branco e preto, e iluminado por um magnífico
candelabro de bronze de forma antiga.
Subimos,
eu e ele, por uma magnífica escada de mármore, até o topo, onde se achavam duas
pequenas estátuas representando Mercúrio e Minerva. Quando chegamos ali o meu companheiro disse-me apontando para as
estátuas:
-
São emblemas, meu caro genro: Minerva quer dizer Eusébia, porque é a sabedoria;
Mercúrio, sou eu, porque representa o comércio.
-
Então o senhor é comerciante? perguntei eu ingenuamente ao desconhecido.
-
Fui negociante na Índia.
Atravessamos
duas salas, e ao chegarmos à terceira encontramos um sujeito velho, a quem
Tobias me apresentou dizendo:
-
Aqui está o Dr. Camilo da Anunciação; leve-o para a sala dos convidados, enquanto
eu vou mudar de roupa. Até já, meu caro genro.
E
deu-me as costas.
O
sujeito velho, que eu soube depois ser o mordomo da casa, tomou-me pela mão e
levou-me a uma grande saIa, que era onde se achavam os convidados.
Apesar
da profunda impressão que me causava aquela aventura, confesso que a riqueza da
casa me assombrava cada vez mais, e não só a riqueza, senão também o gosto e a
arte com que estava preparada.
A
sala dos convidados estava fechada quando lá chegamos; o mordomo bateu três
pancadas, e veio abrir a porta um lacaio, também velho, que me segurou pela
mão, ficando o mordomo do lado de fora.
Nunca
me há de esquecer a vista da sala apenas se me abriram as portas. Tudo ali era estranho e magnífico. No fundo,
em frente da porta de entrada, havia uma grande águia de madeira fingindo
bronze, encostada à parede, com as asas abertas, e preparando-se como para
voar. Do bico da águia pendia um espelho, cuja parte inferior estava presa às
garras, conservando assim a posição inclinada que costuma ter um espelho de
parede.
A
sala não era forrada de papel, mas de seda branca, o teto artisticamente
trabalhado; grandes candelabros, magnífica mobília, flores em profusão,
tapetes, tudo enfim quanto o luxo e o gosto sugerem ao espírito de um homem
rico.
Os
convidados eram poucos, e não sei por que coincidência, eram todos velhos, como
o mordomo e o lacaio, e o meu próprio sogro; finalmente velhos como eu também.
Introduzido
pelo criado, fui logo cumprimentado pelas pessoas presentes com uma atenção que
me dispôs logo o ânimo a querer-lhes bem.
Sentei-me
numa cadeira, e vieram reunir-se em roda de mim, todos risonhos e satisfeitos
por ver o genro do incomparável Tobias. Era assim que chamavam ao homem do
revólver.
Acudi
como pude às perguntas que me faziam, e parece que todas as minhas respostas
contentavam aos convidados, porquanto de minuto a minuto choviam sobre mim
louvores e cumprimentos.
Um
dos convidados, homem de setenta anos, condecorado e calvo, disse com aplausos
gerais:
- O
Tobias não podia encontrar melhor genro, nem que andasse com uma lanterna por
toda a cidade, que digo? por todo o império; vê-se que o Dr. Camilo da
Anunciação é um perfeito cavalheiro,
notável por seus talentos, pela gravidade da sua pessoa, e enfim pelos
admiráveis cabelos brancos que lhe adornam a cabeça, mais feliz do que eu que
os perdi há muito.
Suspirou
o homem com tamanha força que parecia estar nos arrancos da morte. A assembléia
cobriu de aplausos as últimas palavras do orador.
Articulei
um agradecimento, e preparei imediatamente os ouvidos para responder a outro
discurso que me foi dirigido por um coronel reformado, e outro finalmente por
uma senhora que, desde a minha entrada, não tirava os olhos de mim.
-
Sra. condessa, disse o coronel quando a senhora acabou de falar, confesse V.
Exa. que os rapazes de hoje não valem este respeitável ancião, futuro genro do
incomparável Tobias.
-
Valem nada, coronel! Em matéria de
noivos só o século passado os fornece capazes e bons. Casamentos de hoje!
Abrenúncio! Uns peraltas todos pregadinhos e esticados, sem gravidade, sem
dignidade, sem honestidade!
A
conversa assentou toda neste assunto. O século dezenove sofreu ali um vasto
processo; e (talvez preconceito de velho) falavam tão bem naquele assunto, com
tanta discrição e acerto, que eu acabei por admirá-los.
No
meio de tudo, estava ansioso por conhecer a minha noiva. Era a última
curiosidade; e se ela fosse, como eu imaginava, uma beleza, e além do mais
riquíssima, que poderia exigir da sorte?
Aventurei
uma pergunta nesse sentido a uma senhora que se achava ao pé de mim e em frente
à condessa. Disse-me ela que a noiva estava no toucador, e não tardava muito
que eu a visse. Acrescentou que era linda como o sol.
Entretanto
decorrera uma hora, e nem a noiva, nem o pai, o incomparável Tobias, aparecia
na sala. Qual seria a causa da demora do meu futuro sogro? Para vestir-se não
era preciso tanto tempo. Eu confesso que, apesar da cena do quarto e das
disposições em que vi o homem, estaria mais tranqüilo se ele estivesse
presente. É que ao velho já eu tinha visto em minha casa; habituara-me aos seus
gestos e discursos.
No fim de hora e meia abriu-se a porta para dar entrada a uma nova
visita. Imaginem o meu pasmo quando dei com os olhos no meu amigo Dr. Vaz! Não
pude abafar um grito de surpresa, e corri para ele.
- Tu aqui!
- Ingrato! respondeu sorrindo o Vaz, casas e não convidas ao teu
primeiro amigo. Se não fosse esta carta
ainda eu lá estaria no teu quarto à espera.
- Que carta? perguntei eu.
O Vaz abriu a carta que trazia na mão e deu-me para ler, enquanto os
convidados de longe contemplavam a cena inesperada, tanto por eles, como por
mim.
A carta era de Tobias, e participava ao Vaz que, tendo eu de casar-me
naquela noite, tomava ele a liberdade de convida-lo, na qualidade de sogro,
para assistir a cerimônia.
- Como vieste?
- Teu sogro mandou-me um carro.
Aqui fui obrigado a confessar mentalmente que o Tobias merecia o titulo
de incomparável, como Enéas o de pio. Compreendi a razão porque não quis que eu
o acordasse; era para causar-lhe a surpresa de vê-lo depois.
Como era natural, quis o meu amigo que eu lhe explicasse a história do
casamento, tão súbito, e eu já me dispunha a isso, quando a porta se abriu e
entrou o dono da casa.
Era outro.
Já não tinha as roupas esquisitas e o ar singular com que o vira no meu
quarto; agora trajava com aquela elegância grave que cabe a um velho, e
pairava-lhe nos lábios o mais amável sorriso.
- Então, meu caro genro, disse-me ele depois dos cumprimentos gerais,
que me diz à vinda do seu amigo?
- Digo, meu caro sogro, que o senhor é uma pérola. Não imaginará talvez
o prazer que me deu com esta surpresa, porque o Vaz foi e é o meu primeiro
amigo.
Aproveitei a ocasião para o apresentar a todos os convidados, que foram
de geral acordo em que o Dr. Vaz era um digno amigo do Dr. Camilo da
Anunciação. O incomparável Tobias manifestou o desejo e a esperança de que
dentro de pouco tempo ficaria a sua pessoa ligada à de nós ambos, por modo que
fôssemos todos designados: os três amigos do peito.
Bateu
meia-noite não sei em que igreja da vizinhança. Ergueu-se o incomparável
Tobias, e disse-me:
-
Meu caro genro, vamos cumprimentar a sua noiva; aproxima-se a hora do
casamento.
Levantaram-se
todos e dirigiram-se para a porta da entrada; indo na frente eu, o Tobias e o
Vaz. Confesso que, de todos os incidentes daquela noite, este foi o que mais me
impressionou. A idéia de ir ver uma formosa donzela, na flor da idade, que
devia ser minha esposa, - esposa de um velho filósofo já desenganado das
ilusões da vida, - essa idéia, confesso que me aterrou.
Atravessamos
uma sala e chegamos diante de uma porta, meia aberta, dando para outra sala
ricamente iluminada. Abriram a porta dois lacaios, e todos nós entramos.
Ao
fundo, sentada num riquíssimo divã azul, estava já pronta e deslumbrante de beleza
a Sra. D. Eusébia. Tinha eu até então
visto muitas mulheres de fascinar; nenhuma chegava aos pés daquela. Era uma
criação de poeta oriental. Comparando a minha velhice à mocidade de Eusébia,
senti-me envergonhado, e tive ímpetos de renunciar ao casamento.
Fui
apresentado à noiva pelo pai, e recebido por ela com uma afabilidade, uma
ternura, que acabaram por vencer-me completamente. No fim de dois minutos estava eu cegamente apaixonado.
Meu
pai não podia escolher melhor marido para mim, disse-me ela fitando-me uns
olhos claros e transparentes; espero que tenha a felicidade de corresponder aos
seus méritos.
Balbuciei
uma resposta; não sei o que disse; tinha os olhos embebidos nos dela. Eusébia levantou-se e disse ao pai:
-
Estou pronta.
Pedi
que Vaz fosse uma das testemunhas do casamento, o que foi aceito; a outra
testemunha foi o coronel. A condessa serviu de madrinha.
Saímos
dali para a capela, que era na mesma casa, e pouco retirada; já lá se achavam o
padre e o sacristão. Eram ambos velhos como toda a gente que havia em casa,
exceto Eusébia.
Minha
noiva deu o sim com uma voz forte, e eu com voz fraquíssima;
pareciam invertidos os papéis.
Concluído
o casamento, ouvimos um pequeno discurso do padre acerca dos deveres que o
casamento impõe e da santidade daquela cerimônia. O padre era um poço de
ciência e um milagre de concisão; disse muito em pouquíssimas palavras. Soube depois que nunca tinha ido ao
parlamento.
À
cerimônia do casamento seguiu-se um ligeiro chá e alguma música. A condessa
dançou um minueto com o velho condecorado, e assim terminou a festa.
Conduzido
aos meus aposentos por todos os convidados, soube em caminho que o Vaz dormiria
lá, por convite expresso do incomparável Tobias, que fez a mesma fineza aos
circunstantes.
Quando
me achei só com a minha noiva, cai de joelhos e disse-lhe com a maior ternura:
-
Tanto vivi para encontrar agora, já quase no túmulo, a maior ventura que pode
caber ao homem, porque o amor de unia mulher como tu é um verdadeiro presente
do céu! Falo em amor e não sei se tenho
direito de o fazer... porque eu sou velho, e tu...
-
Cale-se! cale-se! disse-me Eusébia assustada.
E
foi cair num sofá com as mãos no rosto.
Espantou-me
aquele movimento, e durante alguns minutos fiquei na posição em que estava, sem
saber o que havia de dizer.
Eusébia
parecia estar chorando.
Levantei-me
afinal, e acercando-me do sofá, perguntei-lhe que motivo tinha para aquelas
lágrimas.
Não
me respondeu.
Tive
uma suspeita; imaginei que Eusébia amava alguém, e que, para castigá-la do
crime desse amor, obrigavam-na a casar com um velho desconhecido a quem ela não
podia amar.
Despertou-se-me
uma fibra de D. Quixote. Era uma
vítima; cumpria salva-la. Aproximei-me de Eusébia, confiei-lhe a minha
suspeita, e declarei-lhe a minha resolução.
Quando
eu esperava vê-la agradecer-me de joelhos o nobre impulso das minhas palavras,
vi com surpresa que a moça olhava para mim com ar de compaixão, e dizia-me
abanando a cabeça:
-
Desgraçado! é o senhor quem está perdido!
-
Perdido! exclamei eu dando um salto.
- Sim,
perdido!
Cobriu-se-me
a testa de um suor frio; as pernas entraram a tremer-me, e eu para não cair
assentei-me ao pé dela no sofá. Pedi-lhe que me explicasse as suas palavras.
-
Por que não? disse ela; se lhe ocultasse seria cúmplice perante Deus, e Deus
sabe que eu sou apenas um instrumento passivo nas mãos de todos esses homens.
Escute. O senhor é o meu quinto marido; todos os anos, no mesmo dia e à mesma
hora, dá-se nesta casa a cerimônia que o senhor presenciou. Depois, todos me trazem para aqui com o meu
noivo, o qual...
- O
qual? perguntei eu suando.
-
Leia, disse Eusébia indo tirar de uma cômoda um rolo de pergaminho; há um mês
que eu pude descobrir isto, e só há um mês tive a explicação dos meus
casamentos todos os anos.
Abri
trêmulo o rolo que ela me apresentava, e li fulminado as seguintes linhas:
"Elixir
da eternidade, encontrado numa ruma do Egito, no ano de 402. Em nome da águia
preta e dos sete meninos do Setentrião, salve. Quando se juntarem vinte pessoas
e quiserem gozar do inapreciável privilégio de uma vida eterna, devem organizar
uma associação secreta, e cear todos os anos no dia de S. Bartolomeu, um velho
maior de sessenta anos de idade, assado no forno, e beber vinho puro por
cima".
Compreende
alguém a minha situação? Era a morte que
eu tinha diante de mim, a morte infalível, a morte dolorosa. Ao mesmo tempo era
tão singular tudo quanto eu acabava de saber, parecia-me tão absurdo o meio de
comprar a eternidade com um festim de antropófagos, que o meu espírito pairava
entre a dúvida e o receio, acreditava e não acreditava, tinha medo e perguntava
por que?
-
Essa é a sorte que o espera, senhor!
-
Mas isto é uma loucura! exclamei; comprar a eternidade com a morte de um homem!
Demais, como sabe que este pergaminho tem relação?...
-
Sei, senhor, respondeu Eusébia; não lhe disse eu que este casamento era o
quinto? Onde estão os outros quatro maridos? Todos eles penetraram neste
aposento para saírem meia hora depois.
Alguém os vinha chamar, sob qualquer pretexto, e eu nunca mais os
via. Desconfiei de alguma grande
catástrofe; só agora sei o que é.
Entrei
a passear agitado; era verdade que eu ia morrer? era aquela a minha última hora
de vida? Eusébia, assentada no sofá, olhava para mim e para a porta.
-
Mas aquele padre, senhora, perguntei eu parando em frente dela, aquele padre
também é cúmplice?
- É
o chefe da associação.
- E
a senhora! também é cúmplice, pois que as suas palavras foram um verdadeiro
laço; se não fossem elas eu não aceitaria o casamento...
-
Ai! senhor! respondeu Eusébia lavada em lágrimas; sou fraca, isso sim; mas
cúmplice, jamais. Aquilo que lhe disse foi-me ensinado.
Nisto
ouvi um passo compassado no corredor; eram eles naturalmente.
Eusébia
levantou-se assustada e ajoelhou-se-me aos pés, dizendo com voz surda:
-
Não tenho culpa de nada do que vai acontecer, mas perdoe-me a causa
involuntária!
Olhei
para ela e disse-lhe que a perdoava.
Os
passos aproximavam-se.
Dispus-me
a vender caro a minha vida; mas não me lembrava que, além de não ter armas,
faltavam-me completamente as forças.
Quem
quer que vinha andando chegou à porta e bateu. Não respondi logo; mas
insistindo de fora nas pancadas, perguntei:
-
Quem está aí?
-
Sou eu, respondeu-me Tobias com voz doce; queira abrir-me a porta.
-
Para que?
-
Tenho de comunicar-lhe um segredo.
- A
esta hora!
-
Urgente.
Consultei
Eusébia com os olhos; ela abanou tristemente a cabeça.
-
Meu sogro, adiemos o segredo para amanhã.
- É
urgentíssimo, respondeu Tobias, e para não lhe dar trabalho eu mesmo abro com
outra chave que possuo.
Corri
á porta, mas era tarde; Tobias estava na soleira, risonho como se fosse entrar
num baile.
-
Meu caro genro, disse ele, peço-lhe que venha comigo à sala da biblioteca;
tenho de comunicar-lhe um importante segredo relativo à nossa família.
-
Amanhã, não acha melhor? disse eu.
-
Não, há de ser já! respondeu Tobias franzindo a testa.
-
Não quero!
-
Não quer! pois há de ir.
-
Bem sei que sou o seu quinto genro, meu caro Sr. Tobias.
-
Ah! sabe! Eusébia contou-lhe os outros casamentos; tanto melhor!
E,
voltando-se para a filha, disse com frieza de matar:
-
Indiscreta! vou dar-te o prêmio.
-
Sr. Tobias, ela não tem culpa.
-
Não foi ela quem lhe deu esse pergaminho? perguntou o Tobias apontando para o
pergaminho que eu ainda tinha na mão.
Ficamos
aterrados!
Tobias
tirou do bolso um pequeno apito e deu um assobio, ao qual responderam outros; e
daí a alguns minutos estava a alcova invadida por todos os velhos da casa.
-
Vamos à festa! disse o Tobias.
Lancei
mão de uma cadeira e ia atirar contra o sogro, quando Eusébia segurou-me no
braço, dizendo:
- É
meu pai!
-
Não ganhas nada com isso, disse Tobias sorrindo diabolicamente; hás de morrer,
Eusébia.
E
segurando-a pelo pescoço entregou-a a dois lacaios dizendo:
-
Matem-na.
A
pobre moça gritava, mas em vão; os dois lacaios levaram-na para fora, enquanto
os outros velhos seguraram-me pelos braços e pernas, e levaram-me em procissão
para uma sala toda forrada de preto. Cheguei ali mais morto que vivo. Já lá achei o padre vestido de batina.
Quis
ver antes de morrer o meu pobre amigo Vaz, mas soube pelo coronel que ele
estava dormindo, e não sairia mais daquela casa; era o prato destinado ao ano
futuro.
O
padre declarou-me que era o meu confessor; mas eu recusei receber a absolvição
do próprio que me ia matar. Queria morrer impenitente.
Deitaram-me
em cima de uma mesa atado de pés e mãos, e puseram-se todos à roda de mim,
ficando à minha cabeceira um lacaio armado com um punhal.
Depois
entrou toda a companhia a entoar um coro em que eu só distinguia as
palavras: Em nome da águia preta e
dos sete meninos do Setentrião.
Corria-me
o suor em bagas; eu quase nada via; a idéia de morrer era horrível, apesar dos
meus setenta anos, em que já o mundo não deixa saudades.
Parou
o coro e o padre disse com voz forte e pausada:
-
Atenção! Faça o punhal a sua obra!
Luziu-me
pelos olhos a lâmina do punhal, que se cravou todo no coração; o sangue
jorrou-me do peito e inundou a mesa; eu entre convulsões mortais dei o último
suspiro.
Estava
morto, completamente morto, e entretanto ouvia tudo à roda de mim; restava-me
uma certa consciência deste mundo a que já não pertencia.
-
Morreu? perguntou o coronel.
-
Completamente, respondeu Tobias; vão chamar agora as senhoras.
As
senhoras chegaram dali a pouco, curiosas e alegres.
-
Então! perguntou a condessa; temos homem?
-
Ei-lo.
As mulheres aproximaram-se
de mim, e ouvi então um elogio unânime dos canibais; todos concordaram em que
eu estava gordo e havia de ser excelente prato.
-
Não podemos assá-lo inteiro; é muito alto e gordo; não cabe no forno; vamos esquartejá-lo;
venham facas.
Estas
palavras foram ditas pelo Tobias, que imediatamente distribuiu os papéis: o
coronel cortar-me-ia a perna esquerda, o condecorado a direita, o padre um
braço, ele outro e a condessa, amiga de nariz de gente, cortaria o meu para
comer de cabidela.
Vieram
as facas, e começou a operação; confesso que eu não sentia nada; só sabia que
me haviam cortado uma perna quando ela era atirada ao chão com estrépito.
-
Bem, agora ao forno, disse Tobias.
De
repente ouvi a voz do Vaz.
-
Que é isso, ó Camilo, que é isso? dizia ele.
Abri
os olhos e achei-me deitado no sofá em minha casa; Vaz estava ao pé de mim.
-
Que diabo tens tu?
Olhei
espantado para ele, e perguntei:
-
Onde estão eles?
-
Eles quem?
- Os
canibais!
-
Estás doido, homem!
Examinei-me:
tinha as pernas, os braços e o nariz. O quarto era o meu. Vaz era o mesmo Vaz.
-
Que pesadelo tiveste! disse ele. Estava
eu a dormir quando acordei com os teus gritos.
-
Ainda bem, disse eu.
Levantei-me,
bebi água, e contei o sonho ao meu amigo, que riu muito, e resolveu passar a
noite comigo.
No
dia seguinte acordamos tarde e almoçamos alegremente. Ao sair, disse-me o Vaz:
- Por que não escreves o teu sonho para o Jornal das Famílias?
- Homem, talvez.
- Pois escreve, que eu o mando ao Garnier.
CAMILO DA ANUNCIAÇÃO.
in Jornal das Famílias, janeiro de 1870, pgs. 5 a 18.
Fonte:
Contos Avulsos - Machado de Assis - org. de R. Magalhães Júnior - Editora
Civilização Brasileira / Cia Brasileira de Livros - 1956