Machado
de Assis
DIANA
Em certo dia do mês de março do ano da graça de 1863
encontravam-se na rua do Ouvidor, cidade do Rio de Janeiro, dois rapazes, ambos
acompanhados de um criado carregando as respectivas malas.
- Luís!
- Alberto!
- Que é isso?
- A que horas chegas!
- Não pôde ser mais cedo.
Venho do caminho de ferro neste momento. Mas tu, chegas também de Minas, ou
partes para lá?
- Não chego nem vou para lá.
Vou para o Rio Grande. Está a sair o vapor.
- Que volta tão repentina é
essa?
- Assim é preciso.
- Isto só pelo diabo. Se eu
soubesse de semelhante coisa tinha vindo mais cedo.
- De lá te escreverei. Adeus!
- Adeus!
E os dois amigos, depois de se
abraçarem, separaram-se, tomando um para a hospedaria, outro para a praia dos
Mineiros.
Alberto foi fazendo consigo as
reflexões seguintes:
- Que diabo leva o Luís ao Rio
Grande tão repentinamente? Este rapaz tem o juízo a arder...
Tempos depois Alberto recebia
a seguinte carta de Porto Alegre, escrita pelo amigo Luís.
"Luís a Alberto. -
Prezado amigo. - Só agora te escrevo porque só agora me é dado dispensar alguns
minutos.
"Se fosses alguma
destas suscetibilidades que tantas vezes encontrei dava-te outra razão,
mentirosa decerto, mas suficiente para acalmar-te o espírito e consolar-te o
coração.
"Mas prefiro a
verdade. Eu te conheço, tu me conheces, nós nos conhecemos.
"Queres
então saber que motivo me trouxe ao Rio Grande tão repentinamente? Um motivo
simples: receber um legado. Tive notícia de que meu padrinho morrera e me
deixara em testamento certa quantia assaz avultada para colocar-me acima das
atribulações da vida.
"Que tal? É ou não uma
tigela de maná que me veio do céu? Eu bem te dizia muitas vezes que tinha fé na
minha estrela, e que estava certo de que não havia de ganhar fortuna pela
simples posição de advogado provinciano.
"Mas já te ouço dizer
contigo mesmo: Que tivesse um legado, concebe-se; mas que fosse ele próprio
arrecadá-lo, isto é que eu acho esquisito.
"Respondo à tua
reflexão:
"Podia dar procuração
a alguém e ficar comodamente na corte à espera que lá me fosse ter às mãos a
quantia legada por aquele chorado padrinho. Se não fiz isto foi por virtude de
uma cláusula que o meu referido padrinho incluiu no testamento.
"Esta cláusula é a
seguinte:
"Este legado só será
entregue ao meu afilhado Luís depois que ele tiver, por virtude dos próprios
esforços, descoberto em certo lugar, situado na casa tal, em Pelotas, um
segredo que lá conservo.
"Deves compreender que
eu não podia, estando na corte, descobrir o segredo de Pelotas.
"Por isso embarquei
apenas recebi a notícia.
"Muitas vezes te falei
neste padrinho como o mais singular e extravagante dos padrinhos. Sobre a
condição que ele punha tinha eu a curiosidade de saber qual era esta nova
excentricidade do velho.
"E parti.
"Ainda não fui a Pelotas,
mas tratei de indagar que casa era aquela e quem residia lá. Disseram-me que a
casa era propriedade de meu padrinho e estava vazia há cinco anos.
"Isto aguçou a minha
curiosidade.
"Decididamente temos
um mistério neste negócio.
"O
que sobretudo me causa ainda maior assombro é não haver na cláusula a
designação em que lugar da casa se acha o segredo. Será nas salas, nas alcovas,
no terreiro, no teto ou no chão? Não sei. Mas o legado vale a pena, e eu tenho forças e tenacidade para levar
a obra ao cabo.
"Disponho-me a partir
dentro de alguns dias, munido de instrumentos e acompanhado do meu guasca.
"De tudo o que ocorrer
dar-te-ei conta.
"Adeus. Não sejas
preguiçoso. Escreve-me".
Alberto leu e releu esta
carta. Sorriu à idéia de que Luís se achava envolvido em um mistério de
romance. Ele sabia que o padrinho do advogado era um homem excêntrico, desta
longa família que se ramifica por todas as raças e todos os países.
Direi em duas palavras quem
eram os dois amigos.
Luís, advogado provinciano,
como ele próprio diz, tinha tomado grau na faculdade de S. Paulo e tinha vindo
advogar na corte. Fazia um ano que se achava aí sem ter conseguido nome nem
fortuna. Alguma coisa que trouxera ia-se já gastando e o legado do padrinho
veio na melhor ocasião.
Alberto, natural do Rio de
Janeiro, era advogado, como ele, sem nome e sem fortuna, como ele filho da
academia de S. Paulo, havendo em tanta harmonia e identidade uma única
diferença: era o legado do padrinho de Luís.
A viagem a Minas feita por
Alberto era por motivo de ir colher informações minuciosas para servir em
processo.
O encontro
de ambos já o leitor teve notícia no começo destas linhas.
* * *
Alberto não
respondeu à carta de Luís por não ter certeza do lugar em que estaria este, se
em Porto Alegre, se em Pelotas.
Esperou que
da parte do amigo lhe chegassem comunicações necessárias.
Mas esperou
em vão.
No fim de
dois meses resolveu escrever uma carta em duplicata, mandando uma para cada uma
das cidades onde Luís podia ser encontrado.
A carta de
Alberto dizia assim:
"Alberto
a Luís. - Resolvi escrever-te depois de esperar em vão uma carta tua. Esta vai
em duplicata, uma para Porto Alegre, outra para Pelotas. Onde quer que estejas
lá te há de achar.
"Devo
crer que estejas em Pelotas, e que o silêncio se explique pelas ocupações em
que estás realmente com a procura desse segredo do teu finado padrinho.
"Eu
já sabia de quanta excentricidade era capaz esse sujeito, mas esta é de mestre,
e eu não atino com o fim de toda esta meada.
"Por
isso mesmo é que é segredo.
"O
que for soará.
"Peço-te
que não te esqueças, se for possível, de me comunicares os progressos do
trabalho, e, quando chegar a ocasião, a natureza do segredo que faz condição
do legado.
"Segredo
em casa que se não abre há cinco anos... deve ser coisa misteriosa!
"Olha
lá; não vás esbarrar com alguma daquelas surpresas das fantasias alemãs... Quem
sabe se o teu padrinho não tinha comércio com o diabo?
"Disse
uma tolice, perdoa-me.
"Enfim,
escreve-me. Sou curioso, como uma criança. Dize-me o que houver e continua a
votar-me aquela amizade antiga".
Alberto escreveu as duas
cartas, subscritou-as e remeteu-as para o correio.
Feito o que, esperou resposta.
Dai a algum tempo recebeu uma
carta de Luís.
Dizia ele:
"Luís a Alberto. - É
segredo e segredo do diabo. Mas não é por ora o que pensas. O do padrinho ainda
está por descobrir, pela razão de que ainda não fui a Pelotas. E não penses que
é porque não possa. Não; tenho podido ir. Mas que me prende? perguntas tu.
"Vais saber..
"Prende-me um anjo...
"Não te rias, lê até o
fim.
"Prende-me um anjo com
formas de mulher. Ou anjo ou o diabo, que tanto importa esta criatura que
conseguiu transtornar-me a razão e fazer do meu coração uma verdadeira ruína a
respeito de todos os outros sentimentos.
"Amo, meu Alberto,
amo!
"A primeira vez que a vi foi em uma noite... ah!
até agora só a tenho visto à noite, pelo que já lhe e pus um nome simbólico:
Diana.
"Mas, como dizia, foi
em uma noite que a vi pela primeira vez, noite de sexta, noite de luar, noite
de sedução: estava linda, como a irmã que então atravessava a planície celeste,
calma e suave influindo amor, inspiração, poesia.
"Dessa noite para cá
fiquei perdido. Bem sabes como nasce o amor; é de súbito. Eu senti que naquele
momento o anjo encarregado de escrever no céu a minha biografia (porque eu
acredito que há anjos biógrafos no céu) adicionou ao capítulo do amor o nome de
Diana.
"Diana! sabes tu que
beleza é esta? Como encanta, como fascina, como seduz? Tu não sabes nada, pobre
lorpa, nessa cidade de lama e de prosa, cativo da prosa e da lama. Aqui, sim;
aqui resido com este serafim, a luz, a vida, a poesia.
"Reli o que tinha escrito até aqui e tive idéia
de rasgar. Não irás tu pensar que eu estou doido ou caí na pieguice? Não creias
nada que não seja isto: amo. É a palavra da criação, diz o poeta das
"Orientais".
"Mas deixe-me contar
como foi que eu vi e amei esta mulher.
"Costumava eu ir tomar
chá em casa do major O... meu parente afastado, bom velho que possui filhas
bonitas e de excelentes qualidades.
"Ia às oito horas e voltava
à meia-noite para casa.
"Ouvia lá falar muitas
vezes da viúva Caldas, mas nunca prestei maior atenção a essa referência, e
ouvia como se não ouvisse.
"Uma noite, em que fui
mais cedo, disseram-me as filhas do velho que esperavam a viúva Caldas para
tomar chá.
"Perguntei quem era
essa viúva Caídas que eu não conhecia. Disseram-me que era a viúva de um homem
do norte que para ali fora há um ano, o qual tinha falecido cinco meses antes.
A viúva desde que eu lá cheguei andava doente e por isso não tinha ido à casa
do major.
"Mas achava-se boa e
ia lá naquela noite, pela primeira vez que saía depois da convalescença.
"Não se trocou a este
respeito uma só palavra mais.
"Daí a bocado,
estávamos assentados na chácara cujo portão dava para uma rua, aparecem a
alguma distância uns vultos brancos. Era a viúva e a mãe.
"As moças correram a
ir buscá-las e eu acompanhei-as por delicadeza, não podendo supor que essa
viúva Caídas fosse a mulher destinada a mudar completamente o meu destino.
"O luar estava claro,
suave, límpido.
"Quando me aproximei
da viúva e troquei com ela um olhar, senti uma comoção inexprimível. Estive
alguns segundos sem desviar os olhos dos olhos da moça. Ela também não desviava
os seus.
"Tudo se preparava
para que este encontro fosse decisivo da minha sorte: a noite era das mais
adoráveis noites do sul.
"Conversou-se,
tomou-se chá e a meia-noite fomos eu, o major e as filhas deste, acompanhar as
visitas até à casa.
"Diana (não quero
dar-lhe outro nome) pareceu não ser indiferente aos sentimentos que me
inspirou. Também ela parecia impressionada, comovida. Pela minha parte não sei
se disse coisas acertadas naquela noite.
"Daí para cá já a vi
dez vezes, e sempre de noite. Imagine se a impressão produzida durante a noite
podia enfraquecer; tem aumentado antes com força redobrada.
"À quinta noite não me
pude ter. Procurei um instante em que lhe pudesse falar a sós, e declarei-lhe
indiretamente o que sentia por ela. Diana, ou respondesse do mesmo modo, ou
fosse ilusão minha, o que é certo é que me disse algumas coisas indiretas assaz
explícitas.
"Olhe este specimen da nossa conversação:
"Dizia eu:
"- Quisera ser um
coração viúvo.
"- Por que? perguntou
ela.
"- Porque os corações
viúvos se consolam, respondi.
"- Ah!
"E suspirou.
"É claro ou não?
"Ah! eu creio que
estou dizendo alguma extravagância, mas perdoa-me tu que sabes o que é amar, e
conheces o meu coração nestas matérias.
"O que te posso
afiançar é que nunca amei como agora, nem mulher alguma se gabou ainda de
possuir o meu coração como esta possui.
"Quem dissera, meu
Alberto, que vindo buscar uma fortuna e um segredo, levaria uma mulher, isto é,
outro segredo e outra fortuna? Não estranhes a frase; estou disposto a casar
com Diana, haja o que houver. É paixão doída...
"Enfim o vapor está a
partir, não posso demorar mais a carta. Adeus.
"Dentro de poucos dias
vou para Pelotas para ver se descubro que segredo é este de meu padrinho.
"Olha, se é alguma fortuna enterrada!
"Talvez a felicidade
me queira proteger agora de uma vez. Adeus".
Um mês
correu ainda entre esta carta e a terceira remetida por Luís ao amigo Alberto.
Assistiremos
eu e o leitor aos fatos que o advogado narrou na
terceira carta.
Basta-nos
para isso transportarmo-nos para Porto Alegre, à casa de Luís, vinte e oito
dias depois da segunda carta.
O amor de Luís e Diana
(conservemos à moca o nome que lhe dera o namorado) caminhava às mil maravilhas.
A moça correspondera ao sentimento do rapaz, ao ponto de receber
afetuosamente uma declaração positiva de casamento.
Como sempre se encontrassem em casa do major, onde Diana ia tomar chá
todas as noites, nunca Luís fora a casa dela.
Um dia, porém, em que ele manifestou desejo de lá ir, Diana disse-lhe
que fosse, pediu-lhe, fez até uma intimação.
No meio de tudo isto, o legado e o segredo tinham ficado esquecidos
inteiramente.
Na manhã do dia marcado Luís levantou-se alegre como andorinha em tempo
de verão. Vestiu-se, perfumou-se, encouraçou-se para todas as comoções e
partiu.
Ele levava em mente fazer nesse dia o pedido à velha. Sabia por boca de
Diana que ela olhava esse amor com bons olhos.
Quando se aproximava da porta de Diana tirou o
relógio e viu que se adiantara duas horas. Eram dez e a entrevista devia ter
lugar ao meio-dia.
Quis voltar para esperar a hora convencionada. Mas a vista do jardim o
desanimou. Teve uma tentação: esperar no jardim que batesse a hora decisiva da
sua existência e da sua felicidade.
Hesitou alguns minutos.
Depois, fazendo um esforço, como a porta estivesse aberta, entrou.
Seus
primeiros passos foram de receio. A areia rangia debaixo dos pés, e podia
despertar alguém, o que seria estragar o romance.
A fortuna deparou-lhe uma
espécie de caramanchel, naturalmente construído pela rama de quatro árvores
plantadas em quadrado.
Luís encaminhou-se para lá.
A casa estava silenciosa; as
janelas fechadas; tudo parecia dormir ainda. Ele sabia que ela se levantava
tarde, mas não pôde supor que às dez horas da manhã ainda estivesse na cama.
É certo que a manhã era das
mais frias e tinha chovido na véspera.
Luís sentou-se em um banquinho
de pedra que havia embaixo do caramanchel.
Descalçou as luvas, guardou-as
no bolso, tirou um cigarro, consertou-o, riscou um fósforo, acendeu o cigarro e
começou a fumá-lo tranqüilamente.
Quem o visse não diria que era
um homem que dali a duas horas podia estar casado... em promessa.
Ele mesmo fez algumas
reflexões análogas a esta. Naturalmente chamado ao terreno das idéias próprias
de um homem que vai pedir uma mulher cm casamento, Luís deixou-se ficar no
campo vasto da fantasia e da memória.
A fantasia para o futuro, a
memória para o passado.
O passado era a vida
malfadada, erma de afeições, cheia de necessidades. Era a luta dolorosa entre a
vida material e as aspirações do espírito, luta de que, por um lance de sorte,
achava-se agora salvo, podendo gozar de um amor e de uma fortuna.
O futuro era o gozo dessa
fortuna e desse amor. O advogado pintava já na imaginação o que faria quando se
visse na posse de Diana e do legado. Faltava-lhe ainda o segredo que, se não
podia ser uma mulher, podia muito bem ser sua fortuna ainda, o que seria uma
fortuna acumulada.
Nessas explicações do passado
e do futuro lembrou-se do amigo que ficara na corte. Ocorreu-lhe então que de
há muito tempo lhe não escrevia. Não queria de modo algum ser acusado de
ingrato, e resolveu, apenas acabada a entrevista, escrever para o Rio de
Janeiro. O vapor partia no dia seguinte.
Durante
esse longo tempo de espera, Luís fumou três cigarros, e consultou vinte vezes o
relógio.
Os
ponteiros corriam lentamente como uma agonia.
Luís
levantava-se, espiava por entre as folhagens e via as janelas ainda fechadas.
Dar-se-á
caso que ainda dormissem ou teriam saído?
Esta
pergunta feita a si mesmo trouxe ao espírito do namorado uma dúvida cruel. Se tivessem
saído seria uma desilusão.
Nisto
sentiu passos.
Voltou-se
para o lado donde partia o rumor da areia calcada por pés vagarosos.
Viu dois
vestidos de mulher.
Imaginou
logo que seriam Diana e sua mãe. Naturalmente tinham deixado a cama nesse
momento e andavam passeando no jardim, fazendo apetite.
Luís
lembrou-se que ouvira algumas vezes a Diana dizer
que tinha este hábito de longos meses.
- Melhor,
pensou ele, causo-lhes a surpresa de me verem aqui, e é mais uma prova do amor
que dou a Diana.
E comprimiu a respiração para não ser pressentido e aparecer como nos
romances o herói avisado por algum
bilhete misterioso.
As duas
aproximavam-se cada vez mais.
Luís deixou
que elas se aproximassem bastante para aparecer então.
Entretanto quis ainda uma vez cravar os olhos naquela que era já senhora
do coração.
Arredou cautelosamente as folhas para melhor ver e colou os olhos à
abertura.
As duas passavam nesse momento.
Luís soltou
um grito e recuou.
As mulheres
espantadas correram para o caramanchel; mas, ao mesmo tempo, Diana, mal conheceu o rapaz, correu para casa.
Ficou a
velha diante de Luís.
Qual era a
significação do grito do rapaz?
Era que o sonho que durante tantos dias criara e idealizara desfizera-se
ali todo e de uma vez. Diana, a jovem, a bela, a sedutora mulher que tanto impressionara o
advogado, era uma mulher amarela sem beleza, sem mocidade, sem encanto algum.
Todos os encantos dela eram artifícios comprados e aplicados diariamente com
uma paciência de feia pretensiosa.
Luís
nunca a vira senão à noite, porque Diana, apesar dos artifícios, não queria expor-se
a luz meridiana. Ainda assim pudera passar. Mas, luz do dia, e sem os socorros
da arte, caminhando em um jardim fechado, na plena confiança de quem não
esperava àquela hora semelhante visita, não era feia, era horrenda!
Calcula-se qual não seria o desencanto
do rapaz. Aquele grito fora o grito do amor moribundo.
A velha mãe da viúva, quando
viu Luís, ficou um tanto atrapalhada. Parece que ela era cúmplice nas manhas da
vaidosa filha. Mas, como não se tratasse dela pessoalmente, pôde falar ao
rapaz, rindo e sem ocultar a natural surpresa de encontrá-lo ali.
Luís respondeu que ia
visitá-la e esperava a hora marcada.
A
velha convidou-o a entrar, mas o rapaz pretextou um incômodo, explicando o
grito que dera, e despediu-se.
Instâncias, pedidos, rogos,
tudo foi inútil.
O rapaz saiu.
Dali
para casa os seus passos eram incertos, como os de um ébrio. Já não era amor
que sentia, visto que o amor fora dedicado à criatura que ele vira à noite e
aparentemente bela. Era mal estar do espírito que por tanto tempo se iludira.
Quando chegou à casa fez esta
reflexão filosófica:
- Nem sempre os palpites são
vãos; se eu não fosse esperar no jardim não escapava tão milagrosamente ao
perigo de carregar todo o resto de minha vida com um...
Não acabou a reflexão porque
nesse momento apresentou-se-lhe o criado perguntando quando partia para
Pelotas.
- Já, respondeu Luís.
* * *
Tempos
depois recebia Alberto na corte a terceira carta de Luís.
"Luís
a Alberto. - Esta carta há de chegar às tuas mãos poucos dias antes de mim.
Estou em Porto Alegre em preparativos de viagem.
"Podia
guardar-me para contar-te de viva voz tudo o que me acontecesse depois da
última que te escrevi (há um século?), mas prefiro dar-te já a grande notícia.
"Naturalmente
supões que vou chegar a corte casado com a bela Diana? Engano positivo; vou
solteiro, como vim. E vou explicar-te a razão.
"Tive
ocasião de ver à luz do sol a mulher que eu só vira ao clarão da lua ou das
velas da sala. Que abismo entre ambas! Passei do anjo ao dragão! A mulher era feia como um demônio; a noite e a
tinta eram a solução daquela charada viva. Dei graças a Deus quando fiz a
descoberta.
"À
vista te contarei mais detalhadamente o episódio desta descoberta, que só
difere de Colombo em não ser de um novo mundo,
mas de um velho mundo.
"Desenganado
dos meus amores, decidi partir para Pelotas.
"Este
episódio não é menos interessante. Ouve-me.
"Cheguei
a Pelotas e fui examinar a casa que há cinco anos não recebia um bocado de ar.
Foram precisos alguns dias para que pudesse deixar entrar lá alguém.
"Quando
ficou em estado de receber-me, lá fui com o meu criado, e preparei tudo para
proceder ao exame necessário.
"Tive
o cuidado de consultar as paredes para ver se eram ocas e podiam, portanto,
encerrar alguma coisa que constituísse o segredo de que falava meu padrinho.
"Nada.
"Marquei
um dia e começamos os nossos trabalhos.
"Virei
e revirei a casa. Comecei por escavar o chão, mas depois de pesados trabalhos
consegui a certeza de que no chão não havia segredo de qualidade alguma.
"Passei às paredes
porque, apesar
do exame a que procedera de começo, podia haver algum ponto em que estivesse o tal
segredo; mas qual!
"Supus até que o
segredo se achasse na parte da parede
onde se achava pendurado um retrato a óleo de meu padrinho. Nada havia.
"Fui ao teto; fiz
arrancar tábua por tábua, e depois de longos dias de exame nada encontrei.
"Em resumo, nem as paredes, nem o chão, nem o
teto, nem o quintal, em parte alguma encontrei o segredo de meu padrinho.
"Então uma idéia dolorosa assaltou-me o espírito.
Meu padrinho era excêntrico; ora, quem sabe se a maior excentricidade dele não
seria a de me fazer procurar em vão um segredo imaginário, até convencer-me de
que não valia a pena procurá-lo para receber um bocado de dinheiro?
"Isto era muito
provável e eu senti-me abalado com esta idéia.
"Mas, passado o primeiro abalo, voltei de novo às
minhas pesquisas. Esmerilhei, foi tudo vão.
"Confesso que tive um
acesso de matar-me.
"Entretanto, era verdade; nada tinha encontrado;
o segredo do meu padrinho fora uma brincadeira. Como ele se havia de rir
naquele momento na eternidade!
"Determinei voltar
logo e logo para Porto Alegre, disposto a não receber nada e a voltar para a
corte, a fim de começar de novo a vida de advogado.
"Na ocasião em que arranjávamos as malas, vi que
entre os objetos que o meu criado enrolava existia o retrato de meu padrinho.
"- Para que trouxeste isso? perguntei eu.
"- Eu mesmo não sei, disse o criado.
"Tive então uma idéia,
súbita.
"Tomei o quadro das
mãos do criado, e, com o auxílio de uma faca, destas de que usam os guascas,
abri o quadro.
"Caiu de dentro um
papel dobrado.
"Apanhei o papel com a
mão trêmula.
"Seria aquele o segredo?
"Abri
o papel e pude ler a custo as letras apagadas pelo tempo.
"Queres
saber o que dizia o papel?
"Lê:
"-
"Conselho a meu afilhado. Nunca te fies
em aparências".
"Se
eu tivesse o segredo antes de ver Diana!.
"Enfim
estou hoje de posse de uma fortuna e de uma lição que me custaram alguma coisa.
"Até
breve!"
Publicado anonimamente
in Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, fevereiro de
1866, p. 33-43.
Fonte: Contos Avulsos -
Machado de Assis - org. de R. Magalhães Júnior - Editora Civilização Brasileira
/ Cia Brasileira de Livros - 1956