Machado de Assis
D. JUCUNDA
Ninguém,
quando D. Jucunda aparece no Imperial
Teatro de D. Pedro II, em algum baile, em casa, ou na rua, ninguém lhe dá mais
de trinta e quatro anos. A verdade, porém, é que orça pelos quarenta e cinco;
nasceu em 1843. A natureza tem assim os seus mimosos. Deixa correr o tempo,
filha minha, disse a boa madre eterna; eu cá estou com as mãos para te amparar.
Quando te enfastiares da vida, unhar-te-ei a cara, polvilhar-te-ei os cabelos,
e darás um pulo dos trinta e quatro aos sessenta, entre um cotilhão e o almoço.
É provinciana. Chegou aqui no
começo de 1860, com a madrinha - grande senhora de engenho, e um sobrinho
desta, que era deputado. Foi o sobrinho quem propôs à tia esta viagem, mas foi
a afilhada quem a efetuou, tão somente com fazer decair os olhos desconsolados.
- Não, não estou mais para
essas folias do mar. Já vi o Rio de Janeiro... Você que acha, Cundinha?
perguntou D. Maria do Carmo.
- Eu gostava de ir, dindinha.
D.
Maria do Carmo ainda quis resistir, mas não pôde; a afilhada ocupava em seu
coração a alcova da filha que perdera em 1857. Viviam no engenho desde 1858. O
pai de Jucunda, barbeiro de ofício, residia na vila, onde fora vereador e juiz
de paz; quando a ilustre comadre lhe pediu a filha, não hesitou um instante;
consentiu entregar-lha para beneficio de todos. Ficou com a outra filha,
Raimunda.
Jucunda e Raimunda eram
gêmeas, circunstância que sugeriu ao pai a idéia de lhes dar nomes consoantes.
Em criança, a beleza natural supria nelas qualquer outro alinho; andavam na
loja e pela vizinhança, em camisa rota, pé descalço, muito enlameadas às vezes,
mas sempre lindas. Aos doze anos perderam a mãe. Já então as duas irmãs não
eram tão iguais. A beleza de Jucunda acentuava-se, ia caminhando para a
perfeição: a de Raimunda, ao contrário, parava e murchava; as feições iam
descambando na banalidade e no inexpressivo. O talho da primeira tinha outro
garbo, e as mãos, tão pequenas como as da irmã, eram macias, talvez, porque
escolhiam ofícios menos ásperos.
Passando ao engenho da
madrinha, Jucunda não sentiu a diferença de uma a outra fortuna. Não se admirou
de nada, nem das paredes do quarto, nem dos móveis antigos, nem das ricas
toalhas de crivo, nem das fronhas de renda. Não estranhou as mucamas (que nunca
teve), nem as suas atitudes obedientes; aprendeu logo a linguagem do mando.
Cavalos, redes, jóias, sedas, tudo o que a madrinha lhe foi dando pelo tempo
adiante, tudo recebeu, menos como obséquios de hospedagem que como restituição.
Não expressava desejo que se lhe não cumprisse. Quis aprender piano, teve piano
e mestre; quis francês, teve francês. Qualquer que fosse o preço das coisas, D.
Maria do Carmo não lhe recusava nada.
A
diferença de situação entre Jucunda e o resto da família era agravada pelo
contraste moral. Raimunda e o pai acomodavam-se, sem esforço, às condições de
vida precária e rude: fenômeno que Jucunda atribuía instintivamente à índole
inferior de ambos. Pai e irmã, entretanto, achavam natural que a outra subisse
a tais alturas, com esta particularidade que o pai tirava orgulho da elevação
da filha, enquanto que Raimunda nem conhecia esse sentimento; deixava-se estar
na humildade ignorante. De gêmeas que eram e criadas juntas, sentiam-se agora
filhas do mesmo pai, um grande senhor de
engenho, por exemplo, - que houvera Raimunda em alguma agregada da casa.
Leitor, não há dificuldade em
explicar essas coisas. São desacordos possíveis entre a pessoa e o meio, que os
acontecimentos retificam, ou deixam subsistir até que os dois se acomodem. Há
também naturezas rebeldes à elevação da fortuna. Vi atribuir à rainha Cristina
esta explosão de cólera contra o famoso Espartero: "Fiz-te duque, fiz-te
grande de Espanha; nunca te pude fazer fidalgo". Não respondo pela
veracidade da anedota; afirmo só que a bela Jucunda nunca poderia ouvir à
madrinha alguma coisa que com isso se parecesse.
II
- Sabe quem vai casar?
perguntou Jucunda à madrinha, depois de lhe beijar a mão.
Na
véspera, estando a calçar as luvas para ir ao Teatro Provisório, recebera
cartas do pai e da irmã, deixou-as no toucador, para ler quando voltasse. Mas
voltou tarde, e com tal sono, que esqueceu as cartas. Agora de manhã, ao sair
do banho, vestida para o almoço, é que as pôde ler. Esperava que fossem como de costume, triviais e queixosas. Triviais seriam;
mais havia a novidade do casamento da irmã com um alferes, chamado Getulino.
-
Getulino de que, perguntou D. Maria do Carmo.
-
Getulino... Não me lembro; parece que é Amarante, ou Cavalcanti. Não Cavalcanti
não é; parece que é mesmo Amarante. Logo vejo. Não tenho idéia de semelhante alferes. Há de ser gente nova.
- Quatro anos! murmurou a
madrinha. Se eu era capaz de imaginar que ficaria aqui tanto tempo fora de
minha casa!
- Mas a senhora está dentro de
sua casa, replicou a afilhada dando-lhe um beijo.
D.
Maria do Carmo sorriu. A casa era um velho palacete restaurado, no centro de
uma grande chácara, bairro do Engenho Velho. D. Maria do Carmo tinha querido voltar à província, no prazo marcado
novembro de 1860; mas a afilhada obteve a estação de Petrópolis; iriam em março
de 1861. Março chegou, foi-se embora, e voltou ainda duas vezes, sem que elas
abalassem daqui; estamos agora em agosto de 1863. Jucunda tem vinte anos.
Ao almoço, falaram do
espetáculo da véspera e das pessoas que viram no teatro. Jucunda conhecia já a
principal gente do Rio; a madrinha fê-la recebida, as relações
multiplicaram-se; ela ia observando e assinalando. Bela e graciosa, vestindo-se
bem e caro, ávida de crescer, não lhe foi difícil ganhar amigas e atrair
pretendentes. Era das primeiras em todas as festas. Talvez o eco chegasse à
vila natal, - ou foi simples adivinhação de malévolo, que entendeu colar isto
uma noite, nas paredes da casa do barbeiro:
Nhã
Cundinha
Já
rainha
Nhã
Mundinha
Na
cozinha.
O pai arrancou, indignado, o
papel; mas a notícia correu depressa à vila toda, que era pequena, e foi o
entretenimento de muitos dias. A vida é curta.
Jucunda
acabado o almoço, disse à madrinha que desejava mandar algumas coisas para o
enxoval da irmã e, às duas horas, saíram de casa. Já na varanda, o cupê
embaixo, o lacaio de pé, desbarretado, com a mão no fecho da portinhola, - D.
Maria do Carmo notou que a afilhada parecia absorta; perguntou-lhe o que era.
- Nada, respondeu Jucunda,
voltando a si.
Desceram; no último degrau,
perguntou Jucunda se a madrinha é que mandara pôr as mulas.
- Eu não; foram eles mesmos.
Querias antes os cavalos?
- O dia está pedindo cavalos
pretos; mas agora é tarde, vamos.
Entraram,
e o cupê, tirado pela bela parelha de mulas gordas e fortes, dirigiu-se para o
largo de S. Francisco de Paula. Não disseram nada durante os primeiros minutos;
D. Maria é que interrompeu o silêncio perguntando o nome do alferes.
- Não é Amarante, não,
senhora, nem Cavalcanti; chama-se Getulino Damião Gonçalves, respondeu a moça.
- Não conheço.
Jucunda
tornou a mergulhar em si mesma. Um dos seus prazeres diletos, quando ia de
carro, era ver a outra gente a pé, e gozar as admirações de relance. Nem esse a
atraia agora. Talvez o alferes lhe fizesse lembrar algum general; verdade é que
só os conhecia casados. Pode ser também que esse alferes, destinado a dar-lhe
sobrinhos cabos de esquadra, viesse lançar-lhe alguma sombra aborrecida no céu
brilhante e azul. As idéias passam tão rápidas e embrulhadas, que é difícil
colhê-las, e pô-las em ordem; mas, enfim, se alguém supuser que ela cuidava
também em certo homem, esse não andará errado. Era candidato recente o doutor
Maia, que voltara da Europa, meses antes, para entrar na posse da herança da
mãe. Com a do pai, ia a mais de
seiscentos contos. A questão do dinheiro era aqui um tanto secundária, porque
Jucunda tinha certa herança da madrinha; mas não se há de mandar embora um
homem, só porque possui seiscentos contos, não lhe faltando outras qualidades
preciosas de figura e de espírito, um pouco de genealogia e tal ou qual
pontinha de ambição, que ela puxaria em tempo, como se faz às orelhas das
crianças preguiçosas. Já havia recusado outros candidatos. De si mesma chegou a
sonhar com um senador, posição feita e ministro possível. Aceitou este Maia;
mas, gostando dele, e muito, por que é que não acabava de casar?
Por
que? Eis aí o mais difícil de aventar, amigo leitor. Jucunda não sabia o
motivo. Era dessas que nascem naqueles escaninhos da alma, em que o dono não penetra, mas penetramos nós outros,
contadores de histórias. Creio que se liga à doença do pai. Já estava ferido,
na asa, quando ela para cá veio; a moléstia foi crescendo, até fazer-se
desenganada. Navalha não exclui espírito, haja vista Fígaro; o nosso velho
disse à filha Jucunda, em uma das cartas, que tinha dentro de si um aprendiz de
barbeiro, que lhe alanhava as entranhas. Se tal era, era também vagaroso,
porque não acabava de escanhoá-lo. Jucunda não supunha que a eliminação do
velho fosse necessária à celebração do casamento, - ainda que pôr motivo de
velar o passado; se claramente lhe viesse a idéia, é de crer que a repetisse
com horror. Ao contrário, a idéia que agora mesmo lhe acudia, pouco antes de
parar o cupê, é que não era bonito casar, enquanto o pai estava curtindo em dores.
Eis aí um motivo decente, leitor amigo; é o que procurávamos há pouco, é o que
a alma pode confessar a si mesma, é o que tirou a fisionomia da moça o ar
fúnebre que ela parecia haver trazido de casa.
Compraram o enxoval de
Raimunda, e o remeteram pelo primeiro vapor, com cartas de ambas. A de Jucunda
era mais longa que de costume; falava-lhe do noivo alferes, mas não empregava a
palavra cunhado. Não tardou que viesse resposta da irmã, toda gratidão e
respeitos. Sobre o pai dizia que ia com os seus achaques velhos, um dia pior,
outro melhor; era opinião do doutor que podia morrer de repente, mas podia
também agüentar meses e anos.
Jucunda meditou muito sobre a
carta. Logo que Maia se lhe declarou, pediu-lhe ela que nada dissesse à
madrinha por uns dias; ampliou o prazo a semanas; não podia fazê-lo a meses ou
anos. Foi à madrinha, e confiou a situação. Não quisera casar com o
pai enfermo; mas, dada a incerteza da cura, era melhor casar logo.
- Vou escrever a meu pai, e
peço-me a mim mesma, disse ela, se dindinha achar que faço bem.
Escreveu ao pai, e terminou:
"Não o convido para vir ao Rio de Janeiro, porque é melhor sarar antes;
demais, logo que nos casarmos, lá iremos ter. Quero mostrar a meu marido
(desculpe este modo de falar) a vilazinha do meu nascimento, e ver as coisas de
que tanto gostei, em criança, o chafariz do largo, a matriz e o padre Matos.
Ainda vive o padre Matos?" O pai leu a carta com lágrimas; mandou-lhe
dizer que sim, que podia casar, que não vinha por andar achacado; mas longe que
pudesse...
- Mundinha exagerou muito,
disse Jucunda à madrinha. Quem escreve assim, não está para morrer.
Tinha proposto casamento à
capucha, por causa do pai; mas o tom da carta fê-la aceitar o plano de D. Maria
do Carmo, e as bodas foram de estrondo. Talvez a proposta não lhe viesse da
alma. Casaram-se pouco tempo depois. Jucunda viu mais de um dignitário do
Estado inclinar-se diante dela, e dar-lhe os parabéns. Os mais célebres colos
da cidade fizeram-lhe corte. Equipagens ricas, cavalos briosos, atirando as
patas com vagar e graça, pela chácara dentro, muitas librés particulares,
flores, luzes; fora, na rua, a multidão olhando. Monsenhor Tavares, membro
influente do cabido, celebrou o casamento.
Jucunda via tudo através de um
véu mágico, tecido de ar e de sonho; conversações, música, danças, tudo era
como uma longa melodia, vaga e remota, ou próxima e branda, que lhe tomava o
coração, e pela primeira vez, a fazia estupefata diante de alguma coisa deste
mundo.
III
D. Maria do Carmo não alcançou
que os recém-casados ficassem morando com ela. Jucunda desejava-o; mas o marido
achou que não. Tinham casa na mesma rua, perto da madrinha; e assim viviam
juntos e separados. De verão iam os três para Petrópolis, onde residiam debaixo
do mesmo teto.
Extinta a melodia, secas as rosas. passados os
primeiros dias do noivado, Jucunda pôde tomar pé no recente tumulto, e achou-se
grande senhora. Já não era só a afilhada de D. Maria do Carmo, e sua provável
herdeira; tinha agora o prestígio e o amor. Maia literalmente adorava a mulher;
inventava o que a pudesse fazer feliz, e acudia a cumprir-lhe o menor dos seus
desejos. Um destes consistiu na série de jantares que deram em Petrópolis,
durante uma estação, aos sábados, jantares que ficaram célebres; a flor da
cidade ali ia por turmas. Nos dias diplomáticos, Jucunda teve a honra de ver a
seu lado, algumas vezes, o internúncio apostólico.
Um dia, no Engenho Velho, recebeu Jucunda a notícia da
morte do pai. A carta era da irmã; contava-lhe as circunstâncias do caso: o pai
nem teve tempo de dizer: ai, Jesus! Caiu da rede abaixo e expirou.
Leu a carta sentada. Ficou por
algum tempo com o papel na mão, a olhar fixamente; relembrava as coisas da
infância e a ternura do pai; saturava bem a alma daqueles dias antigos,
despregava-se de si mesma, e acabou levando o lenço aos olhos, com os braços
fincados nos joelhos. O marido veio achá-la nessa atitude, e correu para ela.
- Que é que
tem? perguntou ele.
Jucunda sobressaltada, ergueu os olhos para ele;
estavam úmidos; não disse nada.
- Que foi? insistiu o marido.
- Morreu meu pai, respondeu ela.
Maia pôs um joelho no chão,
pegou-a pela cintura e conchegou-a ao peito; ela escondeu a cara no ombro do
marido, e foi então que as lágrimas romperam mais grossas.
- Vamos, sossegue. Olhe o seu estado.
Jucunda estava grávida. A advertência fê-la erguer de
pronto a cabeça, e enxugar os olhos; a carta, envolvida no lenço, foi esconder
no bolso a ruim ortografia da irmã e outros pormenores. Maia sentou-se na
poltrona, com uma das mãos da mulher entre as suas. Olhando para o chão, viu um
papel impresso, trecho de jornal, apanhou-o e leu; era a notícia da morte do
sogro, que Jucunda não vira cair de dentro da carta. Quando acabou de ler, deu
com a mulher, pálida e ansiosa. Esta tirou-lhe o papel e leu também. Com pouco
se aquietou. Viu que a noticia apontava tão somente a vida política do pai, e
concluía dizendo que este "era o modelo dos varões que sacrificam tudo à
grandeza local; não fora isso, e o seu nome, como o de outros, menos virtuosos
e capazes, ecoaria pelo país inteiro".
- Vamos, descansa; qualquer abalo pode fazer-te mal.
Não houve abalo; mas, à
vista do estado de Jucunda, a missa por alma do pai foi dita na capeta da madrinha, só para os parentes.
Chegado o tempo, nasceu o
filho esperado, robusto como o pai, e belo como a mãe. Esse primeiro e único
fruto, parece que veio ao mundo menos para aumentar a família, que para dar às
graças pessoais de Jucunda o definitivo toque. Com efeito, poucos meses depois, Jucunda atingia o grau de beleza, que
conservou por muitos anos. A maternidade realçava a feminilidade.
Só uma
sombra empanou o céu daquele casal. Foi pelos fins de 1866. Jucunda estava a
mirar o filho dormindo, quando lhe vieram dizer que uma senhora a procurava.
- Não disse
quem é?
- Não disse,
não, senhora.
- Bem
vestida?
- Não senhora; é assim meia esquisita, muito magra.
Jucunda olhou para o espelho
e desceu. Embaixo, reiterou algumas ordens; depois, pisando rijo e farfalhando
as saias, foi ter com a visita. Quando entrou na sala de espera, viu uma mulher
de pé, magra, amarela, envolvida em um
xale velho e escuro, sem luvas nem chapéu. Ficou por alguns instantes calada,
esperando; a outra rompeu o silêncio: era Raimunda.
- Não me conhece, Cundinha?
Antes que acabasse, já a
irmã a reconhecera. Jucunda caminhou para ela, abraçou-a, fê-la sentar-se;
admirou-se de a ver aqui, sem saber de mais nada; a última carta recebida era
já de muito tempo; quando chegara?
- Há cinco meses; Getulino foi para a guerra, como
sabe; eu vim depois, para ver se podia...
Falava com humildade e a
medo, baixando os olhos a miúdo. Antes de vir a irmã, estivera mirando a sala,
que cuidou ser a principal da casa; tinha receio de macular a palhinha do chão.
Todas as galanterias da parede e da mesa central, os filetes de ouro de um
quadro, cadeiras, tudo lhe pareciam riquezas do outro mundo. Já antes de
entrar, ficara por algum tempo a contemplar a casa, tão grande e tão rica.
Contou a irmã que perdera o filho, ainda na província; agora viera com a idéia
de seguir para o Paraguai, ou para onde estivesse mais perto do marido.
Getulino escrevera-lhe que voltasse para a província ou ficasse aqui.
- Mas que tem feito nestes cinco meses?
- Vim com uma família conhecida, e aqui fiquei
costurando para ela. A família foi para S. Paulo, vai fazer um mês; pagou o
primeiro aluguel de uma casinha onde moro, costurando para fora.
Enquanto
a irmã falava, Jucunda contornava-a com os olhos, - desde o vestido de seda já
gasto, - o último do enxoval, o xale escuro, as mãos amarelas e magras, até às
bichinhas de coral que lhe dera ao sair da província. Era evidente que Raimunda
pusera em si o melhor que possuía para honrar a irmã. Jucunda viu tudo; não lhe
escaparam sequer os dedos maltratados do trabalho, e o composto geral tanto lhe
deu pena como repulsa. Raimunda ia falando, contou-lhe que o marido saíra
tenente por atos de bravura e outras muitas coisas. Não dizia você; para não
empregar senhora, falava indiretamente: "Viu? Soube? Eu lhe digo. Se quiser..." E a irmã, que a
princípio fez um gesto para dizer que deixasse aqueles respeitos, depressa o
reprimiu, e deixou-se tratar como à outra parecesse melhor.
- Tem filhos?
- Tenho um, acudiu Jucunda;
está dormindo.
Raimunda
concluiu a visita. Quisera vê-la e, ao mesmo tempo, pedir-lhe proteção. Havia
de conhecer pessoas que pagassem melhor. Não sabia fazer vestidos de francesas,
nem de luxo, mas de andar em casa, sim, e também camisas de crivo. Jucunda não
pôde sorrir. Pobre costureira do sertão! Prometeu ir vê-la, pediu indicação da
casa, e despediu-a ali mesmo.
Em
verdade, a visita deixou-lhe uma sensação mui complexa: dó, tédio, impaciência.
Não obstante, cumpriu o que disse, foi visitá-la à rua do Costa, ajudou-a com
dinheiro, mantimento e roupa. Voltou ainda lá, como a outra tornou ao Engenho
Velho, sem acordo, mas as furtadelas. No
fim de dois meses, falando-lhe o marido na possibilidade de uma viagem à
Europa, Jucunda persuadiu a irmã da necessidade de regressar à província;
mandar-lhe-ia uma mesada, até que o tenente voltasse da guerra.
Foi então que o marido recebeu
aviso anônimo das visitas da mulher à rua do Costa, e das que lhe fazia, em
casa, uma mulher suspeita. Maia foi à rua da Costa, achou Raimunda arranjando
as malas para embarcar no dia seguinte. Quando ele lhe falou do Engenho-Velho,
Raimunda adivinhou que era o marido da irmã; explicou as visitas, dizendo que
"D Jucunda era sua patrícia e antiga protetora", agora mesmo, se
voltava para a vila natal, era com o dinheiro dela, roupas e tudo. Maia, depois
de longo interrogatório, saiu dali convencido. Não disse nada em casa; mas,
três meses depois, por ocasião de falecer D. Maria do Carmo, referiu Jucunda ao
marido a grande e sincera afeição que a defunta lhe tinha, e ela à defunta.
Maia lembrou-se então da rua
do Costa.
- Todos lhe querem bem a você,
já sei, interrompeu ele, mas por que é que nunca me falou daquela pobre mulher,
sua protegida, que aqui esteve há tempos, uma que morava na rua do Costa?
Jucunda empalideceu. O marido
contou-lhe tudo, a carta anônima, a entrevista que tivera com Raimunda, e
finalmente a confissão desta, as próprias palavras, ditas com lágrimas. Jucunda
sentiu-se vexada e confusa.
- Que mal há em fazer bem,
quando a pessoa o merece? perguntou-lhe o marido, concluindo a frase com um
beijo.
- Sim, era excelente mulher,
muito trabalhadeira...
IV
Não
houve outra sombra na vida conjugal. A morte do marido ocorreu em 1884. Bela,
com a meação do casal, e a herança da madrinha, contando quarenta e cinco anos
que parecem trinta e quatro, tão querida da natureza como da fortuna, pode
contrair segundas núpcias, e não lhe faltam candidatos; mas não pensa nisso.
Tem boa saúde e grande consideração.
A irmã faleceu antes de acabar
a guerra. Getulino galgou os postos em campanha, e saiu há alguns anos
brigadeiro. Reside aqui; vai jantar, aos domingos com a cunhada e o filho
desta, no palacete de D. Maria do Carmo, para onde a nossa D. Jucunda se mudou.
Tem escrito alguns opúsculos sobre armamento e composição do Exército, e outros
assuntos militares. Dizem que deseja ser ministro da Guerra. Aqui, há tempos,
falando-se disso no Engenho Velho, perguntou alguém a D. Jucunda se era verdade
que o cunhado fitava as cumiadas do poder.
- O general? retorquiu ela com
o seu grande ar de matrona elegante; pode ser. Não conheço os seus planos
políticos, mas acho que daria um bom ministro de Estado.
MACHADO
DE ASSIS.
in Gazeta de Noticias, Rio de
Janeiro, 1889, p. 2.
Fonte: Contos Avulsos - Machado de Assis - org. de R.
Magalhães Júnior - Editora Civilização Brasileira / Cia Brasileira de Livros -
1956