Machado de Assis
Não era possível chegar mais a ponto. D. Paula entrou
na sala exatamente quando a sobrinha enxugava os olhos cansados de chorar.
Compreende-se o assombro da tia. Entender-se-á também o da sobrinha, em se
sabendo que D. Paula vive no alto da Tijuca, donde raras vezes desce; a última
foi pelo Natal passado, e estamos em maio de 1882. Desceu ontem, à tarde, e foi
para casa da irmã, Rua do Lavradio. Hoje, tão depressa almoçou, vestiu-se e
correu a visitar a sobrinha. A primeira escrava que a viu, quis ir avisar a
senhora, mas D. Paula ordenou-lhe que não, e foi pé ante pé, muito devagar,
para impedir o rumor das saias, abriu a porta da sala de visitas, e entrou.
- Que é isto? exclamou.
Venancinha atirou-se-lhe aos braços, as lágrimas
vieram-lhe de novo. A tia beijou-a muito, abraçou-a, disse-lhe palavras de
conforto e pediu, e quis que lhe contasse o que era, se alguma doença, ou...
- Antes fosse uma doença! antes fosse a morte!
interrompeu a moça.
- Não digas tolices; mas que foi? anda, que foi?
Venancinha enxugou os olhos e começou a falar. Não
pôde ir além de cinco ou seis palavras; as lágrimas tornaram, tão abundantes e
impetuosas, que D. Paula achou de bom aviso deixá-las correr primeiro.
Entretanto, foi tirando a capa de rendas pretas que a envolvia, e descalçando
as luvas. Era uma bonita velha, elegante, dona de um par de olhos grandes, que
deviam ter sido infinitos. Enquanto a sobrinha chorava, ela foi cerrar
cautelosamente a porta da sala, e voltou ao canapé. No fim de alguns minutos,
Venancinha cessou de chorar, e confiou à tia o que era.
Era nada menos que uma briga com o marido, tão
violenta, que chegaram a falar de separação. A causa eram ciúmes. Desde muito
que o marido embirrava com um sujeito; mas na véspera à noite, em casa do C...,
vendo-a dançar com ele duas vezes e conversar alguns minutos, concluiu que eram
namorados. Voltou amuado para casa de manhã, acabado o almoço, a cólera
estourou, e ele disse-lhe coisas duras e amargas, que ela repeliu com outras.
- Onde está teu marido? perguntou a tia.
- Saiu; parece que foi para o escritório.
D. Paula perguntou-lhe se o escritório era ainda o
mesmo, e disse-lhe que descansasse, que não era nada, dali a duas horas tudo
estaria acabado. Calçava as luvas rapidamente.
- Titia vai lá?
- Vou... Pois então? Vou. Teu marido é bom, são
arrufos. 104? Vou lá; espera por mim, que as escravas não te vejam.
Tudo isso era dito com volubilidade, confiança e
doçura. Calçadas as luvas, pôs o mantelete, e a sobrinha ajudou-a, falando também,
jurando que, apesar de tudo, adorava o Conrado. Conrado era o marido, advogado
desde 1874. D. Paula saiu, levando muitos beijos da moça. Na verdade, não podia
chegar mais a ponto. De caminho, parece que ela encarou o incidente, não digo
desconfiada, mas curiosa, um pouco inquieta da realidade positiva; em todo caso
ia resoluta a reconstruir a paz doméstica.
Chegou, não achou o sobrinho no escritório, mas ele
veio logo, e, passado o primeiro espanto, não foi preciso que D. Paula lhe
dissesse o objeto da visita; Conrado adivinhou tudo. Confessou que fora
excessivo em algumas coisas, e, por outro lado, não atribuía à mulher nenhuma
índole perversa ou viciosa. Só isso; no mais, era uma cabeça de vento, muito
amiga de cortesias, de olhos ternos, de palavrinhas doces, e a leviandade
também é uma das portas do vício. Em relação à pessoa de quem se tratava, não
tinha dúvida de que eram namorados. Venancinha contara só o fato da véspera;
não referiu outros, quatro ou cinco, o penúltimo no teatro, onde chegou a haver
tal ou qual escândalo. Não estava disposto a cobrir com a sua responsabilidade
os desazos da mulher. Que namorasse, mas por conta própria.
D. Paula ouviu tudo, calada; depois falou também.
Concordava que a sobrinha fosse leviana; era próprio da idade. Moça bonita não
sai à rua sem atrair os olhos, e é natural que a admiração dos outros a
lisonjeie. Também é natural que o que ela fizer de lisonjeada pareça aos outros
e ao marido um princípio de namoro: a fatuidade de uns e o ciúme do outro
explicam tudo. Pela parte dela, acabava de ver a moça chorar lágrimas sinceras,
deixou-a consternada, falando de morrer, abatida com o que ele lhe dissera. E
se ele próprio só lhe atribuía leviandade, por que não proceder com cautela e
doçura, por meio de conselho e de observação, poupando-lhe as ocasiões,
apontando-lhe o mal que fazem à reputação de uma senhora as aparências de
acordo, de simpatia, de boa vontade para os homens?
Não gastou menos de vinte minutos a boa senhora em
dizer essas coisas mansas, com tão boa sombra, que o sobrinho sentiu
apaziguar-se-lhe o coração. Resistia, é verdade; duas ou três vezes, para não
resvalar na indulgência, declarou à tia que entre eles tudo estava acabado. E,
para animar-se, evocava mentalmente as razões que tinha contra a mulher. A tia,
porém, abaixava a cabeça para deixar passar a onda, e surgia outra vez com os
seus grandes olhos sagazes e teimosos. Conrado ia cedendo aos poucos e mal. Foi
então que D. Paula propôs um meio-termo.
- Você perdoa-lhe, fazem as pazes, e ela vai estar
comigo, na Tijuca, um ou dois meses; uma espécie de desterro. Eu, durante este
tempo, encarrego-me de lhe pôr ordem no espírito. Valeu?
Conrado aceitou. D. Paula, tão depressa obteve a
palavra, despediu-se para levar a boa nova à outra, Conrado acompanhou-a até à
escada. Apertaram as mãos; D. Paula não soltou a dele sem lhe repetir os
conselhos de brandura e prudência; depois, fez esta reflexão natural:
- E vão ver que o homem de quem se trata nem merece um
minuto dos nossos cuidados...
- É um tal Vasco Maria Portela...
D. Paula empalideceu. Que Vasco Maria Portela? Um
velho, antigo diplomata, que... Não, esse estava na Europa desde alguns anos,
aposentado, e acabava de receber um título de barão. Era um filho dele, chegado
de pouco, um pelintra... D. Paula apertou-lhe a mão, e desceu rapidamente. No
corredor, sem ter necessidade de ajustar a capa, fê-lo durante alguns minutos,
com a mão trêmula e um pouco de alvoroço na fisionomia. Chegou mesmo a olhar
para o chão, refletindo. Saiu, foi ter com a sobrinha, levando a reconciliação
e a cláusula. Venancinha aceitou tudo.
Dois dias depois foram para a Tijuca. Venancinha ia
menos alegre do que prometera; provavelmente era o exílio, ou pode ser também
que algumas saudades. Em todo caso, o nome de Vasco subiu a Tijuca, se não em
ambas as cabeças, ao menos na da tia, onde era uma espécie de eco, um som
remoto e brando, alguma coisa que parecia vir do tempo da Stoltz e do
ministério Paraná. Cantora e ministério, coisas frágeis, não o eram menos que a
ventura de ser moça, e onde iam essas três eternidades? Jaziam nas ruínas de
trinta anos. Era tudo o que D. Paula tinha em si e diante de si.
Já se entende que o outro Vasco, o antigo, também foi
moço e amou. Amaram-se, fartaram-se um do outro, à sombra do casamento, durante
alguns anos, e, como o vento que passa não guarda a palestra dos homens, não há
meio de escrever aqui o que então se disse da aventura. A aventura acabou; foi
uma sucessão de horas doces e amargas, de delícias, de lágrimas, de cóleras, de
arroubos, drogas várias com que encheram a esta senhora a taça das paixões. D.
Paula esgotou-a inteira e emborcou-a depois para não mais beber. A saciedade
trouxe-lhe a abstinência, e com o tempo foi esta última fase que fez a opinião.
Morreu-lhe o marido e foram vindo os anos. D. Paula era agora uma pessoa
austera e pia, cheia de prestígio e consideração.
A sobrinha é que lhe levou o pensamento ao passado.
Foi a presença de uma situação análoga, de mistura com o nome e o sangue do
mesmo homem, que lhe acordou algumas velhas lembranças. Não esqueçam que elas
estavam na Tijuca, que iam viver juntas algumas semanas, e que uma obedecia à
outra; era tentar e desafiar a memória
- Mas nós deveras não voltamos à cidade tão cedo?
perguntou Venancinha rindo, no outro dia de manhã.
- Já estás aborrecida?
- Não, não, isso nunca, mas pergunto...
D. Paula, rindo também, fez com o dedo um gesto
negativo; depois, perguntou-lhe se tinha saudades cá de baixo. Venancinha
respondeu que nenhumas; e para dar mais força à resposta, acompanhou-a de um
descair dos cantos da boca, a modo de indiferença e desdém. Era pôr demais na
carta, D. Paula tinha o bom costume de não ler às carreiras, como quem vai
salvar o pai da forca, mas devagar, enfiando os olhos entre as sílabas e entre
as letras, para ver tudo, e achou que o gesto da sobrinha era excessivo.
"Eles amam-se!" pensou ela.
A descoberta avivou o espírito do passado. D. Paula
forcejou por sacudir fora essas memórias importunas; elas, porém, voltavam, ou
de manso ou de assalto, como raparigas que eram, cantando, rindo, fazendo o
diabo. D. Paula tornou aos seus bailes de outro tempo, às suas eternas valsas
que faziam pasmar a toda a gente, às mazurcas, que ela metia à cara das
sobrinha como sendo a mais graciosa coisa do mundo, e aos teatros, e às cartas,
e vagamente, aos beijos; mas tudo isso - e esta é a situação - tudo isso era
como as frias crônicas, esqueleto da história, sem a alma da história.
Passava-se tudo na cabeça. D. Paula tentava emparelhar o coração com o cérebro,
a ver se sentia alguma coisa além da pura repetição mental, mas, por mais que
evocasse as comoções extintas, não lhe voltava nenhuma. Coisas truncadas!
Se ela conseguisse espiar para dentro do coração da
sobrinha, pode ser que achasse ali a sua imagem, e então... Desde que esta
idéia penetrou no espírito de D. Paula, complicou-lhe um pouco a obra de
reparação e cura. Era sincera, tratava da alma da outra, queria vê-la
restituída ao marido. Na constância do pecado é que se pode desejar que outros
pequem também, para descer de companhia ao purgatório; mas aqui o pecado já não
existia. D. Paula mostrava à sobrinha a superioridade do marido, as suas
virtudes e assim também as paixões, que podiam dar um mau desfecho ao
casamento, pior que trágico, o repúdio.
Conrado, na primeira visita que lhes fez, nove dias
depois, confirmou a advertência da tia; entrou frio e saiu frio. Venancinha
ficou aterrada. Esperava que os nove dias de separação tivessem abrandado o
marido, e, em verdade, assim era; mas ele mascarou-se à entrada e conteve-se
para não capitular. E isto foi mais salutar que tudo o mais. O terror de perder
o marido foi o principal elemento de restauração. O próprio desterro não pôde
tanto.
Vai senão quando, dois dias depois daquela visita,
estando ambas ao portão da chácara, prestes a sair para o passeio do costume,
viram vir um cavaleiro. Venancinha fixou a vista, deu um pequeno grito, e
correu a esconder-se atrás do muro. D. Paula compreendeu e ficou. Quis ver o
cavaleiro de mais perto; viu-o dali a dois ou três minutos, um galhardo rapaz,
elegante, com as suas finas botas lustrosas, muito bem-posto no selim; tinha a
mesma cara do outro Vasco, era o filho; o mesmo jeito da cabeça, um pouco à
direita, os mesmos ombros largos, os mesmos olhos redondos e profundos.
Nessa mesma noite, Venancinha contou-lhe tudo, depois
da primeira palavra que ela lhe arrancou. Tinham-se visto nas corridas, uma
vez, logo que ele chegou da Europa. Quinze dias depois, foi-lhe apresentado em
um baile, e pareceu-lhe tão bem, com um ar tão parisiense, que ela falou dele,
na manhã seguinte, ao marido. Conrado franziu o sobrolho, e foi este gesto que
lhe deu uma idéia que até então não tinha. Começou a vê-lo com prazer; daí a
pouco com certa ansiedade. Ele falava-lhe respeitosamente, dizia-lhe coisas
amigas, que ela era a mais bonita moça do Rio, e a mais elegante, que já em
Paris ouvira elogiá-la muito, por algumas senhoras da família Alvarenga. Tinha
graça em criticar os outros, e sabia dizer também umas palavras sentidas, como
ninguém. Não falava de amor, mas perseguia-a com os olhos, e ela, por mais que
afastasse os seus, não podia afastá-los de todo. Começou a pensar nele,
amiudadamente, com interesse, e quando se encontravam, batia-lhe muito o
coração, pode ser que ele lhe visse então, no rosto, a impressão que fazia.
D. Paula, inclinada para ela, ouvia essa narração, que
aí fica apenas resumida e coordenada. Tinha toda a vida nos olhos; a boca meio
aberta, parecia beber as palavras da sobrinha, ansiosamente, como um cordial. E
pedia-lhe mais, que lhe contasse tudo, tudo. Venancinha criou confiança. O ar
da tia era tão jovem, a exortação tão meiga e cheia de um perdão antecipado,
que ela achou ali uma confidente e amiga, não obstante algumas frases severas
que lhe ouviu, mescladas às outras, por um motivo de inconsciente hipocrisia.
Não digo cálculo; D. Paula enganava-se a si mesma. Podemos compará-la a um
general inválido, que forceja por achar um pouco do antigo ardor na audiência
de outras campanhas.
- Já vês que teu marido tinha razão, dizia ela; foste
imprudente, muito imprudente...
Venancinha achou que sim, mas jurou que estava tudo
acabado.
- Receio que não. Chegaste a amá-lo deveras?
- Titia...
- Tu ainda gostas dele!
- Juro que não. Não gosto; mas confesso... sim... confesso
que gostei... Perdoe-me tudo; não diga nada a Conrado; estou arrependida...
Repito que a princípio um pouco fascinada... Mas que quer a senhora?
- Ele declarou-te alguma coisa?
- Declarou; foi no teatro, uma noite, no Teatro
Lírico, à saída. Tinha costume de ir buscar-me ao camarote e conduzir-me até o
carro, e foi à saída... duas palavras...
D. Paula não perguntou, por pudor, as próprias
palavras do namorado, mas imaginou as circunstâncias, o corredor, os pares que
saíam, as luzes, a multidão, o rumor das vozes, e teve o poder de representar,
com o quadro, um pouco das sensações dela; e pediu-lhas com interesse,
astutamente.
- Não sei o que senti, acudiu a moça cuja comoção
crescente ia desatando a língua; não me lembro dos primeiros cinco minutos.
Creio que fiquei séria; em todo o caso, não lhe disse nada. Pareceu-me que toda
gente olhava para nós, que teriam ouvido, e quando alguém me cumprimentava
sorrindo, dava-me idéia de estar caçoando. Desci as escadas não sei como,
entrei no carro sem saber o que fazia; ao apertar-lhe a mão, afrouxei bem os
dedos. Juro-lhe que não queria ter ouvido nada. Conrado disse-me que tinha
sono, e encostou-se ao fundo do carro; foi melhor assim, porque eu não sei que
diria, se tivéssemos de ir conversando. Encostei-me também, mas por pouco
tempo; não podia estar na mesma posição. Olhava para fora através dos vidros, e
via só o clarão dos lampiões, de quando em quando, e afinal nem isso mesmo; via
os corredores do teatro, as escadas, as pessoas todas, e ele ao pé de mim,
cochichando as palavras, duas palavras só, e não posso dizer o que pensei em
todo esse tempo; tinha as idéias baralhadas, confusas, uma revolução em mim...
- Mas, em casa?
- Em casa, despindo-me, é que pude refletir um pouco,
mas muito pouco. Dormi tarde, e mal. De manhã, tinha a cabeça aturdida. Não
posso dizer que estava alegre nem triste, lembro-me que pensava muito nele, e
para arredá-lo prometi a mim mesma revelar tudo ao Conrado; mas o pensamento
voltava outra vez. De quando em quando, parecia-me escutar a voz dele, e
estremecia. Cheguei a lembrar-me que, à despedida, lhe dera os dedos frouxos, e
sentia, não sei como diga, uma espécie de arrependimento, um medo de o ter
ofendido... e depois vinha o desejo de o ver outra vez... Perdoe-me, titia; a
senhora é que quer que lhe conte tudo.
A resposta de D. Paula foi apertar-lhe muito a mão e
fazer um gesto de cabeça. Afinal achava alguma coisa de outro tempo, ao contato
daquelas sensações ingenuamente narradas. Tinha os olhos ora meio cerrados, na
sonolência da recordação, - ora aguçados de curiosidade e calor, e ouvia tudo,
dia por dia, encontro por encontro, a própria cena do teatro, que a sobrinha a
princípio lhe ocultara. E vinha tudo o mais, horas de ânsia, de saudade, de
medo, de esperança, desalentos, dissimulações, ímpetos, toda a agitação de uma
criatura em tais circunstâncias, nada dispensava a curiosidade insaciável da
tia. Não era um livro, não era sequer um capítulo de adultério, mas um prólogo,
- interessante e violento.
Venancinha acabou. A tia não lhe disse nada, deixou-se
estar metida em si mesma; depois acordou, pegou-lhe na mão e puxou-a. Não lhe
falou logo; fitou primeiro, e de perto, toda essa mocidade, inquieta e
palpitante, a boca fresca, os olhos ainda infinitos, e só voltou a si quando a
sobrinha lhe pediu outra vez perdão. D. Paula disse-lhe tudo o que a ternura e
a austeridade da mãe lhe poderia dizer, falou-lhe de castidade, de amor ao
marido, de respeito público; foi tão eloqüente que Venancinha não pôde
conter-se, e chorou.
Veio o chá, mas não há chá possível depois de certas
confidências. Venancinha recolheu-se logo, e, como a luz era agora maior, saiu
da sala com os olhos baixos, para que o criado lhe não visse a comoção. D.
Paula ficou diante da mesa e do criado. Gastou vinte minutos, ou pouco menos,
em beber uma xícara de chá e roer um biscoito, e apenas ficou só, foi
encostar-se à janela, que dava para a chácara.
Ventava um pouco, as folhas moviam-se sussurrando, e,
conquanto não fossem as mesmas do outro tempo, ainda assim perguntavam-lhe:
"Paula, você lembra-se do outro tempo?" Que esta é a particularidade
das folhas, as gerações que passam contam às que chegam as coisas que viram, e
é assim que todas sabem tudo e perguntam por tudo. Você lembra-se do outro
tempo?
Lembrar, lembrava, mas aquela sensação de há pouco,
reflexo apenas, tinha agora cessado. Em vão repetia as palavras da sobrinha,
farejando o ar agreste da noite: era só na cabeça que achava algum vestígio,
reminiscências, coisas truncadas. O coração empacara de novo, o sangue ia outra
vez com a andadura do costume. Faltava-lhe o contato moral da outra. E
continuava, apesar de tudo, diante da noite, que era igual às outras noites de
então, e nada tinha que se parecesse com as do tempo da Stoltz e do Marquês de
Paraná; mas continuava, e lá dentro as pretas espalhavam o sono contando
anedotas, e diziam, uma ou outra vez, impacientes:
- Sinhá velha hoje deita tarde como diabo!
Machado de Assis
Uma senhora de engenho, na Bahia, pelos
anos de mil setecentos e tantos, tendo algumas pessoas íntimas à mesa, anunciou
a um dos convivas, grande lambareiro, um certo doce particular. Ele quis logo
saber o que era; a dona da casa chamou-lhe curioso. Não foi preciso mais; daí a
pouco estavam todos discutindo a curiosidade, se era masculina ou feminina, e
se a responsabilidade da perda do paraíso devia caber a Eva ou a Adão. As
senhoras diziam que a Adão, os homens que a Eva, menos o juiz-de-fora, que não
dizia nada, e Frei Bento, carmelita, que interrogado pela dona da casa, D.
Leonor:
- Eu, senhora minha, toco viola,
respondeu sorrindo; e não mentia, porque era insigne na viola e na harpa, não
menos que na teologia.
Consultado, o juiz-de-fora respondeu que
não havia matéria para opinião; porque as coisas no paraíso terrestre
passaram-se de modo diferente do que está contado no primeiro livro do
Pentateuco, que é apócrifo. Espanto geral, riso do carmelita que conhecia o
juiz-de-fora como um dos mais piedosos sujeitos da cidade, e sabia que era
também jovial e inventivo, e até amigo da pulha, uma vez que fosse curial e
delicada; nas coisas graves, era gravíssimo.
- Frei Bento, disse-lhe D. Leonor, faça
calar o Sr. Veloso.
- Não o faço calar, acudiu o frade,
porque sei que de sua boca há de sair tudo com boa significação.
- Mas a Escritura... ia dizendo o
mestre-de-campo João Barbosa.
- Deixemos em paz a Escritura,
interrompeu o carmelita. Naturalmente, o Sr. Veloso conhece outros livros...
- Conheço o autêntico, insistiu o
juiz-de-fora, recebendo o prato de doce que D. Leonor lhe oferecia, e estou
pronto a dizer o que sei, se não mandam o contrário.
- Vá lá, diga.
- Aqui está como as coisas se passaram.
Em primeiro lugar, não foi Deus que criou o mundo, foi o Diabo...
- Cruz! exclamaram as senhoras.
- Não diga esse nome, pediu D. Leonor.
- Sim, parece que... ia intervindo frei
Bento.
- Seja o Tinhoso. Foi o Tinhoso que criou
o mundo; mas Deus, que lhe leu no pensamento, deixou-lhe as mãos livres,
cuidando somente de corrigir ou atenuar a obra, a fim de que ao próprio mal não
ficasse a desesperança da salvação ou do benefício. E a ação divina mostrou-se
logo porque, tendo o Tinhoso criado as trevas, Deus criou a luz, e assim se fez
o primeiro dia. No segundo dia, em que foram criadas as águas, nasceram as tempestades
e os furacões; mas as brisas da tarde baixaram do pensamento divino. No
terceiro dia foi feita a terra, e brotaram dela os vegetais, mas só os vegetais
sem fruto nem flor, os espinhosos, as ervas que matam como a cicuta; Deus,
porém, criou as árvores frutíferas e os vegetais que nutrem ou encantam. E
tendo o Tinhoso cavado abismos e cavernas na terra, Deus fez o sol, a lua e as
estrelas; tal foi a obra do quarto dia. No quinto foram criados os animais da
terra, da água e do ar. Chegamos ao sexto dia, e aqui peço que redobrem de
atenção.
Não era preciso pedi-lo; toda a mesa
olhava para ele, curiosa.
Veloso continuou dizendo que no sexto dia
foi criado o homem, e logo depois a mulher; ambos belos, mas sem alma, que o
Tinhoso não podia dar, e só com ruins instintos. Deus infundiu-lhes a alma, com
um sopro, e com outro os sentimentos nobres, puros e grandes. Nem parou nisso a
misericórdia divina; fez brotar um jardim de delícias, e para ali os conduziu,
investindo-os na posse de tudo. Um e outro caíram aos pés do Senhor, derramando
lágrimas de gratidão. "Vivereis aqui", disse-lhe o Senhor, "e
comereis de todos os frutos, menos o desta árvore, que é a da ciência do Bem e
do Mal."
Adão e Eva ouviram submissos; e ficando
sós, olharam um para o outro, admirados; não pareciam os mesmos. Eva, antes que
Deus lhe infundisse os bons sentimentos, cogitava de armar um laço a Adão, e
Adão tinha ímpetos de espancá-la. Agora, porém, embebiam-se na contemplação um
do outro, ou na vista da natureza, que era esplêndida. Nunca até então viram
ares tão puros, nem águas tão frescas, nem flores tão lindas e cheirosas, nem o
sol tinha para nenhuma outra parte as mesmas torrentes de claridade. E dando as
mãos percorreram tudo, a rir muito, nos primeiros dias, porque até então não
sabiam rir. Não tinham a sensação do tempo. Não sentiam o peso da ociosidade;
viviam da contemplação. De tarde iam ver morrer o sol e nascer a lua, e contar
as estrelas, e raramente chegavam a mil, dava-lhes o sono e dormiam como dois
anjos.
Naturalmente, o Tinhoso ficou danado
quando soube do caso. Não podia ir ao paraíso, onde tudo lhe era avesso, nem
chegaria a lutar com o Senhor; mas ouvindo um rumor no chão entre folhas secas,
olhou e viu que era a serpente. Chamou-a alvoroçado.
- Vem cá, serpe, fel rasteiro, peçonha
das peçonhas, queres tu ser a embaixatriz de teu pai, para reaver as obras de
teu pai?
A serpente fez com a cauda um gesto vago,
que parecia afirmativo; mas o Tinhoso deu-lhe a fala, e ela respondeu que sim,
que iria onde ele a mandasse, - às estrelas, se lhe desse as asas da águia - ao
mar, se lhe confiasse o segredo de respirar na água - ao fundo da terra, se lhe
ensinasse o talento da formiga. E falava a maligna, falava à toa, sem parar,
contente e pródiga da língua; mas o diabo interrompeu-a:
- Nada disso, nem ao ar, nem ao mar, nem
à terra, mas tão-somente ao jardim de delícias, onde estão vivendo Adão e Eva.
- Adão e Eva?
- Sim, Adão e Eva.
- Duas belas criaturas que vimos andar há
tempos, altas e direitas como palmeiras?
- Justamente.
- Oh! detesto-os. Adão e Eva? Não, não,
manda-me a outro lugar. Detesto-os! Só a vista deles faz-me padecer muito. Não
hás de querer que lhes faça mal...
- É justamente para isso.
- Deveras? Então vou; farei tudo o que
quiseres, meu senhor e pai. Anda, dize depressa o que queres que faça. Que
morda o calcanhar de Eva? Morderei...
- Não, interrompeu o Tinhoso. Quero
justamente o contrário. Há no jardim uma árvore, que é a da ciência do Bem e do
Mal; eles não devem tocar nela, nem comer-lhe os frutos. Vai, entra, enrosca-te
na árvore, e quando um deles ali passar, chama-o de mansinho, tira uma fruta e
oferece-lhe, dizendo que é a mais saborosa fruta do mundo; se te responder que
não, tu insistirás, dizendo que é bastante comê-la para conhecer o próprio
segredo da vida. Vai, vai...
- Vou; mas não falarei a Adão, falarei a
Eva. Vou, vou. Que é o próprio segredo da vida, não?
- Sim, o próprio segredo da vida. Vai,
serpe das minhas entranhas, flor do mal, e se te saíres bem, juro que terás a
melhor parte na criação, que é a parte humana, porque terás muito calcanhar de
Eva que morder, muito sangue de Adão em que deitar o vírus do mal... Vai, vai,
não te esqueças...
Esquecer? Já levava tudo de cor. Foi,
penetrou no paraíso, rastejou até a árvore do Bem e do Mal, enroscou-se e
esperou. Eva apareceu daí a pouco, caminhando sozinha, esbelta, com a segurança
de uma rainha que sabe que ninguém lhe arrancará a coroa. A serpente, mordida
de inveja, ia chamar a peçonha à língua, mas advertiu que estava ali às ordens
do Tinhoso, e, com a voz de mel, chamou-a. Eva estremeceu.
- Quem me chama?
- Sou eu, estou comendo desta fruta...
- Desgraçada, é a árvore do Bem e do Mal!
- Justamente. Conheço agora tudo, a
origem das coisas e o enigma da vida. Anda, come e terás um grande poder na
terra.
- Não, pérfida!
- Néscia! Para que recusas o resplendor
dos tempos? Escuta-me, faze o que te digo, e serás legião, fundarás cidades, e
chamar-te-ás Cleópatra, Dido, Semíramis; darás heróis do teu ventre, e serás
Cornélia; ouvirás a voz do céu, e serás Débora; cantarás e serás Safo. E um
dia, se Deus quiser descer à terra, escolherá as tuas entranhas, e chamar-te-ás
Maria de Nazaré. Que mais queres tu? Realeza, poesia, divindade, tudo trocas
por uma estulta obediência. Nem será só isso. Toda a natureza te fará bela e
mais bela. Cores das folhas verdes, cores do céu azul, vivas ou pálidas, cores
da noite, hão de refletir nos teus olhos. A mesma noite, de porfia com o sol,
virá brincar nos teus cabelos. Os filhos do teu seio tecerão para ti as
melhores vestiduras, comporão os mais finos aromas, e as aves te darão as suas
plumas, e a terra as suas flores, tudo, tudo, tudo...
Eva escutava impassível; Adão chegou,
ouviu-os e confirmou a resposta de Eva; nada valia a perda do paraíso, nem a
ciência, nem o poder, nenhuma outra ilusão da terra. Dizendo isto, deram as
mãos um ao outro, e deixaram a serpente, que saiu pressurosa para dar conta ao
Tinhoso.
Deus, que ouvira tudo, disse a Gabriel:
- Vai, arcanjo meu, desce ao paraíso
terrestre, onde vivem Adão e Eva, e traze-os para a eterna bem-aventurança, que
mereceram pela repulsa às instigações do Tinhoso.
E logo o arcanjo, pondo na cabeça o elmo
de diamante, que rutila como um milhar de sóis, rasgou instantaneamente os
ares, chegou a Adão e Eva, e disse-lhes:
- Salve, Adão e Eva. Vinde comigo para o
paraíso, que merecestes pela repulsa às instigações do Tinhoso.
Um e outro, atônitos e confusos, curvaram
o colo em sinal de obediência; então Gabriel deu as mãos a ambos, e os três
subiram até à estância eterna, onde miríades de anjos os esperavam, cantando:
- Entrai, entrai. A terra que deixastes,
fica entregue às obras do Tinhoso, aos animais ferozes e maléficos, às plantas
daninhas e peçonhentas, ao ar impuro, à vida dos pântanos. Reinará nela a
serpente que rasteja, babuja e morde, nenhuma criatura igual a vós porá entre
tanta abominação a nota da esperança e da piedade.
E foi assim que Adão e Eva entraram no
céu, ao som de todas as cítaras, que uniam as suas notas em um hino aos dois
egressos da criação...
... Tendo acabado de falar, o
juiz-de-fora estendeu o prato a D. Leonor para que lhe desse mais doce,
enquanto os outros convivas olhavam uns para os outros, embasbacados; em vez de
explicação, ouviam uma narração enigmática, ou, pelo menos, sem sentido
aparente. D. Leonor foi a primeira que falou:
- Bem dizia eu que o Sr. Veloso estava
logrando a gente. Não foi isso que lhe pedimos, nem nada disso aconteceu, não
é, frei Bento?
- Lá o saberá o Sr. juiz, respondeu o
carmelita sorrindo.
E o juiz-de-fora, levando à boca uma
colher de doce:
- Pensando bem, creio que nada disso
aconteceu; mas também, D. Leonor, se tivesse acontecido, não estaríamos aqui
saboreando este doce, que está, na verdade, uma coisa primorosa. É ainda aquela
sua antiga doceira de Itapagipe?
Fonte: Várias Histórias - Machado de Assis - W. M.
Jackson Inc Editores - 1946.
Atualização ortográfica - biblio.