Quando eu era capelão de S. Francisco de Paula
(contava um padre velho), aconteceu-me uma aventura extraordinária.
Morava ao pé da igreja, e recolhi-me tarde, uma noite.
Nunca me recolhi tarde que não fosse ver primeiro se as portas do templo
estavam bem fechadas. Achei-as bem fechadas, mas lobriguei luz por baixo delas.
Corri assustado à procura da ronda; não a achei, tornei atrás e fiquei no adro,
sem saber que fizesse. A luz, sem ser muito intensa, era-o demais para ladrões;
além disso notei que era fixa e igual, não andava de um lado para outro, como
seria a das velas ou lanternas de pessoas que estivessem roubando. O mistério
arrastou-me; fui a casa buscar as chaves da sacristia (o sacristão tinha ido
passar a noite em Niterói), benzi-me primeiro, abri a porta e entrei.
O corredor estava escuro. Levava comigo uma lanterna e
caminhava devagarinho, calando o mais que podia o rumor dos sapatos. A primeira
e a segunda porta que comunicam com a igreja estavam fechadas; mas via-se a
mesma luz e, porventura, mais intensa que do lado da rua. Fui andando, até que
dei com a terceira porta aberta. Pus a um canto a lanterna, com o meu lenço por
cima, para que me não vissem de dentro, e aproximei-me a espiar o que era.
Detive-me logo. Com efeito, só então adverti que viera
inteiramente desarmado e que ia correr grande risco aparecendo na igreja sem
mais defesa que as duas mãos. Correram ainda alguns minutos. Na igreja a luz
era a mesma, igual e geral, e de uma cor de leite que não tinha a luz das
velas. Ouvi também vozes, que ainda mais me atrapalharam, não cochichadas nem
confusas, mas regulares, claras e tranqüilas, à maneira de conversação. Não
pude entender logo o que diziam. No meio disto, assaltou-me uma idéia que me
fez recuar. Como naquele tempo os cadáveres eram sepultados nas igrejas,
imaginei que a conversação podia ser de defuntos. Recuei espavorido, e só
passado algum tempo, é que pude reagir e chegar outra vez à porta, dizendo a
mim mesmo que semelhante idéia era um disparate. A realidade ia dar-me coisa
mais assombrosa que um diálogo de mortos. Encomendei-me a Deus, benzi-me outra
vez e fui andando, sorrateiramente, encostadinho à parede, até entrar. Vi então
uma coisa extraordinária.
Dois dos três santos do outro lado, S. José e S.
Miguel (à direita de quem entra na igreja pela porta da frente), tinham descido
dos nichos e estavam sentados nos seus altares. As dimensões não eram as das
próprias imagens, mas de homens. Falavam para o lado de cá, onde estão os
altares de S. João Batista e S. Francisco de Sales. Não posso descrever o que
senti. Durante algum tempo, que não chego a calcular, fiquei sem ir para diante
nem para trás, arrepiado e trêmulo. Com certeza, andei beirando o abismo da
loucura, e não caí nele por misericórdia divina. Que perdi a consciência de mim
mesmo e de toda outra realidade que não fosse aquela, tão nova e tão única,
posso afirmá-lo; só assim se explica a temeridade com que, dali a algum tempo,
entrei mais pela igreja, a fim de olhar também para o lado oposto. Vi aí a
mesma coisa: S. Francisco de Sales e S. João, descidos dos nichos, sentados nos
altares e falando com os outros santos.
Tinha sido tal a minha estupefação que eles
continuaram a falar, creio eu, sem que eu sequer ouvisse o rumor das vozes.
Pouco a pouco, adquiri a percepção delas e pude compreender que não tinham
interrompido a conversação; distingui-as, ouvi claramente as palavras, mas não
pude colher desde logo o sentido. Um dos santos, falando para o lado do
altar-mor, fez-me voltar a cabeça, e vi então que S. Francisco de Paula, o
orago da igreja, fizera a mesma coisa que os outros e falava para eles, como
eles falavam entre si. As vozes não subiam do tom médio e, contudo, ouviam-se
bem, como se as ondas sonoras tivessem recebido um poder maior de transmissão.
Mas, se tudo isso era espantoso, não menos o era a luz, que não vinha de parte
nenhuma, porque o lustres e castiçais estavam todos apagados; era como um luar,
que ali penetrasse, sem que os olhos pudessem ver a lua; comparação tanto mais
exata quanto que, se fosse realmente luar, teria deixado alguns lugares
escuros, como ali acontecia, e foi num desses recantos que me refugiei.
Já então procedia automaticamente. A vida que vivi
durante esse tempo todo, não se pareceu com a outra vida anterior e posterior.
Basta considerar que, diante de tão estranho espetáculo, fiquei absolutamente
sem medo; perdi a reflexão, apenas sabia ouvir e contemplar.
Compreendi, no fim de alguns instantes, que eles
inventariavam e comentavam as orações e implorações daquele dia. Cada um notava
alguma coisa. Todos eles, terríveis psicólogos, tinham penetrado a alma e a
vida dos fiéis, e desfibravam os sentimentos de cada um, como os anatomistas
escalpelam um cadáver. S. João Batista e S. Francisco de Paula, duros ascetas,
mostravam-se às vezes enfadados e absolutos. Não era assim S. Francisco de
Sales; esse ouvia ou contava as coisas com a mesma indulgência que presidira ao
seu famoso livro da Introdução à Vida Devota.
Era assim, segundo o temperamento de cada um, que eles
iam narrando e comentando. Tinham já contado casos de fé sincera e castiça,
outros de indiferença, dissimulação e versatilidade; os dois ascetas estavam a
mais e mais anojados, mas S. Francisco de Sales recordava-lhes o texto da
Escritura: muitos são os chamados e poucos os escolhidos, significando assim
que nem todos os que ali iam à igreja levavam o coração puro. S. João abanava a
cabeça.
- Francisco de Sales, digo-te que vou criando um
sentimento singular em santo: começo a descrer dos homens.
- Exageras tudo, João Batista, atalhou o santo bispo,
não exageremos nada. Olha - ainda hoje aconteceu aqui uma coisa que me fez
sorrir, e pode ser, entretanto, que te indignasse. Os homens não são piores do
que eram em outros séculos; descontemos o que há neles ruim, e ficará muita
coisa boa. Crê isto e hás de sorrir ouvindo o meu caso.
- Eu?
- Tu, João Batista, e tu também, Francisco de Paula, e
todos vós haveis de sorrir comigo: e, pela minha parte, posso fazê-lo, pois já
intercedi e alcancei do Senhor aquilo mesmo que me veio pedir esta pessoa.
- Que pessoa?
- Uma pessoa mais interessante que o teu escrivão,
José, e que o teu lojista, Miguel...
- Pode ser, atalhou S. José, mas não há de ser mais
interessante que a adúltera que aqui veio hoje prostrar-se a meus pés. Vinha
pedir-me que lhe limpasse o coração da lepra da luxúria. Brigara ontem mesmo
com o namorado, que a injuriou torpemente, e passou a noite em lágrimas. De
manhã, determinou abandoná-lo e veio buscar aqui a força precisa para sair das
garras do demônio. Começou rezando bem, cordialmente; mas pouco a pouco vi que
o pensamento a ia deixando para remontar aos primeiros deleites. As palavras
paralelamente, iam ficando sem vida. Já a oração era morna, depois fria, depois
inconsciente; os lábios, afeitos à reza, iam rezando; mas a alma, que eu
espiava cá de cima, essa já não estava aqui, estava com o outro. Afinal
persignou-se, levantou-se e saiu sem pedir nada.
- Melhor é o meu caso.
- Melhor que isto? perguntou S. José curioso.
- Muito melhor, respondeu S. Francisco de Sales, e não
é triste como o dessa pobre alma ferida do mal da terra, que a graça do Senhor
ainda pode salvar. E por que não salvará também a esta outra? Lá vai o que é.
Calaram-se todos, inclinaram-se os bustos, atentos,
esperando. Aqui fiquei com medo; lembrou-me que eles, que vêem tudo o que se
passa no interior da gente, como se fôssemos de vidro, pensamentos recônditos,
intenções torcidas, ódios secretos, bem podiam ter-me lido já algum pecado ou
gérmen de pecado. Mas não tive tempo de refletir muito; S. Francisco de Sales
começou a falar.
- Tem cinqüenta anos o meu homem, disse ele, a mulher
está de cama, doente de uma erisipela na perna esquerda. Há cinco dias vive
aflito porque o mal agrava-se e a ciência não responde pela cura. Vede, porém,
até onde pode ir um preconceito público. Ninguém acredita na dor do Sales (ele
tem o meu nome), ninguém acredita que ele ame outra coisa que não seja
dinheiro, e logo que houve notícia da sua aflição desabou em todo o bairro um
aguaceiro de motes e dichotes; nem faltou quem acreditasse que ele gemia
antecipadamente pelos gastos da sepultura.
- Bem podia ser que sim, ponderou S. João.
- Mas não era. Que ele é usurário e avaro não o nego;
usurário, como a vida, e avaro, como a morte. Ninguém extraiu nunca tão
implacavelmente da algibeira dos outros o ouro, a prata, o papel e o cobre;
ninguém os amuou com mais zelo e prontidão. Moeda que lhe cai na mão
dificilmente torna a sair; e tudo o que lhe sobra das casas mora dentro de um
armário de ferro, fechado a sete chaves. Abre-o às vezes, por horas mortas,
contempla o dinheiro alguns minutos, e fecha-o outra vez depressa; mas nessas
noites não dorme, ou dorme mal. Não tem filhos. A vida que leva é sórdida; come
para não morrer, pouco e ruim. A família compõe-se da mulher e de uma preta
escrava, comprada com outra, há muitos anos, e às escondidas, por serem de
contrabando. Dizem até que nem as pagou, porque o vendedor faleceu logo sem
deixar nada escrito. A outra preta morreu há pouco tempo; e aqui vereis se este
homem tem ou não o gênio da economia, Sales libertou o cadáver...
E o santo bispo calou-se para saborear o espanto dos
outros.
- O cadáver?
- Sim, o cadáver. Fez enterrar a escrava como pessoa
livre e miserável, para não acudir às despesas da sepultura. Pouco embora, era
alguma coisa. E para ele não há pouco; com pingos d'água é que se alagam as
ruas. Nenhum desejo de representação, nenhum gosto nobiliário; tudo isso custa
dinheiro, e ele diz que o dinheiro não lhe cai do céu. Pouca sociedade, nenhuma
recreação de família. Ouve e conta anedotas da vida alheia, que é regalo
gratuito.
- Compreende-se a incredulidade pública, ponderou S.
Miguel.
- Não digo que não, porque o mundo não vai além da
superfície das coisas. O mundo não vê que, além de caseira eminente educada por
ele, e sua confidente de mais de vinte anos, a mulher deste Sales é amada
deveras pelo marido. Não te espantes, Miguel; naquele muro aspérrimo brotou uma
flor descorada e sem cheiro, mas flor. A botânica sentimental tem dessas
anomalias. Sales ama a esposa; está abatido e desvairado com a idéia de a
perder. Hoje de manhã, muito cedo, não tendo dormido mais de duas horas, entrou
a cogitar no desastre próximo. Desesperando da terra, voltou-se para Deus; pensou
em nós, e especialmente em mim, que sou o santo do seu nome. Só um milagre
podia salvá-la; determinou vir aqui. Mora perto, e veio correndo. Quando entrou
trazia o olhar brilhante e esperançado; podia ser a luz da fé, mas era outra
coisa muito particular, que vou dizer. Aqui peço-vos que redobreis de atenção.
Vi os bustos inclinarem-se ainda mais; eu próprio não
pude esquivar-me ao movimento e dei um passo para diante. A narração do santo
foi tão longa e miúda, a análise tão complicada, que não as ponho aqui
integralmente, mas em substância.
- Quando pensou em vir pedir-me que intercedesse pela
vida da esposa, Sales teve uma idéia específica de usurário, a de prometer-me
uma perna de cera. Não foi o crente, que simboliza desta maneira a lembrança do
benefício; foi o usurário que pensou em forçar a graça divina pela expectação
do lucro. E não foi só a usura que falou, mas também a avareza; porque em
verdade, dispondo-se à promessa, mostrava ele querer deveras a vida da mulher -
intuição de avaro; - despender é documentar: só se quer de coração aquilo que
se paga a dinheiro, disse-lho a consciência pela mesma boca escura. Sabeis que
pensamentos tais não se formulam como outros, nascem das entranhas do caráter e
ficam na penumbra da consciência. Mas eu li tudo nele logo que aqui entrou
alvoroçado, com o olhar fúlgido de esperança; li tudo e esperei que acabasse de
benzer-se e rezar.
- Ao menos, tem alguma religião, ponderou S. José.
- Alguma tem, mas vaga, e econômica. Não entrou nunca
em irmandades e ordens terceiras, porque nelas se rouba o que pertence ao
Senhor; é o que ele diz para conciliar a devoção com a algibeira. Mas não se
pode ter tudo; é certo que ele teme a Deus e crê na doutrina.
- Bem, ajoelhou-se e rezou.
- Rezou. Enquanto rezava, via eu a pobre alma, que
padecia deveras, conquanto a esperança começasse a trocar-se em certeza
intuitiva. Deus tinha de salvar a doente, por força, graças à minha
intervenção, e eu ia interceder; é o que ele pensava, enquanto os lábios
repetiam as palavras da oração. Acabando a oração, ficou Sales algum tempo
olhando, com as mãos postas; afinal falou a boca do homem, falou para confessar
a dor, para jurar que nenhuma outra mão, além da do Senhor, podia atalhar o
golpe. A mulher ia morrer... ia morrer... ia morrer... E repetia a palavra, sem
sair dela. A mulher ia morrer. Não passava adiante. Prestes a formular o pedido
e a promessa não achava palavras idôneas, nem aproximativas, nem sequer dúbias,
não achava nada, tão longo era o descostume de dar alguma coisa. Afinal saiu o
pedido; a mulher ia morrer, ele rogava-me que a salvasse, que pedisse por ela
ao Senhor. A promessa, porém, é que não acabava de sair. No momento em que a
boca ia articular a primeira palavra, a garra da avareza mordia-lhe as
entranhas e não deixava sair nada. Que a salvasse... que intercedesse por
ela...
No ar, diante dos olhos, recortava-se-lhe a perna de
cera, e logo a moeda que ela havia de custar. A perna desapareceu, mas ficou a
moeda, redonda, luzidia, amarela, ouro puro, completamente ouro, melhor que o
dos castiçais do meu altar, apenas dourados. Para onde quer que virasse os
olhos, via a moeda, girando, girando, girando. E os olhos a apalpavam, de
longe, e transmitiam-lhe a sensação fria do metal e até a do relevo do cunho.
Era ela mesma, velha amiga de longos anos, companheira do dia e da noite, era
ela que ali estava no ar, girando, às tontas; era ela que descia do teto, ou
subia do chão, ou rolava no altar, indo da Epístola ao Evangelho, ou tilintava
nos pingentes do lustre.
Agora a súplica dos olhos e a melancolia deles eram
mais intensas e puramente voluntárias. Vi-os alongarem-se para mim, cheios de
contrição, de humilhação, de desamparo; e a boca ia dizendo algumas coisas
soltas, - Deus, - os anjos do Senhor, - as bentas chagas, - palavras lacrimosas
e trêmulas, como para pintar por elas a sinceridade da fé e a imensidade da
dor. Só a promessa da perna é que não saía. Às vezes, a alma, como pessoa que
recolhe as forças, a fim de saltar um valo, fitava longamente a morte da mulher
e rebolcava-se no desespero que ela lhe havia de trazer; mas, à beira do valo,
quando ia a dar o salto, recuava. A moeda emergia dele e a promessa ficava no
coração do homem.
O tempo ia passando. A alucinação crescia, porque a
moeda, acelerando e multiplicando os saltos, multiplicava-se a si mesma e
parecia uma infinidade delas; e o conflito era cada vez mais trágico. De
repente, o receio de que a mulher podia estar expirando, gelou o sangue ao
pobre homem e ele quis precipitar-se. Podia estar expirando. Pedia-me que
intercedesse por ela, que a salvasse...
Aqui o demônio da avareza sugeria-lhe uma transação
nova, uma troca de espécie, dizendo-lhe que o valor da oração era superfino e
muito mais excelso que o das obras terrenas. E o Sales, curvo, contrito, com as
mãos postas, o olhar submisso, desamparado, resignado, pedia-me que lhe
salvasse a mulher. Que lhe salvasse a mulher, e prometia-me trezentos, - não
menos, - trezentos padre-nossos e trezentas ave-marias. E repetia enfático:
trezentos, trezentas, trezentos... Foi subindo, chegou a quinhentos, a mil
padre-nossos e mil ave-marias. Não via esta soma escrita por letras do
alfabeto, mas em algarismos, como se ficasse assim mais viva, mais exata, e a
obrigação maior, e maior também a sedução. Mil padre-nossos, mil ave-marias. E
voltaram as palavras lacrimosas e trêmulas, as bentas chagas, os anjos do
Senhor... 1.000 - 1.000 - 1.000. Os quatro algarismos foram crescendo tanto,
que encheram a igreja de alto a baixo, e com eles, crescia o esforço do homem, e
a confiança também; a palavra saía-lhe mais rápida, impetuosa, já falada, mil,
mil, mil, mil ... Vamos lá, podeis rir à vontade, concluiu S. Francisco de
Sales.
E os outros santos riram efetivamente, não daquele
grande riso descomposto dos deuses de Homero, quando viram o coxo Vulcano
servir à mesa, mas de um riso modesto, tranqüilo, beato e católico.
Depois, não pude ouvir mais nada. Caí redondamente no
chão. Quando dei por mim era dia claro... Corri a abrir todas as portas e
janelas da igreja e da sacristia, para deixar entrar o sol, inimigo dos maus
sonhos.
Fonte: Várias Histórias - Machado de Assis - W. M.
Jackson Inc Editores - 1946.
Atualização ortográfica - biblio.