Machado de Assis
FELICIDADE
PELO CASAMENTO
C'est une âme que son ame
demande
.........................
qui s'attache à elle avec
tant de
force et qui souffre avec
tant de
bonheur son étreinte, que
rien ne
puísse plus les séparer...
JULES SIMON
I
Acontecimentos imprevistos
obrigaram-me a deixar a província e estabelecer-me algum tempo na
Corte. Foi isto no ano de 185... Os acontecimentos a que me refiro eram
relativos à minha família, cujo chefe já não existia. Tinha eu ordem de
demorar-me um ano na Corte, depois do que voltaria à província.
Devo
referir uma circunstância de interesse para o caso. Um de meus tios tinha uma
filha de vinte anos, talvez bonita, mas em quem eu não reparara nunca, e a quem
tinha simples afeição de parente. Era do gosto do pai que nos casássemos, e não
menos do gosto dela. Duas ou três vezes que me falaram nisso respondi secamente
que desejava ficar solteiro; não instaram mais; mas a esperança nunca a
perderam, nem o pai nem a filha.
A
explicação da minha recusa e do desamor com que eu via a minha prima estava no
meu gênio solitário e contemplativo. Até aos quinze anos fui tido por idiota;
dos quinze aos vinte chamavam-me poeta; e, se as palavras eram diferentes, o
sentido que a minha família lhes dava era o mesmo. Era pouco de ser estimado um
moço que não comungava nos mesmos passatempos da casa e via correr as horas na
leitura e nas digressões pelo mato.
Minha
mãe era a única a quem tais instintos de isolamento não davam para rir nem para
desamar. Era mãe. Muitas vezes, alta noite, quando os meus olhos se cansavam de
percorrer as páginas de Atalá ou Corina, abria-se a porta do
gabinete e a sua figura meiga e veneranda, como a das santas, vinha distrair-me
da cansada leitura. Cedia às suas instâncias e ia repousar.
Ora, é preciso dizer, para
encaminhar o espírito do leitor nesta história, que dois anos antes do tempo em
que começo, tinha eu tido uma fantasia amorosa. Fantasia amorosa digo eu e não
minto. Não era amor; amor foi o que eu depois senti, verdadeiro, profundo,
imortal.
Para mostrar a graduação dos
meus sentimentos depois desse episódio,. e até para melhor demonstrar a tese
que serve de titulo a estas páginas, devo transcrever para aqui dois
manuscritos velhos. Cada um tem a sua data; o primeiro é uma lamentação, o segundo
é uma resignação. Há um abismo entre ambos, como há um abismo entre aquele
tempo e o tempo de hoje.
Eis o que, logo após a
fantasia amorosa de que falei, veio achar-me a escrever minha adorada mãe.
* * *
"Estou só. Ouço bater o
mar que se quebra na praia a cinqüenta passos de mim. É o único rumor que nesta
hora quebra o silêncio da noite. Fora desse, sinto apenas o leve ruído da pena
que corre no papel. Escrevo sem assunto e em busca de assunto. Que há de ser?
Sobre a mesa tenho duas pilhas de livros. De um lado a Bíblia e Pascal, do
outro Alfredo de Vigny e Lamartine. É obra do acaso e não parece: tal é o
estado do meu espírito. Os três primeiros livros me chamam à contemplação
ascética e às reflexões morais; os três últimos despertam os sentimentos do
coração e levam meu espírito às mais elevadas regiões da fantasia.
"Quero entranhar-me no
mundo da reflexão e do estudo, mas o meu coração, solteiro talvez, talvez
viúvo, pede-me versos ou imaginações. Triste alternativa, que para nenhuma
resolução me guia! Este estado, tão comum nos que realmente se dividem entre
sentir e pensar, é uma dor d'alma, é uma agonia do espírito.
"Donde estou vejo o mar;
a noite é clara e deixa ver as ondas que se vão quebrar à areia da praia. Uma
vez solto onde irás tu, meu pensamento? Nem praias, nem ondas, nem barreiras,
nem nada; tudo vences, de tudo zombas, eis-te aí livre, a correr, mar em fora,
em busca de uma lembrança perdida, de uma esperança desenganada. Lá chegas, lá
entras, de lá voltas ermo, triste, mudo, como o túmulo do amor perdido e tão
cruelmente desflorado!
"Ânsia de amar, ânsia
de ser feliz, que haverá no mundo que mais nos envelheça a alma e nos faça
sentir as misérias da. vida? Nem é outra a miséria: esta, sim; este ermo e
estas aspirações; esta solidão e estas saudades; esta tão própria sede de uma água que não há tirá-la
de nenhuma Noreb, eis a miséria, eis a dor, eis a tristeza, eis o aniquilamento
do espírito e do coração.
"Que é o presente em
tais casos? O vácuo e o nada; no passado o luzir leve e indistinto quase de uma
curta ventura que passou; no futuro a estrela da esperança cintilante e viva, como uma lâmpada
eterna. Donde estamos, um ansiar sem tréguas, uns íntimos impulsos a ir buscar
a felicidade remota e esquiva. Do passado ao futuro, do futuro ao passado, como
este mar que invade estas praias agora, e amanhã irá beijar as areias opostas,
tal é a vacilação do espírito, tal é a vida ilusória do meu coração.
* * *
"Que me direis vós, meus
livros? Queixas e consolações. Dais-me escrito o que eu tenho a falar no
interior. Queixas de um sentir sem eco, consolações de uma esperança sem
desfecho. Que havíeis de dizer mais? Nada é novo; o que é, já foi e há de vir a
ser. Destas dores sentir-se-ão sempre e não deixarão de sentir-se. Círculo
vicioso, problema sem solução!
"Lembrei o Eclesiastes.
Que me dirá esse tesouro de sabedoria?
- "Todas as coisas têm
seu tempo, e todas elas passam debaixo do céu segundo o termo que a cada uma
foi prescrito.
"Há tempo de nascer e de
morrer.
"Há tempo de plantar e tempo
de colher.
"Há tempo de enfermar e
tempo de sarar.
"Há tempo de chorar e
tempo de rir.
"Há tempo de destruir e
tempo de edificar.
"Há tempo de afligir e
tempo de se alegrar.
"Há tempo de espalhar
pedras e tempo de as ajuntar.
"Há tempo de guerra e tempo
de paz."
"Assim fala o
Eclesiastes. A cada coisa um tempo: eis tudo. qual será o tempo desta coisa?
Qual será o tempo daquela? Tal é a dúvida, tal é a incerteza.
"Destruo agora; quando
edificarei? Aflijo-me; quando me hei de alegrar? Semeio; quando hei de colher?
Virá o tempo para isso... Quando? Não sei! A certeza é uma: a certeza do
presente; a da destruição, a da aflição, a da plantação. O resto - mistério e
abismo.
"Não! Entre tantas
incertezas, entre tantas ilusões, uma certeza há; há um tempo que há de vir,
fatalmente, imperiosamente: o tempo de morrer. Nasci, morrerei. Oh, ciência
humana! Entre a destruição e a edificação, entre a tristeza e a alegria, entre
o semear e o colher, há o tempo que não é de uma nem de outra coisa, o tempo
absoluto, o tempo que marca a todas as horas uma vida e uma morte, um vagido e
uma agonia; o tempo do fim, infalível, fatal.
* * *
"Do semear depende a
colheita. Mas que terra é esta que tanta gasta em restituir o que se lhe
confiou? Semeei. Dividi minha alma, esmigalhei a minha vida, e às mãos-cheias
lancei os melhores fragmentos a esmo, na terra úbera e no chão pedregoso. Foi
preciso cantar, cantei: era dócil a imaginação e eu deixei-a correr à solta;
foi preciso chorar, chorei; as lágrimas podiam comprar a ventura; foi preciso
confiar, confiei; a confiança prepara o coração, e legitima os desejos. Mas
ela, a planta desejada, por que se deteve no seio da terra?
* * *
"Pareceu-me um dia vir
surgindo verde, viçosa, como as esperanças de que eu então enchia a minha alma.
Foi ilusão? Sonhava apenas? Foi realidade? Ela a sair e eu a fechar os olhos
para a não ver logo, gozá-la toda, não vexá-la, não emurchecê-la com o meu
hálito ou amofiná-la com o meu olhar sequioso. Quando os abri, não a vi mais.
Quebrou-a o vento? Foi simples ilusão de meu desejo? Não sei; sei que
desaparecera.
"Há tempo de guerra e de
paz, diz o Eclesiastes.
"E no meio da guerra é
que melhor se apreciam os benefícios da paz.
"Em peleja ando,
incessante e ardente. Tréguas tenho tido; a paz não passou ainda de um sonho.
"Os inimigos são aos
centos. Luto pela dignidade, pela tranqüilidade, pela felicidade. Luto por essa
paz benéfica, cujo tempo há de vir no tempo em que vier. O sangue esvai-se, a
confiança esmorece, o valor fraqueia; mas a luta é necessária até o tempo da
paz. Quando? Nada sei..."
As páginas que deixo
transcritas mostram bem o estado do meu espírito. Misturava-se à dor do afeto
perdido, uma certa ânsia de felicidade e de paz que aceitaria logo, ainda mesmo
pelas mãos de outrem que não as da mulher sonhada.
O tempo trouxe a sua ação
benéfica ao meu coração. Pouco depois, em uma noite de conforto, lançava eu ao
papel as seguintes linhas:
* * *
"Volta-se de um amor,
escreve um humorista, como de um fogo de artifício: triste e aborrecido. Tal é
em resumo a minha situação. E feliz o homem que, após um sonho de longos dias,
não traz no coração a mínima gota de fel. Pode olhar sobranceiro para as
contingências da vida e não apreender-se de vãos terrores ou vergonhosas
pusilanimidades.
"É certo que as
naturezas capazes de resistir ao choque das paixões humanas são inteiramente
raras. O mundo regurgita de almas melindrosas, que, como a sensitiva dos
campos, se contraem e murcham ao menor contato. Sair salvo e rijo dos combates
da vida é caso de rara superioridade. Esta glória, esta felicidade, ou esta
honra, tive-a eu, que, nas mãos da mais vesga fatalidade, nada deixei do que
recebi de puro e verdadeiramente perdurável.
* * *
"A vida é um livro, no
dizer de todos os poetas. Negro para uns, dourado para outros. Não o tenho
negro; mas o parênteses que se me abriu no meio das melhores páginas, esse foi
angustioso e sombrio.
"Nunca entendi o livro
de Jó, como então. Só então calculei que a miséria depois da opulência era um
mal maior do que a miséria desde o berço.
"As lamentações do filho
de Hus, não só as entendi como me serviram de exemplo. Vi-o maldizer a hora do
nascimento e assisti à resignação com que se lhe iluminou a alma e com que ele
aceitou experiências do céu. Como ele amaldiçoei, e como ele me resignei.
Aquelas páginas respiram consolações, aspirei nelas a tranqüilidade presente
.......................................
II
A viagem ao Rio de Janeiro
tinha para mim um encanto; é que, embora perdesse os carinhos maternais e os
passeios ao longo dos rios da minha província, vinha para uma capital
desconhecida, onde, no meio da multidão, podia isolar-me e viver comigo e de
mim. Os negócios de que vinha tratar dependiam de poucas relações, que eu
inteiramente não estreitaria mais do que o necessário.
Fui morar em uma casa da rua
Direita com o meu criado João caboclo do norte, que me conhecia o gênio e sabia
sujeitar-se às minhas preocupações.
A casa não era grande nem
pequena; tinha duas salas, uma alcova, e um gabinete. Não tinha jardim. Ao
manifestar o meu despeito por isso, acudiu João:
- Há jardins e passeios nos
arredores, meu amo. Meu amo pode, sempre que quiser, ir passear pelo interior.
E Petrópolis? Isso é coisa rica!
Consolei-me com a expectativa
dos passeios. Passei os primeiros dias a ver a cidade.
Vi muita gente boquiaberta
diante das vidraças da rua do Ouvidor, manifestando no olhar o mesmo entusiasmo
que eu quando contemplava os meus rios e as minhas palmeiras. Lembrei-me com
saudade das minhas antigas diversões, mas tive o espírito de não condenar
aquela gente. Nem todos podem compreender os encantos da natureza, e a maioria
dos espíritos só se nutrem de quinquilharias francesas. Agradeci a Deus não me
ter feito assim. Não me detenho nas impressões que me causou a capital. Satisfiz
a curiosidade e voltei aos meus hábitos e isolamento.
Dois meses se passaram sem
novidade alguma. Iam bem os negócios que me trouxeram ao Rio, e eu contava
voltar à província dentro em poucos meses.
Durante este primeiro período
fui à Tijuca duas vezes. Preparava-me para ir a Petrópolis quando fui atacado
de uma febre intermitente.
João chamou um médico da
vizinhança, que me veio ver e conseguiu pôr-me são.
O Dr. Magalhães era um belo
velho. Ao vê-lo parecia-me estar diante de Abraão, tal era a sua fisionomia, e
tal a moldura venerável de seus cabelos e barbas brancas.
Sua presença, tanto como os
remédios que me deu, serviu de curativo à minha doença.
Quando vinha visitar-me
levava horas e horas em conversa, interrogando-me sobre as mil particularidades
de minha vida, com um interesse tão sincero, que não me dava lugar a negativa
alguma.
O doutor era um velho
instruído e tinha viajado muito. Era um prazer conversar com ele. Não me
contava cenas da vida de Paris, nem aventuras de Hamburgo ou Baden-Baden.
Falava-me do mar e da terra, mas no que o mar tem de mais solene e no que a
terra tem de mais sagrado. O doutor pisara o solo da Lacedemônia e o solo de
Roma, beijara o pó de Jerusalém, bebera a água do Jordão e rezara ao pé do
Santo Sepulcro. Na terra grega foi acompanhado de Xenofonte na terra romana de
Tito Lívio na terra santa de São Mateus e São João.
Eu ouvia as suas narrativas
com um respeito e um recolhimento de poeta e de cristão. O velho falava com ar
grave, mas afetuoso e ameno; contava as suas viagens sem pretensão, nem
pedantismo. Aquela simplicidade dava-se comigo. Tal foi o motivo por que,
terminada a moléstia, era eu já amigo do Dr. Magalhães.
Entrando em convalescença,
julguei que era tempo de satisfazer as visitas do médico. Escrevi-lhe uma
carta, inclui a quantia que julgava devida, e mandei pelo João à casa do
doutor.
João voltou dizendo que o
doutor, depois de hesitar, não quisera receber a carta, mas que se preparava
para ir à minha casa.
E, com efeito, daí a pouco
entrava-me em casa o Dr. Magalhães.
- Então quer brigar comigo?
perguntou-me ele parando à porta. Fazem-se estas coisas entre amigos?
Minha resposta foi atirar-me
aos braços do velho.
- Então! disse ele; já vai
recuperando as cores da saúde. Está são...
- Qual! respondi eu; ainda me
sinto um pouco fraco...
- De certo, de certo. É que a
doença o prostrou deveras. Mas agora vai indo pouco a pouco. Olha, por que não
toma ares fora da cidade?
- Eu preparava-me para ir a
Petrópolis quando cai doente. Irei agora.
- Ah! ingrato!
- Por quê?
- Mas tem razão. Eu ainda
nada lhe disse de mim. Pois, meu amigo, se eu lhe oferecesse casa em Andaraí...
deixaria de ir a Petrópolis?
- Oh! meu amigo!
- Isto não é responder.
- Sim, sim, aceito o seu
favor...
No dia seguinte, um carro nos
esperava à porta. Deixei a casa entregue ao meu caboclo, a quem dei ordem de ir
à casa do doutor, em Andaraí, três vezes por semana.
Eu e o doutor entramos no
carro e partimos.
A casa do doutor era situada
em uma pequena eminência, onde, vista de longe, parecia uma garça pousada em
uma elevação de relva.
No jardim e no interior tudo
respirava o gosto e a arte, mas uma arte severa e um gosto discreto, que
excluíam todas as superfluidades sem valor para dar lugar a tudo o que entra
nas preferências dos espíritos cultivados.
No jardim algumas plantas
exóticas e belas adornavam os canteiros regulares e cuidados. Dois caramanchões
elegantes e leves cortavam o centro do jardim, um de cada lado, passando entre
ambos uma rua larga flanqueada de pequenas palmeiras.
- É aqui, disse-me ó velho,
que havemos de ler Teócrito e Virgílio.
A casa, mobiliada com
elegância, era pequena; mas tudo muito bem distribuído, tudo confortável, de
modo que as paredes externas tornavam-se os limites do mundo. Vivia-se ali.
O doutor possuía mil lembranças
das suas viagens; cópias de telas atribuídas aos grandes mestres de pintura,
manuscritos, moedas, objetos de arte e de história, tudo ornava o gabinete
particular do doutor, nessa confusão discreta que resume a unidade na
variedade.
Uma biblioteca das mais
escolhidas chamava a atenção dos estudiosos em um dos gabinetes mais retirados
da casa.
- Agora que já viu isto tudo,
deixe-me apresentá-lo a meu irmão.
E chamando um moleque mandou
chamar o irmão. Daí a pouco vi entrar na sala em que nos achávamos um homem
alto, menos velho que o doutor, mas cujas feições indicavam a mesma placidez de
alma e qualidades do coração.
- Mano Bento, disse o doutor,
aqui te apresento o Sr... É um amigo.
Bento recebeu-me com a maior
cordialidade e dirigiu-me palavras da mais tocante benevolência.
Vi então que a palavra amigo
era para os dois um sinal de distinção e que havia entre ambos a certeza de que
quando um deles chamava amigo a um terceiro é que este o era e merecia a
afeição do outro.
No mundo, de ordinário, não é
assim. Hoje, mais ainda que ao tempo de Molière, é verdadeira e cabida a
indignação de Alceste:
"Non, non, il n'est point d'âme un peu bien située
Qui veuille d'une estime
ainsi prostituée ".
III
No fim de um mês de
convalescença resolvi voltar para a cidade. Que mês aquele!
O doutor saía de manhã e
voltava à tarde para casa. Durante o dia ficávamos eu e o irmão do doutor,
matávamos o tempo passeando ou conversando; Bento não era tão instruído como o
doutor; mas tinha a mesma bondade e afabilidade, de modo que eu sempre ganhava
com um ou com outro.
A tarde quando o doutor
chegava punha-se o jantar à mesa; e depois íamos ler ou passear pelos
arredores.
Ainda
me lembro dos passeios que fizemos ao alto da Tijuca. As sete horas da manhã
vinham dizer-nos que os cavalos estavam prontos. O doutor, eu e Bento saíamos
imediatamente. Um criado nos acompanhava levando uma pequena canastra. Chegando
ao termo do passeio, o doutor escolhia um lugar favorável e mandava abrir a
canastra.
- É
uma refeição de preparo, dizia ele.
E,
debaixo de uma árvore, às brisas frescas da montanha, comíamos algumas frutas
secas com vinho velho e pão.
Tendo
resolvido voltar para a cidade, mesmo para adiantar os negócios que me traziam
à Corte, e que se achavam atrasados, dispus-me a dar parte disso aos meus
hóspedes.
Era de manhã, voltava eu de
um passeio à roda do jardim. Entrei pelo fundo. Na sala de visitas estavam o
doutor e Bento. Ouvi-os conversar e pronunciar o meu nome. Não podiam
pronunciá-lo senão em sentido favorável. Picou-me a vaidade. Quis ouvir o meu
elogio na boca daqueles dois amigos, tão recentes e tão completamente amigos.
-
Mas que tem isto com...? perguntou Bento.
-
Tem tudo, respondeu o doutor.
-
Explica-me.
-
Sou, como sabes, amigo desse moço...
-
Também eu...
- Mas esta amizade é tão recente que ele ainda não
tem tempo de nos conhecer. Pelas nossas conversas soube eu que ele possui uma
fortuna muito regular. Obriguei-o a vir para aqui. Se Ângela vier agora para
casa, parecerá que, contando com o coração e a mocidade de ambos, armo a
fortuna do rapaz.
-
Ele não pode
pensar isso.
-
Sei que é uma boa alma, mas é tão mau o mundo, pode fazer-lhe supor tanta
coisa...
-
Enfim, eu insisto, porque a pobre menina escreveu-me dizendo que está com
saudades da casa. A própria tia, sabendo disto, deseja que ela venha passar uns
tempos conosco.
Nisto
entrou na sala um moleque dizendo que o almoço estava na mesa.
Eu
retirei-me ao meu quarto, onde o doutor e Bento me foram buscar.
A
mesa, não me pude ter. Enquanto o doutor me deitava vinho no copo, disse-lhe
sorrindo:
-
Meu amigo,
acho que faz mal em privar-se de uma felicidade que lhe deve ser grande.
-
Que
felicidade?
-
A de ter sua
filha perto de si.
-
Ah!
exclamaram os dois.
- É
sua filha D. Ângela, não?
-
É, murmurou
o doutor; mas como sabe?
-
Fui
indiscreto, e dou graças a Deus de tê-lo sido. Não, não sou capaz de supor-lhe
uma alma tão baixa; conheço a elevação dos seus sentimentos... Demais, eu já
tencionava ir-me agora.
-
Já? perguntou Bento.
-
É verdade.
-
Ora, não!
- Mas os negócios?
-
Ah!
Notei que ficaram tristes.
- Pois ficarei, disse eu;
ficarei ainda alguns dias. Entretanto vamos hoje buscar a filha desterrada.
Acabado o almoço mandou-se
preparar o carro e fomos os três buscar a filha do doutor.
Ângela recebeu com verdadeira
satisfação a notícia de que ia para casa de seu pai. Quem, ouvindo esta
notícia, ficou logo carrancudo e zangado, foi um rapaz que lá encontramos na
sala, a conversar com a tia e a sobrinha. Era uma dessas fisionomias que não
mentem nem enganam ninguém. Respirava frivolidade a duas léguas de distância.
Adivinhava-se, pela extrema afabilidade do começo e completa seriedade do fim
da visita, que aquele coração namorava o dote de Ângela. Falo assim, não por
ódio, como se poderá supor pelo correr desta história, mas por simples indução.
Fisionomias daquelas não pertencem a homens que saibam amar, na verdadeira
extensão desta palavra. Se não era o dote, eram os gozos dos sentidos, ou então
simples vaidade, não faltando uma destas razões, e é essa a explicação
plausível daquilo que eu já chamava namoro.
Os meus dois hóspedes
conheciam o rapaz. Quando Ângela deu parte de pronta, despedimo-nos e o doutor
ofereceu a casa ao namorado, mas com uma fria polidez.
Partimos.
Ângela, a quem fui
apresentado como amigo da casa, era um daqueles espíritos afáveis para quem a
intimidade seguia-se à primeira recepção. Era um tanto gárrula, e eu
compreendia o encanto do pai e do tio, ouvindo-a falar com tanta graça, e
todavia sem indiscrição nem fadiga.
A mim, tratava-me ela como se
fora um velho amigo, o que me obrigou a sair da minha taciturnidade habitual.
Enquanto o carro voltava a
Andaraí e eu ouvia as mil confidências de Ângela sobre os passatempos que
tivera em casa de sua tia, estudava eu conversando ao mesmo tempo as relações
entre este espírito e o rapaz de quem falei. Que curiosidade era a minha? Seria
simples curiosidade de quem estuda caracteres ou já algum interesse do coração?
Não posso dizê-lo com franqueza, mas presumo, talvez orgulho meu, que era a
primeira e não a segunda coisa.
Ora, o que eu concluía era
que, na vivacidade e na meiguice de Ângela, é que se devia procurar a razão do amor
do outro. Os homens medíocres caem facilmente neste engano de confundir com
a paixão amorosa o que muitas vezes não passa de uma simples feição do espírito
da mulher. E este equívoco dá-se sempre com os espíritos medíocres, porque são
os mais presunçosos e os que andam na plena convicção de conhecerem todos os
escaninhos do coração humano. Pouca que seja embora a prática que eu tenho do
mundo, o pouco que tenho visto, e algo que tenho lido, o muito que tenho
refletido, deu-me lugar a poder tirar esta conclusão.
Chegamos finalmente a
Andaraí.
Ângela mostrava uma alegria
infantil tornando a ver o jardim, a casa, a alcova em que dormia, o gabinete em
que lia ou trabalhava.
Dois dias depois da chegada
de Ângela a Andaraí apareceu lá o Sr. Azevedinho, que é o nome do rapaz que eu
vira em casa da irmã do doutor.
Entrou saltitando e
espanejando-se como passarinho que foge à gaiola. O doutor e o irmão receberam
o visitante com afabilidade, mas sem entusiasmo, o que é fácil de entender,
atendendo-se a que a vulgaridade do Sr. Azevedinho era a menos convidativa
deste mundo.
Ângela recebeu-o com alegria
infantil. Eu, que começara o meu estudo, não perdi ocasião de continuá-lo
atentamente para ver se era eu quem me enganava.
Não era.
Azevedinho é que se enganava.
Mas, e é esta a singularidade
do caso; mas por que motivo, apesar da convicção em que eu estava, entrou-me no
espírito certo desgosto, em presença da intimidade de Ângela e Azevedinho?
Se ambos saíam a passear no
jardim, não me podia eu conter, convidava o doutor a igual passeio, e seguindo
os passos dos dois, não arredava deles os olhos atentos e perscrutadores.
Se se retiravam a uma janela
para conversarem sobre coisas fúteis e indiferentes, lá os seguia eu e tomava
parte na conversação, tendo sobretudo um prazer especial em chamar
exclusivamente a atenção de Ângela.
Por que tudo isto?
Seria amor?
Era. Não posso negá-lo.
Dentro de mim, até então
oculto, dava sinal de vida esse germe abençoado que o Criador depôs no coração
da criatura.
Digo até então, porque o
primeiro sentimento que eu sentira por uma mulher e a que aludi nas primeiras
páginas, não era absolutamente da natureza do amor que eu agora sentia.
Então, não era tanto o
sentimento, como a virgindade do coração, que dava alcance à felicidade que eu
almejava e à dor que sentia. O sentimento que agora se apossara de mim era
outro. Dava-me comoções novas, estranhas, celestes. De hora a hora eu sentia
que se estreitava o laço moral que me devia prender àquela menina.
Levantei as mãos para o céu
quando Azevedinho se despediu. Ele parecia feliz, e se, amando Ângela, tinha
razão de sê-lo, devia ser bem oculta a conversação dos olhos de ambos que
escapasse ao meu olhar perscrutador.
O que é certo é que eu
levantei as mãos ao céu quando Azevedinho saiu.
Foram todos acompanhá-lo à
porta, por cortesia. Aí, o desempenado rapaz montou no alazão em que viera e
desceu garboso a estrada deitando aos ares saborosas fumaças de charuto.
IV
Ditos
os últimos adeuses, entramos.
Eu
dei o braço a Ângela, e procurei ver se ela apresentava aquela meia alegria e
meia tristeza que era própria da ocasião.
Nada
disso.
Ângela,
apenas voltamos costas à estrada, e atravessamos a rua que ia ter à porta da
casa, encetou uma conversação sobre coisas que nada tinham, nem de longe, com
Azevedinho.
A
felicidade que isto me deu desviou-me da prudência com que eu sempre me
houvera. Não me pude conter. Fitando nos belos olhos da moça um olhar que devia
ser profundo e terno como o amor que eu já sentia, disse-lhe estas palavras:
-
Oh! obrigado! obrigado! Nisto chegamos à porta.
A moça, admirada ao ouvir
aquele agradecimento e não compreendendo a razão dele, olhou para mim admirada.
Ia articular alguma coisa, mas eu deixando-a entrar fui voltear a casa e
procurar o meu quarto.
Não sei por que, quando me
achei só, senti que as lágrimas me rebentavam dos olhos.
Amava, eis a razão. Mas, sem
a certeza de ser amado, por que me consideraria feliz?
Há duas razões para isto.
Uma prova a natureza elevada
do amor. Como tinha eu um ideal, Ângela era o objeto em que o meu ideal tomava
corpo. Bastava tê-la encontrado, bastava amá-la e era feliz.
A outra razão era de egoísmo.
Uma vez que ela não amasse o outro, era o que eu pedia naquele instante. Que
viesse a mim com a virgindade do coração, que estivesse pura do menor
pensamento de amor que fosse, enfim, que eu pudesse ser o primeiro que lhe
aspirasse o perfume das ilusões inocentes, tal era o meu desejo e a minha
aspiração.
Duas horas estive encerrado
no meu quarto. Preparava-me para sair e cheguei à janela. Ângela estava
assentada debaixo de uma latada que havia ao lado da casa. Tinha na mão um
livro aberto, mas via-se bem que não lia. Os olhos erravam do livro para o
chão, com evidentes sinais de que lhe errava no espírito alguma coisa. Só no
espírito? Não podia ser ainda no coração; era um primeiro sintoma; não era
ainda o acontecimento da minha vida.
Procurei não fazer rumor
algum e contemplá-la sem que ela me visse. Recuei, corri as cortinas e por uma
fresta cravei os olhos na moça.
Correram assim alguns
minutos.
Ângela fechou o livro e
levantou-se.
Recuei mais e deixei as
cortinas totalmente fechadas.
Quando voltei a espreitar a
linda pensativa, vi que ela saía em direção da frente da casa, sem dúvida para
entrar, visto que um mormaço de verão começava a aquecer o ar. Ao abrir o
chapelinho de sol para resguardá-la do mormaço, levantou os olhos e deu comigo.
Não pude recuar a tempo: ela sorriu-se e aproximando-se da janela perguntou:
- Que faz ai?
Abri completamente as
cortinas e debrucei-me à janela.
Minha resposta foi uma
pergunta:
- Que fazia ali?
Ela não respondeu, baixou os
olhos e calou-se.
Depois, voltando de novo para
mim, disse:
- Vou para a sala. Papaizinho
está lá?
- Não sei, respondi eu.
- Até já.
E foi caminho.
Entrei.
Quis deitar-me no sofá e ler;
cheguei mesmo a tirar um livro; mas não pude; não sei que ímã me atraía para
fora.
Saí do quarto.
Ângela estava na sala, ao pé
da janela, diante de um bastidor de bordar que lhe dera o tio no dia em que
completou dezessete anos.
Aproximei-me dela.
- Ora viva, Sr. misantropo...
- Misantropo?
A conversa começava assim às
mil maravilhas. Peguei em uma cadeira, e fui sentar-me defronte de Ângela.
- Parece.
- Tenho razão para sê-lo.
- Que razão?
- É uma história longa. Se eu
lhe contasse a minha vida ficava convencida de que não posso ser tão
comunicativo como os outros. E depois...
Parecia-me fácil declarar à
menina os meus sentimentos; entretanto, tomava-me de um tal acanhamento e
receio em presença dela, que não podia articular uma palavra positiva que
fosse.
Nada mais disse.
Deitei os olhos para o
bastidor e vi que ela bordava um lenço.
Ficamos silenciosos alguns
minutos. Depois, como fosse aquele silêncio embaraçoso, perguntei:
- Quem é aquele Azevedinho?
E firmando o olhar nela
procurei descobrir a impressão que esta pergunta lhe produzira.
O que descobri foi que as
faces se lhe tornavam vermelhas; levantou os olhos e respondeu-me:
- É um rapaz...
- Isso eu sei.
- É um rapaz lá do
conhecimento de minha tia.
- Não
entendeu a minha pergunta. Eu perguntava que opinião forma dele?
- Nenhuma:
é um rapaz.
De risonho tornei-me sério.
Que explicação tiraria daquela vermelhidão e daquelas respostas evasivas?
Ângela continuou a bordar.
- Por que me faz essas
perguntas? disse ela.
- Ah! por nada... por nada...
Havia em mim um pouco de
despeito. Quis mostrar-lho francamente.
- Ora por que há de tomar
esse ar sério?
- Sério? Não vê que estou
rindo?
Devia ser muito amargo o riso
que eu afetava, porque ela, reparando em mim, deixou de bordar, e pondo-me a
mão no braço, disse:
- Oh! perdão! eu não lhe
disse por mal... estou brincando...
O tom destas palavras
desarmou-me.
- Nem eu me zanguei,
respondi.
Ângela continuou a falar,
bordando:
- O Azevedinho ia lá por
casa de minha tia, onde conheceu meu e meu tio. É um bom moço, conversa muito
comigo, é muito meigo e alegre.
- Que lhe costuma ele dizer?
- Falsidades... Diz que sou
bonita.
- Grande falsidade!
- Ah! também! exclamou ela sorrindo com uma graça e uma singeleza
inimitáveis.
- Mas que lhe diz mais?
- Mais nada.
- Nada?
- Nada!
Ângela parecia dizer a custo
esta palavra; estava mentindo. Com que fim? por que razão? Que fraco examinador
era eu que não podia atinar com o motivo de todas aquelas reticências e
evasivas?
Estas reflexões passaram-me
pela cabeça em poucos minutos. Era preciso desviar-me do assunto do rapaz. Mas
sobre que poderia ser? Eu não tinha a ciência de entreter horas sobre coisas
indiferentes, em conversa com uma pessoa que me não era indiferente. Tomei um
ar de amigo, e mais velho, e disse a Ângela com um tom paternal:
- Nunca amou, D. Ângela?
- Que pergunta! disse ela
estremecendo.
- É uma pergunta como
qualquer outra. Faça de conta que sou confessor. É simples curiosidade.
- Como quer que lhe responda?
- Dizendo a verdade...
- A verdade... é difícil.
- Então, é afirmativa. Amou.
Ama ainda talvez. Se é correspondida, é feliz. Oh! nunca permita Deus que lhe
suceda amar sem ser amada... ou pior, amar a quem ama a outro a outra, quero
dizer.
- Deve ser grande
infelicidade essa...
- Oh! não imagina. É o maior
dos suplícios. Consome-se o coração e o espírito, e envelhece-se dentro em
pouco. E o que se segue depois? Vem a desconfiança de todos; nunca mais o
coração repousa tranqüilo na fé do coração alheio.
- Oh! é triste!
- Deus a preserve disso. Vejo
que nasceu para dar e receber a suprema felicidade. Deus a faça feliz... e ao
seu amor.
E levantei-me.
- Onde vai? perguntou-me ela.
- Vou passear... Devo
preparar-me para voltar à cidade. Não posso ficar aqui sempre.
- Não vá...
E fez-me sentar de novo.
- Esta assim mal conosco? Que
mal fizemos nós?
- Oh! nenhum! preciso de
tratar dos meus negócios.
- Não quero que vá.
Dizendo estas palavras, Ângela
baixou os olhos e pôs-se a riscar maquinalmente com a agulha no lenço.
- Não quer? disse eu.
- É ousadia dizer que não
quero; mas cuido que é o meio de fazê-lo ficar.
- Só por isso?
A moça não respondeu. Senti
que me animava um raio de esperança. Olhei para Ângela, peguei-lhe na mão; ela
não recuou. Ia dizer que a amava, mas a palavra não me podia sair dos lábios,
aonde chegava ardente e trêmula.
Mas, como era preciso dizer
alguma coisa, lancei os olhos para o bordado; vi que estava quase completa uma
inicial. Era um F. - Estremeci, F. era a minha inicial.
- Para quem é este lenço?
Ângela com a outra mão cobriu
rapidamente o bordado, dizendo:
- Não seja curioso!
- É para mim, D. Ângela?
- E se fosse, era crime?
- Oh! não!
Senti passos. Era o doutor
que entrava.
Recuei a distância respeitosa
e dirigi algumas palavras a Ângela sobre a excelência do bordado.
O doutor dirigiu-se a mim.
- Ora, bem podia esperá-lo,
disse ele. Cuidei que estivesse encerrado, e não quis incomodá-lo.
- Estive
aqui assistindo a este trabalho de D. Ângela.
- Ah! bordados!
Travou-se uma conversa geral
até que veio a hora do jantar. Jantamos, conversamos ainda, e recolhemo-nos às
dez horas,da noite.
A mesa do chá declarei eu ao
doutor que iria à cidade, senão para ficar, ao menos para dar andamento aos
meus negócios. O meu caboclo tinha-me trazido uma carta de minha mãe, vinda
pelo último vapor, e na qual me pedia que concluísse os negócios e voltasse à
província.
O doutor disse-me que fosse,
mas que me não deixasse encantar pela cidade. Disse-lhe que em nenhuma parte
encontrava o encanto que tinha ali em casa dele. Valeu-me a resposta um olhar
significativo de Ângela e esta resposta do tio Bento:
- Ora, ainda bem!
V
Entrando para o meu quarto levava o
espírito ocupado de reflexões contrárias, umas suaves, outras aflitivas.
Ao mesmo tempo que me parecia
poder assenhorear-me do coração de Ângela, dizia-me, não sei que demônio
invisível, que ela não podia ser minha porque já era de outro.
Esta dúvida era pior que a
certeza.
Se eu estivesse certo de que
Ângela amava Azevedinho, sentiria, de certo; mas o amor, apenas começado, devia
ceder ao orgulho; e a idéia de que não devia lutar com um homem que eu julgava
moralmente inferior a mim, acabaria por triunfar em meu espírito.
Deste modo uma paixão má, um
defeito moral, traria a antiga fé ao meu coração.
Mas a incerteza, não; desde
que eu entrevia uma probabilidade, uma esperança, acendia-se a paixão cada vez
mais; e eu acabava por dispor-me a entrar nessa luta tenaz entre o homem e a
fatalidade dos sentimentos.
Mas poderia Ângela
adivinhá-lo? Aquela moça, filha de um homem sisudo, educada aos cuidados dele,
mostrando ela própria certa elevação de sentimentos, e, até certo ponto, uma
discrição de espírito, poderia amar a um rapazola vulgar, sem alma nem coração,
frívolo como os divertimentos em que ele se comprazia?
Se por um lado isto me
parecia impossível, por outro eu me recordava do muito que era e do pouco que
vira; recordava-me do que comigo mesmo sucedera e desanimava com a idéia de que
tão boa pérola fosse engastada em cobre azinhavrado e vulgar.
Nesta incerteza deitei-me e
levei parte da noite sem poder conciliar o sono.
Uma coisa aumentou ainda a
minha dúvida: era a inicial bordada no lenço e a resposta que Ângela dera à
pergunta que lhe fiz a meu respeito. Duas horas bastariam para que ela se
deixasse impressionar
por mim? Se assim fosse, temia que o sentimento que eu lhe tivesse inspirado
fosse menos involuntário do que convinha, e doía-me não ter nela uma soma igual
ao amor que eu já sentia.
Resolvi todas as suspeitas,
todas as dúvidas, todas as reflexões tristes ou agradáveis que me inspirava a
situação, e dormi sobre a madrugada.
Dois dias depois fui à
cidade.
João deu-me conta dos papéis
e recados que lá tinham levado. Tomei um tílburi e andei dando as convenientes
ordens para se ultimarem os negócios, visto que eram essas as ordens que eu
recebera de minha mãe.
De volta a Andaraí, entrando
no meu quarto, mudei de roupa e dispunha-me a escrever uma carta para o norte.
Abri a carteira e ai
encontrei um lenço e o seguinte bilhete escrito em letra trêmula e incorreta:
"Vai partir. Esta
lembrança é... de uma amiga. Guarde-a e lembre-se eternamente de quem nunca o
riscará da lembrança. - Ângela."
Lendo esta carta senti
palpitar-me o coração com força. Parecia querer saltar do peito onde não cabia.
Era aquilo claro ou não? Ângela amava-me, Ângela era minha. Estas palavras não
sei que anjo invisível m'as dizia ao ouvido e ao coração.
Li e reli o bilhete;
beijei-o; guardava-o, e ao mesmo tempo tornava a tirá-lo para ter o prazer de
lê-lo de novo.
Finalmente, passada a
primeira comoção, nasceu o desejo de ver é falar a Ângela. Saí; era hora do
jantar.
Era impossível falar a sós
com Ângela. Meus olhos, porém, falaram por mim, como os dela falaram por ela.
Em toda a noite não houve
ocasião de falar-lhe. O doutor, sempre amigo, cada vez mais amigo, empenhou-se
comigo em uma daquelas práticas cordiais em que o coração e o espírito trazem
entre si os sentimentos sinceros e as idéias puras.
No dia seguinte tive ocasião
de falar a Ângela. Quando nos vimos a sós, um acanhamento invencível
apoderou-se de nós ambos. Depois de alguns minutos de silêncio Ângela
perguntou-me timidamente:
- Que achou no seu quarto?
- Oh! a felicidade! respondi
eu.
E pegando na mão da moça que
tremia, disse-lhe com voz igualmente trêmula:
- Ângela, creio que me amas;
eu também te amo, e como creio que se pode amar no... Diga-me? É certo que sou
feliz? Sou amado?
- É... murmurou a moça
deixando cair a cabeça sobre o meu ombro e ocultando assim o rosto corado pela
comoção.
VI
Dois dias depois estavam
ultimados os negócios que me tinham trazido à Corte, e eu devia voltar no
próximo vapor.
Durante esse tempo Azevedinho
foi uma só vez a Andaraí; apesar do espírito brincalhão e alegre, Ângela não
pôde recebê-lo com a afabilidade do costume. Isto deu que pensar ao rapaz.
Olhou para mim um tanto desconfiado e saiu com a cabeça baixa.
Como estivessem ultimados os
negócios fui à cidade para as últimas ordens. Estiveram em minha casa o caboclo
e mais dois sujeitos.
Despachei as visitas e fui
escrever algumas cartas que mandei ao seu destino por João.
Esperava o criado e a
resposta de algumas cartas, quando ouvi bater palmas. Era Azevedinho. Fi-lo
entrar e perguntei ao que vinha.
O rapaz estava sério.
- Venho para uma explicação.
- Sobre...
- Sobre as suas pretensões
acerca da filha do Dr. Magalhães.
Sorri-me.
-
É intimação?
- Não, de modo nenhum; sou
incapaz de fazer uma intimação que seria grosseira e mal cabida. Desejo uma
explicação cordial e franca...
-
Não sei que lhe hei de dizer.
-
Diga que gosta dela.
-
Perdão; mas por que dever lhe hei de dizer isso; ou antes, diga-me com que
direito m'o pergunta?
-
Eu lhe digo: amo-a.
- Ah!
- Muito...
Fixei o olhar no rapaz para
ver se a expressão do rosto indicava o que dizia. Ou fosse prevenção, ou
realidade, achei que aquele amor era dos dentes para fora.
-
Mas ela? perguntei eu.
-
Ela não sei se ama. Devo acreditar que sim; posto que nunca tivéssemos
explicações a respeito. Mas a sua resposta?
- A minha resposta é pouca
coisa: dar-me-ia por feliz se fosse amado por ela.
- Mas é?
- Dar-me-ia por feliz se
fosse amado por ela...
- Não quer ser franco, já
vejo.
- Não posso dizer mais. Para
que nos ocuparemos a respeito de uma pessoa a cuja família devo obséquios, e
que é, portanto, já parte de minha família?
- Tem razão.
E, despedindo-se de mim,
saiu.
Acompanhei-o à porta e voltei
para a sala pensando na franqueza com que aquele rapas viera saber de mim se
podia contar com o coração da moça. E por que viria? Teria arras para isso?
Nova dúvida assaltou o meu espírito, e eu voltei para Andaraí mais triste do
que saíra.
Ângela notou isso;
perguntou-me o que tinha. Então falei-lhe francamente. Perguntei-lhe, na plena
confiança do amor, se nunca tivera para Azevedinho um sintoma de afeto, um
penhor que o autorizasse a deitar para ela olhos amorosos.
Respondeu-me que nunca o
amara nem lhe dera lugar a fazer-lhe nascer esperanças de amor.
Pareceu-me que Ângela era
sincera; acreditei.
Depois conversamos de nós.
Perguntei-lhe se estava certa do sentimento que eu lhe inspirava; se aquilo não
era uma simples fantasia, em que o coração não tomava parte.
A pergunta indicava a dúvida,
e a dúvida não se desfazia só com a simples resposta, uma vez que Ângela
quisesse mentir.
Mas eu não contava com as palavras simplesmente. Contava com o resto,
com o tom das palavras, com a luz dos olhos. Olhei para ela fixamente e esperei
a resposta.
-
Oh! disse ela, acredito que este amor é verdadeiro. Sinto que é isto, porque
nunca felicidade tamanha me abriu ao coração as comoções do presente e as
esperanças do futuro.
E
dizendo isto, os olhos úmidos de lágrimas de ventura, como chuva de primavera,
abriram-se para fazer penetrar o meu olhar até o mais fundo do coração.
Era
sincera.
Ângela
continuou:
- E
acredita que foi simplesmente daquele primeiro dia, o do bordado, que eu
comecei a amá-lo? Não, foi desde que cheguei à casa. Foi um sentimento que
nasceu em mim repentinamente: é verdadeiro, não?
Esta
pergunta era feita com uma graça adorável.
Minha
resposta foi um beijo, o primeiro, mas um beijo respeitoso, casto, onde resumi
todas as aspirações e todos os sentimentos do meu coração.
VII
Aproximava-se o dia da partida.
Eu estava decidido a pedir Ângela em casamento. Contava com a aquiescência
do pai e o agrado do tio.
O
meu projeto era ir buscar o consentimento de minha mãe e voltar depois.
Ângela,
a quem comuniquei isso, disse-me que não me separasse dela; que era melhor
escrever à minha mãe; que ela mesma escreveria, e bem assim o pai, diante do
que minha mãe não recusaria.
Não
pude recusar este conselho.
Mas
era preciso aproveitar tempo. Tratei de falar na primeira ocasião ao amigo
doutor.
Uma
tarde estávamos conversando no gabinete em que ele lia, e tratávamos exatamente
da minha futura.
-
Não pretende voltar mais ao Rio de Janeiro?
-
Pretendo.
- É
promessa formal?
-
É.
-
Olhe lá!
-
Com certeza.
-
Sabe que sou seu amigo?
- Oh! sei, sim!
-
Ora bem!
-
Sei que é amigo e vou pedir-lhe mais uma prova de amizade e confiança.
-
Qual é? Quer a lua? disse-me o velho sorrindo. Olhe, não desconfie; é pura
brincadeira.
- O
meu pedido...
E
parei.
- Ah! disse o velho, creio que não é tão fácil assim...
-
Doutor, continuei eu, amo sua filha...
- Ah!
Esta exclamação era fingida;
percebi-o logo.
- E
quer?
- E peço-lha para minha
mulher.
- Ângela já me contou tudo.
- Ah! exclamei eu por minha
vez.
- Tudo. Sei que se amam. E
como negar aquilo que se lhes deve? Em meus braços, meu filho!
Abracei o velho na doce
expansão da felicidade que ele me acabava de dar.
Saímos do gabinete.
Ao entrar na sala encontramos
três pessoas: Ângela, o tio Bento e Azevedinho.
O doutor foi ao encontro do
último, que se levantou.
- Não contava com a sua
visita.
- Vinha falar-lhe em um
negócio sério.
- Em particular?
- Devia ser, mas creio que
não há aqui ninguém estranho à família...
- Decerto que não.
E dizendo isto o velho olhou
sorrindo para mim.
- Penso, continuou o rapaz,
que também o Sr... é da família... pela amizade.
- É, respondeu o doutor, com
sinais visíveis de aborrecimento e desconfiança.
Que quereria Azevedinho?
Viria expor-se à negativa? Não esperei muito tempo. O rapaz, erguendo a voz,
para que todos o ouvissem, disse:
-
Sr. doutor, amo D. Ângela, e desejo recebê-la por minha mulher. Consente?
O velho ficara calado alguns
segundos.
Depois, dirigindo-se à filha,
disse:
- Ângela, tens dois pedidos
de casamento. Acabo de os ouvir com diferença de poucos minutos.
E referiu o que eu lhe tinha
dito.
Ângela, consultada, não
hesitou. Declarou que seria minha mulher.
Azevedinho ficou pálido de
enfiado.
- Sinto... ia dizendo o
doutor.
- Oh! não há nada a
desculpar. É simples: o meu rival foi mais feliz do que eu...
Despediu-se e saiu.
Restava concluir-se o meu
casamento.
Eu e Ângela rimos muito do
logro de Azevedinho. Era um prazer cruel que eu tinha em rir da desgraça alheia
naquele momento. Como não sentiria eu se o desenganado fosse eu? A diferença
está que Azevedinho não sentia nada, e perdeu a conquista como perderia uma
pequena aposta.
Soube-o positivamente pouco
depois.
No fim de dois meses o meu
rival vencido acedera aos velhos pedidos de uma tia que possuía, ao lado de uma
fortuna avultada, a mania de acreditar-se capaz de apaixonar um homem.
Tinha ela quarenta e cinco
anos e era feia. O rapaz achou-a de uma beleza deliciosa e concluiu o
casamento.
A fortuna que a tia, sua
esposa então, conservara acumulada, passou para as mãos de Azevedinho, e saiu
das mãos dele como um feixe de foguetes incendiados. Em poucos meses Azevedinho
viu-se obrigado a pôr termo aos seus caprichos, a fim de salvar alguma coisa e
trabalhar para viver o resto da vida.
Consta-me
que se tornou um bom homem.
Quanto
a mim, resolvido o casamento, tratei de escrever a minha mãe, pedindo o seu
consentimento. Ângela quis a todo custo acrescentar estas palavras:
-
"Perdi minha mãe. Quer substitui-la? - Ângela."
Veio
a resposta daí a um mês. Minha mãe deu o consentimento, mas pedia instantemente
que eu fosse, depois de unido, viver na província.
Daí
a poucos dias unia-me eu em matrimônio a Ângela de Magalhães.
VIII
Desde o primeiro dia do meu
casamento abriram-se-me na vida horizontes novos. Todo o sentimento de reserva
e de misantropia que caracterizava os primeiros anos da minha mocidade
desaparecia. Era feliz, completamente feliz. Amava e era amado.
Quando
se tratou de irmos para a província surgiu uma dificuldade; partir era deixar
os dois velhos tão meus amigos, o pai e o tio de minha mulher; ficar era não
acudir ao reclamo de minha mãe.
Cortou-se
a dificuldade facilmente. Os dois velhos resolveram partir também.
Em
chegando a este desenlace a narrativa perde o interesse para os que são levados
pela curiosidade de acompanhar uma intriga amorosa.
Cuido
mesmo que nestas páginas pouco interesse haverá; mas eu narro, não invento.
Direi
pouco mais.
Há
cinco anos que tenho a felicidade de possuir Ângela por mulher; e cada dia
descubro-lhe mais suas qualidades.
Ela
é para meu lar doméstico:
A
luz,
A
vida,
A
alma,
A
paz,
A
esperança,
E a felicidade!
Procurei
por tanto tempo a felicidade na solidão; é errado; achei-a no casamento, no
ajuntamento moral de duas vontades, dois pensamentos e dois corações.
Feliz
doença aquela que me levou à casa do Dr. Magalhães!
Hoje
tenho mais um membro na família: é um filho que possui nos olhos a bondade, a
viveza e a ternura dos olhos de sua mãe.
Ditosa criança!
Deu-lhe Deus a felicidade de nascer daquela que é, ao lado de minha mãe,
a santa querida da minha religião dos cânticos.
F. (primeira parte) e S. (segunda parte)
in: Jornal
das Famílias, junho e julho de 1866.
Fonte:
Contos - Machado de Assis - Série Bom Livro - Editora Ática - 16.ª edição -
1991