Machado
de Assis
MARIANA
Voltei de Europa depois de uma
ausência de quinze anos. Era quanto bastava para vir achar muita coisa mudada.
Alguns amigos tinham morrido, outros estavam casados, outros viúvos. Quatro ou
cinco tinham-se feito homens públicos, e um deles acabava de ser ministro de
Estado. Sobre todos eles pesavam quinze anos de desilusões e cansaço. Eu,
entretanto, vinha tão moço como fora, não no rosto e nos cabelos, que começavam
a embranquecer, mas na alma e no coração que estavam em flor. Foi essa a
vantagem que tirei das minhas constantes viagens. Não há decepções possíveis
para um viajante, que apenas vê de passagem o lado belo da natureza humana e
não ganha tempo de conhecer-lhe o lado feio. Mas deixemos estas filosofias
inúteis.
Também achei mudado o nosso
Rio de Janeiro, e mudado para melhor. O jardim do Rócio, o bulevar Carceller,
cinco ou seis hotéis novos, novos prédios, grande movimento comercial e
popular, tudo isso fez em meu espírito uma agradável impressão.
Fui hospedar-me no hotel
Damiani. Chamo-lhe assim para conservar um nome que tem para mim recordações
saudosas. Agora o hotel chama-se Ravot. Tem defronte uma grande casa de modas e
um escritório de jornal político. Dizem-me que a casa de modas faz mais negócio
que o jornal. Não admira; poucos lêem, mas todos se vestem.
Estava eu justamente a
contemplar o espetáculo novo que a rua me oferecia quando vi passar um
indivíduo cuja fisionomia me não era estranha. Desci logo à rua e cheguei à
porta quando ele passava defronte.
- Coutinho! exclamei.
- Macedo! disse o interpelado
correndo a mim.
Entramos no corredor e aí
demos aberta às nossas primeiras expansões.
- Que milagre é este? por que
estás aqui? quando chegaste?
Estas e outras perguntas
fazia-me o meu amigo entre repetidos abraços. Convidei-o a subir e a almoçar
comigo, o que aceitou, com a condição, porém, de que iria buscar mais dois
amigos nossos, que eu estimaria ver. Eram efetivamente dois excelentes
companheiros de outro tempo. Um deles estava à frente de uma grande casa comercial;
o outro, depois de algumas vicissitudes, fizera-se escrivão de uma vara cível.
Reunidos
os quatro na minha sala do hotel, foi servido um suculento almoço, em que,
aliás, eu e o Coutinho tomamos parte. Os outros limitavam-se a fazer a razão de
alguns brindes e a propor outros.
Quiseram que eu lhes contasse
as minhas viagens; cedi francamente a este desejo natural. Não lhes ocultei
nada. Contei-lhes o que havia visto desde o Tejo até o Danúbio, desde Paris até
Jerusalém. Fi-los assistir na imaginação às corridas de Chantillv e às jornadas
das caravanas no deserto; falei do céu nevoento de Londres e do céu azul da
Itália. Nada me escapou; tudo lhes referi.
Cada qual fez as suas
confissões. O negociante não hesitou em dizer tudo quanto sofrera antes de alcançar
a posição atual. Deu-me notícia de que estava casado, e tinha uma filha de dez
anos no colégio. O escrivão achou-se um tanto envergonhado quando lhe tocou a
vez de dizer a sua vida; todos nós tivemos a delicadeza de não insistir nesse
ponto.
Coutinho não hesitou em dizer
que era mais ou menos o que era outrora a respeito da ociosidade; sentia-se,
entretanto, mudado e entrevia ao longe idéias de casamento.
- Não te casaste? perguntei
eu.
- Com a prima Amélia? disse
ele; não.
- Por que?
- Porque não foi possível.
- Mas continuaste a vida solta
que levavas?
- Que pergunta! exclamou o
negociante. É a mesma coisa que era há quinze anos. Não mudou nada.
- Não digas isso; mudei.
- Para pior? perguntei eu
rindo.
- Não, disse Coutinho, não sou
pior do que era; mudei nos sentimentos; acho que hoje não me vale a pena cuidar
de ser mais feliz do que sou.
- E podias sê-lo, se te
houvesses casado com tua prima. Amava-te muito aquela moça, ainda me lembro das
lágrimas que lhe vi derramar em um dia de entrudo. Lembras-te?
- Não me lembra, disse
Coutinho ficando mais sério do que estava; mas creio que deve ter sido isso.
- E o que é feito dela?
- Casou.
- Ah!
- É hoje fazendeira; e dá-se
perfeitamente com o marido. Mas não falemos nisto, acrescentou Coutinho,
enchendo um cálice de conhaque; o que lá vai, lá vai!
Houve alguns instantes de
silêncio, que eu não quis interromper, por me parecer que o nome da moça
trouxera ao rapaz alguma recordação dolorosa.
Rapaz é uma maneira de dizer.
Coutinho contava já seus trinta e nove anos e tinha alguns fios brancos na
cabeça e na barba. Mas, apesar desse evidente sinal do tempo, eu aprazia-me em
ver os meus amigos pelo prisma da recordação que levara deles.
Coutinho foi o primeiro que
rompeu o silêncio.
- Pois que estamos aqui reunidos,
disse ele, ao cabo de quinze anos, deixem que, sem exemplo, e para completar as
nossas confidências recíprocas, eu lhes confesse uma coisa, que nunca saiu de
mim.
- Bravo! disse eu; ouçamos a
confidência de Coutinho.
Acendemos nossos charutos.
Coutinho começou a falar:
- "Eu namorava a prima
Amélia, como sabem; o nosso casamento devia efetuar-se um ano depois que daqui
saíste. Não se efetuou por circunstâncias que ocorreram depois, e com grande
mágoa minha, pois gostava dela. Antes e depois amei e fui amado muitas vezes;
mas nem depois nem antes, e por nenhuma mulher fui amado jamais como fui...
- Por tua prima? perguntei eu.
- Não; por uma cria de casa.
Olhamos todos espantados um
para outro. Ignorávamos esta circunstância, e estávamos a cem léguas de
semelhante conclusão. Coutinho não parece atender ao nosso espanto; sacudia
distraidamente a cinza do charuto e parecia absorto na recordação que o seu
espírito evocava.
- Chamava-se Mariana,
continuou ele alguns minutos depois, e era uma gentil mulatinha, nascida e
criada como filha da casa, e recebendo de minha mãe os mesmos afagos que ela
dispensava às outras filhas. Não se sentava à mesa, nem vinha à sala em ocasião
de visitas, eis a diferença; no mais era como se fosse pessoa livre, e até
minhas irmãs tinham certa afeição fraternal. Mariana possuía a inteligência da
sua situação, e não abusava dos cuidados com que era tratada. Compreendia bem
que, na situação em que se achava, só lhe restava pagar com muito
reconhecimento a bondade de sua senhora.
A sua educação não fora tão
completa como a de minhas irmãs; contudo, Mariana sabia mais do que outras
mulheres em igual caso. Além dos trabalhos de agulha que lhe foram ensinados
com extremo zelo, aprendera a ler e a escrever. Quando chegou aos 15 anos teve
desejo de saber francês, e minha irmã mais moça lho ensinou com tanta paciência
e felicidade, que Mariana em pouco tempo ficou sabendo tanto como ela.
Como
tinha inteligência natural, todas estas coisas lhe foram fáceis. O
desenvolvimento do seu espírito não prejudicava o desenvolvimento de seus
encantos. Mariana aos 18 anos era o tipo mais completo da sua raça.
Sentia-se-lhe o fogo através da tez morena do rosto, fogo inquieto e vivaz que
lhe rompia dos olhos negros e rasgados.. Tinha os cabelos naturalmente
encaracolados e curtos. Talhe esbelto e elegante, colo voluptuoso, pé pequeno e
mãos de senhora. É impossível que eu esteja a idealizar esta criatura que há
tanto me desapareceu dos olhos; mas não estarei muito longe da verdade.
Mariana era apreciada por
todos quantos iam a nossa casa, homens e senhoras. Meu tio, João Luis, dizia-me
muitas vezes: - "Por que diabo está tua mãe guardando aqui em casa esta
flor peregrina? A rapariga precisa de tomar ar".
Posso dizer, agora que já
passou muito tempo, esta preocupação do tio nunca me passou pela cabeça;
acostumado a ver Mariana bem tratada, parecia-me ver nela uma pessoa de
família, e, além disso, ser-me-ia doloroso contribuir para causar tristeza a
minha mãe.
Amélia ia lá a casa algumas
vezes; mas era ao princípio, e antes que nenhum namoro houvesse entre nós.
Cuido, porém, que foi Mariana quem chamou a atenção da moça para mim. Amélia
deu-mo a entender um dia. O certo é que uma tarde, depois de jantar, estávamos
a tomar café no terraço, e eu reparei na beleza de Amélia com uma atenção mais
demorada que de costume. Fosse acaso ou fenômeno magnético, a moça olhava
também para mim. Prolongaram-se os nossos olhares... ficamos a amar um ao
outro. Todos os amores começam, pouco mais ou menos, assim.
Acho inútil contar
minuciosamente este namoro de rapaz, que vocês em parte conhecem, e que não
apresentou episódio notável. Meus pais aprovaram a minha escolha; os pais de
Amélia fizeram o mesmo. Nada se opunha à nossa felicidade. Preparei-me um dia
de ponto em branco e fui pedir a meu tio a mão da filha. Foi-me ela concedida,
com a condição apenas de que o casamento seria efetuado alguns meses depois,
quando o irmão de Amélia tivesse completado os estudos, e pudesse assistir à
cerimônia com a sua carta de bacharel.
Durante este tempo Mariana
estava em casa de uma parenta nossa que no-la foi pedir para costurar uns
vestidos. Mariana era excelente costureira. Quando ela voltou para casa, estava
assentado o meu casamento com Amélia; e, como era natural, eu passava a maior
parte do tempo em casa da prima, saboreando aquelas castas efusões de amor e
ternura que antecedem o casamento. Mariana notou as minhas prolongadas
ausências, e, com uma dissimulação assaz inteligente, indagou de minha irmã
Josefa a causa delas. Disse-lho Josefa. Que se passou então no espírito de
Mariana? Não sei; mas no dia seguinte, depois do almoço quando eu me dispunha a
ir vestir-me, Mariana veio encontrar-me no corredor que ia ter ao meu quarto,
com o pretexto de entregar-me um maço de charutos que me caíra do bolso. O maço
fora previamente tirado da caixa que eu tinha no quarto.
- Aqui tem, disse ela com voz
trêmula.
- O que é? perguntei.
- Estes charutos... caíram do
bolso de senhor moço.
- Ah!
Recebi o maço de charutos e
guardei-o no bolso do casaco; mas, durante esse tempo, Mariana conservou-se
diante de mim. Olhei para ela; tinha os olhos postos no chão.
- Então, que fazes tu? disse
eu em tom de galhofa.
- Nada, respondeu ela
levantando os olhos para mim. Estavam rasos de lágrimas.
Admirou-me essa manifestação
inesperada da parte de uma rapariga que todos estavam acostumados a ver alegre
e descuidosa da vida. Supus que houvesse cometido alguma falta e recorresse a
mim para protege-la junto de minha mãe. Nesse caso a falta devia ser grande,
porque minha mãe era a bondade em pessoa, e tudo perdoava às suas amadas crias.
- Que tens, Mariana?
perguntei.
E, como ela não respondesse e
continuasse a olhar para mim, chamei em voz alta por minha mãe. Mariana
apressou-se a tapar-me a boca, e esquivando-se às minhas mãos fugiu pelo
corredor fora.
Fiquei a olhar ainda alguns
instantes para ela, sem compreender nem as lágrimas, nem o gesto, nem a fuga. O
meu principal cuidado era outro; a lembrança do incidente passou depressa, fui
vestir-me e sai.
Quando voltei à casa não vi
Mariana, nem reparei na falta dela. Acontecia isso muitas vezes. Mas depois de
jantar lembrou-me o incidente da véspera, e perguntei a Josefa o que haveria
magoado a rapariga que tão romanescamente me falara no corredor.
- Não sei, disse Josefa, mas
alguma coisa haverá porque Mariana anda triste desde anteontem. Que supões tu?
- Alguma coisa faria e tem
medo da mamãe.
- Não, disse Josefa; pode ser
antes algum namoro.
- Ah! tu pensas que?
- Pode ser.
- E quem será o namorado da
senhora Mariana, perguntei rindo. O copeiro ou o cocheiro?
- Tanto não sei eu; mas seja
quem for, será alguém que lhe inspirasse amor; é quanto basta para que se
mereçam um ao outro.
- Filosofia de mulher,
respondeu Josefa com um ar tão sério que me impôs silêncio.
Mariana não me apareceu nos
três dias seguintes. No quarto dia, estávamos almoçando, quando ela atravessou
a sala de jantar, tomou a bênção a todos e foi para dentro. O meu quarto ficava
além da sala de jantar e tinha uma janela que dava para o pátio e enfrentava com
a janela do gabinete de costura. Quando fui para o meu quarto, Mariana estava
nesse gabinete ocupada em preparar vários objetos para uns trabalhos de agulha.
Não tinha os olhos em mim, mas eu percebia que o seu olhar acompanhava os meus
movimentos. Aproximei-me da janela e disse-lhe:
- Estás mais alegre, Mariana?
A mulatinha assustou-se,
voltou a cara para diversos lados, como se tivesse medo de que as minhas
palavras fossem ouvidas, e finalmente impôs-me silêncio com o dedo na boca.
- Mas que é? perguntei eu
dando à minha voz a moderação compatível com a distância.
Sua única resposta foi repetir-me o mesmo gesto.
Era evidente que a tristeza de Mariana tinha uma causa
misteriosa, pois que ela receava revelar nada a esse respeito.
Que seria senão algum namoro, como minha irmã supunha?
Convencido disto, e querendo continuar uma investigação curiosa, aproveitei a
primeira ocasião que se me ofereceu.
- Que tens tu, Mariana? disse
eu; andas triste e misteriosa. É algum namorico? Anda, fala; tu és estimada por
todos cá de casa. Se gostas de alguém poderás ser feliz com ele porque ninguém
te oporá obstáculos aos teus desejos.
- Ninguém? perguntou ela com
singular expressão de incredulidade.
- Quem teria interesse nisso?
- Não falemos nisso, nhonhô.
Não se trata de amores, que eu não posso ter amores. Sou uma simples escrava.
- Escrava, é verdade, mas
escrava quase senhora. És tratada aqui como filha da casa. Esqueces esses
benefícios?
- Não os esqueço; mas tenho
grande pena em havê-los recebido.
- Que dizes, insolente?
- Insolente? disse Mariana com
altivez. Perdão! continuou ela voltando à sua humildade natural e ajoelhando-se
a meus pés; perdão, se disse aquilo; não foi por querer; eu sei o que sou; mas,
se nhonhô soubesse a razão, estou certa que me perdoaria.
Comoveu-me esta linguagem da
rapariga. Não sou mau; compreendi que alguma grande preocupação teria feito com
que Mariana esquecesse por instantes a sua condição e o respeito que nos devia,
a todos.
- Está bem, disse eu,
levanta-te e vai-te embora; mas não tornes a dizer coisas dessas que me obrigas
a contar tudo à senhora velha.
Mariana levantou-se,
agarrou-me na mão, beijou-a repetidas vezes entre lágrimas e desapareceu.
Todos
estes acontecimentos tinham chamado a minha atenção para a mulatinha.
Parecia-me evidente que ela sentia alguma coisa por alguém, e, ao mesmo tempo
que o sentia, certa elevação e nobreza. Tais sentimentos contrastavam com a
fatalidade da sua condição social. Que seria uma paixão daquela pobre escrava
educada com mimos de senhora? Refleti longamente nisto tudo, e concebi um
projeto romântico: obter a confissão franca de Mariana, e, no caso em que se
tratasse de um amor que a pudesse tornar feliz, pedir a minha mãe a liberdade
da escrava.
Josefa
aprovou a minha idéia, e incumbiu-se de interrogar a rapariga e alcançar pela
confiança aquilo que me seria mais difícil obter pela imposição ou sequer pelo
conselho.
Mariana
recusou dizer coisa nenhuma a minha irmã. Debalde empregou esta todos os meios
de sedução possíveis entre uma senhora e uma escrava. Mariana respondia
invariavelmente que nada havia que confessar. Josefa comunicou-me o que se
passara entre ambas.
- Tentarei
eu, respondi; verei se sou mais feliz.
Mariana
resistiu às minhas interrogações repetidas, asseverando que nada sentia e rindo
de que se pudesse supor semelhante coisa. Mas era um riso forçado, que antes
confirmava a suspeita do que a negativa.
- Bem,
disse eu, quando me convenci de que nada podia alcançar; bem, tu negas o que te
pergunto. Minha mãe saberá interrogar-te.
Mariana estremeceu.
- Mas,
disse ela, por que razão sinhá velha há de saber disto? Eu já disse a verdade.
- Não disseste, respondi eu;
e não sei por que recusas dizê-la quando tratamos todos da tua felicidade.
- Bem,
disse Mariana com resolução, promete que, se eu disser a verdade, não me
interrogará mais?
- Prometo,
disse eu rindo.
- Pois bem;
é verdade que eu gosto de uma pessoa...
- Quem é?
- Não posso dizer.
- Por que?
- Porque é um amor impossível.
- Impossível? Sabes o que são amores impossíveis?
Roçou pelos lábios da
mulatinha um sorriso de amargura e dor.
- Sei! disse ela.
Nem pedidos, nem ameaças conseguiram de Mariana uma
declaração positiva a este respeito. Josefa foi mais feliz do que eu;
conseguiu, não arrancar-lhe o segredo, mas suspeitar-lho, e veio dizer-me o que
lhe parecia.
- Que seja eu o querido de Mariana? perguntei-lhe com
um riso de mofa e incredulidade. Estás louca, Josefa. Pois ela
atrever-se-ia!...
- Parece que se atreveu.
- A descoberta é galante; e
realmente não sei o que pense disto...
Não continuei; disse a Josefa
que não falasse em semelhante coisa e desistisse de maiores explorações. Na
minha opinião o caso tomava outro caráter; tratava-se de uma simples exaltação
de sentidos.
Enganei-me.
Cerca de cinco semanas antes
do dia marcado para o casamento Mariana adoeceu. O médico deu à moléstia um
nome bárbaro, mas na opinião de Josefa era doença de amor. A doente recusou
tomar nenhum remédio; minha mãe estava louca de pena; minhas irmãs sentiam
deveras a moléstia da escrava. Esta ficava cada vez mais abatida; não comia,
nem se medicava; era de recear que morresse. Foi nestas circunstâncias que eu
resolvi fazer um ato de caridade. Fui ter com Mariana e pedi-lhe que vivesse.
- Manda-me viver? perguntou
ela.
- Sim.
Foi eficaz a lembrança; Mariana
restabeleceu-se em pouco tempo. Quinze dias depois estava completamente de pé.
Que
esperanças concebera ela com as minhas palavras, não sei; cuido que elas só
tiveram efeito por lhe acharem o espírito abatido. Acaso contaria ela que eu
desistisse do casamento projetado e do amor que tinha à prima, para satisfazer
os seus amores impossíveis? Não sei; o certo é que não só se lhe restaurou a
saúde como também lhe voltou a alegria primitiva.
Confesso, entretanto, que,
apesar de não compartir de modo nenhum os sentimentos de Mariana, entrei a
olhar para ela com outros olhos. A rapariga tornara-se interessante para mim,
e, qualquer que seja a condição de uma mulher, há sempre dentro de nós um fundo
de vaidade que se lisonjeia com a afeição que ela nos vote. Além disto, surgiu
em meu espírito uma idéia, que a razão pode condenar, mas que nossos costumes
aceitam perfeitamente. Mariana encarregara-se de provar que estava acima das
veleidades. Um dia de manhã fui acordado pelo alvoroço que havia em casa.
Vesti-me à pressa e fui saber o que era. Mariana tinha desaparecido de casa.
Achei minha mãe desconsoladíssima: estava triste e indignada ao mesmo tempo.
Doía-lhe a ingratidão da escrava. Josefa veio ter comigo.
- Eu suspeitava, disse ela,
que alguma coisa acontecesse. Mariana andava alegre demais; parecia-me
contentamento fingido para encobrir algum plano. O plano foi este. Que te
parece?
- Creio que devemos fazer
esforços para capturá-la, e, uma vez restituída à casa, coloca-la na situação
verdadeira do cativeiro.
Disse isto por me estar a doer
o desespero de minha mãe. A verdade é que, por simples egoísmo, eu desculpava o
ato da rapariga.
Parecia-me
natural, e agradava-me ao espírito, que a rapariga tivesse fugido para não
assistir à minha ventura, que seria realidade dai a oito dias. Mas a idéia de
suicídio veio aguar-me o gosto; estremeci com a suspeita de ser
involuntariamente causa de um crime dessa
ordem; impelido pelo remorso, sai apressadamente em busca de Mariana.
Achei-me na rua sem saber o
que devia fazer. Andei cerca de vinte minutos inutilmente, até que me ocorreu a
idéia natural de recorrer à polícia; era prosaica a intervenção da polícia, mas
eu não fazia romance; ia simplesmente em cata de uma fugitiva.
A policia nada sabia de Mariana; mas lá deixei a nota
competente; correram agentes em todas as direções: fui eu mesmo saber nos
arrabaldes se havia notícia de Mariana. Tudo foi inútil; às três horas da tarde
voltei para casa sem poder tranqüilizar minha família. Na minha opinião tudo
estava perdido.
Fui à noite a casa de Amélia, aonde não fora de tarde,
motivo pelo qual havia recebido um recado em carta a uma de minhas irmãs. A
casa de minha prima ficava em uma esquina. Eram oito horas da noite quando
cheguei à porta da casa. A três ou quatro passos estava um vulto de mulher
cosido com a parede. Aproximei-me: era Mariana.
- Que fazes aqui? perguntei eu.
- Perdão, nhonhô; vinha vê-lo.
- Ver-me? mas por que saíste
de casa, onde eras tão bem tratada, e donde não tinhas o direito de sair,
porque és cativa?
- Nhonhô, eu saí porque sofria
muito...
- Sofrias muito! Tratavam-te
mal? Bem sei o que é; são os resultados da educação que minha mãe te deu. Já te
supões senhora e livre. Pois enganas-te; hás de voltar já, e já, para casa.
Sofrerás as conseqüências da tua ingratidão. Vamos...
- Não! disse ela; não irei.
- Mariana, tu abusas da
afeição que todos temos por ti. Eu não tolero essa recusa, e se me repetes
isso...
- Que fará?
- Irás á força; irás com dois
soldados.
- Nhonhô fará isso? disse ela
com voz trêmula. Não quero obriga-lo a incomodar os soldados; iremos juntos, ou
irei só. O que eu queria, é que nhonhô não fosse tão cruel... porque enfim eu
não tenho culpa se... Paciência! vamos... eu vou.
Mariana começou a chorar. Tive pena dela.
- Tranqüiliza-te, Mariana,
disse-lhe; eu intercederei por ti. Mamãe não te fará mal.
- Que importa que faça? Eu
estou disposta a tudo... Ninguém tem que ver com as minhas desgraças... Estou
pronta; podemos ir.
- Saibamos outra coisa, disse
eu, alguém te seduziu para fugir?
Esta pergunta era astuciosa; eu desejava apenas
desviar do espírito da rapariga qualquer suspeita de que eu soubesse dos seus
amores por mim. Foi desastrada a astúcia. O único efeito da pergunta foi
indigná-la.
- Se alguém me seduziu?
perguntou ela; não, ninguém; fugi porque eu o amo, e não posso ser amada, e sou
uma infeliz escrava. Aqui está porque eu fugi. Podemos ir; já disse tudo. Estou
pronta a carregar com as conseqüências disto.
Não pude arrancar mais nada à rapariga. Apenas, quando
lhe perguntei se havia comido, respondeu-me que não, mas que não tinha fome.
Chegamos à casa eu e ela perto das nove horas da
noite. Minha mãe já não tinha esperanças de tornar a ver Mariana; o prazer que
a vista da escrava lhe deu foi maior que a indignação pelo seu procedimento.
Começou por invectivá-la. Intercedi a tempo de acalmar a justa indignação de
minha mãe, e Mariana foi dormir tranqüilamente.
Não sei se tranqüilamente. No dia seguinte tinha os
olhos inchados e estava triste. A situação da pobre rapariga interessara-me bastante,
o que era natural, sendo eu a causa indireta daquela dor profunda. Falei muito
nesse episódio em casa de minha prima. O tio João Luís disse-me em particular
que eu fora um asno e um ingrato.
- Por que? perguntei-lhe.
- Porque devias ter posto Mariana
debaixo da minha proteção, a fim de livrá-la do mau tratamento que vai ter.
- Ah! não, minha mãe já lhe
perdoou.
- Nunca lhe perdoará como eu.
Falei
tanto em Mariana que minha prima entrou a sentir um disparatado ciúme.
Protestei-lhe que era loucura e abatimento ter zelos de uma cria de casa, e que
o meu interesse era simples sentimento de piedade. Parece que as minhas
palavras não lhe fizeram grande
impressão.
Extremamente leviana, Amélia
não soube conservar a necessária dignidade quando foi à minha casa. Conversou
muito na necessidade de tratar severamente as escravas, e achou que era dar mau
exemplo mandar-lhes ensinar alguma coisa.
Minha mãe admirou-se muito
desta linguagem na boca de Amélia e redargüiu com aspereza o que lhe dava
direito a sua vontade. Amélia insistiu; minhas irmãs combateram as suas
opiniões: Amélia ficou amuada. Não havia pior posição para uma senhora.
Nada escapara a Mariana desta conversa entre Amélia e
minha família; mas ela era dissimulada e nada disse que pudesse trair os seus
sentimentos. Pelo contrário, redobrou de esforços para agradar a minha prima;
desfez-se em agrados e respeitos. Amélia recebia todas essas demonstrações com
visível sobranceria em vez de as receber com fria dignidade.
Na primeira ocasião em que
pude falar a minha prima, chamei a sua atenção para esta situação absurda e
ridícula. Disse-lhe que, sem o querer, estava a humilhar-se diante de uma
escrava. Amélia não compreendeu o sentimento que me ditou estas palavras, nem a
procedência das minhas palavras. Viu naquilo uma defesa de Mariana;
respondeu-me com algumas palavras duras e retirou-se para os aposentos de
minhas irmãs onde chorou à vontade. Finalmente tudo se acalmou e Amélia voltou
tranqüila para casa.
Quatro
dias antes do dia marcado para o meu casamento, era a festa do Natal. Minha mãe
costumava dar festas às escravas. Era um costume que lhe deixara minha avó. As
festas consistiam em dinheiro ou algum objeto de pouco valor. Mariana recebia
ambas as coisas por uma especial graça. De tarde tiveram gente em casa para
jantar: alguns amigos e parentes. Amélia estava presente. Meu tio João Luis era
grande amador de discursos à sobremesa. Mal começavam a entrar os doces, quando
ele se levantou e começou um discurso que, a julgar pelo intróito, devia ser extenso.
Como ele tinha suma graça, eram gerais as risadas desde que empunhou o copo.
Foi no meio dessa geral alegria que uma das escravas veio dar parte de que
Mariana havia desaparecido.
Este segundo ato de rebeldia
da mulatinha produziu a mais furiosa impressão em todos. Da primeira vez houve
alguma mágoa e saudade, de mistura com a indignação. Desta vez houve indignação
apenas. Que sentimento devia inspirar a todos a insistência dessa rapariga em
fugir de uma casa onde era tratada como filha? Ninguém duvidou mais que Mariana
era seduzida por alguém, idéia que da primeira vez se desvaneceu mediante uma
piedosa mentira da minha parte; como duvidar agora?
Tais não eram as minhas
impressões. Senhor do funesto segredo da escrava, sentia-me penalizado por ser
causa indireta das loucuras dela e das tristezas de minha mãe. Ficou assentado
que se procuraria a fugitiva e se lhe daria o castigo competente. Deixei que
esse movimento de cólera se consumasse, e levantei-me para ir procurar Mariana.
Amélia ficou desgostosa com
esta resolução, e bem o revelou no olhar; mas eu fingi que a não percebia e
saí.
Dei os primeiros passos
necessários e usuais. A polícia nada sabia, mas ficou avisada e empregou meios
para alcançar a fugitiva. Eu suspeitava que desta vez ela tivesse cometido
suicídio; fiz neste sentido as diligências necessárias para ter alguma notícia
dela, viva ou morta.
Tudo foi inútil.
Quando voltei à casa eram dez
horas da noite; todos estavam à minha espera, menos o tio e a prima que já se
haviam retirado.
Minha irmã contou-me que
Amélia saíra furiosa, porque achava que eu estava dando maior atenção do que
devia a uma escrava, embora bonita, acrescentou ela.
Confesso
que naquele momento o que me preocupava mais era Mariana; não porque eu
correspondesse aos seus sentimentos por mim, mas porque eu sentia sérios
remorsos de ser causa de um crime. Fui sempre pouco amante de aventuras e
lances arriscados, e não podia pensar sem algum terror na possibilidade de
morrer alguém por mim.
Minha vaidade não era tamanha
que me abafasse os sentimentos de piedade cristã. Neste estado, as invectivas
da minha noiva não me fizeram grande impressão, e não foi por causa delas que
eu passei a noite em claro.
Continuei no dia seguinte as
minhas pesquisas, mas nem eu nem a polícia fomos felizes.
Tendo andado muito, já a pé,
já de tílburi, achei-me às cinco horas da tarde no Largo de S. Francisco de
Paula, com alguma vontade de comer; a casa ficava um pouco longe e eu queria
continuar depois as minhas averiguações. Fui jantar a um hotel que então havia
na antiga rua dos Latoeiros.
Comecei a comer distraído e
ruminando mil idéias contrárias, mil suposições absurdas. Estava no meio do
jantar quando vi descer do segundo andar da casa um criado com uma bandeja onde
havia vários pratos cobertos.
- Não quer jantar, disse o
criado ao dono do hotel que se achava no balcão.
- Não quer? perguntou este;
mas então... não sei o que faça... reparaste se... Eu acho bom ir chamar a
polícia.
Levantei-me da mesa e
aproximei-me do balcão.
- De que se trata? perguntei
eu.
- De uma moça que aqui
apareceu ontem, e que ainda não comeu até hoje...
Pedi-lhe os sinais da pessoa
misteriosa. Não havia dúvida. Era Mariana.
- Creio que sei quem é, disse
eu, e ando justamente em procura dela. Deixe-me subir.
O homem hesitou; mas a
consideração de que não lhe podia convir continuar a ter em casa uma pessoa por
cuja causa viesse a ter questões com a polícia, fez com que me deixasse o
caminho livre.
Acompanhou-me
o criado, a quem incumbi de chamar por ela, porque, se conhecesse a minha voz,
supunha eu que me não quisesse abrir.
Assim se fez. Mariana abriu a
porta e eu apareci. Deu um grito estridente e lançou-se-me nos braços. Repeli
aquela demonstração com toda a brandura que a situação exigia.
- Não venho aqui para
receber-te abraços, disse eu; venho pela segunda vez buscar-te para casa, donde
pela segunda vez fugiste.
A palavra fugiste escapou-me
dos lábios; todavia, não lhe dei importância senão quando vi a impressão que
ela produziu em Mariana. Confesso que devera ter alguma caridade mais; mas eu
queria conciliar os meus sentimentos com os meus deveres, e não fazer com que a
mulher não se esquecesse de que era escrava. Mariana parecia disposta a sofrer
tudo dos outros, contanto que obtivesse a minha compaixão. Compaixão tinha-lhe
eu; mas não lho manifestava, e era esse todo o mal.
Quando a fugitiva recobrou a fala, depois das emoções
diversas por que passara desde que me viu chegar, declarou positivamente que
era sua intenção não sair dali. Insisti com ela dizendo-lhe que poderia ganhar
tudo procedendo bem, ao passo que tudo perderia continuando naquela situação.
- Pouco importa, disse ela;
estou disposta a tudo.
- A matar-te, talvez?
perguntei eu.
- Talvez, disse ela sorrindo
melancolicamente; confesso-lhe até que a minha intenção era morrer na hora do
seu casamento, a fim de que fôssemos ambos felizes, nhonhô casando-se, eu
morrendo.
- Mas desgraçada, tu não vês
que...
- Eu bem sei o que vejo, disse
ela; descanse; era essa a minha intenção, mas pode ser que o não faça...
Compreendi
que era melhor levá-la pelos meios brandos; entrei a empregá-los, sem esquecer
nunca a reserva que me impunha a minha posição. Mariana estava resolvida a não
voltar. Depois de gastar cerca de uma hora, sem nada obter, declarei-lhe
positivamente que ia recorrer aos meios violentos, e que já lhe não era
possível resistir. Perguntou-me que meios eram; disse-lhe que eram os agentes
policiais.
- Bem vês, Mariana,
acrescentei, sempre hás de ir para casa; é melhor que me não obrigues a um ato
que me causaria alguma dor.
- Sim? perguntou ela com
ânsia; teria dor em levar-me assim para casa?
- Alguma pena teria de certo,
respondi; porque tu foste sempre boa rapariga; mas que farei eu se continuas a
insistir em ficar aqui?
Mariana encostou a cabeça à
parede e começou a soluçar; procurei acalmá-la; foi impossível. Não havia
remédio; era necessário empregar o meio heróico. Sai do corredor para chamar
pelo criado que tinha descido logo depois que a porta se abriu.
Quando voltei ao quarto,
Mariana acabava de fazer um movimento suspeito. Parecia-me que guardava alguma
coisa no bolso. Seria alguma arma?
- Que escondeste ai? perguntei
eu.
- Nada, disse ela.
- Mariana, tu tens alguma
idéia terrível no espírito... Isso é alguma arma...
- Não, respondeu ela.
Chegou o criado e o dono da
casa. Expus-lhes em voz baixa o que queria; o criado saiu, o dono da casa
ficou.
- Eu suspeito que ela tem
alguma arma no bolso para matar-se; cumpre arrancar-lha.
Dizendo isto ao dono da casa,
aproximei-me de Mariana.
- Dá-me o que tens aí.
Ela contraiu um pouco o rosto. Depois, metendo a mão
no bolso, entregou-me o objeto que lá havia guardado.
Era um vidro vazio.
- Que é isto, Mariana?
perguntei eu, assustado.
- Nada, disse ela; eu queria
matar-me depois de amanhã. Nhonhô apressou a minha morte; nada mais.
- Mariana! exclamei eu
aterrado.
-
Oh! continuou ela com voz fraca; não lhe quero mal por isso. Nhonhô não tem
culpa - a culpa é da natureza. Só o que eu lhe peço é que não me tenha raiva, e
que se lembre algumas vezes de mim...
Mariana
caiu sobre a cama. Pouco depois entrava o inspetor. Chamou-se à pressa um
médico; mas era tarde. O veneno era violento; Mariana morreu às 8 horas da
noite.
Sofri muito com este
acontecimento; mas alcancei que minha mãe perdoasse à infeliz, confessando-lhe
a causa da morte dela. Amélia nada soube, mas nem por isso deixou o fato de
influir em seu espírito. O interesse com que eu procurei a rapariga, e a dor
que a sua morte me causou, transtornaram a tal ponto os sentimentos da minha
noiva, que ela rompeu o casamento dizendo ao pai que havia mudado de resolução.
Tal foi, meus amigos, este
incidente da minha vida. Creio que posso dizer ainda hoje que de todas as
mulheres de quem tenho sido amado, nenhuma me amou mais do que aquela. Sem
alimentar-se de nenhuma esperança, entregou-se alegremente ao fogo do martírio;
amor obscuro, silencioso, desesperado, inspirando o riso ou a indignação, mas,
no fundo, amor imenso e profundo, sincero e inalterável".
Coutinho concluiu assim a sua narração, que foi ouvida
com tristeza por todos nós. Mas daí a pouco saíamos pela rua do Ouvidor fora,
examinando os pés das damas que desciam dos carros, e fazendo a esse respeito
mil reflexões mais ou menos engraçadas e oportunas. Duas horas de conversa
tinha-nos restituído a mocidade.
J. J.
"Jornal das Famílias", número de Janeiro de
1871.
Fonte: Contos Avulsos - Machado de Assis - org. de R.
Magalhães Júnior - Editora Civilização Brasileira / Cia Brasileira de Livros -
1956