Machado de Assis
O
ANJO DAS DONZELAS
Cuidado,
leitor, vamos entrar na alcova de uma donzela.
A
esta notícia o leitor estremece e hesita. É naturalmente um homem de bons
costumes, acata as famílias e preza as leis do decoro público e privado. É
também provável que já tenha deparado com alguns escritos, destes que levam aos
papéis públicos certas teorias e tendências que melhor fora nunca tivessem
saído da cabeça de quem as concebeu e proclamou. Hesita e interroga a
consciência se deve ou não continuar a ler as minhas páginas, e talvez resolva
não prosseguir. Volta a folha e passa a coisa melhor.
Descanse,
leitor, não verá neste episódio fantástico nada do que se não pode ver à luz
pública. Eu também acato a família e respeito o decoro. Sou incapaz de cometer
uma ação má, que tanto importa delinear uma cena ou aplicar uma teoria contra a
qual proteste a moralidade.
Tranqüilize-se,
dê-me o seu braço, e atravessemos, pé ante pé, a soleira da alcova da donzela
Cecília.
Há
certos nomes que só assentam em certas criaturas, e que quando ouvimos
pronunciá-los como pertencentes a pessoas que não conhecemos, logo atribuímos a
estas os dons físicos e morais que julgamos inseparáveis daqueles. Este ê um
desses nomes. Veja o leitor se a moça que ali se acha no leito, com o corpo
meio inclinado, um braço nu escapando-se do alvo lençol e tendo na extremidade
uma mão fina e comprida, os cabelos negros, esparsos, fazendo contraste com a
brancura da fronha, os olhos meio cerrados lendo as últimas páginas de um
livro, veja se aquela criatura pode ter outro nome, e se aquele nome pode estar
em outra criatura.
Lê,
como disse, um livro, um romance, e apesar da hora adiantada, onze e meia, ela
parece estar disposta a não dormir sem saber quem casou e quem morreu.
Ao
pé do leito, sobre a palhinha que forra o soalho, estende-se um pequeno tapete,
cuja estampa representa duas rolas, de asas abertas, afagando-se com os
biquinhos. Sobre esse tapete estão duas chinelinhas, de forma turca, forradas
de seda cor de rosa, que o leitor jurará serem de um despojo de Cendrilon. São
as chinelas de Cecília. Avalia-se já que o pé de Cecília deve ser um pé
fantástico, imperceptível, impossível; e examinando bem pode-se até descobrir,
entre duas pontas do lençol mal estendido, a ponta de um pé capaz de entusiasmar
o meu amigo Ernesto C..., o maior admirador dos pés pequenos, depois de mim...
e do leitor.
Cecília
lê um romance. É o centésimo que lê depois que saiu do colégio, e não saiu há
muito tempo. Tem quinze anos. Quinze anos! é a idade das primeiras palpitações,
a idade dos sonhos, a idade das ilusões amorosas, a idade de Julieta; é a flor,
é a vida, é a esperança, o céu azul, o campo verde, o lago tranqüilo, a aurora
que rompe, a calhandra que canta, Romeu que desce a escada de seda, o último
beijo que as brisas da manhã ouvem e levam, como um eco, ao céu.
Que
lê ela? Daqui depende o presente e o futuro. Pode ser uma página da lição, pode
ser uma gota de veneno. Quem sabe? Não há ali à porta um índex onde se indiquem
os livros defesos e os lícitos. Tudo entra, bom ou mau, edificante ou
corruptor, "Paulo e Virgínia", ou "Fanny". Que lê ela neste
momento? Não sei. Todavia deve ser interessante o enredo, vivas as paixões,
porque a fisionomia traduz de minuto a minuto as impressões aflitivas ou
alegres que a leitura lhe vai produzindo.
Cecília
corre as páginas com verdadeira ânsia, os olhos voam de uma ponta da linha à
outra; não lê; devora; faltam só duas folhas, falta uma, falta uma lauda,
faltam dez linhas, cinco, uma... acabou.
Chegando
ao fim do livro, fechou-o e pô-lo em cima da pequena mesa que está ao pé da
cama. Depois, mudando de posição, fitou os olhos no teto e refletiu.
Passou
em revista na memória todos os sucessos contidos no livro, reproduziu episódio
por episódio, cena por cena, lance por lance. Deu forma, vida, alma, aos heróis
do romance, viveu com eles, conversou com eles, sentiu com eles. E enquanto ela
pensava assim, o gênio que nos fecha as pálpebras à noite hesitou, à porta do
quarto, se devia entrar ou esperar.
Mas,
entre as muitas reflexões que fazia, entre os muitos sentimentos quê a
dominavam, alguns havia que não eram d'agora, que já eram velhos hóspedes no
espírito e no coração de Cecília.
Assim
que, quando a moça acabou de reproduzir e saciar os olhos da alma na ação e nos
episódios que acabara de ler, voltou-lhe o espírito naturalmente para as idéias
antigas e o coração palpitou sob a ação dos antigos sentimentos.
Que
sentimentos, que idéias seriam essas? Eis a singularidade do caso. De há muito
tempo que as tragédias do amor a que Cecília assistia nos livros causavam-lhe
uma angustiosa impressão. Cecília só conhecia o amor pelos livros. Nunca amara.
Do colégio saíra para casa e de casa não saíra para mais parte alguma. O
pressentimento natural e as cores sedutoras com que via pintado o amor nos
livros, diziam-lhe que devia ser uma coisa divina, mas ao mesmo tempo
diziam-lhe também os livros que dos mais auspiciosos amores pode-se chegar aos
mais lamentáveis desastres. Não sei que terror se apoderou da moça; apoderou-se
dela um terror invencível. O amor, que para as outras mulheres apresenta-se com
aspecto risonho e sedutor, afigurou-se a Cecília que era um perigo e uma
condenação. A cada novela que lia mais lhe cresciam os sustos, e a pobre menina
chegou a determinar em seu espírito que nunca exporia o coração a tais
catástrofes.
Provinha
este sentimento de duas coisas: do espírito supersticioso de Cecília, e da
natureza das novelas que lhe davam para ler. Se nessas obras ela visse, ao lado
das más conseqüências a que os excessos podem levar, a imagem pura e suave da
felicidade que o amor dá, não se teria de certo apreendido daquele modo. Mas
não foi assim. Cecília aprendeu nesses livros que o amor era uma paixão
invencível e funesta; que não havia para ela nem a força de vontade nem a
perseverança do dever. Esta idéia calou no espírito da moça e gerou um
sentimento de apreensão e de terror contra o qual ela não podia nada, antes se
tornara mais impotente à medida que lia uma nova obra da mesma natureza.
Este
estrago moral completava-se com a leitura da última novela. Quando Cecília
levantou os olhos para o teto tinha o coração cheio de medo e os olhos
traduziam o sentimento do coração. O que sobretudo a atemorizava mais era a
incerteza que ela tinha de poder escapar à ação de uma simpatia funesta. Muitas
das páginas que lera diziam que o destino intervinha nos movimentos do coração
humano, e sem poder discernir o que teria de real ou de poético este juízo, a
pobre mocinha tomou ao pé da letra o que lera e confirmou-se nos receios que nutria
de muito tempo.
Tal
era a situação do espírito e do coração de Cecília quando o relógio de uma
igreja que ficava a dois passos da casa bateu meia noite. O som lúgubre do
sino, o silêncio da noite, a solidão em que estava, deram uma cor mais sombria às
suas apreensões.
Procurou
dormir para fugir às idéias sombrias que se lhe atropelavam no espírito e dar
descanso ao peso e ao ardor que sentia no cérebro; mas não pôde; caiu em uma
dessas insônias que fazem padecer mais em uma noite do que a febre de um dia
inteiro.
De
repente sentiu que se abria a porta. Olhou e viu entrar uma figura
desconhecida, fantástica. Era mulher? era homem? não se distinguia. Tinha esse
aspecto masculino e feminino a um tempo com que os pintores reproduzem as
feições dos serafins. Vestia túnica de tecido alvo, coroava a fronte com rosas
brancas e despedia dos olhos uma irradiação fantástica e impossível de
descrever. Andava sem que a esteira do chão rangesse sob os passos. Cecília
fitou os olhos na visão e não pôde mais desviá-los. A visão chegou-se ao leito
da donzela.
-
Quem és tu? perguntou Cecília sorrindo, com a alma tranqüila e os olhos vivos e
alegres diante da figura desconhecida.
-
Sou o anjo das donzelas, respondeu a visão com uma voz que nem era voz nem
música, mas um som que se aproximava de ambas as coisas, articulando palavras
como se executasse uma sinfonia do outro mundo.
-
Que me queres?
-
Venho em teu auxílio.
-
Para que?
O
anjo pôs as mãos no peito de Cecília e respondeu:
-
Para salvar-te.
-
Ah!
-
Sou o anjo das donzelas, continuou a visão, isto é, o anjo que protege as
mulheres que atravessam a vida sem amar, sem depor no altar dos amores uma só
gota do óleo celeste com que se venera o deus menino.
-
Sim?
- É
verdade. Queres que eu te proteja? Que te imprima na fronte o sinal fatídico
ante o qual recuarão todas as tentativas, curvar-se-ão todos os respeitos?
-
Quero.
-
Queres que com um bafejo meu te fique eternamente gravado o emblema da eterna
virgindade?
-
Quero.
-
Queres que eu te garanta em vida as palmas verdes e viçosas que cabem às que
podem atravessar o lodo da vida sem salpicar o vestido branco de pureza que
receberam do berço?
-
Quero.
-
Prometes que nunca, nunca, nunca te arrependerás deste pacto, e que, quaisquer
que sejam as contingências da vida, abençoarás a tua solidão?
-
Quero.
-
Pois bem! Estás livre, donzela, estás inteiramente livre das paixões. Podes
entrar agora, como Daniel, entre os leões ferozes; nada te fará mal. Vê bem; é
a felicidade, é o descanso. Gozarás ainda na mais remota velhice de uma isenção
que será a tua paz na terra e a tua paz no céu!
E
dizendo isto a fantástica criatura desfolhou algumas rosas sobre o seio de
Cecília. Depois tirou do dedo um anel e introduziu no dedo da moça, que não
opunha a nenhum destes atos, nem resistência nem admiração, antes sorria com um
sorriso de Angélica suavidade como se naquele momento entrevisse as glórias
perenes que o anjo lhe prometia.
-
Este anel, disse o anjo, é o anel de nossa aliança; doravante és minha esposa
ante a eternidade. Deste amor não te resultarão nem tormentos nem catástrofes.
Conserva este anel a despeito de tudo. No dia em que o perderes, estás perdida.
E
dizendo estas palavras a visão desapareceu.
A
alcova ficou cheia de uma luz mágica e de um perfume que parecia mesmo hálito de
anjos.
No
dia seguinte Cecília acordou com o anel no ledo e a consciência do que se
passara na véspera. Nesse dia levantou-se da cama mais alegre que nunca. Tinha
o coração leve e o espírito desassombrado. Tocara enfim o alvo que procurara: a
indiferença para os amores, a certeza de não estar exposta às catástrofes do
coração... Esta mudança tornou-se cada dia mais pronunciada, e de modo tal que
as amigas não deixaram de reparar.
-
Que tens tu? dizia uma. És outra inteiramente. Aqui anda namoro!
-
Qual namoro!
-
Ora, decerto! acrescentava outra.
-
Namoro? perguntava Cecília. Isso é bom para as... infelizes. Não para mim. Não
amo...
-
Amas!
-
Nem amarei.
-
Vaidosa!...
-
Feliz é que deves dizer. Não amo, é verdade. Mas que felicidade não me resulta
disto?... Posso afrontar tudo; estou armada de broquel e cota de armas...
-
Sim?
E as
amigas desataram a rir, apontando para Cecília e jurando que ela se havia de
arrepender de dizer palavras tais.
Mas
passavam os dias e nada fazia notar que Cecília tivesse pago o pecado que
cometera na opinião das amigas. Cada dia trazia um pretendente novo. O
pretendente fazia corte, gastava tudo quanto sabia para cativar a menina, mas
afinal desistia da empresa com a convicção de que nada podia fazer.
-
Mas não se lhe conhece preferido? perguntavam uns aos outros.
-
Nenhum.
-
Que milagre é este?
-
Qual milagre! Não lhe chegou a vez... Ainda não enflorou aquele coração. Quando
chegar a época da florescência há de fazer o que as mais fazem, e escolher
entre tantos pretendentes um marido.
E
com isto se consolavam os taboqueados.
O
que é certo é que corriam os dias, os meses, os anos, sem que nada mudasse a
situação de Cecília. Era a mesma mulher fria e indiferente. Quando completou
vinte anos tinha adquirido fama; era corrente em todas as famílias, em todos os
salões, que Cecília nascera sem coração, e a favor desta fama faziam-se
apostas, levantavam-se coragens; a moça tornou-se a Cartago das salas. Os
romanos de bigode retorcido e cabelo frisado juravam sucessivamente vencer a
indiferença púnica. Trabalho vão! Do agasalho cordial ao amor ninguém chegava
nunca, nem por suspeita. Cecília era tão indiferente que nem dava lugar à
ilusão.
Entre
os pretendentes um apareceu que começou por cativar os pais de Cecília. Era um
doutor formado em matemáticas, metódico como um compêndio, positivo como um
axioma, frio como um cálculo. Os país iram logo no novo pretendente o modelo, o
padrão, fênix dos maridos. E começaram por fazer em presença da filha os
elogios do rapaz. Cecília acompanhou-os nesses elogios, e deu alguma esperança
aos pais. O próprio pretendente soube do conceito em que tinha a moça e criou
esperanças.
E,
conforme a educação do espírito, tratou de regularizar a corte que fazia a
Cecília, como se se tratasse de descobrir uma verdade matemática. Mas, se a
expressão dos outros pretendentes não impressionou a moça, muito menos a
impressionava a frieza metódica daquele. Dentro de pouco tempo a moça negou-lhe
até aquilo que concedia aos outros: a benevolência e a cordialidade.
O
pretendente desistiu da causa e voltou aos calculos e aos livros.
Como
este, todos os outros pretendentes iam passando, como soldados em revista, sem
que o coração inflexível da moça pendesse para nenhum deles.
Então,
quando todos viram que os esforços eram baldados, começou-se a suspeitar que o
coração da moça estivesse empenhado a um primo que exatamente na noite da visão
de Cecília embarcara para seguir até Santos e daí tomar caminho para a
província de Goiás. Esta suspeita desvaneceu-se com os anos; nem o primo
voltou, nem a moça mostrou-se sentida com a ausência dele. Esta conjectura com
que os pretendentes queriam salvar a honra própria perdeu o valor, e os
iludidos tiveram de contentar-se com este dilema: ou não tinham sabido lutar,
ou a moça era uma natureza de gelo.
Todos
aceitaram a segunda hipótese.
Mas
que se passava nessa natureza de gelo? Cecília via a felicidade das amigas, era
confidente de todas, aconselhava-as ao sentido de uma prudente reserva, mas nem
procurava nem aceitava os ciúmes que lhe andavam a mão. Todavia mais de uma
vez, à noite, no fundo da alcova, a moça sentia-se só. O coração solitário
parece que se não acostumara de todo ao isolamento a que o votara a dona.
A
imaginação, para fugir às pinturas indiscretas de um sentimento a que a moça
fugia, corria às soltas no campo das criações fantásticas e desenhava com vivas
cores essa felicidade que a visão lhe prometera. Cecília comparava o que
perdera e o que ia ganhar, e dava a palma do gozo futuro em compensação do
presente. Mas nesses rasgos de imaginação o coração palpitava-lhe com força, e
mais de uma vez a moça dava acordo de si procurando com uma das mãos arrancar o
anel da aliança com a visão.
Nesses
momentos recuava, entrava em si e chamava no interior a visão daquela noite dos
quinze anos. Mas o desejo era baldado; a visão não aparecia, e Cecília ia
procurar no leito solitário a calma que não podia encontrar nas vigílias
laboriosas.
Muitas
vezes a aurora veio encontrá-la à janela, enlevada nas suas imaginações,
sentindo um vago desejo de conversar com a natureza, embriagar-se no silêncio
da noite.
Em
alguns passeios que fez aos subúrbios da cidade deixava-se impressionar por
tudo o que a vista lhe oferecia de novo, água ou montanha, areia ou ervaçal,
parecendo que a vista se lhe comprazia nisso e esquecendo-se muitas vezes de si
e dos outros.
Ela
sentia um vácuo moral, uma solidão interior, e procurava na atividade e na
variedade da natureza alguns elementos de vida para si. Mas a que atribuía ela
essa ânsia de viver, esse desejo de ir buscar fora aquilo que lhe faltava? Ao
principio não reparou no que fazia; fazia involuntariamente, sem determinação
nem conhecimento da situação.
Mas,
como se prolongasse a situação, ela foi pouco a pouco descobrindo o estado do
coração e do espírito. Tremeu ao principio, mas em breve se tranqüilizou; a
idéia da aliança com a visão pesava-lhe no espírito, e as promessas feitas por
ela de uma bem-aventurança sem igual desenhava na fantasia de Cecília um quadro
vivo e esplêndido. Isto consolava a moça, e, sempre escrava dos juramentos, ela
fazia honra sua em ficar pura do coração para subir à morada das donzelas
libertadas do amor.
Demais,
ainda que o quisesse, parecia-lhe impossível sacudir a cadeia a que
involuntariamente se prendera.
E os
anos corriam.
Aos vinte
e cinco inspirou uma paixão violenta a um jovem poeta. Foi uma dessas paixões
como só os poetas sabem sentir. Este do meu conto depôs aos pés da bela
insensível a vida, o futuro, a vontade. Regou com lágrimas os pés de Cecília e
pediu-lhe como uma esmola uma centelha que fosse do amor que parecia ter
recebido do céu. Tudo foi inútil, tudo foi vão. Cecília nada lhe deu, nem amor
nem benevolência. Amor não tinha; benevolência podia ter, mas o poeta perdera o
direito a ela desde que declarou a extensão do seu sacrifício. Isto deu a
Cecília a consciência da sua superioridade, e com essa consciência certa dose
de vaidade que lhe vendava os olhos e o coração.
Se
lhe aparecera o anjo para tirar-lhe do coração o gérmen do amor, não lhe
apareceu nenhum que lhe tirasse o pouco de vaidade.
O
poeta deixou Cecília e foi para casa. Dai seguiu para uma praia, subiu a uma
pequena eminência e atirou-se ao mar. Dai a três dias encontrou-se-lhe o
cadáver, e os jornais deram do fato uma notícia lacrimosa. Entretanto encontrou-se
entre os papéis do poeta a seguinte carta:
"*** A Cecília D...
"Morro por ti. É ainda
uma felicidade que eu procuro em falta da outra que eu procurei, implorei e não
alcancei.
"Não me quiseste amar;
não sei se o teu coração estaria cativo, mas dizem que não. Dizem que és
insensível e indiferente.
"Não quis crê-lo e fui
por mim próprio averiguá-lo. Coitado de mim! o que vi bastou para dar-me a
certeza de que não estava reservado para mim semelhante fortuna.
"Não te pergunto que
curiosidade te levou a voltares a cabeça e transformares-te, como a mulher de
Loth, em estátua insensível e fria. Se alguma coisa há nisto que eu não
compreendo, não quero sabê-lo agora que deixo o fardo da vida e vou, por
caminho escuro pra curar o termo feliz da minha viagem.
Deus te abençoe e te faça
feliz. Não te desejo mal. Se te fujo e se fugi ao mundo é por fraqueza, não é
por ódio; ver-te, sem ser amado, é morrer todos os dias. Morro uma só vez e
rapidamente.
"Adeus..."
Esta
carta causou a Cecília muita impressão. Chorou até. Mas era piedade e não amor.
A maior consolação que ela mesma deu a si foi o pacto secreto e misterioso. É
culpa minha? perguntava ela. E respondendo negativamente a si mesma achava
nisso a legitimidade da sua indiferença.
Todavia,
esta ocorrência trouxe lhe ao espírito uma reflexão.
O
anjo prometera-lhe, em troca da isenção para o amor, uma tranqüilidade durante
a vida que só poderia ser excedida pela paz eterna da bem-aventurança.
Ora,
que encontrava ela? O vácuo moral, as impressões desagradáveis, uma sombra de
remorso, eis os lucros que tivera.
Os
que foram fracos como o poeta recorreram aos meios extremos ou deixaram-se
dominar pela dor. Os menos fracos ou menos sinceros no amor alimentaram contra
Cecília um despeito que deu em resultado levantar-se uma opinião ofensiva à
moça.
Mais
de um procurava na sombra o motivo da indiferença de Cecília. Era a segunda vez
que se atiravam a essas investigações. Mas o resultado delas era sempre nulo,
visto que a realidade era. que Cecília não amava ninguém.
E os
anos corriam...
Cecília
chegou aos trinta e três anos. Já não era a idade de Julieta, mas era uma idade
ainda poética; poética neste sentido - que a mulher, em chegando a ela, tendo
já perdido as ilusões dos primeiros tempos, adquire outras mais sólidas,
fundadas na observação.
Para
a mulher dessa idade o amor já não é uma aspiração do desconhecido, uma
tendência mal exprimida; é uma paixão vigorosa, um sentimento mais eloqüente;
ela já não procura a esmo um coração que responda ao seu; escolhe entre os que
encontra um que possa compreendê-la, capaz de amar como ela, próprio para fazer
essa doce viagem às regiões divinas do amor verdadeiro, exclusivo, sincero,
absoluto.
Nessa
idade era ainda bela. E pretendida. Mas a beleza continuou a ser um tesouro que
a indiferença avarenta guardava para os vermes da terra.
Um
dia, longe dos primeiros, muito longe, a primeira ruga desenhou-se no rosto de
Cecília e alvejou um primeiro cabelo. Mais tarde, segunda ruga, segundo cabelo,
e outras e outros, até que a velhice de Cecília declarou-se completa.
Mas
há velhice e velhice. Há velhice feia e velhice bonita. Cecília era da segunda
espécie, porque através dos sinais evidentes que o tempo deixara nela,
sentia-se que fora uma criatura formosa, e, embora de outra natureza, Cecília
inspirava ainda a ternura, o entusiasmo, o respeito.
Os
fios de prata que lhe serviam de cabelos emolduravam-lhe o rosto rugado, mas
ainda suave. A mão, que tão linda era outrora, não tinha a magreza repugnante,
mas era ainda bela e digna de uma princesa... velha.
Mas
o coração? Esse atravessara do mesmo modo os tempos e os sucessos sem nada
deixar de si. A isenção foi sempre completa. Lutava embora contra não sei que
repugnância do vácuo, não sei que horror da solidão, mas nessa luta a vontade
ou a fatalidade vencia sempre, triunfava de tudo, e Cecília pôde chegar à
adiantada idade em que achamos sem nada perder.
O
anel, o fatídico anel, foi o talismã que nunca a abandonou. A favor desse
talismã, que era a assinatura do contrato celebrado com o anjo das donzelas,
ela pôde ver de perto o sol sem se queimar.
Tinham-lhe
morrido os pais. Cecília vivia em casa de uma irmã viúva. Vivia dos bens que
recebera em herança.
Que
fazia agora? Os pretendentes desertaram, os outros envelheceram também, mas iam
ainda por lá alguns deles. Não para requestá-la de certo, mas para passar as
horas ou em conversa grave e pausada sobre coisas sérias, ou à mesa de algum
jogo inocente e próprio de velhos.
Não
poucas vezes era assunto de conversação geral a habilidade com que Cecília
conseguira atravessar os anos da primeira e da segunda mocidade sem empenhar o
coração em nenhum laço de amor. Cecília respondia a todos que tivera um segredo
poderoso do qual não podia fazer comunicação alguma.
E
nestas ocasiões olhava amorosamente para o anel que trazia no dedo ornado de
uma bela e grande esmeralda.
Mas
ninguém reparava nisto.
Cecília
gastava horas e horas da noite em evocar a visão dos quinze anos. Quisera achar
conforto e confirmação às suas crenças, quisera ver e ouvir ainda a figura
mágica e a voz celeste do anjo das donzelas. Parecia-lhe, sobretudo, que o
longo sacrifício que consumara merecia, antes da realização, uma repetição das
promessas anteriores.
Entre
os que freqüentavam a casa de Cecília alguns velhos havia dos que, na mocidade,
tinham feito roda a Cecília e tomado mais ou menos seriamente as expressões de
cordialidade da moça.
Assim
que, agora que se encontravam nas últimas estações da vida, mais de uma vez a
conversa tinha por objeto a isenção de Cecília e as infelicidades dos
adoradores.
Cada
um referia os seus episódios mais curiosos, as dores que sentira, as decepções
que sofrera, as esperanças que Cecília esfolhara com impassibilidade cruel.
Cecília
ria ouvindo essas confissões, e acompanhava os seus adoradores de outrora no
terreno das facécias que as revelações mais ou menos inspiravam.
-
Ah! dizia um, eu é que sofri como poucos.
-
Sim? perguntava Cecília.
- É
verdade.
-
Conte lá.
-
Olhe, lembra-se daquela partida em casa do Avelar ?
-
Foi há tanto tempo!
- Pois
eu me lembro perfeitamente.
-
Que houve?
-
Houve isto.
Todos
se prepararam para ouvir a narração prometida.
-
Houve isto, continuou o ex-adorador. Estávamos no baile. Eu, nesse tempo, era
um verdadeiro pintalegrete. Envergava a melhor casaca, esticava a melhor calça,
derramava os melhores cheiros. Mais de uma dama suspirava em segredo por mim, e
às vezes nem mesmo em segredo...
-
Ah!
- É
verdade. Mas qual é a lei geral da humanidade? É não aceitar aquilo que se lhe
dá, para ir buscar aquilo que não poderá obter. Foi o que fiz.
............... Le bonheur, c'est la boule Que cet enfant porsuit tout
le temps qu'elle roule.
Et que, dès qu'elle arrête, il repousse du pied.
-
Bravo!
-
Vamos a história!
-
Estávamos no baile. Já duas senhoras tinham-se retirado para o camarim a fim de
evitar algum desmaio. Por que? Que fazia eu? Eu derramava aos pés de D. Cecília
uma torrente de madrigais, dizia-lhe do melhor modo possível que a beleza dela
tinha-me inspirado um amor profundo e decisivo. Ela não prestava aos meus
discursos senão uma atenção indiferente. Isto desesperava. Insistia, repetia,
pedia-lhe quase o coração. Ela nada. Enfim ofereci-lhe o braço. Percorremos
algumas salas. D. Cecília estava divina de graça, de beleza, e até... de
indiferença. Se fosse a indiferença somente bem estava, mas houve mais.
-
Houve mais?
-
Houve. Houve desengano. Eu disse-lhe que a amava perdidamente; ela respondeu-me
positivamente que não me podia amar. Quase cai. Não lhe disse mais nada e
voltamos para a sala.
-
Não me lembro disso, observou Cecília.
-
Lembro-me eu que fui a vítima. O algoz...
- À
ordem! à ordem! reclamaram os ouvintes. O narrador continuou:
-
Deixei D. Cecília na sala e saí. Fui para o jardim. Desesperado, cuidei que o
ar e a solidão me aplacassem o ânimo. Vi através da rama de uns arbustos um
ponto de luz. Era um charuto ao que me parecia, e com o charuto um homem. A
noite estava escuríssima. Caminhei para o lugar em que me parecia estar o homem
e o charuto. Pedi fogo e vi que o charuto me entrava nas mãos. Acendi um
charuto e agradeci. A minha voz foi conhecida pelo meu interlocutor e eu
próprio reconheci na voz que me falava um rapaz que eu conhecera nos salões.
-
Abrevie a história!
-
Apoiado!
- É
simples. Contei ao meu interlocutor os motivos da minha presença, e estava
calmo, esperando algumas palavras de consolação, quando me senti agarrado.
Procurei defender-me e lutamos durante alguns minutos, ao som de uma polca que
se executava no interior da casa. Todos compreendem o caso. O meu adversário
era pretendente ao coração de D. Cecília; estava, como eu, desconsolado.
Lutamos, como disse. Nunca mais nos falamos.
-
Nunca mais?
-
Nunca mais.
-
Não me lembro de nada, nem me constou nada neste sentido, disse Cecília.
- Eu
nunca disse nada a ninguém.
Fora
escrever dois volumes repetir os episódios trágicos, ou cômicos, ou patéticos,
que os ex-adoradores de Cecília traziam para a conversação.
Em
uma dessas práticas íntimas, singelas, trouxe um criado uma carta para Cecília.
Era de Tibúrcio.
Quem
era Tibúrcio? Era o primo de Cecília que partira da corte na noite em que
Cecília fizera o contrato misterioso para independência do coração.
Tibúrcio partira moço e voltou velho. Nunca dera sinal de si. Não se
sabia onde andava nem que fazia.
Tibúrcio escrevia de S. Paulo. Dizia que dentro de oito dias estaria na
corte. E dai a oito dias chegou.
A carta dizia:
"Minha
prima. - Dentro de oito dias lá' estarei. Vai aparecer-lhe um velho. Há que
tempo de lá saí!
"Andei
seca e meca. Ganhei, perdi, tornei a ganhar, e a experiência me serviu, por que
o que ganhei conservo agora e .não tenho idéia, nem ânimo de perdê-lo outra
vez.
"Que
é feito de nossa família? Eu de nada sei. Não procurei ninguém, não escrevi;
acho que fizeram bem em me não escreverem. Com ingrato, ingrato e meio. Mas eu
hei de provar que não fui ingrato.
"Adeus.
Esta lhe há de ser entregue por C..., meu amigo, que parte para essa corte.
Adeus. - Tibúrcio".
Tibúrcio acompanhou a carta com intervalo de alguns dias. Era um velho
bonito, folgazão, opulento de carnes e de dinheiro.
Nem Tibúrcio reconhecia Cecília, nem Cecília reconheceu Tibúrcio. Tão
mudados estavam!
Vieram as longas narrativas do que se houvera passado durante o longo
espaço de tempo que se não viram.
É necessário dizer que Tibúrcio, quando partira da corte, amava
Cecília, sem que para amá-la se fundasse em nenhum sentimento recíproco.
Cecília foi ao principio indiferente... por indiferença. Mais tarde é
que veio o pacto angélico.
Tibúrcio ouviu, com grande admiração, da boca de Cecília a notícia de
que ela nunca se houvera casado.
E de sua parte declarou que também se conservara solteiro, adiantando
logo a razão disso, que era não poder levar família para as trabalhosas
empresas a que se entregava.
Mas
a respeito de Cecília admirou-se muito. Não a deixara formosa e requestada? Não
via ainda que essa beleza tarde desapareceu?
-
Não quis, respondia Cecília.
-
Mas por que?...
-
Não sei... não quis.
E,
como sempre, Cecília olhava amorosamente para o anel. Os olhos de Tibúrcio
acompanharam os de Cecília e pousaram na esmeralda que ela trazia no dedo.
-
Ah! disse ele.
E a
conversa passou a outros assuntos.
Insistiram
todos em que Tibúrcio referisse as suas viagens, as suas aventuras, os seus
perigos, as suas fortunas.
-
Fora preciso um ano, disse Tibúrcio.
Com
efeito, Tibúrcio tinha vivido uma vida acidentada. Lutas, perigos, sustos,
fortunas, alternativas de todo o gênero, tudo matizava o fundo do quadro da
existência de Tibúrcio.
Tibúrcio
adquirira parte de sua fortuna em algumas explorações de minas de ouro e de
brilhantes.
Durante
os dias que se seguiram ao da chegada dele em casa de Cecília, a família, os
restos da família, e os convivas habituais, divertiram-se muito ouvindo as
narrações de Tibúrcio sobre os acidentes das explorações mineiras.
Quando
se esgotou esse capítulo, Tibúrcio referiu que uma vez fora agarrado pelos
bugres perto do rio Araguaia. Quando caiu nas mãos daqueles bárbaros perdeu até
a última gota de sangue. Viu a morte diante dos olhos. Já os bugres se
preparavam para almoçar aquele bife, quando uma partida de soldados que andava
à caça de um criminoso descobriu o fato e chegou a tempo de salvar Tibúrcio dos
estômagos indígenas.
Outros perigos correra o
primo de Cecília, como o de naufragar em torrentes de rios, encontrar-se com
onças, e outros deste gênero.
O
auditório habitual de Tibúrcio divertia-se muito com estas narrações, e ele por
sua parte sabia referir os tais episódios dando-lhes as cores próprias de
comover e interessar.
Tibúrcio resolvera ir morar com as duas parentas, e ali se instalou
imediatamente.
Todas as noites havia uma reunião de amigos para tomar chá, conversar e
jogar.
Uma noite de chuva, em mês de junho, debalde se esperaram os convivas.
A chuva e o frio não consentiram que os respeitáveis anciões deixassem os
conchegos do lar, nem mesmo com a sedução das boas horas que se passava em casa
de Cecília.
Foram, pois, os três parentes obrigados a se privarem naquela noite da
companhia dos amigos.
Tomaram chá cedo e estavam fazendo horas à mesa até que viesse a hora
habitual de se recolherem.
Travou-se a seguinte conversação:
- Ora, prima, disse Tibúrcio, ainda não lhe contei os tormentos que
sofri relativamente ao coração.
- Ah!
- É verdade. Lembrei-me muito de você.
- Deveras?
- É verdade. Não se lembra que eu mais de uma vez lhe confessei o amor
que alimentava?
- Lembro-me, sim.
- Pois sai da corte com as mais dolorosas impressões. Via que ia para
longe e perdia de vista a mulher que eu ainda nem conhecia de coração. Padeci
muito.
- Falar nisso agora não sei que me parece.
- Parece o que é, a verdade. Quis matar-me...
- Que tolice!
- Foi o que eu pensei...
- Morria e eu ficava.
- Mas o que me agrada é ver que se eu não esqueci, também você não
esqueceu.
- Não, decerto.
- Mas, de certo modo?
- Que modo?
- Gentes! disse a prima viúva. Vocês parecem namorados!
- Mas de que modo? como apaixonada?
- Sim.
- Que loucura!
- Pelo menos tenho uma prova.
-
Vamos ver a prova, disse a viúva.
- A
prova não está comigo.
-
Está comigo? perguntou Cecília.
- É
verdade.
-
Onde?
-
Aí, no dedo.
Cecília
olhou para o anel.
- No
dedo! disse ela sem compreender a que podia o primo aludir.
-
Esse anel, disse o primo.
-
Este anel? Que tem este anel?
-
Ora, afinal, disse a prima viúva, vamos saber o que significa este
misterioso anel.
Cecília
estava espantada sem compreender.
Tibúrcio
continuou:
-
Este anel, sim. É meu. Ou por outra, é seu hoje, mas foi meu, porque o
encomendei.
-
Mas explique-se.
-
Nas vésperas de partir da corte quis deixar-lhe uma prova de que o meu amor era
verdadeiro e seria eterno. Encomendei este anel, que o ourives prontificou com
o maior cuidado e zelo. Tinha dois meios de dar-lho: ou introduzir-lho no dedo,
francamente, com a declaração de que era uma lembrança minha que deixara, ou
depositá-lo no seu toucador para que, quando eu já estivesse fora, aquela
lembrança a surpreendesse.
- É
romanesco, disse a viúva.
Cecília
nada disse. Tinha os olhos pregados em Tibúrcio e procurava arrancar-lhe as
palavras da boca.
Tibúrcio
prosseguiu:
-
Preferi o segundo meio por me parecer, como diz a prima, romanesco. Mas, ao
executá-lo, ocorreu-me um terceiro meio. Era o de colocar o anel no seu dedo na
hora em que dormisse, de modo que a surpresa fosse ainda maior.
-
Ah! e...
Esta
exclamação e esta conjunção partiram da prima viúva. Cecília tão absorta estava
que nada podia dizer.
- Descansem, disse Tibúrcio, eu fiz as coisas honestamente. Peitei a
mucama para que alta noite, na ocasião em que a prima dormisse depois da
costumada leitura... Ah! você lia muito romance!
- Adiante!
- Para que alta noite se aproveitasse do sono em que você estivesse e
lhe pusesse o anel. Assim foi. Vejo agora que conservou o anel. Mas, diga-me, a
Teresa nunca lhe disse nada disto?
- Não, disse Cecília distraidamente.
- Pois foi assim. E se quer mais uma prova tire o anel... Nunca o
tirou?
- Nunca.
- Pois tire o anel e veja se não estão gravadas pela parte interior as
iniciais do meu nome.
Cecília hesitou entre a curiosidade de averiguar a asseveração de
Tibúrcio e um resto de crença que tinha nas palavras da visão.
- Tire o anel.
- Mas...
- Tire! Que receio é esse?
- Esperem, não tiro por uma razão. Eu não creio no que diz o primo
Tibúrcio.
- Por que?
- Não creio, mas creio em outra coisa.
- Essa agora!
- É verdade.
E
Cecília passou a referir aos dois parentes todas as circunstâncias da visão, o
diálogo que tivera com ela, a fé em que lhe ficaram as promessas do anjo das
donzelas.
- Tal foi, acrescentou Cecília, a razão porque me não casei. Tinha fé
nisto. Quanto a tirar o anel, disse-me a visão que nunca o fizesse.
Tibúrcio
deu uma gargalhada.
- Ora, prima, disse ele, pois você quer contestar uma verdade com uma
superstição? Ainda acredita em sonhos!
- Como, sonhos?
- É evidente. Isso da visão não passou de um sonho. Coincidiu o sonho
com o fato do anel. Mas você quando acordou no dia seguinte achou-se com um
anel no dedo, não devia fazer outra coisa mais do que averiguar a razão do
fenômeno, e não dar crédito a uma coisa toda de imaginação.
Cecília
abanou a cabeça.
- Pois não crê? Tire o anel.
Cecília
hesitava. Mas Tibúrcio usou da arma do ridículo, no que foi acompanhado pela
prima viúva de modo que Cecília, com alguma relutância, pálida e trêmula,
arrancou o anel do dedo.
O anel tinha na parte interna gravadas estas iniciais: T. B.
MAX.
in Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, 1864, p. 229-257;
281-289.
Fonte: Contos Avulsos -
Machado de Assis - org. de R. Magalhães Júnior - Editora Civilização Brasileira
/ Cia Brasileira de Livros - 1956