Machado
de Assis
PAPÉIS
VELHOS
Brotero
é deputado. Entrou agora mesmo em casa, às duas horas da noite, agitado,
sombrio, respondendo mal ao moleque, que lhe pergunta se quer isto ou aquilo, e
ordenando-lhe, finalmente, que o deixe só. Uma vez só, despe-se, enfia um
chambre e vai estirar-se no canapé do gabinete, com os olhos no teto e o
charuto na boca. Não pensa tranqüilamente; resmunga e estremece. Ao cabo de
algum tempo senta-se; logo depois levanta-se, vai a uma janela, passeia, pára
no meio da sala, batendo com o pé no chão; enfim resolve ir dormir, entra no
quarto, despe-se, mete-se na cama, rola inutilmente de um lado para outro,
torna a vestir-se e volta para o gabinete.
Mal
se sentou outra vez no canapé, bateram três horas no relógio da casa. O silêncio
era profundo; e, como a divergência dos relógios é o princípio fundamental da
relojoaria, começaram todos os relógios da vizinhança a bater, com intervalos
desiguais, uma, duas, três horas. Quando o espírito padece, a coisa mais
indiferente do mundo traz uma intenção recôndita, um propósito do destino.
Brotero começou a sentir esse outro gênero de mortificação. As três pancadas
secas, cortando o silêncio da noite, pareciam-lhe as vozes do próprio tempo,
que lhe bradava: "Vai dormir". Enfim, cessaram; e ele pôde ruminar,
resolver, e levantar-se, bradando:
-
Não há outro alvitre, é isto mesmo.
Dito
isso, foi à secretária, pegou da pena e de uma folha de papel, e escreveu esta
carta ao presidente do conselho de ministros:
"Excelentíssimo
senhor
"Há
de parecer estranho a V. Ex.ª tudo o que vou dizer neste papel; mas, por mais
estranho que lhe pareça, e a mim também, há situações tão extraordinárias que
só comportam soluções extraordinárias. Não quero desabafar nas esquinas, na Rua
do Ouvidor, ou nos corredores da Câmara. Também não quero manifestar-me, na
tribuna, amanhã ou depois, quando V. Ex.ª for apresentar o programa do seu
ministério; seria digno, mas seria aceitar a cumplicidade de uma ordem de
coisas, que inteiramente repudio. Tenho um só alvitre: renunciar à cadeira de
deputado e voltar à vida íntima.
"Não
sei se, ainda assim, V. Ex.ª me chamará despeitado. Se o fizer, creio que terá
razão. Mas rogo-lhe que advirta que há duas qualidades de despeito e o meu é da
melhor.
"Não
pense V. Ex.ª que recuo diante de certas deputações influentes, nem que me
senti ferido pelas intrigas do A... e por tudo o que fez o B... para meter o
C... no ministério. Tudo isso são coisas mínimas. A questão para mim é de
lealdade, já não digo política, mas pessoal; a questão é com V. Ex.ª. Foi V.
Ex.ª que me obrigou a romper com o ministério dissolvido, mais cedo do que era
minha intenção, e, talvez mais cedo do que convinha ao partido. Foi V. Ex.ª
que, uma vez, em casa do Z... me disse, a uma janela, que os meus estudos de
questões diplomáticas me indicavam naturalmente a pasta de estrangeiros. Há de
lembrar-se que lhe respondi então ser para mim indiferente subir ao ministério,
uma vez que servisse ao meu país. V. Ex.ª replicou: - É muito bonito, mas os
bons talentos querem-se no ministério.
"Na
Câmara, já pela posição que fui adquirindo, já pelas distinções especiais de
que era objeto, dizia-se, acreditava-se que eu seria ministro na primeira
ocasião; e, ao ser chamado V. Ex.ª ontem para organizar o novo gabinete, não se
jurou outra coisa. As combinações variavam, mas o meu nome figurava em todas
elas. É que ninguém ignorava as finezas de V. Ex.ª para comigo, os bilhetes em
que me louvava, os seus reiterados convites, etc. Confesso a V. Ex.ª que
acompanhei a opinião geral.
"A
opinião enganou-se, eu enganei-me; o ministério está organizado sem mim.
Considero esta exclusão um desdouro irreparável, e determinei deixar a cadeira
de deputado a algum mais capaz, e, principalmente, mais dócil. Não será difícil
a V. Ex.ª achá-lo entre os seus numerosos admiradores. Sou, com elevada estima
e consideração.
"De
V. Ex.ª desobrigado amigo,
BROTERO".
Os
verdadeiros políticos dirão que esta carta é só verossímil no despeito, e
inverossímil na resolução. Mas os verdadeiros políticos ignoram duas coisas,
penso eu. Ignoram Boileau, que nos adverte da possível inverossimilhança da
verdade, em matérias de arte, e a política, segundo a definiu um padre da nossa
língua, é a arte das artes; e ignoram que um outro golpe feria a alma do Brotero
naquela ocasião. Se a exclusão do ministério não bastava a explicar a renúncia
da cadeira, outra perda a ajudava. Já têm notícia do desastre político; sabem
que houve crise ministerial que o conselheiro *** recebeu do Imperador o
encargo de organizar um gabinete, e que a diligência de um certo B... conseguiu
meter nele um certo C... A pasta deste foi justamente a de estrangeiros, e o
fim secreto da diligência era dar um lugar na galeria do Estado à viúva
Pedroso. Esta senhora, não menos gentil que abastada, elegera dias antes para
seu marido o recente ministro. Tudo isso iria menos mal, se o Brotero não
cobiçasse ambas as fortunas, a pasta e a viúva; mas, cobiçá-las, cortejá-las e
perdê-las, sem que ao menos uma viesse consolá-lo, da perda da outra, digam-me
francamente se não era bastante a explicar a renúncia do nosso amigo?
Brotero
releu a carta, dobrou-a, encapou-a, sobrescritou-a; depois atirou-a a um lado,
para remetê-la no dia seguinte. O destino lançara os dados. César transpunha o
Rubicão, mas em sentido inverso. Que fique Roma com os seus novos cônsules e
patrícias ricas e volúveis! Ele volve à região dos obscuros; não quer gastar o
aço em pelejas de aparato, sem utilidade nem grandeza. Reclinou-se na cadeira e
fechou o rosto na mão. Tinha os olhos vermelhos quando se levantou; e
levantou-se porque ouviu bater quatro horas, e recomeçar a procissão dos
relógios, a cruel e implicante monotonia das pêndulas. Uma, duas, três,
quatro...
Não
tinha sono, não tentou sequer meter-se na cama. Entrou a andar de um lado para
outro, passeando, planeando, relembrando. De memória em memória, reconstruiu as
ilusões de outro tempo, comparou-as com as sensações de hoje, e achou-se
roubado. Voluptuoso até na dor, mirou afincadamente essas ilusões perdidas, como
uma velha contempla as suas fotografias da mocidade. Lembrou-se de um amigo que
lhe dizia que, em todas as dificuldades da vida, olhasse para o futuro. Que
futuro? Ele não via nada. E foi-se achegando da secretária, onde tinha
guardadas as cartas dos amigos, dos amores, dos correligionários políticos,
todas as cartas. Já agora não podia conciliar o sono; ia reler esses papéis
velhos. Não se relêem livros antigos?
Abriu
a gaveta; tirou dois ou três maços e desatou-os. Muitas das cartas estavam
encardidas do tempo. Posto nem todos os signatários houvessem morrido, o
aspecto geral era de cemitério; donde se pode inferir que, em certo sentido,
estavam mortos e enterrados. E ele começou a relê-las, uma a uma, as de dez
páginas e os simples bilhetes, mergulhando nesse mar morto de recordações
apagadas, negócios pessoais ou públicos, um espetáculo, um baile, dinheiro
emprestado, uma intriga, um livro novo, um discurso, uma tolice, uma
confidência amorosa. Uma das cartas, assinada Vasconcelos, fê-lo estremecer:
"A
L..., dizia a carta, chegou a S. Paulo, anteontem. Custou-me muito e muito
obter as tuas cartas, mas alcancei-as, e daqui a uma semana estarão contigo;
levo-as eu mesmo. Quanto ao que me dizes na tua de H... estimo que tenhas
perdido a tal idéia fúnebre; era um despropósito. Conversaremos à vista".
Esse
simples trecho trouxe-lhe uma penca de lembranças. Brotero atirou-se a ler
todas as cartas do Vasconcelos. Era um companheiro dos primeiros anos, que
naquele tempo cursava a academia, e agora estava de presidente no Piauí. Uma
das cartas, muito anterior àquela, dizia-lhe:
"Com
que então a L... agarrou-te deveras? Não faz mal; é boa moça e sossegada. E
bonita, maganão! Quanto ao que me dizes do Chico Souza, não acho que devas ter
nenhum escrúpulo; vocês não são amigos; dão-se. E depois, não há adultério. Ele
devia saber que quem edifica em terreno devoluto..."
Treze
dias depois:
"Está
bom, retiro a expressão terreno devoluto; direi terreno que, por direito
divino, humano e diabólico, pertence ao meu amigo Brotero. Estás
satisfeito?"
Outra,
no fim de duas semanas:
"Dou-te
a minha palavra de honra que não há no que disse a menor falta de respeito aos
teus sentimentos; gracejei, por supor que a tua paixão não era tão séria. O
dito por não dito. Custa pouco mudar de estilo, e custa muito perder um amigo,
como tu..."
Quatro
ou cinco cartas referiam-se às suas efusões amorosas. Nesse intervalo o Chico
Souza farejou a aventura e deixou a L...; e o nosso amigo narrou o lance ao
Vasconcelos, contente de a possuir sozinho. O Vasconcelos felicitou-o, mas
fez-lhe um reparo.
"...
Acho-te exigente e transcendente. A coisa mais natural do mundo é que essa
moça, perdendo um homem a quem devia atenções e que lhe dera certo relevo,
recebesse com alguma dor o golpe. Saudade, infidelidade, dizes tu. Realmente, é
demais. Isso não prova senão que ela sabe ser grata aos benefícios recebidos.
Quanto à ordem que lhe deste de não ficar com um só traste, uma só cadeira, um
pente, nada do que foi do outro, acho que não a entendi bem. Dizes-me que o
fizeste por um sentimento de dignidade; acredito. Mas não será também um pouco
de ciúme retrospectivo? Creio que sim. Se a saudade é uma infidelidade, o leque
é um beijo; e tu não queres beijos nem saudades em casa. São maneiras de ver..."
Brotero
ia assim relendo a aventura, um capítulo inteiro da vida não muito longo, é
verdade, mas cálido e vivo. As cartas abrangiam um período de dez meses; desde
o sexto mês começaram os arrufos, as crises, as ameaças de separação. Ele era
ciumento; ela professava o aforismo de que o ciúme significa falta de
confiança; chegava mesmo a repetir esta sentença vulgar e enigmática:
"zelos, sim, ciúmes, nunca". E dava de ombros, quando o amante
mostrava uma suspeita qualquer, ou lhe fazia alguma exigência. Então ele
excedia-se; e aí vinham as cenas de irritação, de reproches, de ameaças, e por
fim de lágrimas. Brotero às vezes deixava a casa, jurando não voltar mais; e
voltava logo no dia seguinte, contrito e manso. Vasconcelos reprimia-o de
longe; e, em relação às deixadas e tornadas, dizia-lhe uma vez: "Má
política, Brotero; ou lê o livro até o fim, ou fecha-o de uma vez; abri-lo e
fechá-lo, fechá-lo e abri-lo é mau, porque traz sempre a necessidade de reler o
capítulo anterior para ligar o sentido, e livros relidos são livros
eternos". A isto respondia o Brotero que sim, que ele tinha razão, que ia
emendar-se de uma vez, tanto mais que agora viviam como os anjos no céu.
Os
anjos dissolveram a sociedade. Parece que o anjo L..., exausto da perpétua
antífona, ouviu cantar Dáfnis e Cloé, cá embaixo, e desceu a ver o que é que
podiam dizer tão melodiosamente as duas criaturas. Dáfnis vestia então uma
casaca e uma comenda, administrava um banco, e pintava-se; o anjo repetiu-lhe a
lição de Cloé; adivinha-se o resto. As cartas de Vasconcelos neste período eram
de consolação e filosofia. Brotero lembrou-se de tudo o que padeceu, das
imprudências que praticou, dos desvarios, que lhe trouxe aquela evasão de uma
mulher, que realmente o tinha nas mãos. Tudo empregara para reavê-la e tudo
falhara. Quis ver as cartas que lhe escreveu por este tempo, e que o
Vasconcelos, mais tarde, pôde alcançar dela em S. Paulo e foi à gaveta onde as
guardara com as outras. Era um maço atado com fita preta. Brotero sorriu da
fita preta; deslaçou o maço e abriu as cartas. Não saltou nada, data ou
vírgula; leu tudo, explicações, imprecações, súplicas, promessas de amor e paz,
uma fraseologia incoerente e humilhante. Nada faltava a essas cartas; lá estava
o infinito, o abismo, o eterno. Um dos eternos, escrito na dobra do papel, não
se chegava a ler, mas supunha-se. A frase era esta: "Um só minuto do teu
amor, e estou pronto a padecer um suplício et..." Uma traça bifara o resto
da palavra; comeu o eterno e deixou o minuto. Não se pode saber a
que atribuir essa preferência, se à voracidade, se à filosofia das traças. A
primeira causa é mais provável; ninguém ignora que as traças comem muito.
A
última carta falava de suicídio. Brotero, ao reler esse tópico, sentiu uma
coisa indefinível, chamemos-lhe o "calafrio do ridículo evitado".
Realmente se ele se houvesse eliminado, não teria o presente desgosto político
e pessoal; mas o que não diriam dele nos pasmatórios da Rua do Ouvidor, nas
conversações à mesa? Viria tudo à rua, viria mais alguma coisa; chamar-lhe-iam
frouxo, insensato, libidinoso, e depois falariam de outro assunto, uma ópera,
por exemplo.
-
Uma, duas, três, quatro, cinco principiaram a dizer os relógios.
Brotero
recolheu as cartas, fechou-as uma a uma, emaçou-as, atou-as e meteu-as na
gaveta. Enquanto fazia esse trabalho, e ainda alguns minutos depois, deu-se a
um esforço interessante: reaver a sensação perdida. Tinha recomposto
mentalmente o episódio, queria agora recompô-lo cordialmente; e o fim não era
outro senão cotejar o efeito e a causa, e saber se a idéia do suicídio tinha
sido um produto natural da crise. Logicamente, assim era; mas Brotero não
queria julgar através do raciocínio e sim da sensação.
Imaginai
um soldado a quem uma bala levasse o nariz, e que, acabada a batalha, fosse procurar
no campo o desgraçado apêndice. Suponhamos que o acha entre um grupo de braços
e pernas; pega dele, levanta-o entre os dedos, - mira-o, examina-o, é o seu
próprio... Mas é um nariz ou um cadáver de nariz? Se o dono lhe puser diante os
mais finos perfumes da Arábia, receberá em si mesmo a sensação do aroma? Não:
esse cadáver de nariz nunca mais lhe transmitirá nenhum cheiro bom ou mau; pode
levá-lo para casa, preservá-lo, embalsamá-lo; é o mesmo. A própria ação de
assoar o nariz, embora ele a veja e compreenda nos outros, nunca mais há de
podê-la compreender em si, não chegará a reconhecer que efeito lhe causava o
contacto da ponta do nariz com o lenço. Racionalmente, sabe o que é;
sensorialmente, não saberá mais nada.
-
Nunca mais? pensou o Brotero... Nunca mais poderei...
Não
podendo obter a sensação extinta, cogitou se não aconteceria o mesmo à sensação
presente, isto é, se a crise política e pessoal, tão dura de roer agora, não
teria algum dia tanto valor como os velhos diários, em que se houvesse dado a
notícia do novo gabinete e do casamento da viúva. Brotero acreditou que sim. Já
então a arraiada vinha clareando o céu. Brotero ergueu-se; pegou da carta que
escrevera ao presidente do conselho, e chegou-a à vela; mas recuou a tempo.
-
Não, disse ele consigo; juntemo-la aos outros papéis velhos; inda há de ser um
nariz cortado.
Fonte: Páginas Recolhidas - Machado de Assis - W.M.
Jackson Inc. Editores - 1946.
Ortografia atualizada.