Machado de Assis
UM DIA DE ENTRUDO
Era no tempo em que ao carnaval
se chamava entrudo, o tempo em que em vez das máscaras brilhavam os
limões de cheiro, as caçarolas dágua, os banhos, e várias graças que foram
substituídas por outras, não sei se melhores se piores.
Dois dias antes de chegar o
entrudo já a família de D. Angélica Sanches estava entregue aos profundos
trabalhos de fabricar limões de cheiro. Era de ver como as moças, as mucamas,
os rapazes e os moleques, sentados à volta de uma grande mesa compunham as
laranjas e limões que deviam no domingo próximo molhar o paciente transeunte ou
confiado amigo da casa.
D. Angélica tinha nessa
época seus cinqüenta e nove anos. Nascera mais ou menos no tempo da conjuração
de Tiradentes. Criada por um lavrador de Minas, D. Angélica adquiriu certos
princípios liberais, mas perdeu-os em 1808, quando veio ao Rio de Janeiro e
assistiu à entrada da corte real. Ainda que esta mudança nos princípios
políticos de D. Angélica foi resultado de uma paixão por um arqueiro ou quer
que seja da guarda real. D. Angélica pertencia, fisicamente falando, a essa
classe de mulheres, capazes de matar um porco de uma cajadada. Além de possuir
um par de espáduas atléticas, tinha um gênio de arremeter contra qualquer
obstáculo e vencê-lo. Parece que o namorado desdenhava as mulheres alfenins, as
criaturas quebradiças e moles. Gostava de uma robustez que indicava saúde e
disposição para trabalhar. Angélica resumia tudo isso. Amaram-se e no fim de
algum tempo celebrou-se o casamento, com aplauso de amigos e conhecidos. Pouco
importa saber que fim levou o Sr. Tomás Sanches no tempo em que se passam as
cenas que vou relatar. Basta saber que morreu quando de todo se lhe extinguiu a
vida, coisa que provavelmente não lhe aconteceu sem perder a saúde. Demais, não
é bom falar do finado Tomás Sanches ao pé de D. Angélica; a pobre senhora ainda
hoje o chora. Mas não lhe falem de homem que mereça o respeito, o amor e a
consideração, porque D. Angélica cita logo um caso do marido, que entre
parêntesis, enriqueceu em pouco tempo.
Não ficou estéril a aliança de
Sanches e Angélica. Cinco foram os frutos de tão abençoada união, dois do sexo
masculino e três do sexo feminino.
Carlos e Benjamim se chamaram
os rapazes; as raparigas receberam os nomes de Teresa, Ermelinda e Joana. Os
sinais particulares desta prole eram os seguintes: Joana tinha o nariz muito
comprido, Ermelinda era muita pequena, Teresa era alta e cheia. Quanto aos
rapazes, a única diferença entre Carlos e Benjamim era que o primeiro ria à cara
do segundo regularmente uma vez por semana, sem que o outro tirasse nunca
desforra de semelhante afronta.
Ultimamente a afronta tinha
sido tal que Benjamim achou prudente deixar de falar ao irmão. Havia já cinco
dias que reinava entre ambos essa interrupção de relações diplomáticas, quando
a festa do entrudo veio reconciliar tudo. No momento em que tomamos
conhecimento com a família Sanches estão eles em boa harmonia despejando cera
dentro das fôrmas de limões ou enchendo os que já estão prontos com água de
cheiro.
Fora injustificável
esquecimento deixar de mencionar entre os fabricantes de limões o jovem
Batista, rapaz alegre e magro, dono de um armarinho na mesma rua em que moravam
os Sanches, amigo de moças e até, dizem, namorado de Teresa. Citarei do mesmo
modo uma prima de D. Angélica (42 anos) e uma sobrinha da dita (26), sendo que
esta (D. Lucinda) era filha daquela (D. Maria).
Vinham
para a mesa as caçarolas cheias de cera derretida, e todos aqueles operários
mergulhavam nelas os limões e as laranjas, ou despejavam cera dentro de fôrmas
de pau.
- Olhe, prima; este saiu bem bom, diz Lucinda.
- Já viu os meus? pergunta Teresa.
- Quantos tem você?
- Doze.
- Eu tenho nove.
- Eu cá já fiz vinte e
quatro, exclama Carlos. O Benjamim só fez cinco.
- Mas é que eu não sei o que tem a minha fôrma,
redargúi o pobre Benjamim envergonhado
- És um desastrado! não passas disto!
- Carlos! que é isso? Eu não quero bulha.
Estas palavras foram ditas por
D. Angélica que nesse momento, tendo vindo de dentro com a prima D. Maria,
contava-lhe não sei que história de legumes e escravos.
- Tia Maria hoje não tem feito nada, exclamam as
raparigas Sanches.
- Pois já não fiz dois limões?
- Dois só! está bem aviada!
- Está bom, raparigas, dêem cá uma fôrma, não quero
parecer que sou vadia.
D. Maria sentou-se e fez vagarosamente alguns limões.
Houve algum tempo de silêncio, só interrompido pelo andar das escravas, a
campainha da cancela da escada, o som do nariz do Batista que estava
endefluxado, e nada mais.
D. Angélica, que andava de um lado para outro,
aproximou-se da mesa e disse:
- Bem, acabem com isso por enquanto, que é preciso pôr
a mesa.
- Já, mamãe! exclamaram as filhas.
- Pois então? são duas horas e meia.
Carlos
aprovou in-petto a idéia de pôr a mesa, e D. Maria, que costumava jantar
à uma hora, achou a resolução de D. Angélica acertadíssima.
- Tem razão, prima, se deixarmos estas meninas aqui,
são capazes de ficar até amanhã.
- Não é conveniente, disse
Batista com uma voz entrecortada pelas urgências do defluxo, não é conveniente
interromper o trabalho enquanto há cera liquida. A cera é um produto que...
- Que não dá de jantar! interrompeu brutalmente Carlos
pondo a fôrma de lado e levantando-se da mesa.
As moças insistiram e ficaram
ainda um quarto de hora fazendo limões. Benjamim queria levantar-se também, mas
um olhar de Lucinda o deteve e desde já qualquer leitor, ainda que não seja
mais perspicaz que um chapéu, terá compreendido que os dois jovens se amavam.
A saída de Carlos agradou
geralmente à sociedade, o filho mais velho de D. Angélica era um verdadeiro
perturbador de festas. Ausente, reinou mais tranqüilidade; Batista pôde olhar
mais vezes para Teresa, e Benjamim piscar mais livremente os olhos a Lucinda.
Se Carlos estivesse presente, não hesitaria em dizer:
- Temos namoro! não?... Que é isso, Sr. Batista?...
Olá prima, então?...
- Dizia eu que em 7 de Abril...
E outras frases como estas
reduziam as faces dos culpados a verdadeiras inflamações de vergonha.
Batista sentiu-se até mais
livre da voz, e proferiu a propósito do entrudo dois ou três axiomas, um dos
quais declarou tê-lo ouvido de um padre, que era o homem mais sensato que
conhecera.
- Sensato era o meu Tomás, acudiu D. Angélica; que
juízo tinha ele! que cabeça de homem! Deus lhe fale n'alma. Contarei o seguinte
caso. No tempo do 7 de Abril...
Nesse instante entrou na sala
o esfomeado Carlos e vendo iminente uma história que provavelmente já conhecia,
exclamou:
- Oh! mamãe? não se janta hoje?
- Eu sei, respondeu D. Angélica, estas meninas ainda
aqui estão.
- Pois acabem com isso...
Carlos atirou-se à mesa e tal
bulha fez que impediu o trabalho e a anedota. D. Angélica adiou a prova do bom
juízo do finado Tomás Sanches, as moças deixaram a mesa, e a mucama veio pôr a
mesa do jantar.
Aproveitando o intervalo, pois
aceitara o oferecimento de D. Angélica para jantar, foi Batista alguns
instantes ao armarinho para saber se havia novidade. Teresa foi logo à janela e
trocou um sorriso com o namorado.
D. Maria sentou-se com Ermelinda a um canto para
indagar se alguma coisa havia entre Teresa e Batista.
- Eu creio que há alguma coisa. Tu não sabes nada?
Ermelinda respondeu:
- Eu nada, titia.
- Mas é impossível que não haja, e se é exato falarei
disto a tua mãe.
- Por que? perguntou Ermelinda sobressaltada.
- Não convém que tua irmã se case com um dono de
armarinho... um pax vobis, uma posição inferior.
Ermelinda calou-se prometendo
a si mesma ir contar tudo à irmã.
Carlos passeava pela sala de
jantar, atirando de quando em quando bolas de papel ao irmão, que, por
prudência, fingia estar contando as tábuas do assoalho.
Joana contava a Lucinda um
namoro que tivera com um rapaz da rua do Piolho, enquanto a prima lançava de
quando em quando um olhar a Benjamim.
- Muito custa a vir este jantar. Parece que nunca mais
se acaba de pôr esta mesa. Tia Maria, já há de estar com uma fome!
Carlos dizia estas palavras
tirando da mesa um pedaço de pão e mastigando para enganar o estômago.
- Não te pareça! disse D. Maria, por certo que estou
com fome...
Finalmente ficou o jantar na
mesa.
- Bem, vamos entrar em serviço.
- Não, senhor! disse D. Angélica, esperemos o
Batistinha.
- Onde foi ele?
- Foi à casa.
- Esta agora! Havemos de estar
em casa à espera de um estranho! e logo quem!
- Carlos! exclamou a mãe, tu hás de ser sempre um...
D. Angélica mastigou o epíteto. Carlos pondo as mãos
nos bolsos da calça entrou a passear como um homem chegado ao último grau do
desespero.
- Estou capaz de ir jantar a
uma casa de pasto.
- Pois vai!
Nesse momento ouviram-se
passos na escada.
- Graças! disse Carlos. Chega
o desejado.
Não era o desejado. Era o Sr.
Tibúrcio Mendes, negociante de negros novos, homem taludo e bojudo, vermelho e
asseado.
- Dá licença, D. Angélica? disse ele parando na
escada.
- Entre, Sr. Tibúrcio. Bons olhos o vejam.
Na entrada o Sr. Tibúrcio foi
cumprimentando rasgadamente a companhia.
- Faltava este cágado! disse entre si Carlos.
E já ruminava seriamente o
projeto, anteriormente indicado, de ir jantar à casa de pasto, quando apareceu
o dono do armarinho. Batista explicou a demora dizendo que a causa fora uma
altercação com um sujeito a propósito de agulhas n. 5, coisa que não
interessava absolutamente a ninguém, mas que todos ouviram com paciência
cristã.
O jantar nada ofereceu de notável; os dois namoros
continuaram como antes, isto é, dirigidos sempre com a máxima precaução por
causa do grande desmancha-prazeres da casa. A única coisa que causou certa
estranheza a Batista, que pela primeira vez se encontrava com Tibúrcio, foi a
voracidade que este sujeito desenvolveu, a ponto de o deixar sem assado nem
arroz.
Foi por ocasião do jantar que
Tibúrcio declarou que fazia anos na terça-feira do entrudo, e, como fosse
solteiro, D. Angélica convidou-o a festejar o dia jantando lá em casa. Tibúrcio
não viu um olhar trocado entre Carlos e as irmãs. Prometeu que viria jantar.
Toda
a tarde, manhã e a tarde do dia seguinte foram consagradas ao fabrico dos
limões de cheiro, Tibúrcio assistiu até à noite ao trabalho das moças e dos
rapazes. Como ele era amigo de conversar com mulheres, dificilmente se
despregou da sala de trabalho. Foi muito contra a vontade que cedeu ao convite
de D. Angélica que tinha a mania de jogar o solo. D. Maria também jogava e aceitou o convite. A mesa foi
posta ao pé da mesa dos limões de cheiro.
Jogava-se o solo a grãos de milho,
que é para os jogadores de profissão, o mesmo que, para os bêbados, beber água
simples.
- Mas eu peço licença, disse
Tibúrcio, para retirar-me as nove horas.
- É a hora em que tomamos chá,
respondeu D. Angélica dando as cartas.
Passaram todos naquela mão.
Como todos conversavam, o diálogo apresentava alguma curiosidade.
- Bolo?
- Pode vir!
- Dá cá cera!
- Dê-me o ás de paus.
- Onde está a fôrma?
- É furado?
- É seguro.
- Mano, não me quebre o limão.
- Corto.
- Olha, Lucinda, que bonito
limão saiu este!...
- Rei...
- Água de cheiro?
- Valete...
- Não me pise os pés, Sr.
Batista.
- É dama... Paguem!
- Dá cá o tabuleiro. Quem dá
cartas?
- Pois eu cuidei que o solo
estivesse furado, dizia Tibúrcio no fim deste diálogo. Os ouros estavam com a
Sra. D. Maria, e se não se descarta do valete, bem podia ser que eu o
encontrasse em quarto, e estava perdido.
- A prima jogou mal, dizia D.
Angélica. Devia esperá-lo nos outros.
- Eu esperava nas copas.
- As copas estavam seguras.
Às nove horas terminou o jogo,
serviu-se o chá, saiu Tibúrcio, e todos foram dormir.
Amanheceu o dia de domingo com
um belíssimo sol; era um verdadeiro dia de entrudo. Desde manhã puseram-se os
tabuleiros em ordem para a batalha. Carlos e Benjamim preparavam as caldeiradas
dágua e duas panelas que mandaram para a cocheira. Nessa ocasião houve uma
pequena altercação entre os dois irmãos; Carlos acabou puxando as orelhas a
Benjamim, o qual, por dizer alguma coisa, disse que lhe daria uma facada, o que
lhe valeu outro puxão de orelhas do irmão.
Triste inspiração foi a de
Batista que marcou esse dia para pedir a mão de D. Teresa. A moça entendia que
se devia aproveitar um dia alegre para achar D. Angélica de bom humor,
verdadeiro engano porque D. Angélica, conquanto não jogasse o entrudo, achava prazer
em ver brincar as raparigas e não prestava grande atenção a outras coisas.
O dia começou bem; alguns
sujeitos que passavam foram alvo de meia dúzia de limões de cheiro que os
deixaram um tanto úmidos; e mais nada.
Jantou-se mais cedo.
Às três horas e meia estavam
as moças vestidas e prontas à janela; a sala estava cheia de tabuleiros com
limões de cheiro.
Os rapazes ausentaram-se.
Correu assim uma hora sem
incidente notável. Constante fogo de água trazia a rua agitada. Os gamenhos,
munidos de limões iam atirando às senhoras que estavam às janelas, e estas
correspondiam ao ataque com um vigor nunca visto.
Havia em casa de D. Angélica
cerca de 1.200 limões; imaginem se o combate podia fraquear.
Ao cabo duma hora de combate,
desapareceu Lucinda pelo interior da casa. D. Maria e D. Angélica que estavam
assentadas na sala conversavam sobre os sucessos da sua mocidade. De quando em
quando algum limão ia bater numa e noutra, o que as fazia rir.
D. Maria quis ir ao interior da casa e saiu por alguns
instantes. Daí a pouco voltou espavorida.
- Jesus! Acuda-me prima Angélica! Credo! Vingança!
Surpresa geral. As moças
voltaram-se para dentro e os rapazes vendo aquela muralha de costas fizeram uma
descarga em regra.
- Que é? perguntou D. Angélica espantada. Será o canhoto?
- Qual, canhoto! quero vingança! que desaforo!
- Mas que é?
D. Maria estava sufocada; sentou-se, bebeu um pouco
dágua e falou:
- Ia eu agora lá dentro, quando encontrei na sala de
jantar a um canto, adivinhem o que? Encontrei seu filho Benjamim quebrando
limões no ombro de minha filha! Que desaforo! Fiquei sem saber de mim... Isto
se atura, prima? Cão! Ter o atrevimento de... Prima, manda dar uma sova no seu
pequeno...
Neste tempo já Lucinda tinha
entrado na sala e ouviu a narração da mãe com um espanto tão fingido que
parecia um diplomata.
- Estás ai!... exclamou D. Maria. Deixe estar que me
pagarás lá em casa!
- Mas que é?...
D. Angélica mandou chamar Benjamim.
O rapaz que estava na cocheira, correu ao chamado da
mãe.
- Que é isso, Benjamim? pois então tu tens o desaforo,
o atrevimento de não respeitar tua tia nem a minha casa...
Benjamim ficou mais admirado
que se visse a cascata de Paulo Afonso; olhou para todos que tinham os olhos
nele e perguntou:
- Mas que é mamãe? eu não sei de que fala.
D. Angélica referiu a acusação
que lhe fazia D. Maria; o rapaz negou alegando que não saíra debaixo e apelou
para o testemunho de um moleque, o qual, como era o portador das cartas entre
os dois namorados, não teve dúvida em dizer que o jovem Benjamim desde que descera
para a cocheira, não saíra de lá ocupado como estava em seringar os homens que
passavam.
D. Angélica voltou-se para a
prima.
- Você enganou-se, prima.
- Mas se eu vi!...
Carlos tinha subido também, e,
ou para salvar o irmão a quem não tinha raiva, ou para terminar um incidente
que perturbaria a festa, confirmou o dito do moleque.
Mas D. Maria que tinha visto,
insistia e punha em dúvida a asserção dos sobrinhos e do moleque.
- Foi engano! diziam uns.
- Titia estava preocupada e
pareceu-lhe ver...
- Qual engano nem preocupação!
Pois eu vi.
Entrara no meio desta bulha o
jovem Batista, trajando casaca, luvas de pelica, e gravata branca. Veio de sege
para chegar intacto, apesar de morar perto Ouviu a discussão, informou-se do
que era e concluiu que devia ser engano de D. Maria. Esta insistiu na
afirmativa.
- Dá-se muitas vezes, disse Batistinha
sentenciosamente, que a nossa imaginação figura objetos reais quando eles são
simplesmente hipotéticos... A história tem um exemplo: Brutus dizem que viu a
sombra de César. Foi naturalmente a impressão imaginária que lhe produziu a
espécie de presença real. O órgão visual tem fenômenos extravagantes; os
recentes trabalhos da ciência...
As moças voltaram as costas e
foram para a janela, exceto Teresa que ficou ouvindo o discurso do namorado. Os
rapazes desceram à cocheira.
Batista continuou o discurso.
Como tinha lido uns livros de ciência, explicou às senhoras qual a organização
do nervo ótico, e como por acaso falasse em olhos bonitos, lembrou-se D.
Angélica de contar uma anedota acerca dos olhos do finado Sanches em 1834.
O incidente acabou assim, D.
Maria convencida de que realmente fora imaginação sua.
- Agora, se D. Angélica quiser dar-me a honra de uma
palavra em particular, disse Batista, ficar-lhe-ei sumamente penhorado.
- Agora reparo, disse D. Angélica. Que trajo para dia
de entrudo!
- Minha senhora, respondeu Batista, os grandes
sentimentos não conhecem entrudo
- Fala muito bem este moço, pensou D Maria.
A dona da casa foi com Batista
para o interior.
- Minha senhora, disse Batista arrestando-se na sala
diante de D. Angélica, muito há que eu nutro, dentro do meu coração, um destes
sentimentos que, mal aplicados, podem produzir não só os infortúnios domésticos
como até a ruína dos impérios, e, bem aplicados, são a verdadeira
bem-aventurança deste mundo. O amor, minha senhora, é o que o bordão é para os
cegos, o vento para os navegantes, a saúde para os enfermos, o espaço para os
passarinhos...
- Então, ama?
- Loucamente. Seria um inferno este amor se não fosse
retribuído. O que é um amor sem retribuição? É o abutre de Prometeu. Sou
recompensado com igual amor ao meu: amor amore, diz a sentença latina.
- Que deseja de mim?
- A luz. A senhora tem a minha luz nas suas mãos; pode
dar-ma se quiser. Amo sua filha D. Teresa, e desejo unir-me a ela pelos laços
matrimoniais...
D. Angélica tinha percebido algum namoro entre a filha
e o Batista, mas não cuidou que estivessem tão próximos do casamento. O que
sobretudo a fez pasmar foi a escolha do dia. A este respeito observou Batista
que, vindo a palavra entrudo do latim entroito, que quer dizer
entrada, estava ele de acordo com o dia desejando entrar na família. O
trocadilho despertou as recordações conjugais da Sra. D. Angélica, que citou
mais uma anedota do finado Tomás Sanches.
- Quanto ao que me pede, concluiu ela, se Teresa
quiser, não tenho razão que opor a uma união que desejo ver feliz e tranqüila.
- A senhora chega ao sublime! disse Batista.
Depois abrindo os braços:
- Minha mãe! exclamou ele.
D. Angélica abraçou-o cerimoniosamente,
porque achava o rapaz romântico demais.
- Quando poderei ter resposta definitiva?
- Já, se quer; mas é melhor
logo... Quando lhe...
Neste momento ouviu-se um
grande grito, depois outro e outro; depois um barulho infernal. D. Angélica
correu à sala para saber o que era; Batista foi atrás dela.
Na sala ninguém sabia a causa
do barulho.
O barulho vinha da cocheira.
- Há
de ser algum sujeito que os rapazes
meteram no banho, disse D. Angélica trêmula. Ah! meu Deus! estes pequenos ainda
me hão de dar algum desgosto grande!
Quis descer; mas Batista a
impediu alegando gravemente que uma senhora nunca deve descer.
Os gritos continuaram ainda
algum tempo. Depois cessaram; ouviu-se uma voz trêmula de frio lançar uma
imprecação aos rapazes.
- Ah! meu Deus! que rapazes! que desgostos!
Subiu alguém a escada; daí a
alguns segundos, entrava na sala o Sr. Tibúrcio, vestido de branco, mas todo
molhado como se saísse do mar. Entrou respingando a sala toda.
- Jesus! que é isso?
- Ah! minha senhora, eis o estado em que me puseram os
seus rapazes! Veja se isto não é um desaforo! Entrei com toda a confiança em
sua casa, e os seus meninos, sem que eu lhes houvesse feito mal, agarram-me,
metem-me dentro de uma gamela e despejam-me um barril de água por cima, ajudados
por dois moleques!
A narração fez enraivecer D.
Angélica e rir as raparigas. Efetivamente a figura do Tibúrcio era mais para
rir que outra coisa. O homem bufava que parecia uma baleia.
Batista agradeceu ao céu ter
vindo em ocasião em que encontrou os rapazes em cima, escapando assim a alguma
caçoada.
Assentou-se o Tibúrcio,
enquanto D. Angélica ia ver se havia roupa em casa que lhe servisse para mudar
aquela.
Tibúrcio contava as suas
impressões do banho a D. Maria, e Batista conversava com D. Teresa a quem deu a
agradável notícia de que tudo estava arranjado.
De
repente aparece Carlos à porta da sala, armado de uma grande seringa de folha
de Flandres, pede silêncio às moças com um sinal, e deita um esguicho à nuca do
Tibúrcio.
Tibúrcio soltou um grito, pegou na cadeira e removeu
como pôde o corpo até à porta da sala; mas Carlos, que sabia o sistema dos
antigos Partos, fugiu dando-lhe mais um esguicho pela cara.
- Não se zangue, disse D.
Maria acalmando Tibúrcio que prometeu desancar o rapaz; isto afinal são brincadeiras
de rapazes... Todos eles o respeitam muito.
- Não está mau o respeito!
D. Angélica voltou à sala.
- Sr. Tibúrcio, vá lá para o
quarto da sala de costura; já lá mandei pôr alguma roupa.
Tibúrcio obedeceu.
D. Angélica mandou ordem
terminante aos filhos que subissem.
Subiram.
- Que desaforo é esse,
rapazes? disse ela.
- O que é mamãe? perguntaram
ambos.
- Pois então vocês não
respeitam um homem velho e sério, que nos visita? Isto é bonito?
- Mas foi uma brincadeira.
- Pois eu não quero mais essa brincadeira... Brinquem
lá com quem quiserem mas não com as pessoas que vêm à minha casa.
Interveio o futuro genro de D. Angélica.
- Minha Senhora, eu estou
convencido que estes dignos moços brincam como todos os da nossa idade, sem
nenhuma intenção de ofensa. São jovens dignos de toda a estima; incapazes de
ofender a quem quer que seja, mormente às pessoas que têm a honra de freqüentar
esta casa.
- É verdade! disse Carlos...
- Portanto, continuou o advogado dos rapazes.
releve-se-lhes um ato próprio do dia.
- Muito bem! exclamaram os
dois rapazes aproximando-se de Batista para lhe agradecer a defesa.
Batista estendeu-lhes a mão.
Mas quando menos o esperava,
viu-se agarrado pelos quatro braços vigorosos dos rapazes e levado pela sala
fora e depois pela escada abaixo. O pobre moço gritava e protestava contra a
perfídia e a ingratidão dos seus clientes, mas embalde! A voz de D. Angélica
perdeu-se no meio do barulho; Teresa deitou a chorar; D. Maria benzeu-se; e no
meio do tumulto apareceu na sala Tibúrcio; apertadíssimo numas calças de Carlos
que lhe ficavam acima do tornozelo e numa jaqueta de Benjamim que lhe batia
pelo meio das costas.
A figura fez rir ainda mais do
que quando Tibúrcio apareceu molhado da cabeça até os pés.
- Que há de novo? Alguma nova
travessura?
- Ah! Sr. Tibúrcio, exclamou
D. Angélica; o senhor me há de embarcar estes dois rapazes que me põem doida;
meta-os na presiganga!
- Pois não, D. Angélica! Mas que fizeram eles agora?
- Levaram para baixo o Sr. Batista.
- Que! pois tiveram também a audácia? Não admira! não
me meteram no banho?
Tibúrcio sentiu uma espécie de
satisfação em ver que não era a única vitima.
Pouco tempo depois subiu
Batista, e, sem ousar aparecer na sala, pediu a D. Angélica que lhe desse
alguma roupa que vestir.
Foi satisfeito.
D. Angélica mandou vir o bacalhau com que se
castigavam os escravos e foi abaixo em pessoa.
- Andem! lá para cima! quando não... vai tudo a
vergalho.
Os rapazes obedeceram.
D. Angélica não era só mulher de prometer; era mulher
de cumprir.
A tarde caia; os rapazes
adiaram a festa para os dias seguintes. Mudaram também de roupa e deixaram-se
ficar na sala de jantar.
Batista voltou à sala um pouco
envergonhado. Tibúrcio já estava mais calmo; D. Maria começou a rir e D.
Angélica encaixou uma anedota a respeito de Sanches. As moças sentaram-se
também.
- Gastaram todos os limões? perguntou D. Maria sem ver
dois tabuleiros cheios.
- Todos, não, disse Ermelinda; ainda temos para
amanhã.
- Isso, sim, disse Tibúrcio, isso é brincadeira que eu
aprovo; o limão é delicado e diverte a gente.
- Diz muito bem, assentiu
Batista. Mas o banho!
- É selvagem!
- É brutal!
- Deve acabar!
- E há de acabar!
- A civilização não comporta...
- Apoiado!
Os
rapazes voltaram à sala. Tibúrcio dirigiu-se a D. Maria para dizer alguma coisa
que o impedisse de olhar para os seus algozes; ao passo que Batista tirou o
relógio, trouxe-o ao ouvido, deu-lhe corda, etc...., tudo para evitar o
primeiro olhar dos filhos de D. Angélica.
Ninguém reparou que os rapazes
traziam as mãos nos bolsos grandes dos paletós de brim.
Sentaram-se ambos a conversar.
Ao principio nem Tibúrcio nem Batista lhes dirigiu a palavra; mas, convindo
evitar o ridículo do amuo depois de banho, pouco e pouco foram conversando com
eles e restabeleceu-se a confiança.
Não tardou porém que Carlos
pregasse em Tibúrcio um rabo de papel, e Benjamim outro em Batista. O de
Batista não foi visto logo pelas outras pessoas. Mas como Tibúrcio estava de
costas para o grupo das moças, viram estas logo o apêndice posto por Carlos e
riram alegremente. Tibúrcio desconfiou. Olhou para Carlos; este ficou sério.
- De que se riem as moças?
perguntou Tibúrcio.
- Não sei, respondeu Carlos; deixe ver. Ah! é uma
mancha de cal no seu paletó, deixe limpá-la.
Tibúrcio consentiu de boa-fé;
e Carlos fingindo que limpava o paletó, quebrou-lhe um ovo nas costas.
Sentiu Tibúrcio que o rapaz
não o limpava, antes o sujava, a gema entornou-se parte no chão, D. Angélica
correra para Carlos, este correu pela sala, levantou-se Batista para intervir,
mas arrastando também um rabo de papel; Benjamim aproveitou a ocasião e quebrou
um ovo nas costas de Batista.
Não tenho forças para
descrever o barulho que se seguiu a esta cena. O tumulto foi geral; só se
acalmou indo os dois rapazes para um quarto onde D. Angélica os fechou a chave.
Com a noite veio o descanso.
As visitas se foram embora, exceto D. Maria e a filha que resolveram ficar até
quarta feira de Cinzas.
Pelas 9 horas da noite, D.
Angélica foi soltar os prisioneiros. Achou-os jogando as cartas. Anunciou-se o
chá e eles vieram para mesa, onde foram recebidos com um olhar furibundo da
parte de Teresa, cujo namorado fora vitima das suas travessuras.
Quando se iam deitar o moleque
que servia de intermediário entre Benjamim e Lucinda, foi aos dois rapazes e
disse-lhes que precisava dizer uma coisa.
Levado ao quarto, disse que
Batista tinha por costume pular de noite os quintais até o da casa de D.
Angélica e conversar aí para a janela onde a sinhá moça Teresa ficava até muito
tarde.
Esta comunicação inesperada
tinha a seguinte explicação.
O moleque servia também de
corretor entre Teresa e Batista; mas não tendo obtido deste as vantagens que
esperava, e principalmente tendo-lhe ele recusado uma jaqueta nova que lhe
pedira, entendeu que devia vingar-se assim.
Realmente, Batista podia
dar-lhe uma ou duas jaquetas; mas como era muito econômico, entreteve o moleque
na esperança e esse foi o seu mal.
Carlos ficou espantado com a
notícia.
- Será verdade? perguntou ele
a Benjamim.
- É nhonhô, insistiu o
moleque, ele quer casar com sinhá moça Teresa, mas é um sovina...
- Virá ele hoje?
- Parece que vem.
Idéia infernal surdiu no
espírito de Carlos. Era esperar o Romeu dos quintais e pregar-lhe nova peça.
- Um banho! disse o moleque
quando Carlos consultava o irmão.
- Sim, um banho! disse Benjamim.
-
Não, disse Carlos, coisa melhor; pensemos nisso. Enquanto os dois estavam em
conciliábulo, as raparigas foram deitar-se.
Dormiam no mesmo quarto
Lucinda e Teresa.
- Estou muito zangada com o Benjamim, disse Lucinda;
não gostei que fizesse aquilo no teu... noivo.
- Cala a boca! não fales alto!
Não foi ele só, foi o Carlos, que é sempre o autor destas idéias.
- Amanhã hei de passar uma
sarabanda nos dois.
- Não digas nada, é melhor.
- Por que?
- Porque...
- Vais casar, bem sei.
Teresa sorriu.
- Depende de mim, disse ela.
- Titia já te perguntou alguma
coisa?
- Nada.
- Mas há de falar...
- Amanhã, talvez.
- Sim, amanhã...
- Que é isto? Isto o que?
- Não ouviste um grito?
- Não; é uma coruja; estás
medrosa.
- Pareceu-me.
As duas sentaram-se na cama.
- Que é que tu hás de dizer
quando titia te perguntar se queres casar com o Batistinha?
- Velhaca! disse Teresa
sorrindo.
- Por que, meu Deus?
- Quero saber também o que hás
de dizer quando...
- Quando o que?
- Quando tua mãe te perguntar
se queres casar com Benjamim...
- Ora, qual!... Mas vamos lá,
dize...
- Eu responderei que é de meu
gosto.
- Só isso?
- Pois então?
-
Mas isso só não é bonito; é preciso dizer: Com toda a minha alma!
- Deixemos disso; é romântico
demais.
Desta vez ouviu-se um sussurro
no quintal. As duas chegaram à janela mas não viram ninguém.
- Não é nada, disse Lucinda.
Entraram outra vez e
continuaram a conversar. No fim de dez minutos ouviu-se um assobio.
Teresa estremeceu.
- É ele!
Lucinda começou a despir-se.
- Pois então, disse ela, vai
conversar enquanto eu me deito.
Teresa chegou à janela e
agitou um lenço branco; Batista que já vinha pulando o último quintal, saltou à
terra, aproximou-se do poço e começou a conversar debaixo com a namorada.
- Por que veio hoje? perguntou
Teresa.
- Acha que fiz mal? disse
Batista.
- Deve estar cansado.
- De que?
Teresa quis aludir ao banho
mas receou envergonhar o rapaz. Por isso, sem responder à pergunta continuou:
- Mamãe ainda me não falou.
- Quando falará?
- Talvez amanhã.
- Que pretende dizer?
- Ora! que sim! diga-me outra vez; está certo de que
foi bem recebido por ela?
- Perfeitamente; vi que ela compreendeu o meu amor; e
como não, se é essa alma digna, essa alma celeste, todo cheia dos perfumes do
paraíso?
Esta rajada lírica produziu um
riso sufocado, que Batista atribuiu a Teresa, e esta a Lucinda. Mas Lucinda já
dormia nessa ocasião.
- Riu-se de mim? perguntou Batista.
- Que pergunta!
- Parece...
- Ah! não insulte aquela que vai ser sua esposa.
- Insultá-la? jamais... Não; eu
daria o meu sangue para vingar aquele que a insultasse... Mas diga-me, Teresa,
você está contente casando comigo?
- Oh! muito feliz!
- Eu também! Havemos de ter
uma bela vida!
- Eu espero.
- Contanto que nos não visitem
indiscretos, ah! principalmente seus irmãos. Que par de pelintras!
- Deixe-os.
- Oh! se os deixo! São dois
pelintras sem iguais. Não compreendem que a dignidade da vida humana é
respeitar os outros, porque o homem é feito à imagem de Deus, e quem insulta um
homem e o desconceitua, ofende a Deus. Não acha. D. Teresa?
- Parece que sim; disse a moça
já um pouco aborrecida com o ar tétrico que o namorado ia dando à conversa.
- Mas eu perdôo a esses
rapazes; só o que desejo é que me não visitem...
- Será o que você quiser...
- Teresa, você me ama?
- Muito.
- Para sempre?
- Para sempre. E você?
- Oh! eu! pergunta ao mar se
ama a praia; ao zéfiro se ama a flor; à abelha se ama...
Não acabou a frase. Um
esguicho anônimo lhe inundou a cara. Batista deu um pulo.
- Que é? perguntou a moça.
- Não sei... respondeu ele
suspeitando estar descoberto.
- Mas que foi?
Batista não respondeu;
imaginou logo que estava espiado e achou conveniente não dizer palavra e
safar-se. Infelizmente, a noite estava escura e podia ele esbarrar-se com algum
dos rapazes.
- Meu Deus! exclamou a moça.
Que é?
- Nada...
- Alguma coisa há de ser.
- Descanse. Foi um espirro. Como ia dizendo, este
momento aqueles seus manos são moços alegres mas dignos... Que galante idéia
tiveram de me meter no banho!
- Isso é irônico, disse
Teresa.
- Qual! é sincero! eu só me
zango no momento; mas depois, reconheço logo que não há intenção de caçoar
comigo...
Desta vez recebeu um esguicho por trás.
- Aí! disse ele.
- Mas que tem você? perguntou
a namorada aflita...
- Nada! é um calo. São excelentes aqueles moços...
Outro esguicho nas pernas.
- São excelentes; continuou Batista tremendo de frio e
de medo. Eu, se os encontrasse agora, abraçava-os.
Desta vez foram dois grandes esguichos. Batista teve
idéia de pedir perdão; mas por um resto de pudor, não quis fazer figura triste
diante da namorada.
Esta cada vez compreendia menos o rapaz. Os esguichos
continuaram; ele falava entrecortando as frases; ela chegou a suspeitar que ele
estivesse doido.
- Há de perdoar-me, disse ele,
está fazendo um frio; vou-me embora.
- Já?
- Já.
- Adeus.
- Adeus!
- Até amanhã.
Teresa fechou a janela; Batista olhou à roda de si,
não viu ninguém e procurou aproximar-se do muro para saltar.
Nesse momento caiu-lhe sobre as costas uma caldeirada
dágua.
- Ai! ai! gritou ele.
E saltou o muro.
Mas antes que pudesse segurar-se bem, sentiu as pernas
presas por quatro braços vigorosos. Caiu arranhando as mãos no muro.
- Que me quereis? disse ele tremendo.
Abriu-se a janela e apareceu Teresa.
O rapaz foi arrastado berrando para uma grande gamela,
já cheia dágua. A moça entrou dando um grito. Acordou Lucinda e ambas foram
acordar o resto da família.
- Hão de ser os endiabrados! Que pecado cometi eu?
exclamou D. Angélica saltando fora da cama.
Dentro de pouco tempo estavam
todos a pé, com velas acesas na mão, e dirigiram-se para o fundo, abrindo as
janelas que davam para o quintal.
D. Angélica, desceu munida de
um vergalho, e apareceu no quintal onde se passava a tragicomédia.
Batista esperneava dentro da
gamela. Os dois irmãos o prendiam enquanto o moleque lhe despejava baldes
dágua.
- Que é isto? perguntou D.
Angélica.
E avançou brandindo o
vergalho.
O perigo era iminente.
Os dois rapazes agarraram em
Batista.
Carlos sentiu uma vergalhada
nas costas; outra vergalhada foi diretamente a Benjamim. Que fazer? Os dois
pegam do corpo de Batista e fizeram dele escudo, de maneira que as vergalhadas
que D. Angélica, cega de furor, cuidava dar nos filhos, quem as apanhava era o
futuro genro.
Teresa desceu abaixo; e
suspendeu o braço da mãe, quando já Batista sentira todo o peso do braço da
viúva Sanches.
Cessou a pancadaria; Batista
foi levado para cima, e D. Angélica perguntou como é que os dois rapazes tinham
podido pilhar Batista no quintal para maltrata-lo assim.
Aqui estava o nó da situação.
Batista, não querendo
confessar que fora conversar com a futura noiva, e temendo as revelações dos
rapazes, disse que fora lá para tratar com eles uma caçoada, e que aquilo era
uma brincadeira.
Ao mesmo tempo dirigiu um
olhar suplicante aos moços, que confirmaram a história, escapando assim a uma
infalível correção.
Nessa noite todos dormiram
mal.
Quando no dia seguinte,
Tibúrcio soube do fato, sorriu dizendo que também o Batista merecia a
presiganga.
Acabou o entrudo, felizmente para o Batista, e a
quaresma felizmente para ele e a noiva, que se casaram e dão-se muito bem.
Batista vendeu o armarinho, e joga o gamão numa botica
todas as tardes.
LARA
in Jornal das Famílias, Rio
de Janeiro, 1874, p. 177-184; 207-214; 225-229.
Fonte: Contos
Avulsos - Machado de Assis - org. de R. Magalhães Júnior - Editora Civilização
Brasileira / Cia Brasileira de Livros - 1956