Machado
de Assis
UNS
BRAÇOS
Inácio
estremeceu, ouvindo os gritos do solicitador, recebeu o prato que este lhe
apresentava e tratou de comer, debaixo de uma trovoada de nomes, malandro,
cabeça de vento, estúpido, maluco.
-
Onde anda que nunca ouve o que lhe digo? Hei de contar tudo a seu pai, para que
lhe sacuda a preguiça do corpo com uma boa vara de marmelo, ou um pau; sim,
ainda pode apanhar, não pense que não. Estúpido! maluco!
-
Olhe que lá fora é isto mesmo que você vê aqui, continuou, voltando-se para D.
Severina, senhora que vivia com ele maritalmente, há anos. Confunde-me os
papéis todos, erra as casas, vai a um escrivão em vez de ir a outro, troca os
advogados: é o diabo! É o tal sono pesado e contínuo. De manhã é o que se vê;
primeiro que acorde é preciso quebrar-lhe os ossos... Deixe; amanhã hei de
acordá-lo a pau de vassoura!
D.
Severina tocou-lhe no pé, como pedindo que acabasse. Borges espeitorou ainda
alguns impropérios, e ficou em paz com Deus e os homens.
Não
digo que ficou em paz com os meninos, porque o nosso Inácio não era
propriamente menino. Tinha quinze anos feitos e bem feitos. Cabeça inculta, mas
bela, olhos de rapaz que sonha, que adivinha, que indaga, que quer saber e não
acaba de saber nada. Tudo isso posto sobre um corpo não destituído de graça,
ainda que mal vestido. O pai é barbeiro na Cidade Nova, e pô-lo de agente,
escrevente, ou que quer que era, do solicitador Borges, com esperança de vê-lo
no foro, porque lhe parecia que os procuradores de causas ganhavam muito. Passava-se
isto na Rua da Lapa, em 1870.
Durante
alguns minutos não se ouviu mais que o tinir dos talheres e o ruído da
mastigação. Borges abarrotava-se de alface e vaca; interrompia-se para virgular
a oração com um golpe de vinho e continuava logo calado.
Inácio
ia comendo devagarinho, não ousando levantar os olhos do prato, nem para
colocá-los onde eles estavam no momento em que o terrível Borges o descompôs.
Verdade é que seria agora muito arriscado. Nunca ele pôs os olhos nos braços de
D. Severina que se não esquecesse de si e de tudo.
Também
a culpa era antes de D. Severina em trazê-los assim nus, constantemente. Usava
mangas curtas em todos os vestidos de casa, meio palmo abaixo do ombro; dali em
diante ficavam-lhe os braços à mostra. Na verdade, eram belos e cheios, em
harmonia com a dona, que era antes grossa que fina, e não perdiam a cor nem a
maciez por viverem ao ar; mas é justo explicar que ela os não trazia assim por
faceira, senão porque já gastara todos os vestidos de mangas compridas. De pé,
era muito vistosa; andando, tinha meneios engraçados; ele, entretanto, quase
que só a via à mesa, onde, além dos braços, mal poderia mirar-lhe o busto. Não
se pode dizer que era bonita; mas também não era feia. Nenhum adorno; o próprio
penteado consta de mui pouco; alisou os cabelos, apanhou-os, atou-os e fixou-os
no alto da cabeça com o pente de tartaruga que a mãe lhe deixou. Ao pescoço, um
lenço escuro, nas orelhas, nada. Tudo isso com vinte e sete anos floridos e
sólidos.
Acabaram
de jantar. Borges, vindo o café, tirou quatro charutos da algibeira,
comparou-os, apertou-os entre os dedos, escolheu um e guardou os restantes.
Aceso o charuto, fincou os cotovelos na mesa e falou a D. Severina de trinta
mil coisas que não interessavam nada ao nosso Inácio; mas enquanto falava, não
o descompunha e ele podia devanear à larga.
Inácio
demorou o café o mais que pôde. Entre um e outro gole alisava a toalha,
arrancava dos dedos pedacinhos de pele imaginários ou passava os olhos pelos
quadros da sala de jantar, que eram dois, um S. Pedro e um S. João, registros
trazidos de festas encaixilhados em casa. Vá que disfarçasse com S. João, cuja
cabeça moça alegra as imaginações católicas, mas com o austero S. Pedro era
demais. A única defesa do moço Inácio é que ele não via nem um nem outro;
passava os olhos por ali como por nada. Via só os braços de D. Severina, - ou
porque sorrateiramente olhasse para eles, ou porque andasse com eles impressos
na memória.
-
Homem, você não acaba mais? bradou de repente o solicitador.
Não havia remédio; Inácio bebeu a última
gota, já fria, e retirou-se, como de costume, para o seu quarto, nos fundos da
casa. Entrando, fez um gesto de zanga e desespero e foi depois encostar-se a
uma das duas janelas que davam para o mar. Cinco minutos depois, a vista das
águas próximas e das montanhas ao longe restituía-lhe o sentimento confuso,
vago, inquieto, que lhe doía e fazia bem, alguma coisa que deve sentir a
planta, quando abotoa a primeira flor. Tinha vontade de ir embora e de ficar.
Havia cinco semanas que ali morava, e a vida era sempre a mesma, sair de manhã
com o Borges, andar por audiências e cartórios, correndo, levando papéis ao
selo, ao distribuidor, aos escrivães, aos oficiais de justiça. Voltava à tarde,
jantava e recolhia-se ao quarto, até a hora da ceia; ceava e ia dormir. Borges
não lhe dava intimidade na família, que se compunha apenas de D. Severina, nem
Inácio a via mais de três vezes por dia, durante as refeições. Cinco semanas de
solidão, de trabalho sem gosto, longe da mãe e das irmãs; cinco semanas de
silêncio, porque ele só falava uma ou outra vez na rua; em casa, nada.
-
Deixe estar, - pensou ele um dia - fujo daqui e não volto mais.
Não
foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina. Nunca vira
outros tão bonitos e tão frescos. A educação que tivera não lhe permitia
encará-los logo abertamente, parece até que a princípio afastava os olhos,
vexado. Encarou-os pouco a pouco, ao ver que eles não tinham outras mangas, e
assim os foi descobrindo, mirando e amando. No fim de três semanas eram eles,
moralmente falando, as suas tendas de repouso. Agüentava toda a trabalheira de
fora toda a melancolia da solidão e do silêncio, toda a grosseria do patrão,
pela única paga de ver, três vezes por dia, o famoso par de braços.
Naquele
dia, enquanto a noite ia caindo e Inácio estirava-se na rede (não tinha ali
outra cama), D. Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio do jantar
e, pela primeira vez, desconfiou alguma coisa Rejeitou a idéia logo, uma
criança! Mas há idéias que são da família das moscas teimosas: por mais que a
gente as sacuda, elas tornam e pousam. Criança? Tinha quinze anos; e ela
advertiu que entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de
buço. Que admira que começasse a amar? E não era ela bonita? Esta outra idéia
não foi rejeitada, antes afagada e beijada. E recordou então os modos dele, os
esquecimentos, as distrações, e mais um incidente, e mais outro, tudo eram
sintomas, e concluiu que sim.
-
Que é que você tem? disse-lhe o solicitador, estirado no canapé, ao cabo de
alguns minutos de pausa.
-
Não tenho nada.
-
Nada? Parece que cá em casa anda tudo dormindo! Deixem estar, que eu sei de um
bom remédio para tirar o sono aos dorminhocos...
E
foi por ali, no mesmo tom zangado, fuzilando ameaças, mas realmente incapaz de
as cumprir, pois era antes grosseiro que mau. D. Severina interrompia-o que
não, que era engano, não estava dormindo, estava pensando na comadre Fortunata.
Não a visitavam desde o Natal; por que não iriam lá uma daquelas noites? Borges
redargüia que andava cansado, trabalhava como um negro, não estava para visitas
de parola, e descompôs a comadre, descompôs o compadre, descompôs o afilhado,
que não ia ao colégio, com dez anos! Ele, Borges, com dez anos, já sabia ler, escrever
e contar, não muito bem, é certo, mas sabia. Dez anos! Havia de ter um bonito
fim: - vadio, e o côvado e meio nas costas. A tarimba é que viria ensiná-lo.
D.
Severina apaziguava-o com desculpas, a pobreza da comadre, o caiporismo do
compadre, e fazia-lhe carinhos, a medo, que eles podiam irritá-lo mais. A noite
caíra de todo; ela ouviu o tlic do lampião do gás da rua, que acabavam
de acender, e viu o clarão dele nas janelas da casa fronteira. Borges, cansado
do dia, pois era realmente um trabalhador de primeira ordem, foi fechando os
olhos e pegando no sono, e deixou-a só na sala, às escuras, consigo e com a
descoberta que acaba de fazer.
Tudo
parecia dizer à dama que era verdade; mas essa verdade, desfeita a impressão do
assombro, trouxe-lhe uma complicação moral que ela só conheceu pelos efeitos,
não achando meio de discernir o que era. Não podia entender-se nem
equilibrar-se, chegou a pensar em dizer tudo ao solicitador, e ele que mandasse
embora o fedelho. Mas que era tudo? Aqui estacou: realmente, não havia mais que
suposição, coincidência e possivelmente ilusão. Não, não, ilusão não era. E
logo recolhia os indícios vagos, as atitudes do mocinho, o acanhamento, as
distrações, para rejeitar a idéia de estar enganada. Daí a pouco, (capciosa natureza!)
refletindo que seria mau acusá-lo sem fundamento, admitiu que se iludisse, para
o único fim de observá-lo melhor e averiguar bem a realidade das coisas.
Já nessa noite, D. Severina mirava por baixo
dos olhos os gestos de Inácio; não chegou a achar nada, porque o tempo do chá
era curto e o rapazinho não tirou os olhos da xícara. No dia seguinte pôde
observar melhor, e nos outros otimamente. Percebeu que sim, que era amada e
temida, amor adolescente e virgem, retido pelos liames sociais e por um sentimento
de inferioridade que o impedia de reconhecer-se a si mesmo. D. Severina
compreendeu que não havia recear nenhum desacato, e concluiu que o melhor era
não dizer nada ao solicitador; poupava-lhe um desgosto, e outro à pobre
criança. Já se persuadia bem que ele era criança, e assentou de o tratar tão
secamente como até ali, ou ainda mais. E assim fez; Inácio começou a sentir que
ela fugia com os olhos, ou falava áspero, quase tanto como o próprio Borges. De
outras vezes, é verdade que o tom da voz saía brando e até meigo, muito meigo;
assim como o olhar geralmente esquivo, tanto errava por outras partes, que,
para descansar, vinha pousar na cabeça dele; mas tudo isso era curto.
-
Vou-me embora, repetia ele na rua como nos primeiros dias.
Chegava a casa e não se ia embora. Os braços
de D. Severina fechavam-lhe um parêntesis no meio do longo e fastidioso período
da vida que levava, e essa oração intercalada trazia uma idéia original e
profunda, inventada pelo céu unicamente para ele. Deixava-se estar e ia
andando. Afinal, porém, teve de sair, e para nunca mais; eis aqui como e
porquê.
D. Severina tratava-o desde alguns dias com
benignidade. A rudeza da voz parecia acabada, e havia mais do que brandura,
havia desvelo e carinho. Um dia recomendava-lhe que não apanhasse ar, outro que
não bebesse água fria depois do café quente, conselhos, lembranças, cuidados de
amiga e mãe, que lhe lançaram na alma ainda maior inquietação e confusão.
Inácio chegou ao extremo de confiança de rir um dia à mesa, coisa que jamais
fizera; e o solicitador não o tratou mal dessa vez, porque era ele que contava
um caso engraçado, e ninguém pune a outro pelo aplauso que recebe. Foi então
que D. Severina viu que a boca do mocinho, graciosa estando calada, não o era
menos quando ria.
A agitação de Inácio ia crescendo, sem que
ele pudesse acalmar-se nem entender-se. Não estava bem em parte nenhuma.
Acordava de noite, pensando em D. Severina. Na rua, trocava de esquinas, errava
as portas, muito mais que dantes, e não via mulher, ao longe ou ao perto, que
lha não trouxesse à memória. Ao entrar no corredor da casa, voltando do
trabalho, sentia sempre algum alvoroço, às vezes grande, quando dava com ela no
topo da escada, olhando através das grades de pau da cancela, como tendo
acudido a ver quem era.
Um domingo, - nunca ele esqueceu esse
domingo, - estava só no quarto, à janela, virado para o mar, que lhe falava a
mesma linguagem obscura e nova de D. Severina. Divertia-se em olhar para as
gaivotas, que faziam grandes giros no ar, ou pairavam em cima d'água, ou
avoaçavam somente. O dia estava lindíssimo. Não era só um domingo cristão; era
um imenso domingo universal.
Inácio passava-os todos ali no quarto ou à
janela, ou relendo um dos três folhetos que trouxera consigo, contos de outros
tempos, comprados a tostão, debaixo do passadiço do Largo do Paço. Eram duas
horas da tarde. Estava cansado, dormira mal a noite, depois de haver andado
muito na véspera; estirou-se na rede, pegou em um dos folhetos, a Princesa
Magalona, e começou a ler. Nunca pôde entender por que é que todas as
heroínas dessas velhas histórias tinham a mesma cara e talhe de D. Severina,
mas a verdade é que os tinham. Ao cabo de meia hora, deixou cair o folheto e
pôs os olhos na parede, donde, cinco minutos depois, viu sair a dama dos seus
cuidados. O natural era que se espantasse; mas não se espantou. Embora com as
pálpebras cerradas viu-a desprender-se de todo, parar, sorrir e andar para a
rede. Era ela mesma, eram os seus mesmos braços.
É certo, porém, que D. Severina, tanto não
podia sair da parede, dado que houvesse ali porta ou rasgão, que estava
justamente na sala da frente ouvindo os passos do solicitador que descia as
escadas. Ouviu-o descer; foi à janela vê-lo sair e só se recolheu quando ele se
perdeu ao longe, no caminho da Rua das Mangueiras. Então entrou e foi sentar-se
no canapé. Parecia fora do natural, inquieta, quase maluca; levantando-se, foi
pegar na jarra que estava em cima do aparador e deixou-a no mesmo lugar; depois
caminhou até à porta, deteve-se e voltou, ao que parece, sem plano. Sentou-se
outra vez cinco ou dez minutos. De repente, lembrou-se que Inácio comera pouco
ao almoço e tinha o ar abatido, e advertiu que podia estar doente; podia ser
até que estivesse muito mal.
Saiu da sala, atravessou rasgadamente o
corredor e foi até o quarto do mocinho, cuja porta achou escancarada. D.
Severina parou, espiou, deu com ele na rede, dormindo, com o braço para fora e
o folheto caído no chão. A cabeça inclinava-se um pouco do lado da porta,
deixando ver os olhos fechados, os cabelos revoltos e um grande ar de riso e de
beatitude.
D. Severina sentiu bater-lhe o coração com
veemência e recuou. Sonhara de noite com ele; pode ser que ele estivesse
sonhando com ela. Desde madrugada que a figura do mocinho andava-lhe diante dos
olhos como uma tentação diabólica. Recuou ainda, depois voltou, olhou dois,
três, cinco minutos, ou mais. Parece que o sono dava à adolescência de Inácio
uma expressão mais acentuada, quase feminina, quase pueril. Uma criança! disse
ela a si mesma, naquela língua sem palavras que todos trazemos conosco. E esta
idéia abateu-lhe o alvoroço do sangue e dissipou-lhe em parte a turvação dos
sentidos.
-
Uma criança!
E
mirou-o lentamente, fartou-se de vê-lo, com a cabeça inclinada, o braço caído;
mas, ao mesmo tempo que o achava criança, achava-o bonito, muito mais bonito
que acordado, e uma dessas idéias corrigia ou corrompia a outra. De repente
estremeceu e recuou assustada: ouvira um ruído ao pé, na saleta do engomado;
foi ver, era um gato que deitara uma tigela ao chão. Voltando devagarinho a
espiá-lo, viu que dormia profundamente. Tinha o sono duro a criança! O rumor
que a abalara tanto, não o fez sequer mudar de posição. E ela continuou a vê-lo
dormir, - dormir e talvez sonhar.
Que
não possamos ver os sonhos uns dos outros! D. Severina ter-se-ia visto a si
mesma na imaginação do rapaz; ter-se-ia visto diante da rede, risonha e parada;
depois inclinar-se, pegar-lhe nas mãos, levá-las ao peito, cruzando ali os
braços, os famosos braços. Inácio, namorado deles, ainda assim ouvia as
palavras dela, que eram lindas cálidas, principalmente novas, - ou, pelo menos,
pertenciam a algum idioma que ele não conhecia, posto que o entendesse. Duas
três e quatro vezes a figura esvaía-se, para tornar logo, vindo do mar ou de
outra parte, entre gaivotas, ou atravessando o corredor com toda a graça
robusta de que era capaz. E tornando, inclinava-se, pegava-lhe outra vez das
mãos e cruzava ao peito os braços, até que inclinando-se, ainda mais, muito
mais, abrochou os lábios e deixou-lhe um beijo na boca.
Aqui
o sonho coincidiu com a realidade, e as mesmas bocas uniram-se na imaginação e
fora dela. A diferença é que a visão não recuou, e a pessoa real tão depressa
cumprira o gesto, como fugiu até à porta, vexada e medrosa. Dali passou à sala
da frente, aturdida do que fizera, sem olhar fixamente para nada. Afiava o
ouvido, ia até o fim do corredor, a ver se escutava algum rumor que lhe
dissesse que ele acordara, e só depois de muito tempo é que o medo foi passando.
Na verdade, a criança tinha o sono duro; nada lhe abria os olhos, nem os
fracassos contíguos, nem os beijos de verdade. Mas, se o medo foi passando, o
vexame ficou e cresceu. D. Severina não acabava de crer que fizesse aquilo;
parece que embrulhara os seus desejos na idéia de que era uma criança namorada
que ali estava sem consciência nem imputação; e, meia mãe, meia amiga,
inclinara-se e beijara-o. Fosse como fosse, estava confusa, irritada,
aborrecida mal consigo e mal com ele. O medo de que ele podia estar fingindo
que dormia apontou-lhe na alma e deu-lhe um calafrio.
Mas a verdade é que dormiu ainda muito, e só
acordou para jantar. Sentou-se à mesa lépido. Conquanto achasse D. Severina
calada e severa e o solicitador tão ríspido como nos outros dias, nem a
rispidez de um, nem a severidade da outra podiam dissipar-lhe a visão graciosa
que ainda trazia consigo, ou amortecer-lhe a sensação do beijo. Não reparou que
D. Severina tinha um xale que lhe cobria os braços; reparou depois, na
segunda-feira, e na terça-feira, também, e até sábado, que foi o dia em que
Borges mandou dizer ao pai que não podia ficar com ele; e não o fez zangado,
porque o tratou relativamente bem e ainda lhe disse à saída:
-
Quando precisar de mim para alguma coisa, procure-me.
-
Sim, senhor. A Sra. D. Severina...
-
Está lá para o quarto, com muita dor de cabeça. Venha amanhã ou depois
despedir-se dela.
Inácio
saiu sem entender nada. Não entendia a despedida, nem a completa mudança de D.
Severina, em relação a ele, nem o xale, nem nada. Estava tão bem! falava-lhe
com tanta amizade! Como é que, de repente... Tanto pensou que acabou supondo de
sua parte algum olhar indiscreto, alguma distração que a ofendera, não era
outra coisa; e daqui a cara fechada e o xale que cobria os braços tão
bonitos... Não importa; levava consigo o sabor do sonho. E através dos anos,
por meio de outros amores, mais efetivos e longos, nenhuma sensação achou nunca
igual à daquele domingo, na Rua da Lapa, quando ele tinha quinze anos. Ele
mesmo exclama às vezes, sem saber que se engana:
-
E foi um sonho! um simples sonho!
Fonte: Contos
Consagrados - Machado de Assis - Coleção Prestígio - Ediouro - s/d