João do Rio

O CARRO DA SEMANA SANTA

Para nós, vindos de peregrinar pelas igrejas, a luz Auer que iluminava o café era talvez desagradável. Ficáramos todos lívidos, com uma face de orgia. Sob o teto baixo, entre as mesas de mármore lustroso, os criados arrastavam os passos já meio exaustos, e como a sala fosse forrada de espelhos, velhos espelhos que reproduziam apagadamente os perfis, estávamos como num aquário, esquisitos, espectadores de uma cena em que tomávamos parte, em que nos víamos a representar noutro mundo - um mundo sem data, sem tempo, sem fim. Algumas vezes dávamos com um gesto nosso a desaparecer de súbito esburado pela falta de aço num pedaço de espelho, e era desinteressante, desoladoramente desinteressante. De resto, a noite fora curiosa. Éramos um pequeno grupo: dois homens que riam de tudo e pagavam a despesa, um menino com ares de Antino viçoso, cujos princípios todos ignoravam, um poeta obrigado a ser espirituoso, dois jornalistas, eu. Havia também um homem chamado Honório. Tomávamos uma mistura repugnante de alcoóis variados e tínhamos vindo cansados de dar encontrões na última igreja. A quinta-feira santa dissolvera na cidade a impalpável essência da luxuria e dos maus instintos. Quanta coisa de profano, de sacrílego, de horrível havíamos visto no redemoinhar da turba pela nave dos templos? Fúfias dos bairros sórdidos esmolando com a opa das irmandades para o Senhor Morto, bandos de rapazes estabelecendo o arrocho junto do altar-mor para beliscar as nádegas das raparigas, adolescentes do comércio com os olhos injetados roçando-se silenciosamente entre as mulheres, e mulheres, muitas mulheres, raparigas vestidas de branco, de azul, de cores vivas, matronas de luto fechado, pretas quase apagadas em panos negros, mestiças cheirando a éter floral, com gargalhadinhas agudas, o olhar ardente, todas como que picadas pela tarântula do desejo. A dolorosa cerimônia tinha qualquer coisa de orgíaco, como em geral as cerimônias religiosas deste fim de raça, em que os instintos inconfessáveis se escancaram ao atrito dos corpos, nos grandes agrupamentos. Na Candelária, junto a uma das colunas, o rapaz que lembrava Antino tivera a lembrança de se colocar entre uma cabrocha e um alentado sujeito "para verificar o escândalo", dizia ele. Em S. Francisco, o cidadão Honório batera no ombro de uma espanhola de mantilha, apontando-lhe a porta, para dizer-nos quando já ela se sumia: "Uma nevrosada: gatuna de carteiras pela semana santa." E nós estávamos afinal, naquele café do Carceler, perto de duas igrejas a comentar a extravagância sensual da multidão.

- Fazer horrores junto ao corpo do Senhor Morto! Mas deve ser uma delícia! paradoxou o jovem ambíguo.

- Pois está visto! gaguejou um dos desconhecidos que pagara.

Nós sorríamos, fartos de igrejas e de sacrilégios, e íamos sair, quando o cidadão Honório, que até aquele momento não falara, murmurou:

- Tudo na vida é luxúria. Sentir é gozar, gozar é sentir até ao espasmo. Nós todos vivemos na alucinação de gozar, de fundir desejos, na raiva de possuir. É uma doença? Talvez. Mas é também verdade. Basta que vejamos o povo para ver o cio que ruge, um cio vago, impalpável, exasperante. Um deus morto é a convulsão, é como um sinal de pornéia. As turbas estrebucham. Todas as vesânias anônimas, todas as hiperestesias ignoradas, as obsessões ocultas, as degenerações escondidas, as loucuras mascaradas, inversões e vícios, taras e podridões desafivelam-se, escancaram, rebolam, sobem na maré desse oceano. Há histéricas batendo nos peitos ao lado de carnações ardentes ao beliscão dos machos; há nevropatas místicas junto a invertidos em que os círios, os altares, os panos negros dos templos acendem o braseiro, o incêndio, o vulcão das paixões perversas. A semana santa! Tenho medo desta quinta-feira. Para quem conhece bem uma grande cidade, esse dia especial sem rumores, sem campainhas, é um tremendo dia em que os súcubos e os incubos voltam a viver. Até as ruas cheias de sombra parecem incitar ao crime, até o céu cheio de estrelas e de luar põe no corpo dos homens a ânsia vaga e sensual de um prazer que se espera.

Às palavras do cidadão Honório fizera-se em tomo um expectante silêncio. O homem era pálido, de uma palidez bistrada. Estava vestido de preto e a sua mão exangue tinha no dedo mínimo como a quebrá-lo um negro morcego de aço prendendo entre as garras o turvo brilho de uma opala. Só então reparamos que não ria e talvez assustasse almas menos céticas. Ele, de resto, após uma pausa, continuou sem que lho pedissem.

- Oh! sim! Tenho medo desta quinta-feira porque vocês vêem o vicio aparente, o vício às claras, o vício que os jornais não noticiam apenas em atenção ao arcebispado. Eu vi o vicio que se não vê e dão calafrio do supremo horror, o vício misterioso e devorador rodando em tomo das igrejas. Há três anos acompanho-o. Ainda agora, ao sairmos da Candelária, lá estava ele na praça, fatal, definitivo, cruel, esperando...

Aquela confissão era a de um doente. O pequeno Antino abriu a polpa carnuda do lábio num sorriso de flor que desabrocha.

- Honório, que vicio é esse? Fale. Morremos de curiosidade.

- O vicio que ninguém vê? Conta lá.

- E o carro da semana santa.

- O carro? regougou um dos cavalheiros, é boa é muito boa!

- Quem sabe? fez Honório pensativo. Depois, num repente: Há três anos, quinta-feira de endoenças, resolvi sair à noite. Não deveria ter saído. Neste dia a cidade visita igrejas. Além das igrejas só a impressionam as confeitarias com os seus balcões de bombons e os botequins. Saí, entretanto, assim de preto, com um fraque idêntico. Estive numa confeitaria, hesitei alguns minutos, e afinal, como estivesse no largo da Carioca, comecei a subir para a igreja da Ordem 3ª.

Ia inconscientemente quase. Ao deixar a confeitaria, tinha o vago desejo de ver se encontrava qualquer coisa de interessante, e estava ali, de repente, com vontade de uma perversão qualquer, com o instinto de qualquer coisa de bem baixo, de bem vil, de bem indigno, em que refocilar o meu temperamento à solta. Talvez as luzes trêmulas, aquela gente que subia devagar e descia depressa, ao cheiro de suor, de perfume barato, de cosméticos e de cera, o roçar da canalha, o contato do meu corpo com outros corpos, peles de mãos ásperas umas, algumas macias, sugestionassem os nervos do meu pobre ser; talvez apenas fosse o fundo de lama com que fomos todos feitos... O fato é que ao voltar à rua da Carioca, eu era um homem que deseja, cuja percepção da luxúria é mais aguda, cujos nervos vibram mais. Uma saia repuxada, o relevo forte de uma anca, os encontrões brutais dos marçanos em traje de ver a Deus, dois olhos mais acesos, faziam-me parar, retroceder, pensar em frases, morder o bigode, andar devagar em tomo dos vendedores de doces e de refrescos, excitado pela frescura das peles, pelos trechos de carne ocultos, com as têmporas a suar frio e um calor nas faces, uma palpitação... A vontade do acanalhamento devorava-me, e eu ao mesmo tempo que queria satisfazê-la, queria ocultá-la.

Ninguém, todavia, dera ainda por aquela nevrose, quando senti perfeitamente dois olhos pregados nos meus movimentos. Onde esses dois olhos? Eu os sentia, eu os sentia bem. Onde? Voltei-me, observei, desconfiado. A turba rumorejava na semipenumbra. Não havia ali cara que me olhasse. Só, perto do chafariz, dando àquele canto uma nota anormal, uma velha berlinda com os estores arriados, parecia esperar alguém. Que berlinda, filhos! Lembrava um velho carro da Assistência. Era suja, era grande, era vasta, quase um leito. Na boléia o cocheiro parecia de pedra, e os estores de pano vermelho estavam imóveis. Estaria vazia? Esperava mesmo alguém? Dei uma volta indagadora em tomo, e tive, oh! sim! tive a certeza de que ali dentro havia uma criatura, que ali vibrava estranhamente alguém, porque assim como sentira o calor, o fluido ardente de dois olhos fixos sobre mim, a descobrir-me a alma, sentia agora que a minha observação perturbava esses olhos. Quem estaria naquele carro? Quem? Um homem? Uma mulher? Quis falar ao cocheiro, mas, de repente, a berlinda pôs-se em movimento, desaparecendo pesadamente na rua Uruguaiana.

Fiquei um instante trepidante, nervoso. Mas é um fato que quando as crises de pornéia da multidão agem sobre os nervos dos fracos, esses começam por desejar seguir alguém, seja quem for, com o desejo flutuante, o cio indeciso e como que tocado também de uma curiosidade malsã pelo vício dos outros. O carro desaparecendo causou-me uma vaga tristeza. Como seria agradável o que se fazia dentro, nas suas velhas almofadas! Larguei-me para a Candelária, que me pareceu um teatro tanta era a gente e tanta a luz elétrica, e estava lá roçando-me à turba, quando vi um conhecido. Sai então à pressa, sem lhe dar tempo aos cumprimentos e às fatais perguntas; sai, mergulhei de novo nas ruas mal-iluminadas, em que o luar punha uma suave pulverização de sonho. Iria a S. Bento, que tem um morro, árvores, mais sombras, mais recantos sugestivos, o Arsenal pegado e a vista do mar - o pai de todos os grandes vícios incomensuráveis...

Quando, porém, ia chegando ao Arsenal, lá dei com o carro outra vez, vasto como um quarto, com o cocheiro impassível e os estores vermelhos. A sombra cobria a calçada; no céu andava a Lua num estendal de ouro-pálido. Que esquisito peregrinar! que estranha peregrinação! Abriguei-me no desvão de uma porta. Passaram-se dez minutos assim, e era impossível apagar a ansiedade dos meus nervos para descobrir o enigma. A berlinda parecia tremer a capota empoeirada sob o sudário do luar. Depois, rodou devagar, como se tivesse uma alma e estivesse a disfarçar uma ação feia. Ao chegar ao escuro beco de Bragança parou, a portinhola abriu-se, uma sombra golfou, então aí a berlinda precipitou a marcha. Deus! que seria aquilo? Um crime? uma extravagância? A passeata de algum crente agonizando, que tivesse feito a promessa de arrastar a sua agonia aos pés de todos os corpos de Jesus expostos? Mas a sombra? Eu amo o horror das coisas inacreditáveis. Meti-me quase a correr pelo beco. No meu cérebro havia um escachoar de idéias...

Não encontrei a sombra, o vulto que eu vira sair do carro. E a procurá-la, de rua em rua, com a face a queimar, fui até a igreja do Rosário. Como? Não sei. O sangue latejava-me nas têmporas, um suor viscoso molhava-me a palma das mãos. Quando dei por mim, tinha diante de mim a velha igreja, e ao canto esquerdo do templo, exatamente igual, tal qual, a velha berlinda. Coincidência... Há desses encontros de gente que nunca se falará, em reuniões dominadas pelo vício. Não filosofei, porém. Fui ao cocheiro, querendo saber. - "Olá, camarada, desocupado? "- "Não", respondeu ele seco. - "Pago bem." - "Não posso, já disse." - "Tem alguém ai então?" O cocheiro cuspiu para o lado. "Ó seu, vá se pondo fora, se não quer que lhe aconteça alguma." Fiquei sem palavra e ele tocou.

Mas o desejo de conhecer a razão daquelas paradas à beira das igrejas era muito. Segui por onde vira perder-se a berlinda. "Ainda a vejo hoje!" pensava. E de fato, fui encontrá-la quase ao fim da noite, em frente à catedral, do lado do largo do Paço. Não me aproximei. Era melhor esperar de longe. O trecho da rua ardia em luzes, tal qual como hoje. Vendedores ambulantes serviam com estrépito refrescos e doces. Gente de preto ia, vinha, passava, desdobrando pelas calçadas negras serpentes interminais. Fuzileiros navais ébrios, malandros de calça bombacha, marinheiros, formavam grupos perigosos, fora da calçada. Criaturas ambíguas chispavam olhares desvairados de esguelha, no burburinho da populaça. De repente, o carro começou a mover-se, foi até a rua Sete, depois embicou para a esquerda, para o lado dos jardins. Precipitei-me. A berlinda misteriosa acompanhava um marinheiro, forte homenzarrão hercúleo e jovem. Não havia dúvida. Era. Oh! se era! Ia devagar, devagar... O marinheiro, a principio hesitava. Em seguida pareceu compreender a inutilidade de fugir, relanceou os olhos a ver se o espreitavam, e seguiu bamboleando o passo, - um passo que espera o chamado. Em frente ao Telégrafo parou, cortou pelo jardim, como se fosse para o ex-Mercado. A berlinda rodou mais depressa pela primeira quebra dos jardins, e foi encontrá-lo, já atravessando a rua para a rampa. Ai o rapagão estacou. O carro também. De dentro falaram, deviam ter falado, porque o marinheiro aproximou-se da portinhola que se abriu, tragando-o. Fiquei estarrecido, com tais palpitações que sentia no pescoço a artéria bater. Já a berlinda descia lentamente, como quem dá uma volta à espera de freguês. Perto de mim, meia dúzia de catraeiros olhavam com esse ar de mordente complacência que a canalha tem a receber as fraquezas da gente da alta. Compus a fisionomia, indaguei.

- É boa aquela do carro, hem?

- É danada! respondeu um dos tipos.

- O que admira é a resistência dela! exclamou outro.

- Como resistência?

- Pois V. S. não sabe? É a mulher do carro da semana santa. Já está muito conhecida. Vem sempre naquele carro e chama os que agradam...

- E vocês vão?

- Rapaziada não respeita... ela paga bem.

- E são muitos?

- Ela só aparece na semana santa. Mas é até pela manhãzinha.

Recuei. Ali, naquele velho carro, rodando à beira das igrejas, uma Gorgona de vicio abria a fauce tragando as flores da ralé, gente que lhe servia de pasto a troco de dinheiro; naquele carro silencioso estorcia-se uma nevrose desesperada; naquela berlinda, misteriosamente, a fúria de um súcubo, a ânsia de uma diabólica fundia nos braços um bando de homens com o desespero sensual despedaçador! Oh! o vicio que se não vê! Essa criatura, essa criatura! E, há três anos, todas as quintas-feiras santas, acompanho a berlinda procurando vê-la, procurando encarar o polvo de luxúria, que lá dentro distende os tentáculos. Quem será? Uma senhora de sociedade? Uma perdida? Sei lá! Uma louca, uma desvairada, uma desgraçada, de que ninguém sabe o nome, de que ninguém talvez possa reconhecer o semblante, na rua, quando passa...

- Delicioso caso! fez o efebo literato erguendo o corpo airoso, que recordava os pajens dos Valois. Honório pôs-se de pé. Todos nós fizemos o mesmo em silêncio. A história impressionara, e principalmente a ele, ao Honório, ao próprio narrador. Talvez quisesse ainda rever a berlinda. O fato é que chegou à porta, consultou o relógio, e ia despedir-se, quando de súbito esticou a mão exangue, onde a opala lembrava o perturbado brilho de sua alma.

- Olhem, lá está ela, lá está... Era fatal... Ninguém sabe o que encerra. É o segredo das vitimas. Não. É o segredo dela apenas... Espera decerto alguém. Estão vendo? Naquele pedaço de sombra, junto à igreja... Ao lado há um beco. A vítima sairá do beco... Espantoso. Já ouvi dizer que é uma mulher com bexigas, outrora bela. Um dos convidados conseguiu, disse-me, ver-lhe a cara através do véu. Conta que é queimada. Mas não. Outros asseguram que tem pústulas. É a lenda. A opinião geral é mesmo a de ser uma formosa senhora de alta posição. Não! não é nada disso. É apenas o horrível vício que se não vê, a luxúria exasperada...

Nós olhávamos a sombra, nervosos, como à espera. Honório falava intercortado, estava quase de cera, e parou subitamente de falar. Uma camisa branca surgira à portinhola da berlinda, parara. Era um adolescente. Vimos um gesto de negativa, vimos, apesar do gesto, a portinhola abrir-se, vimos o rapaz pôr o pé no estribo, ser como que puxado, e logo o ruído seco da portinhola.

- Mas é um crime! ganiu um dos senhores que pagavam as despesas.

- Quem sabe? fez frio o cidadão Honório.

Nesse momento as luminárias da igreja apagaram. Acabara a visitação ao Senhor Morto. Havia a confusão natural nos fins de tais solenidades: gente apressada, senhoras nervosas por apanhar conduções, homens parados a ver se lhe agradavam as mulheres, gritos mais fortes de vendedores ambulantes, estalar de chicotes, carros, chamados, pragas. E, como a rua tivesse caído na sombra, já se sentia o luar da noite esplêndida iluminar os jardins interminos, lá, mais longe.

O cidadão Honório despediu-se. O carro rodava devagar no meio da turba compacta. Era o mesmo carro de que ouvíramos a história, velho, sujo, vasto, lembrando a Assistência, o mesmo a levar o horror desesperado, a fúria da volúpia voraz, o pavoroso mistério do vicio delirante...