Alcântara Machado

CONTOS AVULSOS

AS CINCO PANELAS DE OURO

Dona Esmeralda Foz era filha de Dona Gertrudes Lemos que em Jataí-Estação muito fez pelo espiritismo. Tidoca Lemos morreu desprevenido, Dona Gertrudes ficou nervosa com a incerteza do destino que tivera a alma do marido. Daí o ter entrado para sócia contribuinte do Centro Espírita Amigos de Jesus. Logo na primeira reunião Tidoca apareceu pigarreando seco (velho cacoete dele), disse que estava bem, mandou lembranças para os amigos, recomendou insistentemente à mulher que não deixasse de pagar os vinte mil-réis que ele morreu devendo ao Tenente Euclides (orador oficial do Centro), falou nos deveres de amor e caridade para com o próximo e se despediu pigarreando seco. Dona Gertrudes virou espiritista fanática. Porém não pagou os vinte mil-réis ao Tenente Euclides. O que foi um dos motivos do cisma havido no Amigos de Jesus e imediata fundação do Companheiros de Cristo com Dona Gertrudes no cargo de primeira-secretária.

Por essa época Dona Esmeralda tinha seus dezesseis-dezessete anos e já por qualquer coisa ria demais ou chorava demais. Ou ria depois chorava, chorava depois ria. Diziam para ela: O Inacinho do Areão caiu do cavalo. Ela ia e ria que era um despropósito. Acrescentavam: Bateu com a cabeça numa pedra, morreu. Ela ia e desandava a chorar soluçado de cortar o coração. Dá uma boa médium, pensou Dona Gertrudes. E levou a filha no Centro.

Até então a médium preferida do Companheiros de Cristo era a filha do presidente Maestro Angiolini. Chamada Celeste Aída. Logo se estabeleceu uma rivalidade tremenda. Porque Angiolini achava ruinzinhas as comunicações feitas por intermédio de Esmeralda. Espiritismo é como música. Precisa coração. O coração é que comanda. E a Esmeralda só tinha cabeça. Por seu lado Dona Gertrudes atrapalhava com apartes caçoistas os discursos que os espíritos ditavam para Celeste Aída. A diretoria aí resolveu consultar Pai Jacob, protetor do Centro. Um médium de pencinê veio especialmente de São Paulo. Pai Jacob entrou nele e decidiu a questão a favor da filha do presidente. Dona Gertrudes protestou inflamada dizendo que a coisa lhe cheirava a tribofe. Esmeralda principiou a chorar. Dona Gertrudes agarrou na mão dela, antes de sair deu uma gargalhada satânica, gritou para Salvini: - Você, seu carcamano, quando nasceu te jogaram duas vezes na parede: uma vez grudou, outra não! Esmeralda compreendeu, largou de chorar e riu até a mãe dizer chega com dois beliscões.

Meses depois Dona Gertrudes se mudou para Jataí-Vila e casou a filha com um moço muito bom, Nicolau Foz, empregado da Luz e Força e oposicionista vermelho. Dias depois morreu de susto. Tarde da noite explodiu perto da casa dela uma fábrica de fogos. Dona Gertrudes foi encontrada já fria apertando contra o peito O Triunfo na Vida Terrena pelo Magnetismo Pessoal do professor E. Bedlamite de Columbus, Ohio, U.S.A. Morreu de susto.

A filha sofreu muito. Gostava da mãe. E morta a mãe passou a gostar do único bem do espólio: uma cachorrinha peluda. Muito vagabunda mas muito célebre. Tinha sido presente de uma comadre da de cujus. Dona Gertrudes a recebeu novinha com dias apenas. E já batizada Goiabada. Nome horrível que Dona Gertrudes resolveu mudar. Consultou a filha, a filha pediu um dia para pensar, pensou e sugeriu dois a escolher: Florzinha e Violeta. Dona Gertrudes recusou, passou em revista outros e afinal se decidiu por Dorotéia Cabral. Daí a celebridade. Toda gente fez questão de conhecer Dorotéia Cabral. E Dona Gertrudes explicava: - Os animais não são nossos irmãos inferiores? Pois então, ué! Devem ter nome de gente! Por isso o genro se animou um dia a observar: Se a cachorrinha tem direito a nome de gente tem direito a apelido. Dorotéia Cabral é muito comprido: fica sendo Tetéia. Dona Gertrudes não discordou. Fez porém uma restrição: - Não há dúvida. Tetéia está bem. Mas só na intimidade.

Enquanto crescia o amor de Dona Esmeralda (que não tinha filhos) pela Tetéia grandes sucessos modificavam a vida do país. E Jataí-Vila (cidade, cabeça de comarca, mas sempre Jataí-Vila para distinguir de Jataí-Estação onde passavam os trilhos da Boigiana) foi teatro de muitos e variados acontecimentos. Com seus quatro mil e setecentos vizinhos há muitos anos vivia empenhada em furiosa luta política: de um lado os partidários de Zéquinha Silva desde cinco lustros chefe do situacionismo, de outro os do Major Mourão (alentejano de nascimento) e seu braço direito Nicolau Foz. Aqueles eram os perrepistas. Estes os oposicionistas. Luta local só. Os antiperrepistas também pertenciam incondicionalmente ao P. R. P. Mas ao P. R. P. estadual, ao governo. Nunca ao de Zequinha Silva. A ambição deles era constituir um dia com sua gente o P. R. P de Jataí-Vila. Obedeciam â orientação de um deputado que em Jataí-Estação era situacionista, em Jataí-Vila oposicionista. E tecia seus pauzinhos na Capital junto aos chefões para derrubar o tiranete de Jatai-Vila que a oposição não se cansava de apontar como indigno dos nossos foros de civilização e cultura.

A coisa porém continuava no mesmo pé sem dar esperanças de modificação próxima. Até que veio o movimento revolucionário de outubro de 1930. Então principiou uma emulação desesperada. Todas as provas iniludíveis de dedicação à causa da legalidade (o que eqüivalia dizer à causa sagrada do Brasil unido) foram dadas pelos dois partidos. Zéquinha Silva telegrafava solidariedade aos Presidentes da República e do Estado, o Major Mourão imediatamente fazia o mesmo. Fazia mais: estendia essa solidariedade inabalável ao Ministro da Guerra ao Ministro da Marinha, ao Presidente da C. D do P. R. P., ao Secretário da Justiça e ao Chefe de Policia do Estado. E quando Zéquinha resolveu organizar um batalhão patriótico a oposição anunciou a formação de dois: infantaria e cavalaria. Porém Zéquinha Silva contava com maior número de elementos. Trinta e dois sujeitos pegados à força pelo Subdelegado Tolentino foram convenientemente calçados e seguiram logo sob o comando do cabo do destacamento. Este levava uma carta do diretório para o Secretário da Justiça pedindo que os voluntários de Jataí-Vila fossem aproveitados na faxina dos quartéis da Capital "para sossego de suas respeitáveis famílias. cujo patriotismo honra sobremaneira as nossas gloriosas tradições bandeirantes". Passados uns dias a Viúva Mané Bindão (inventora e fabricante única de um doce chamado "beija-me-devagar") recebeu carta do filho dizendo que a coisa em Itararé estava bem preta. A Viúva Mané Bindão foi na casa do Zéquinha e amaldiçoou a família Silva até a última geração. A oposição pulou nas ruas de contentamento Pulou um dia só entretanto: o governo mandou perguntar para o Major Mourão se os homens dele seguiam ou como era. O major respondeu que estavam de partida. Foi uma vergonha. O Afonso Henriques. filho do major, afundou no mato com dois primos. Antônio Vicente de Camargo Júnior, um dos chefes oposicionistas. declarou que não criara filho para carne de canhão. E assim todos. Até que Nicolau teve uma idéia. Três léguas para o norte em São Benedito do Alecrim, nas divisas de Minas, havia dois batalhões em pé de guerra: um paulista aquartelado no Grupo Escolar Marechal Deodoro, outro mineiro no Grupo Escolar Marechal Floriano. Os dois prédios ficavam na mesma rua. Mas seus ocupantes trocavam gentilezas. Cada batalhão só esperava a hora de aderir ao adversário. Pois então: era comunicar para o governo que o pessoal oposicionista de Jataí-Vila iria reforçar a tropa de São Benedito do Alecrim. E estava tudo arranjado.

Não estava. O governo mandou ordem para os homens partirem sem demora para a Capital. Aí seria resolvido o destino deles. Que remédio? O Major Mourão recrutou três matadores profissionais, dois ladrões de cavalos, um preto maluco que pensava que era relógio e vivia no Largo da Matriz movendo os braços que nem ponteiros, um surdo-mudo de nascença e um tal Chico Rosa mais conhecido por Chico Perna-de-Pau. Os matadores e os ladrões custaram cem mil-réis por cabeça: quinhentos mil-réis que o major desembolsou sem a mulher saber. A Filarmônica Doutor Quirino tocou o Hino Nacional, Antônio Vicente fez um discurso patriótico, os homens subiram num caminhão, o Laudelino Pinto do Centro Cultural gritou: "Que cada um traga uma orelha do Bernardes, são os meus votos sinceros!", e toca para Jataí-Estação pegar o trem. A Filarmônica em outro caminhão e os chefes oposicionistas num torpedo foram escoltados.

- Assim a gente tem a certeza de que os maganos embarcam - disse o major.

- Que não desertam antes de chegar na estação - corroborou Nicolau.

- Eu sapeco outro discurso neles quando o trem chegar - prometeu Antônio Vicente.

Seguiram já a noite vinha descendo. Daí a vinte minutos estavam chegados. Estação pequetita, encheram a plataforma. A Filarmônica iniciou imediatamente a Canção do Soldado Paulista. E o major dava suas últimas instruções aos bravos de Jataí-Vila quando o chefe da estação chegou todo transtornado.

- Seu major!

Seu major suspendeu as instruções, ficou esperando.

- Seu major! Deu-se!

- O quê?

- A coisa!

- Hein?

- A coisa! O Washington! Não percebo, homem!

- AREVOLUÇÂOVENCEU!

- Estás doido!

O chefe da estação ficou possesso:

- Eu, doido? O senhor é que está maluco! Se não é analfabeto leia isto!

Tirou do bolso um papel, encostou na cara do major. O major pegou no papel, deu para Nicolau ler. Nicolau leu:

- 5-0-9. 7-1-3. Centenas invertidas pelos cinco...

O chefe deu um pulo.

- Não é esse!

Arrancou o joguinho das mãos do Nicolau, meteu no bolso, puxou outro papel, leu, deu para Nicolau ler. Nicolau leu três vezes. Ia ler outra vez com os olhos cada vez mais esbugalhados mas o major não deixou.

- Dize lá do que se trata, vamos!

Nicolau devolveu a cópia do telegrama para o chefe, o chefe saiu correndo para avisar outros. Nicolau puxou o major e Antônio Vicente de lado e falou:

- A revolução venceu no Rio! O Washington fugiu!

O major rugiu:

- Lérias! Aquilo é um homem, homem! Não sabe o que é fugir!

- Telegrama oficial, seu major!

- Pois se é oficial, a revolução não venceu! Telegrama oficial só pode ser do governo! O governo está de pé!

Antônio Vicente procurou chamar o major à razão. O maior teimou. Começaram a discutir. O sino da estação anunciou a saída do trem de Engenheiro Abrunhosa: daí a minutos estava em Jataí. Um vivório se ouviu longe. Cousa indistinta. Os três abriram bem os ouvidos.

- Júlio! - disse o major. - Que é que lhe dizia eu?

- Getúlio! - disse Nicolau. Ouvi perfeitamente.

- Escutem! suplicou Antônio Vicente.

O vivório foi se chegando. Começou o foguetório também.

- Júlio! - disse o major. - Não tem discussão!

- Getúlio! - disse Nicolau. - Getúlio Vargas!

- Esperem! - pediu Antônio Vicente.

Esperaram. O foguetório não deixava os três perceberem bem o vivório. Mas de repente juntinho deles explodiu com tanta violência um Viva o Doutor Getúlio Vargas que os três até recuaram de susto. E Chico Perna-de-Pau repetiu o viva. O major indignado ia gritar com o Chico mas os matadores profissionais e os ladrões de cavalo sacaram das garruchas e deram de atirar para todos os lados. O major se agachou atrás de um banco gritando:

- Não me matem que eu sou português!

Chico Perna-de-Pau perguntou:

- Quem é que é português?

Antônio Vicente subiu no banco e gritou desvairado:

- Abaixo a plutocracia!

Os voluntários de Jataí-Vila, esgotadas as munições, corresponderam:

- Viva-a-a!

Antônio Vicente tornou a gritar:

- Abaixo os opressores do povo!

E os voluntários de Jataí-Vila delirantes:

- Viva-a-a!

A estação já estava cheia de revolucionários. O trem chegou. Vivórios e mais vivórios. O trem partiu. O major no meio do povo bradava:

- Que eu sabia que vinha lá isso sabia! Mas, caramba rapazes, nunca pensei que viesse já! Viva Jataí-Vila!

- Morra! - berrou um mulato no ouvido do major. - Isto aqui não é Jataí-Vila!

O major pediu muitas desculpas mas o mulato não queria desculpas. Queria dez puas para beber à saúde do Isidoro. E exigia um viva ao Isidoro.

- Viva - disse o major. - Toma lá cinco mil-réis que dez não tenho.

O Nicolau conferenciava na sala do telegrafista com o Doutor Querido que desde a monarquia era oposicionista na zona.

- Está feito!

Disse e saiu à procura dos companheiros. Arrancou o major das mãos de um italiano recém-chegado da Penitenciária que já obrigara o major a dar três morras (Morra Mussolini, Morra Matarazzo e Morra D'Annunzio), interrompeu um discurso de Antônio Vicente sobre a Revolução Francesa, arrebanhou com promessas os músicos e os voluntários, saiu com eles da estação. Em dois tempos conseguiu convencer todos a voltar imediatamente para Jataí-Vila tomar conta do governo.

Com uma provisão de foguetes e bombas de parede chisparam na estrada. E entraram em Jataí-Vila de escapamento aberto. No caminhão da frente os voluntários soltavam foguetes e jogavam bombas. A seguir no torpedo de capota descida os chefes da oposição vivavam a democracia brasileira e gritavam para os que abriam bocas de espanto nas calçadas e janelas: - Vencemos! Por último os músicos tocavam o Hino a João Pessoa. Foram direito para o Largo da Matriz. Fez-se um ajuntamento de uns trinta sujeitos. Antônio Vicente arengou. Enquanto ele arengava o coronel chamou um negrinho:

- Corre lá em casa e dize a Emília que vencemos!

O negrinho voltou logo com a Emília. E a Emília louca de alegria:

- Já telegrafaste ao Senhor Doutor Washington com as nossas felicitações?

O major explicou. E ela rebentou:

- Tu mandas dizer-me que vencemos eu penso que venceram os legalistas! Agora se é para perder de uma vez a vergonha viva esse tal de Getúlio e mais a cambada toda.

Deu meia volta e se retirou muito digna. Deixando o major frio. Mas daí a pouco chegou fardado o Coronel Cerqueira, veterano do Paraguai, com o peito cheio de medalhas, imensamente comovido, derrubando lágrimas. Abraçou o major dizendo:

- Um abraço, meu bravo! Conte comigo! Quando é que chega o Imperador?

O major ficou sem saber o que responder, a filha do Coronel Cerqueira fez uns sinais desesperados, o major compreendeu, respondeu:

- O Imperador? Ah, sim! Sua Majestade não demora está aí para nossa felicidade! Eu aviso o dia exato da chegada! E agora vá para casa que a noite está fria!

O coronel se retirou pelo braço da filha. Antônio Vicente alheio ao que se passava em torno continuava arengando. Nicolau mandava recados. E ia chegando gente, iam chegando moleques, todos os moleques de Jataí-Vila. Nicolau contou por alto os presentes.

Cassou a palavra de Antônio Vicente (Me deixa ao menos meter a ronca na Bastilha! Eu ainda não falei na Bastilha!) e gritou:

- Quem for brasileiro que me acompanhe!

Houve uma indecisão. Porém o Lázaro Turco da Verdadeira Loja Síria falou:

- Como é, pessoal? Patriotismo!

E o pessoal acompanhou. Menos o Janjão porteiro do Grupo:

- Enquanto eu não ler isso no Correio Paulistano eu não acredito mesmo!

Ocupada a cadeia (o delegado desaparecera vestido de mulher, disseram muitos que juraram ter visto), os revolucionários soltaram dois negros desordeiros, um leproso e a Mariazinha Louca que encontraram acorrentada anunciando para breve o Juízo Final. Nicolau não queria libertar Mariazinha antes de tirar uma fotografia para mostrar os métodos inquisitoriais dos déspotas vencidos. Mas Antônio Vicente propôs coisa melhor:

- A gente solta a peste e no lugar dela acorrenta o Zéquinha Silva para ele ver se é bom.

A casa do Zéquinha Silva estava com a porta e as janelas de pau cerradas quando o grupo parou em frente dando morras. Vai ver que já abriu o chambre, pensou Nicolau. Bateram, ninguém veio abrir. Mas logo depois os gritos de Arromba! Arromba! fizeram com que uma das janelas se abrisse e espiasse uma pretinha de olho assustado. Antônio Vicente mandou:

- Vá chamar seu patrão!

- Sim senhor!

Demorou um instante, voltou.

- Dona Trindade manda dizer que o patrão não pode vir não senhor porque a filha dele Dona Isolina está tendo filho.

- Mentira! - berrou Nicolau. Diga pra ele que venha senão nós arrombamos a porta e fazemos uma gravata nele!

A negrinha foi dizer. E Nicolau não tinha acabado de explicar para o major o que era uma gravata gaúcha quando a parteira Dona Gegé apareceu na janela.

- Vão embora, seus vagabundos, seus covardes! A criança nem bem nasceu e vocês já querem estragar a vida dela! Seus assassinos!

Houve um silêncio. E no silêncio se levantou a voz amável do major:

- Ah? Nasceu mesmo? Pensamos que fosse broma! É homem ou mulher?

- Não é de sua conta! - disse Dona Gegê e bateu a janela na cara dos patriotas.

Antônio Vicente falou:

- E agora?

O entusiasmo tinha esfriado. O major arriscou:

- Vamos todos para as nossas casas que o dia já foi muito bem ganho.

- Vão vocês - falou Nicolau. - Eu não durmo esta noite.

Não dormiu. Com três ou quatro mais dedicados passou a noite inteira tomando providências. E o major acordou no outro dia presidente da junta provisória de Jataí-Vila. O que reconciliou Dona Emília com a revolução:

- Assim está conforme! Os valores pra frente, é o que se quer!

A junta Mourão-Nicolau-Vicente tomou conta de Jataí-Vila dois dias com poderes discricionários. Na manhã do terceiro chegou o delegado mandado de São Paulo: Doutor Santos Dumont Salomão. A junta foi destituída e nomeado prefeito o agente da Ford, Idílio Madeira. Despeitadíssimo o pessoal da ex-junta organizou o Bloco dos Destemidos ou Os 18 de Copacabana. O Doutor Salomão se viu meio fraco, procurou se chegar ao Zéquinha. Mandou dizer para ele que quando precisasse de garantias de vida era só dar uma telefonada. Preparando terreno para uma aliança no momento oportuno. Nicolau ficou fulo com tais manobras. Telegrafou para São Paulo protestando mas São Paulo não deu resposta. Recorreu então ao mimeógrafo da Papelaria Humaitá. Todos os dias Jataí-Vila se enchia de manifestos xingando os usurpadores adventícios: Doutor Santos Dumont Salomão ("filho de mascate sírio com mulata sem-vergonha") e Idílio Madeira ("brasileiro, sim, mas natural da terra de Calabar"). O Doutor Salomão reagiu conservando 24 horas no xadrez o Afonso Henriques Mourão acusado de ter desencaminhado uma menor três anos antes. E organizou o Bloco dos Animosos ou Os Mártires da Clevelândia. Os Mártires se reuniram à noitinha no Largo da Matriz e quando se sentiam de fato Animosos marchavam para a casa do prefeito berrando: Nós queremos Madeira! E merecem, escreveu Nicolau num de seus manifestos.

Então vendo as coisas assim malparadas o vigário resolveu pacificar os espíritos. A matriz estava sendo reformada. Engrandecida até com um altar dedicado a Santa Joana d'Arc.

A primeira quermesse tinha rendido pouco apesar dos esforços da comissão presidida por Zéquinha Silva. Padre Zoroastro pensava realizar outra com umas dez barraquinhas pelo menos. Bonito pretexto para a paz.

Padre Zoroastro foi falar com o Doutor Salomão. Provou para ele a vantagem de uma concórdia e a oportunidade que para ela oferecia uma obra de religião e caridade. Aparentemente ninguém cedia, ninguém dava parte de fraco. Sobrevindo um motivo de ordem superior o acordo se fazia para garantir à quermesse o êxito que não podia ter se realizada num ambiente de ódios. Padre Zoroastro sabia convencer. E tinha um modo de falar irresistível: falava baixinho, devagarzinho, perguntava: não é? Se encontrava resistência ele mesmo respondia: é, não ligava às objeções nem estudava o que os outros diziam, continuava falando, caceteando, embalando de mansinho, os outros concordavam cochilando já. Doutor Salomão não fez exceção e disse:

- Pois sim.

Padre Zoroastro saiu da delegacia, foi para o escritório da Luz e Força. Mas não contou para o Nicolau que já tinha estado com o Doutor Salomão. Repetiu só o que havido falado pouco antes. Naquele tonzinho sumido de confessionário. Sempre igual, sempre igual.

- Escute, Padre Zoroastro! - exclamava de vez em quando Nicolau.

Sem acrescentar palavra, Padre Zoroastro tinha lá falar, não tinha ido ouvir. Isto é: tinha ido ouvir o sim, só o sim. Enquanto esperava a hora do sim falava para impedir o não.

Nicolau disse o sim quando - depois do último não é? é - Padre Zoroastro deu licença para ele dar um pio.

E o acordo se fez. O Doutor Salomão continuava na delegacia e o Idílio na prefeitura prestigiados daí em diante pelos 18 de Copacabana.

Sob duas únicas condições: a prefeitura não dava andamento aos executivos por impostos atrasados que tinha em juízo contra Nicolau e a delegacia deixava sossegado o Chalé Felizardo de que era proprietário um irmão do major.

Acordo que não agradou nada alguns dos 18 de Copacabana. No Bar Ideal um descontente chegou a falar em traição na cara de Nicolau.

Nicolau ficou vermelho. E tratou de mudar de assunto. O descontente (cuja brutalidade como centro-médio do Águia de Haia F. C. era famosa) percebeu a fraqueza do chefe, tornou a falar em traição e de mau começou a acariciar o gargalo da garrafa de cerveja Tip-Top. Nicolau empalideceu, balbuciou uma desculpa boba, caiu na rua. Então ouviu uma risada irritante.

Irritou-se. Seguiu para a delegacia e lá exigiu a remessa de um bilhete azul para o descontente que era fiscal do serviço contra a broca do café. O Doutor Salomão porém não concordou.

E Nicolau foi para casa se remoendo de raiva. De tanta assobiou uma hora inteirinha o Miserere, do Trovador. Não assobiou mais porque Dona Esmeralda veio chamar para dormir.

- Vá você. Eu vou depois.

- Logo hoje que eu estou tão nervosa, Nicolau! Você sabe que eu não durmo sozinha quando estou nervosa!

- Então não dorme nunca. Nervosa por quê?

- Tetéia está passando muito mal.

- Que é que tem a excelentíssima?

- Não sei: uns tremores, uns vômitos, umas coisas esquisitas.

Foram ver a Dorotéia Cabral. Nicolau olhou bem para ela, depois disse:

- Está agonizando.

Dona Esmeralda pôs as mãos na cabeça e se encostou no marido chorando.

- Ora, Esmeralda! Que é que significa isso? Não se pode mais brincar então? Você não conhece a anedota do português? Pensei que você conhecia. Por isso é que falei assim.

Esmeralda com a cabeça no peito de Nicolau engoliu umas lágrimas e perguntou entre dois soluços horríveis:

- Que anedota, hein?

Nicolau contou fazendo cafuné na mulher:

- Eu acho que já contei pra você. Não se lembra? Aquele português que estava muito doente e com um medo danado de morrer. Então para levantar o ânimo dele chamaram um grande amigo que ele tinha. O amigo veio, chegou perto da cama. sorriu para o doente e disse com jeito de carinho: Agonizantezinho, hem?

Esmeralda se desprendeu do marido.

- Essa é formidável!

E rompeu numa gargalhada nervosa.

- Não ria tanto, Esmeralda! Faz mal pra você'.

Ela queria dizer que não fazia, mas não podia, se sacudia toda de riso. Nicolau então pegou na Dorotéia Cabral com muito nojo e levou para a cozinha. Deitada de lado perto do fogão Dorotéia Cabral sacudiu as patas, vomitou, jogou a cabeça para trás, morreu. Nicolau voltou para o quarto.

- Morreu, coitada.

Esmeralda pranteou a morte de Dorotéia Cabral (Ah minha mãe, minha mãe! dizia) até cair de cansaço nos braços de Nicolau.

- Vamos dormir para esquecer este dia. Dia mais desgraçado!

Foram dormir.

- Acenda a vela que no escuro eu não durmo. Nicolau acendeu a vela, se deitou encolhido, cobriu a cabeça com o lençol.

- Não cubra a cabeça assim que eu fico com medo.

- Feche os olhos.

- Não posso.

Nicolau deu um suspiro, puxou o lençol para baixo, enterrou a cara no travesseiro. Dona Esmeralda virava para a direita, dava com a chama da vela, virava para a esquerda. não achava jeito, se impacientava.

- Nicolau! Passa a vela pro seu lado, faz favor!

Nicolau pegou no castiçal, pôs no criado-mudo dele. Sem dizer palavra. Tornou a meter a cara no travesseiro. Fechou os olhos.

Aí viu a chama da vela. Apertou bem os olhos. A chama foi diminuindo, diminuindo. morreu. O relógio da matriz bateu horas. Dona Esmeralda contou: um, dois. E acrescentou: feijão com arroz. Continuou: três, quatro feijão no prato. Está errado. Devia ser: uma, duas. Hora é feminino. O professor da Escola 15 de Novembro, Seu Mesquita, que sujeito engraçado. Que horas são? Meio-dia e meio. Ó ignorância quadrúpeda!. Meio-dia e meio quer dizer seis horas da tarde: meio-dia mais meio dia. Meio-dia e meia é que você quer dizer, seu idiota. Quando o bispo de Samburá foi visitar a escola Seu Mesquita se atrapalhou, gritou: - Viva o senhor doutor bispo! E a meninada jogou pétalas de rosa.

Padre Dito quase estourou de rir. Que homem bom. Não quis ser bispo. Dava tudo para os órfãos. Morreu a cavalo. Vinha do sítio. Teve urna síncope, caiu pra frente mas não caiu do cavalo. Entrou na cidade assim. Abraçando o pescoço do cavalo. E o cavalo andava devagarzinho para não derrubar Padre Dito. Milagre verdadeiro. Aquele sim: era um santo. Está enterrado - onde é que está enterrado mesmo? - está enterrado aqui mesmo. E Dorotéia pobrezinha? A gente enterra no quintal. Depois planta umas flores. Não precisa cruz. Padre Dito parece que chegou a conhecer Tetéia? Chegou. Ele morreu quando a torre da matriz caiu. Era um santo mesmo. Gostava muito de jardinar. E que jardim bonito. Tem jasmim, tem perpétua, tem cravo-de-defunto, tem camélia. Camélia é flor de muita estimação mas só no pé. No vaso perde muito. Amarelece. Fica bom um pé de camélia na sepultura de Tetéia. Que diabo. A modo que vem gente. E olhe que vem mesmo. Bom dia, minha filha. A benção, Padre Dito. Que é que você está fazendo no meu jardim, Esmeralda? Estou escolhendo uma planta bonita para plantar na sepultura de Dorotéia Cabral. Morreu? Morreu hoje. Mas isso é pecado, minha filha. Não sabia. Deus não fez as flores para enfeitarem sepulturas de animais. Não sabia: desculpe. Deus fez as flores para enfeitarem os altares das igrejas. Eu vou enfeitar um, então. Diga antes como vão as obras da matriz. Vão bem, muito obrigado, muito obrigado. Não tenha medo de mim, Esmeralda. Tal seria, Padre Dito. Senta aqui neste banco que eu quero contar um segredo pra você. Às ordens, Padre Dito. Você conhece meu túmulo? Conheço, sim senhor. No meu túmulo tem cinco panelas cheinhas de ouro. Sim senhor, Padre Dito. Você vá lá, desenterre as panelas e dê para a comissão das obras que o ouro é para acabar com a reforma da matriz que já está demorando muito. Eu vou hoje mesmo, Padre Dito. Vá com Deus, minha filha. E a Virgem Maria, Padre Dito. Deixa te dar um beijo minha filha. O senhor disse um, Padre Dito. Eu não sou o Padre Dito. Me larga que eu grito. Eu sou o Anticristo. Eu grito, eu grito. Gritou. Nicolau acordou.

- Que é isso, minha filha?

- Não me chame de minha filha! Onde é que eu estou? Ai, eu morro com esta aflição! Não se encoste em mim! Não se encoste em mim! Ah minha mãe, minha mãe!

A aflição só passou com água de flor de laranja tomada à força. Então Dona Esmeralda sorriu, beijou muito o marido e contou o sonho.

- Ele disse cinco panelas só? Você tem certeza?

- Cinco: me lembro perfeitamente.

- Sei. Ele não disse que espécie de moedas era? Libras esterlinas por exemplo? Ou dólares? Tem dólares de ouro se não me engano...

- Isso ele não disse.

Nicolau desistiu de dormir o resto da madrugada. Preparou café forte, bebeu duas xícaras, foi para a sala da frente, se estendeu no canapé, deu de fumar. Pensando.

- Esmeralda! Você ainda está acordada?

- Que é?

- Você acredita em sonhos?

- Acredito sim.

- Está bem. Veja se dorme.

De barriga para o ar imaginava tão depressa, tão grandiosamente, que lutava contra a imaginação. Deus existe. Se existe. A justiça divina não falha. E vem mais depressa do que se pensa. Dormiu triste e humilhado e acordou rico. Primeiro pagava os impostos. Não precisava mais de esmolas. Depois São Paulo. Aplicava o cobre bem aplicado. Depois Rio. Depois Europa. Não. Estados Unidos. Conhecer aquele colosso. Pára, imaginação. O dinheiro é para as obras da matriz. Olhe o castigo do céu. Mas não é justo isso. Quem tem o segredo do tesouro é dono do tesouro. Depois não havia perigo. Ia de noite no cemitério e desenterrava a dinheirama. Pára, imaginação. O Crispim zelador já queimou uma madrugada os dois polacos da Colônia Sobieski que queriam avançar nos florões de bronze dos túmulos. Do Padre Dito mesmo. Subornar também não adianta. Quer dizer: é impossível. Melhor é revelar o segredo. Falar com Padre Zoroastro e revelar não: vender o segredo. Pára, imaginação. Padre Zoroastro não acredita nessas coisas. Homem, arranjava um capanga, matava o Crispim e pronto. Pára, excomungada. Bobagem. Aquele retrato ali no Diário é da Greta Garbo. Ô boa. Onde será que ela mora? Pára, sem-vergonha, cachorra, desgraçada. E o Zéquinha Silva presidente da comissão? Desaforo. É preciso arranjar outro presidente, outro tesoureiro: ele. Ai está. Regime novo: gente nova.

E o cobre com o tesoureiro.

- Você já está acordada Esmeralda?

- Eu não dormi.

- Que maçada! Vamos enterrar a excelentíssima?

- Enterre você sozinho. Você sabe que eu não gosto de ver enterro.

Dorotéia Cabral foi sepultada dentro de uma lata de gasolina e perto de um mamoeiro. Nicolau tomou mais duas xícaras de café, se arranjou e saiu. Foi para o escritório da Luz e Força. Não parava sentado. Também não parava em pé. O gerente estranhou tanto nervosismo. Perguntou:

- Que é que há?

- Osvaldo Aranha. Isto é. desculpe, nada. Dormi mal esta noite. A Dorotéia Cabral morreu.

- Não diga! Dona Esmeralda deve ter ficado bem triste?

- Ficou. Está doente até. Se me der licença eu vou ver como é que ela vai indo.

Padre Zoroastro não estava em casa. Nicolau ficou indeciso sem saber se devia ou não procurá-lo na matriz. Talvez fosse melhor conversar num lugar mais discreto. Porém a coisa era urgente. Era. Ia. Não ia. Começou a andar. Foi andando. Foi. De repente apressou o passo e tomou o caminho do cemitério.

Encontrou Crispim chupando num pito de barro perto do portão, ouvindo as queixas de um coveiro despedido por não ter mentalidade revolucionária.

- Que é que vem fazer aqui, Seu Nicolau? Morte em casa, ainda que mal pergunte?

- É. Morreu a Dorotéia Cabral. Mas não isso não.

- Morreu? De quê?

- Não sei. Doença de cachorro.

O túmulo do Padre Dito era logo na entrada. Olhou enviesado para ele.

- Estou pensando em mandar fazer um túmulo pra minha sogra.

Foi ver a sepultura da sogra. Era lá no fundo. Estavam abrindo uma cova perto.

- Quem é que vai ser enterrado?

- O Bastião.

- O Bastião da Filarmônica?

- Não. O pegador de cachorro.

- É o mesmo.

- Terceiro cachaceiro que a gente enterra este mês.

Deu uns passos em torno da sepultura da sogra para fingir que tomava a medida. E veio voltando. Bem devagarzinho. Olhando os túmulos. Aqui jaz o Doutor Manuel Bacalhau. Esse também morreu de cachaça. A memória de Dona Iracema Vaz de Castro Soares. Pra quê dona agora? Passou a vida toda na cozinha. Viandante, pára! Aqui repousam os restos mortais de Monsenhor Benedito Moura.

- Então, Crispim, não vieram mais roubar os bronzes do túmulo, não?

- Que esperança! Eu tenho sono leve e pontaria certeira!

- Sei...

De cada lado do túmulo tinha um canteirinho de cravos. O anjo de mármore jogava flores sobre a lousa. Já tinha jogado cinco. Faltava ainda jogar três.

- O caixão está debaixo da terra?

- O senhor não esteve no enterro, Seu Nicolau? Está no gavetão. Debaixo da terra está Nhá Belarmina. Faz uns vinte anos. O túmulo foi feito por Padre Dito quando muito uns dois meses antes de morrer.

- Tem razão. Não me lembrava.

Túmulo sólido, pesado. Gavetão duro de abrir. Tampa bem encaixada. Nem se perceberia que era tampa se não fosse o argolão de bronze.

- Monsenhor Benedito de Moura. Homem bom. Um santo.

- Que dúvida! Cada vez que vinha aqui arranjar o jardinzinho...

- Que jardinzinho?

- Ué! O jardinzinho que tinha! Antes do túmulo só tinha um jardinzinho e uma cruz no meio. Desse jardinzinho é que Padre Dito cuidava todas as semanas que Deus dava. Quando podia ajudava ele. E ele já sabe: me...

Nicolau disse de repente:

- Até outro dia, Crispim!

Não podia mais. Se ficava mais um minuto se traía contava tudo. Mas meu Deus do céu, como é difícil a gente guardar um segredo assim dentro da gente. Hoje mesmo precisava resolver tudo. Senão não agüentava: morria de aflição. Agora é ir almoçar que já são horas. Nem se discute: Padre Dito com a desculpa de arranjar a sepultura da velha o que fazia era enterrar ouro e mais ouro, o filho da m...

- Está falando sozinho, rapaz?

- Hein? Ah sim! Estava fazendo uns cálculos. Estou com muita pressa. Lembranças em casa. Passar bem, Abílio. Apareça.

Depois do almoço mandou Dona Esmeralda dizer para o major e o Antônio Vicente que estava doente sem poder sair de casa mas que queria muito conversar com eles. Eles que viessem logo. E na reunião convenceu os companheiros políticos de que era uma infâmia a permanência de perrepistas na comissão das obras da matriz. Era preciso organizar outra com o major na presidência e ele Nicolau feito tesoureiro.

Assentado isso Dona Esmeralda foi buscar Padre Zoroastro. Padre Zoroastro foi dizendo que sim com a cabeça mas na hora de resolver a coisa falou:

- Está tudo muito certo. Porém não pode ser.

- Por que que não pode ser?

- Não pode ser porque Zéquinha Silva é pessoa - não é - de muita confiança do bispo. É.

E não permitiu mais que Nicolau abrisse a boca. Não é? é, os amigos bem compreendiam a situação. não é? é, apertou a mão dos três, foi-se. Botando Nicolau no auge da indignação. Começou a injuriar Padre Zoroastro, a falar o diabo do bispo, a dizer coisas de Zéquinha Silva, da filha de Zéquinha Silva. Insinuou mesmo que entre Dona Isolina e Padre Zoroastro havia grossa patifaria. Então o major saiu de seu silêncio espantado:

- Mas afinal de contas, Nicolauzito dos meus pecados, o caso não tem assim tanta importância. Não se trata de cargos políticos. São cargos - como direi - são cargos... técnicos!

- Olha a grande besteira!

De seu lado Antônio Vicente não percebia também a causa de tanto ódio. Está claro que seria melhor arranjar outra comissão mas o bispo não querendo não valia a pena brigar com o bispo por tão pouco.

- Eu acho assim. Com saias a gente não briga que saí perdendo na certa.

Nicolau ia e vinha na sala bufando. Tapava os ouvidos quando os outros falavam, dava murros na parede, dizia palavrões. E por fim estourou:

- Vocês querem saber o que há, não é verdade? Vocês estão cheirando qualquer segredo, não é isso? Pois têm toda a razão: há um segredo! Eu conto. Não tenham medo não!

Contou à moda dele. E porque os outros assumiram uns ares incrédulos, até caçoistas, contou, gritou duas, três, quatro vezes o sonho da mulher.

- Caramba, carambolas! - disse o major. - É muito capaz de ser verdade mesmo! E olhem que as ervas são muitas!

- Mas quatro quintas partes são pro Nicolau - disse Antônio Vicente com um jeitinho malandro. - Quase tudo é pro Nicolau! E o resto pra matriz!

- Naturalmente! - disse Nicolau.

O major coçou a nuca, fechou os olhos, pensou, depois falou:

- Mas o nosso Nicolau tem que ser cordato, tem que ser camarada. Que diabo! A gente pode entrar aí num entendimentozinho... Hein? Que e que diz a isso o nosso amigo?

Nicolau não disse nada. E começou a andar de novo pisando duro. Houve um silêncio cacete. Antônio Vicente acabou com ele:

- Talvez... Eu também penso assim... A bolada é grande, dá para satisfazer todos... Você não acha, Nicolau?

- Digam com franqueza! Vamos! Desembuchem! O que vocês querem é ganhar no negócio, levar sua vantagenzinha, não é?

Os dois tentaram protestar mas Nicolau cortou a palavra deles:

- Pois muito bem! Eu já esperava isso! Quanto é que vocês querem? Mas fiquem desde já sabendo que da minha parte eu não cedo um tusta, ouviram bem? Agora na que é pras obras da matriz podem avançar à vontade!

O acordo custou. Mais de uma vez Antônio Vicente pegou no chapéu e ofendido ameaçou se retirar. O major porém não deixava.

- Senta-te aí, homem! Não saias que te arrependes logo!

E foi ele que disposto a não perder o negócio forçou Nicolau a se contentar com sessenta por cento. Ele e Antônio Vicente se comprometiam a auxiliar o amigo em qualquer terreno recebendo cada um quinze. Os dez restantes seriam para as obras da matriz.

- Está bem. Mas não está de acordo com a vontade de Padre Dito.

- Deixa-te de bobagens, homem! Tu modificas o sonho e acabou-se! Quem é que vai provar que o padre disse coisa diversa à tua patroa? Olhe que até me acode um trocadilho bem feliz: fica o dito do Padre Dito por não dito e pronto! Otimíssimo, hem? Não há nada como um bom negócio para pôr a gente alegre! Eu até sou capaz de pagar uma cervejinha!

Nicolau recusou. E despediu os amigos. Precisava de sossego para estabelecer um plano seguro a ser executado sem perda de tempo. Pensou o resto do dia, pensou parte da noite e na manhã seguinte combinou a coisa com os sócios.

Os 18 de Copacabana foram convocados para as 19 horas em casa do major. Compareceram dez. Nicolau arranjou mais uns malandros e marcharam todos incorporados para casa de Zéquinha Silva. A fim de exigir a renúncia coletiva da comissão. Ou ao menos a do presidente e tesoureiro que era o genro do presidente. Mas Zéquinha Silva mandou dizer que não recebia ninguém. E quando a coisa já estava quente chegaram Padre Zoroastro, o Doutor Salomão e o Prefeito Idílio. Discutiram na rua mais de meia hora. Afinal os 18 de Copacabana concordaram em que no dia seguinte haveria uma reunião na Câmara Municipal a fim de se resolver com calma e definitivamente o assunto, presentes as autoridades, interessados e pessoas conspícuas de Jataí-Vila. Concordaram a muque (Paulista não tem ânimo bélico! costumava afirmar o Prefeito Idílio) porque o Doutor Salomão mandou chamar o destacamento.

Nicolau pensou a noite toda, gastou a manhã limpando o revólver, encheu o tambor, pôs outras balas no bolso, beijou a mulher aflita, respondeu carrancudo ao sorriso da vizinha sua comadre, tomou a Rua Siqueira Campos (antiga Júlio Prestes), atravessou o Largo Juarez Távora (antigo de São Paulo), deu um esbarrão distraído no Solicitador Raimundo de Matos, não pediu desculpa, também não ouviu o palavrão do solicitador, passou pelo Correio sem perguntar se havia carta, entrou na Câmara Municipal com a braguilha da calça aberta.

- Abotoa aí! - disse o major.

A sala das sessões já estava apinhada. Padre Zoroastro na presidência explicou os fins da reunião e deu a palavra para Antônio Vicente. Este falou:

- Os que como nós costumam buscar no passado os ensinamentos para o presente sabem que na Idade Média várias expedições armadas chamadas Cruzadas deixaram a Europa para arrancar Jerusalém das garras sacrílegas dos muçulmanos!

- Que é que nós temos com isso? - perguntou o genro de Zéquinha Silva.

- Muita coisa! Vossa Excelência não me deixou terminar o paralelo que pretendo esboçar! Com efeito, meus senhores, ao grito de Deus o quer! os cristãos do Ocidente mais de uma vez se levantaram de armas nas mãos para expulsar da Cidade Santa os infiéis do Oriente! Pois bem! Nós, os fundadores da República Nova, também nos levantamos ao grito de Revolução o quer! para exigir que os membros da atual comissão das obras da matriz, infiéis de 24 de Outubro, sejam destituídos e imediatamente substituídos pelos fiéis de Copacabana, pelos heróis...

Padre Zoroastro interrompeu:

- Eu acho que a discussão deve ser curta não é? - e se cingir aos fatos. É. Devemos economizar nosso tempo.

- Também acho, excelentíssimo senhor presidente desta augusta assembléia! E é por isso...

- O que o Senhor Antônio Vicente pede é a substituição da comissão atual. Não é? E funda seu pedido no fato do Senhor José Silva e demais membros da referida comissão não serem revolucionários. Pois então. Já estamos cientes. E eu vou dar a palavra ao Senhor José Silva para dizer o que julgar conveniente a respeito. Fica bem assim. Não é? Tem a palavra o Senhor José Silva.

Zéquinha Silva principiou dizendo que desconhecia revolucionários em Jataí-Vila a não ser alguns de última hora. Colocava pois a questão em outro terreno. Achava que se devia somente indagar se a atual comissão era ou não composta de gente trabalhadeira e honesta. Porque ser revolucionário só não adianta.

- Eu sou produto do meu trabalho honrado - gritou o major.

- Como é mesmo? - perguntaram.

- Ficam proibidos os apartes -~ falou Padre Zoroastro. - Não é melhor? Continue, Seu Zéquinha.

Zéquinha provou documentadamente que a comissão presidida por ele sempre se houve com diligência e probidade. Em todo o caso desistia, por si e pelo genro, de continuar nela se a maioria dos presentes quisesse. Mesmo porque confiança não se impõe.

Padre Zoroastro disse que era melhor recolher logo o voto dos presentes. Os presentes (com exceção do major, Antônio Vicente e Nicolau que queria a palavra para uma explicação pessoal) concordaram. E Padre Zoroastro falou que antes de proceder à votação desejava ler para governo de todos uma carta do bispo de Samburá. Na carta do bispo dizia que, caso fosse destituída a comissão atual que lhe merecia a mais absoluta confiança, não autorizaria outra que se formasse a dirigir as obras da matriz e suspenderia estas até melhores tempos.

- Ah! É assim? - berrou Nicolau. - O senhor, Padre Zoroastro, quer fazer pressão? O senhor se engana! Não estamos mais sob o domínio do perrepismo!

E a confusão se fez com injúrias pesadas. Mas Padre Zoroastro ameaçou se retirar e conseguiu assim restabelecer a calma. Então disse:

- Senhor Nicolau Foz, saiba que eu não fiz mais do que cumprir o meu dever de pároco lendo a carta do excelentíssimo senhor bispo desta diocese. Não é?

- Perfeitamente! - apoiaram.

- Mas se o senhor tem algum esclarecimento importante a dar e promete não se exaltar eu lhe concedo a palavra por cinco minutos.

Nicolau de olhos fechados fungava forte entre o major e Antônio Vicente.

- Não tem nada a dizer? - perguntou Padre Zoroastro.

Nicolau abriu os olhos, viu o sorriso vitorioso de Zéquinha Silva, pulou da cadeira, afirmou:

- Tenho! Tenho uma coisa a dizer!

- Não diga! - disse Antônio Vicente baixinho.

Nicolau se virou para o companheiro e falou:

- Digo!

- Diga de uma vez! - gritaram.

- Pois digo! Se a comissão atual não for destituída.

- Ela tem a seu favor a honestidade com que tem agido! aparteou o prefeito.

- Em face da revolução não há direitos adquiridos! - berrou Antônio Vicente.

- Que asneira é essa? - falou o Doutor Salomão.

- Que que o senhor está dizendo? Asneira? São palavras textuais do Ministro da Justiça!

- Está com a palavra o Senhor Nicolau Foz! - advertiu Padre Zoroastro.

- Se não destituírem a comissão do P.R.P. eu não revelarei um segredo...

- Não revelaremos! - secundou o major excitadíssimo.

- ... o qual segredo foi contado pelo falecido Padre Dito à minha senhora!

E a confusão se fez de novo. E Padre Zoroastro de novo conseguiu restabelecer a ordem.

- Temos o direito de saber, não é?

Então aos berros Nicolau soltou tudo menos o lugar onde se achava escondido o tesouro. E Padre Zoroastro desistiu de restabelecer mais uma vez a calma. Impossível. O genro de Zéquinha Silva subiu na cadeira e começou a arengar sem ser ouvido. Antônio Vicente só sabia dizer: Conheceram, papudos? Entre os que achavam que aquilo era uma mistificação ignóbil e os que pensavam que por via das dúvidas convinha verificar a coisa direito houve ameaças de tiros. O turumbamba estava armado. Puxaram o genro de Zéquinha Silva por uma perna, deram uns tabefes nele, ele rolou no chão gritando: Basta assassinos! Padre Zoroastro com muito custo salvou o coitado e se retirou com ele e Zéquinha abanando a cabeça.

- Sempre a maldita história do espiritismo estragando tudo! Não é? A mãe, a sogra, a mãe de Esmeralda, a sogra do Nicolau, já eram assim!

Aos poucos os mais chegados a Zéquinha Silva foram também saindo.

Disposto a aclarar o negócio do tesouro o Doutor Salomão em pé na cadeira da presidência perguntou se estavam numa terra de bugres. O silêncio respondeu que não. E o Doutor Salomão se declarou pronto a servir de intermediário entre os grupos adversos e fazer um acordo honroso.

- Não há acordo! - disse Nicolau.

Para o Doutor Salomão era chegada a hora de todos usarem da máxima franqueza. O Senhor Nicolau Foz não queria fazer acordo. Prescindia assim da colaboração alheia. Mas que essa colaboração era indispensável para ele estava patente no fato do Senhor Nicolau Foz, embora conhecendo o lugar onde se encontrava o tesouro, não haver até então se apossado dele.

- Porque fui educado na escola da honestidade! Sou brasileiro legítimo! De raça!

O Doutor Salomão insistiu em que a hora só admitia cartas na mesa. A honestidade do Senhor Nicolau Foz estava acima de toda e qualquer suspeita. Mas ele era de carne e osso como os outros. Se tivesse jeito de se apossar sozinho do tesouro já teria feito. Achava pois conveniente que antes de mais nada fosse revelado o lugar onde as cinco panelas de ouro estavam escondidas. O que foi aprovado com calor. As considerações do Doutor Salomão tinham abalado a assembléia. Nicolau sentia sobre ele e através dele sobre o tesouro o olhar ávido dos dois irmãos Tarantelli, do Tenente Messias Jesus Conrado, do Alcibíades Valentim vulgo Ali-Babá, do Bibi, do Dadau, do Zizi, do Doutor Teotônio de todos os presentes, de todos os ausentes. Canalhada. Felizmente estava armado. Matava. Morria. Mas não dizia.

O Doutor Salomão sentara-se fixando Nicolau. A assembléia sentou-se fixando Nicolau. O major se levantou:

- Somos todos pessoas de respeito e que se prezam, não é verdade? Pois muitíssimo bem. O que há a fazer é entrar num entendimento cordial com o nosso simpático amigo Nicolau a fim de que ele, certo de que não será prejudicado, possa revelar o lugar em questão. Pois não lhes parece assim?

- Compreendo - disse o Doutor Salomão. - O Senhor Nicolau impõe condições.

- Condições não! - falou o major. - Ou melhor: existem condições mas quem as impõe é o próprio Padre Dito que Deus tenha.

- Que condições? - perguntou o Doutor Salomão.

- Razoáveis, muito razoáveis - disse o major.

- Justíssimas até. E é preciso que sejam respeitadas. Está claro.

- Mas quais são elas? - insistiu o Doutor Salomão.

- O saudoso Padre Dito faz absoluta questão que noventa por cento do dinheiro fique pertencendo ao nosso prestante amigo Nicolau empregando-se os dez por cento restantes nas obras da matriz... Então? São ou não...

- O quê?

- Está brincando!

- Bandalheira!

- Quanto leva no negócio?

- Que piratas!

- A assembléia gritava de pé. O Doutor Salomão tornou a subir na cadeira, ameaçou dissolver a reunião com o destacamento, pediu calma, obteve relativa. E falou:

- O Senhor Nicolau sustenta o que disse o Maior Mourão?

Nicolau disse:

- Sustento até morrer!

O major suspirou aliviado. O Doutor Teotônio disse:

- Eu proponho para harmonizar as coisas que o dinheiro seja todo entregue ao benemérito governo provisório para ajudar o resgate da dívida nacional!

Houve uma salva de palmas. Mas não unânime.

- Nunca! berrou Nicolau. - Ao menos cinqüenta por cento eu exijo pra mim porque foi pra minha mulher que Padre Dito apareceu em sonho!

O major falou sincopado:

- Como? Cinqüenta por cento? Mas.. Ora essa! Cinqüenta por cento? Não pode ser! Há aí engano! Não... não é... não está certo!

Antônio Vicente se ergueu com altivez, foi até a porta, virou-se antes de sair e disse:

- Com traidor eu não discuto!

O Prefeito Idílio disse:

- Eu proponho que cinqüenta por cento sejam para as obras da matriz mesmo e cinqüenta por cento entregues à prefeitura para serviços de utilidade pública!

- Nunca! - berrou Nicolau. - Cinqüenta por cento pra mim! O resto pode ficar pro que quiserem!

Zizi disse:

- Eu proponho que o dinheiro inteirinho...

- Nunca! - berrou Nicolau. - A metade tem que ser pra mim!

O Tenente Messias disse engrossando a voz:

- Eu proponho que se obrigue o Nicolau a dizer já, mas já, imediatamente, nem que seja à força, onde é que está o cobre!

Nicolau quis falar mas não pôde. E os dois irmãos Tarantelli, o Tenente Messias Jesus Conrado, o Alcibíades Valentim vulgo Ali-Babá, o Bibi, o Dadau, o Zizi, o Doutor Teotónio, os outros, todos, até o Doutor Salomão, até o Prefeito Idílio, até o Major Mourão que já não sabia direito o que fazia, com os punhos erguidos cercaram Nicolau. Aí Nicolau puxou o revólver.

- Cachorros! Ca... chorros!

Foi andando de costas até a porta, saiu correndo. Na rua o Afonso Henriques esperava o pai de baratinha. Nicolau brandindo o revólver entrou no auto. Mandou:

- Toca pro cemitério!

Afonso Henriques começou a chorar.

- Toca senão te mato!

O Ford pulava na Rua da Expiação. Afonso Henriques suplicava:

- Vamos... vamos voltar, Seu Nicolau! Por favor! O senhor está... está tão nervoso!

Nicolau dizia:

- Toca, seu covarde!

Não esperou o Ford parar. Saltou, tropeçou, quase caiu, entrou no cemitério de revólver na mão. Deu poucos passos, parou. Estava tonto. Olhava de um lado para outro. Pensava: Que é que eu vim fazer, meu Deus?

Com um enxadão Crispim surgiu por detrás da capela. Longe ainda. Nicolau deu com ele, correu para o túmulo do Padre Dito, sem largar o revólver começou a desmanchar um canteirinho. Crispim correu também gritando:

- Que é isso, Seu Nicolau? Não faça isso!

Nicolau viu Crispim já perto, pulou na frente do túmulo, apontou para o gavetão, atirou.

- Larga esse revólver, Seu Nicolau!

Nicolau enfrentou Crispim, disse com voz sumida:

- Me dá essa enxada!

- Eu dou se o senhor largar o revólver!

- Me dá essa enxada! Me dá essa enxada!

- Não se chegue, Seu Nicolau!

- Me dá essa enxada! Me dá essa enxada!

Nicolau ia avançando, Crispim recuando.

- Por que que o senhor quer?

- Me dá essa enxada!

A voz sumia cada vez mais, o revólver tremia, os olhos se enchiam de lágrimas.

- Eu mato! Me dá essa enxada!

Mal podia suster o revólver, segurou com as duas mãos. Crispim recuou até o túmulo do padre. Com o enxadão erguido.

- No túmulo do Padre Dito o senhor não toca, Seu Nicolau!

- Eu te mostro!

Mas antes de apertar o gatilho, levou com o enxadão no alto da cabeça, caiu com os miolos de fora.

- Acuda! Acuda! - deu de gritar Crispim.

Foi quando no portão do cemitério pararam vários automóveis e seguida dos dois irmãos Tarantelli, do Tenente Messias Jesus Conrado, do Alcibíades Valentim vulgo Ali-Babá, do Bibi, do Dadau, do Zizi, do Doutor Teotônio, todos, até o Prefeito Idílio até o Doutor Salomão, até o Major Mourão com o chapéu de Nicolau na mão (O doido esqueceu a cabeça!), Dona Esmeralda entrou de carreira. Deu um grito, se jogou sobre o cadáver. Mas não chamava pelo marido não. Dizia só:

- Ah minha mãe, minha mãe!

MISS CORISCO

Embora alguns nacionalistas teimassem em chamá-la de senhorita o título oficial era Miss Corisco. Dez casas no bairro tomavam conta da igreja pobre que primeiro nem caixa de esmolas tinha. Depois compraram unia caixa. Mas nunca viu um tostão porque o dinheiro que havia se gastou todo com ela. Miss Corisco foi eleita pelo sistema de exclusão. A filha do Bentinho era sardenta. A irmã do João tinha um defeito nas cadeiras. Logo de saída a Conceição se impôs: foi aclamada Miss Corisco.

Aí deu uma entrevista para o O Cachoeirense. Perguntaram: Qual a maior emoção de sua vida? Respondeu: Três: minha primeira comunhão. uma fita do Rodolfo Valentino que eu vi na capital do meu querido Estado e... não conto porque é segredo. Respeitamos o segredo (escreveu o jornal) pois naturalmente encobria urna linda história de amor. Depois perguntaram: Qual o seu maior desejo? Respondeu: Sempre ver o Brasil na vanguarda de todos os empreendimentos. Resposta admirável (comentou O Cachoeirense) que revela em Miss Corisco uma patriota digna de emparelhar com Clara Camarão, Anita Garibaldi, Dona Margarida de Barros e outras heroínas da nacionalidade. Finalmente perguntaram: O que pensa do amor? Respondeu: O amor, minha fraca opinião, é uma cousa incompreensível mas que governa o mundo. Palavras (acentuou o órgão) que encerram uma profunda filosofia muito de admirar atentos o sexo e a juventude da encantadora Miss.

Miss Corisco foi retratada em várias posições: com um cachorrinho no colo, apanhando rosas no jardim, as costas das mãos sustentando o queixo. Deu também um autógrafo. Papel cor-de-rosa de bordas douradas, risquinhos de lápis para sair bem direitinho e as letras se equilibrando neles. O cunhado ditou. Os representantes do O Cachoeirense se retiraram. Miss Corisco foi varrer a cozinha como era de sua obrigação todos os dias inclusive domingos e feriados e na manhã seguinte tomou a jardineira em companhia do irmão casado para comparecer na cidade perante o júri estadual.

*

O Cine-Teatro Esmeralda estourava de tão cheio. No palco atrás do júri a Corporação Musical C. Gomes-G. Puccini tocava dobrados. De minuto em minuto a assistência entusiasmada erguia vivas ao Brasil e à raça. As candidatas desfilaram vestidas com apurado gosto. Os juizes eram cinco: um brasileiro, dois italianos, um filho de italiano e um português. Predominava neles o espírito nacionalista. Queriam escolher um tipo bem brasileiro. O Doutor Noé Cavalheiro desenhou em dois traços incisivos o tipo-padrão: boca grande e olhos ternos. Miss Corisco foi eleita Miss Paraíba do Sul por quatro votos.

Ouviu então o primeiro discurso que foi proferido com emoção que lhe embargava a voz e lenço de seda na mão, pelo Doutor Noé Cavalheiro, segundo promotor público. Principiou este fazendo o elogio da beleza notadamente da beleza feminina. Falou do culto que na antiga Grécia se votava à formosura física. Acentuou depois a desvantagem de uma mens sana desde que não seja num corpore sano. Disse que a beleza da mulher se tem provocado guerras e catástrofes tem também mais de uma vez contribuído para o progresso geral dos povos, citando vários exemplos históricos. Prosseguiu afirmando que o Brasil deveu muito do amor que lhe dedicou Dom Pedro I à influência benéfica da Marquesa de Santos. Referiu-se à competência do júri, à sua isenção de ânimo e confessou que a única nota dissonante tinha sido ele orador, o que provocou os protestos unânimes da assistência. Perorando entoou um hino inflamado à peregrina formosura de Miss Corisco. Disse então: Unindo à beleza clássica da Vênus de Milo a sedução estonteante da lendária rainha de Nínive, Miss Paraíba do Sul, maior do que Beatriz e mais feliz do que Natércia, conquistou o coração de toda uma região! A Pátria não é somente, como soem pensar certos espíritos imbuídos de materialismo, a lei que garante a propriedade privada! A Pátria é mais alguma cousa de sublime e divino! A Pátria é a estrela que nos contempla do céu e a mulher que nos santifica o lar! A Pátria sois vós, Miss Paraiba do Sul, são os vossos olhos onde se espelham todas as forças viris da nacionalidade! Para nós, patriotas conscientes e eternos enamorados da Beleza, Miss Paraiba do Sul é neste momento o Brasil! (Aplausos prolongados. O orador é vivamente cumprimentado. Vozes sinceras gritam: Bis! Bis!)

Um a um os membros do júri beijaram as mãozitas róseas e espirituais de Miss Paraíba do Sul enquanto a Corporação Musical C. Gomes-G. Puccini, sob a regência do Maestro Pietro Zaccagna, atacava vigorosamente a imortal protofonia do Guarani.

Muito vermelha e batendo com ar ingênuo as pálpebras aveludadas Miss Paraíba do Sul concedeu então as primeiras entrevistas. Externou sua opinião sobre a futura sucessão presidencial, a cultura da laranja, a questão religiosa no México, Mussolini, Padre Cícero, a estabilização cambial, Victor Hugo, Coelho Neto, os perfumes nacionais, a sentença que absolveu Febrônio, o diabo. No Grande Hotel Mundial era uma romaria de manhã à noite. Muito afável Miss Paraíba do Sul recebia toda a gente com um encantador sorriso brincando nos lábios purpurinos. O camareiro do apartamento chegou a declarar quando entrevistado por um jornalista: É de uma amabilidade extraordinária. Recebe todos. Quem bate no quarto entra. Mas o irmão pelo sim pelo não caiu de bofetadas em cima do camareiro. O caso foi parar na policia onde o prestígio de Miss Paraíba do Sul conseguiu arranjar tudo do melhor modo possível.

Puseram à sua disposição um automóvel fechado, uma máquina de escrever portátil e um binóculo de corridas. Todos os dias choviam os presentes. O futuro arquiteto Barros Jandaia pôs gratuitamente seus serviços profissionais às ordens de Miss Paraíba do Sul. O cabeleireiro não lhe quis cobrar nada e ainda por cima lhe deu vinte vales dando direito a outras tantas lavagens com Pixavon. A Livraria Cosmopolita ofereceu um rico exemplar do Paraíso Perdido. E assim por diante.

Miss Paraíba do Sul foi recebida em audiência especial pelo Presidente do Estado, respondeu com muita graça às perguntas de S. Exa. e distribuiu cigarros Petit Londrinos (ovalados) aos presos da cadeia pública. Visitou também a Câmara Municipal. Aí foi saudada por um vereador que a comparou a mimosa violeta dos nossos vergéis que não só atrai pela beleza como prende pelo seu perfume e conquista pela sua modéstia exemplar.

Foram quinze dias bem cheios. Repletos. Não houve um minuto de folga. Miss Paraíba do Sul embora delicadamente deixou transparecer que a glória era um fardo pesado demais para seus ombros frágeis. E seguiu de vagão especial para a capital do país Todas as cidades do percurso enviavam à estação o juiz de direito, o promotor, o delegado, o prefeito, o coletor federal e o sacristão da matriz que se incumbia dos foguetes. O trem apitava, as palmas estalavam com o vívório, o trem seguia. Miss Paraíba do Sul chegou ao Rio com uma dor de cabeça que não agüentava mesmo.

*

Começou a torcida brava. Para disfarçar, festas e mais festas. E sonetos na seção livre dos jornais. E bilhetes de apaixonados anônimos. E baile na torpedeira Paraíba do Sul. E retratos de todo o jeito nas revistas. E chás com as rivais. E tesouradas gostosas nas rivais. E entrevistas, entrevistas, entrevistas. Um repórter mais audacioso penetrou no quarto de Miss Paraíba do Sul e tirou uma fotografia muito original. Com efeito. No dia seguinte o povo carioca abrindo o jornal deu de cara com um pé de sapato enquadrado pela seguinte nota: - Enquanto Miss Paraíba do Sul jantava conseguimos penetrar no seu aposento e cometemos a deliciosa maldade de fotografar um perfumado sapatinho que se encontrava sobre o toucador. Levamos a nossa indiscrição ao ponto de verificarmos o número; era trinta e três e meio! Para encanto dos nossos leitores publicamos um clichê do sapatinho da nova Maria Borralheira da Graça e da Beleza.

Cousas assim comovem. Miss Paraíba do Sul deu ao repórter como lembrança o famoso sapatinho. Mesmo porque (observou muito bem o irmão casado) já estava imprestável com a sola até fura-não-fura. Enorme multidão teve a felicidade de vê-lo exposto na redação do jornal. Não houve um parecer discordante: era de fato um amor de sapatinho.

Enfim vieram as provas do concurso. Miss Paraíba do Sul passeou de roupa de banho para os velhos do júri apreciarem bem as formas dela e submeteu-se ao exame antropométrico no Museu Nacional. Sua ficha foi discutida nas sociedades científicas, empolgou a imprensa, provocou desinteligências entre pessoas que se davam desde os bancos escolares. Tudo inútil porém. Miss Paraíba do Sul não foi considerada a mais digna de representar o Brasil no torneio de Galveston.

Chorou é verdade. Não se pode negar. Chorou. Mas isso no hotel. Em público não perdeu a linha. Era toda sorriso diante de Miss Brasil. Entrevistada declarou que a escolha do júri tinha sido justa. Admiradores seus protestaram com energia. Um grupo de estudantes deitou manifesto a seu favor. Ela sorria agradecida e dizia cousas muito amáveis a respeito de Miss Brasil. Foi consagrada a Miss Pindorama, a Miss Terra de Santa Cruz, a Miss Simpatia Verde-Amarela. Todos reconheceram que a vitória moral lhe pertencia. Era um consolo.

*

De volta à capital do seu Estado no entanto ela resolveu mudar de atitude. Criticou duramente a decisão do júri. Miss Brasil? Uma beleza sem dúvida. Mas beleza impassível. E que vale a formosura sem a graça? Depois sem gosto algum. Cada vestido que só vendo. Todos de carregação. E era visível nos seus traços a ascendência estrangeira. O Brasil seria representado em Galveston. A raça brasileira não. E por aí foi. Nem os organizadores do concurso escaparam. Amáveis sim. Porém parciais. Um deles, careca barbado, vivia amolando as candidatas com galanteios muito bobos. Por isso mesmo levou um dia a sua. Uma das concorrentes lhe perguntou: Por que não corta um pedaço da barba e gruda na cabeça para fingir de cabelo? Disse isso sim. Como não. Na cara. Como não. E perto de gente. Ora se. Ele ficou enfiado.

Corisco recebeu de luto na alma a sua Venus. O pai de Miss Paraíba do Sul sacudiu a cabeça murmurando: Que injustiça! Que injustiça! Inutilmente ela e o irmão casado falavam na vitória moral, na simpatia do povo, nos protestos da imprensa. Ela contava: Uma vez quando saía do hotel um popular me disse que eu era a eleita do coração dos brasileiros! Então, papai, que tal?

Mas o velho não se convencia. É. Muito bonito. Realmente. Mas os oitenta e quatro contos foi outra que abiscoitou. Aí é que está. Os oitenta e quatro contos foi outra que abiscoitou. Injustiça. Injustiça. O Brasil vai de mal a pior. Mas depois era preciso jurar que não, que o Brasil ia muito bem, que a vitória moral era mais que suficiente, que dinheiro não faz a felicidade de ninguém porque Miss Corisco, Miss Paraíba do Sul, Miss Pindorama, Miss Terra de Santa Cruz, Miss Simpatia Verde-Amarela começava a chorar.

GUERRA CIVIL

Em Caguaçu os revolucionários. Em São Tiago os legalistas. Entre os dois indiferente o rio Jacaré. O delegado regional de Boniteza mandara recolher as barcas e as margens só podiam mesmo estreitar relações no infinito. De dia não acontecia nada. Os inimigos caçavam jararacas esperando ataques que não vinham. Por isso esperavam sossegados. Inutilmente os urubus no vôo lindo deles se cansavam indo e vindo de bico esfomeado. Os guerreiros gozavam de perfeita saúde.

De noite tinha o silêncio. Qualquer barulho assustava. Os soldados de guarda se preparavam para morrer no seu posto de honra. Mas era estalo de árvores. Ou correria de bicho. A madrugada se levantava sem novidades. Por isso a luta entre irmãos decorria verdadeiramente fraternal.

Porém uma manhã chegou a Boniteza a notícia de que do lado de Caguaçu qualquer coisa de muito grave se preparava. Tropas marchavam na direção do rio trazendo canhões, carros de combate, grande provisão de gases asfixiantes comprada na Argentina, aeroplanos, bombas de dinamite, granadas de mão e dinheiro, todos esses elementos de vitória. Um engenheiro russo construiria em dois tempos uma ponte sobre o Jacaré e o resto seria uma corrida fácil até a capital do país. Desta vez a cousa iria mesmo.

Boniteza se surpreendeu mas não se acovardou. Com rapidez e entusiasmo começou a preparar tudo para a defesa. Ao longo do rio se abriu uma trincheira inexpugnável. Caminhões descarregaram tropas em todos os pontos. As metralhadoras foram ajustadas, os fuzis engraxados, os caixotes de munições abertos. Costureiras solícitas pregaram botões nas fardas das praças mais relaxadas. Nas barbearias os vidros de loção estrangeira se esvaziaram na cabeça dos sargentos. Era de guerra o ar que se respirava.

A noite encontrou os combatentes a postos. Na trincheira eles velavam apoiados nos fuzis. Sentinelas foram destacadas para vigiar a margem inimiga. Entre elas o sorteado Leônidas Cacundeiro.

*

Era infeliz porque sofria de dor de dentes crônica, piscava sem parar e gaguejava. Foi para o seu posto de observação, deitou-se de barriga num cobertor velho. Só o busto meio erguido, ficou olhando na frente dele de fuzil na mão. Tinha ordens severas: vulto que aparecesse era mandar tiro nele. Sem discutir.

Leônidas Cacundeiro deu de pensar. Pensava uma cousa, o ventinho frio jogava o pensamento fora, pensava outra. Tudo quieto. Ainda bem que havia luar. Do alto da ribanceira ele examinava as águas do Jacaré. Ou então erguia o olhar e descobria nas nuvens a cabeleira de um maestro, um cachorro sem rabo, duas velhinhas, pessoas conhecidas.

Agora o frio era o frio da madrugada. O Doutor Adelino costumava dizer: Quando vocês sentirem frio pensem no Pólo Norte e sentirão logo calor. Pensou no Pólo Norte. Lembranças vagas de uma fita vista há muito tempo. Gelo e gelo e mais gelo. No meio do gelo um naviozinho encalhado. Homens barbudos, jogando fumaça pela boca, encapotados e enluvados, com cachorros felpudos. Duas barracas à esquerda. E aquela branquidão. Forçou bem o olhar. Um urso pardo com duas bandeirinhas. Um urso em pé com uma bandeirinha na pata direita, outra bandeirinha na pata esquerda. Nenhuma arma.

Deu um berro: - Alto!

Ficou em posição de tiro. O soldado não podia mesmo dar um passo à frente senão caía no rio. Começou a mexer com os braços. Levantava uma bandeirinha, abaixava outra, levantava as duas.

*

Leônidas pensou: - Que negócio será aquele?

Foi chamar o sargento. O sargento veio, olhou muito, disse: - Que negócio será aquele? Vá chamar o tenente!

Leônidas foi chamar o tenente, veio correndo com ele. O tenente limpou os óculos com o lenço de seda, verificou se o revólver estava armado, olhou muito, falou coçando a nuca: - Que negócio será aquele? Vá chamar o major!

Leônidas partiu em busca do major. No acampamento não estava. Foi até Boniteza. Encontrou um cabo. O cabo mandou Leônidas bater na casa da viúva Dona Birigüi ao lado do Correio. O major apareceu na janela com má vontade. Resmungou: - Já vou. Leônidas comboiou o major até o rio, o major teve uma conferência com o tenente, subiu num pé de pitanga, falou lá de cima: - Que negócio será aquele? Vá chamar o comandante!

O anspeçada primeiro não queria acordar o comandante. Eram ordens. Leônidas insistiu firme e o comandante teve de pular da cama. Leônidas fazendo continência explicou o caso. O coronel disse:

- Às seis estou lá.

*

Eram cinco, Leônidas voltou com o recado. O major, o tenente, o sargento estavam nervosos. De vez em quando um deles chegava mais perto da margem e o soldado do outro lado recomeçava a ginástica: bandeirinha na frente, bandeirinha atrás, bandeirinha apontando o céu, bandeirinha apontando o chão. Ia repetindo com uma paciência desgraçada.

Então já havia passarinhos cantando, barulho de vida em Boniteza, só a cara amarrotada dos insones não resplendia na luz da manhãzinha. Toques de cometa chegavam de longe despedaçados. Na banda de lá do Jacaré o homem da bandeirinha habitava sozinho a paisagem com uma vontade louca de tomar café bem quente e bem forte. Era a hora da raiva e todos se espreguiçavam com o sol que chegava.

O Coronel Jurupari ouviu calado a narração do estranho caso. Fez em seguida duas ou três perguntas hábeis com o intuito de esclarecê-lo tanto quanto possível. Chamou de lado o major e o tenente, os três discutiram muito, emitiram suas opiniões sobre assuntos de estratégia e balística que pareciam oportunos naquela emergência, fumaram vários cigarros. Afinal o coronel entre o major e o tenente avançou até a margem de binóculo em punho. Assim que ele assentou o binóculo, da outra banda do Jacaré recomeçou a dança das bandeirinhas. O coronel olhando. A sua primeira observação foi: - É um cabo e não tem má cara. Depois de uns minutos veio a segunda: - Hoje é dor de cabeça na certa com este noroeste. A terceira alimentou ainda mais a já angustiosa incerteza dos presentes: - Mas que negócio será aquele? Daí a uns instantes repetiu: - Mas que diabo de negócio será mesmo aquele? Porém acrescentou numa ordem para o Leônidas: - Vá chamar o sinaleiro!

O sinaleiro veio chupando o nariz. Olhou, deu uma risadinha, tirou um papel e um lápis do bolso traseiro da calça, ajoelhou-se com uma perna só, pôs o papel na coxa da outra, passou a ponta do lápis na língua, começou a tomar nota. Dava uma espiada, as bandeirinhas se mexiam, escrevia. O Coronel Jumpari, o major, o tenente, o sargento e o sorteado Leônidas Cacundeiro esperavam o resultado de armas na mão e ansiedade nos olhos.

O sinaleiro se levantou, ficou em posição de sentido e com voz pausada e firme leu a mensagem enviada pelos revolucionários de Caguaçu: Saúde e Fraternidade.

O coronel mandou responder agradecendo e retribuindo. Ex-corde.

APÓLOGO BRASILEIRO SEM VÉU DE ALEGORIA

O trenzinho recebeu em Maguari o pessoal do matadouro e tocou para Belém. Já era noite. Só se sentia o cheiro doce do sangue. As manchas na roupa dos passageiros ninguém via porque não havia luz. De vez em quando passava uma fagulha que a chaminé da locomotiva botava. E os vagões no escuro.

Trem misterioso. Noite fora noite dentro. O chefe vinha recolher os bilhetes de cigarro na boca. Chegava a passagem bem perto da ponta acesa e dava uma chupada para fazer mais luz. Via mal-e~mal a data e ia guardando no bolso. Havia sempre uns que gritavam:

- Vá pisar no inferno!

Ele pedia perdão (ou não pedia) e continuava seu caminho. Os vagões sacolejando.

O trenzinho seguia danado para Belém porque o maquinista não tinha jantado até aquela hora. Os que não dormiam aproveitando a escuridão conversavam e até gesticulavam por força do hábito brasileiro. Ou então cantavam, assobiavam. Só as mulheres se encolhiam com medo de algum desrespeito.

Noite sem lua nem nada. Os fósforos é que alumiavam um instante as caras cansadas e a pretidão feia caía de novo. Ninguém estranhava. Era assim mesmo todos os dias. O pessoal do matadouro já estava acostumado. Parecia trem de carga o trem de Maguari.

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Porém aconteceu que no dia 6 de maio viajava no penúltimo banco do lado direito do segundo vagão um cego de óculos azuis. Cego baiano das margens do Verde de Baixo. Flautista de profissão dera um concerto em Bragança. Parara em Maguari. Voltava para Belém com setenta e quatrocentos no bolso. O taioca guia dele só dava uma folga no bocejo para cuspir.

Baiano velho estava contente. Primeiro deu uma cotovelada no secretário e puxou conversa. Puxou à toa porque não veio nada. Então principiou a assobiar. Assobiou uma valsa (dessas que vão subindo, vão subindo e depois descendo, vêm descendo), uma polca, um pedaço do Trovador. Ficou quieto uns tempos. De repente deu uma cousa nele. Perguntou para o rapaz:

- O jornal não dá nada sobre a sucessão presidencial?

O rapaz respondeu:

- Não sei: nós estamos no escuro.

- No escuro?

- É.

Ficou matutando calado. Claríssimo que não compreendia bem. Perguntou de novo:

- Não tem luz?

Bocejo.

- Não tem.

Cuspada.

Matutou mais um pouco. Perguntou de novo:

- O vagão está no escuro?

- Está.

De tanta indignação bateu com o porrete no soalho. E principiou a grita dele assim:

- Não pode ser! Estrada relaxada! Que é que faz que não acende? Não se pode viver sem luz! A luz é necessária! A luz é o maior dom da natureza! Luz! Luz! Luz!

E a luz não foi feita. Continuou berrando:

- Luz! Luz! Luz! Só a escuridão respondia.

Baiano velho estava fulo. Urrava. Vozes perguntaram dentro da noite:

- Que é que há?

Baiano velho trovejou:

- Não tem luz!

Vozes concordaram:

- Pois não tem mesmo.

*

Foi preciso explicar que era um desaforo. Homem não é bicho. Viver nas trevas é cuspir no progresso da humanidade. Depois a gente tem a obrigação de reagir contra os exploradores do povo. No preço da passagem está incluída a luz. O governo não toma providências? Não torna? A turba ignara fará valer seus direitos sem ele. Contra ele se necessário. Brasileiro é bom, é amigo da paz, é tudo quanto quiserem: mas bobo não. Chega um dia e a cousa pega fogo.

Todos gritavam discutindo com calor e palavrões. Um mulato propôs que se matasse o chefe do trem. Mas João Virgulino lembrou:

- Ele é pobre como a gente.

Outro sugeriu uma grande passeata em Belém com banda de música e discursos.

- Foguetes também?

- Foguetes também.

- Be-le-za!

Mas João Virgulino observou:

- Isso custa dinheiro.

- Que é que se vai fazer então? Ninguém sabia. Isto é: João Virgulino sabia. Magarefe-chefe do matadouro de Maguari, tirou a faca da cinta e começou a esquartejar o banco de palhinha. Com todas as regras do ofício. Cortou um pedaço, jogou pela janela e disse:

- Dois quilos de lombo!

Cortou outro e disse:

- Quilo e meio de toicinho!

Todos os passageiros magarefes e auxiliares imitaram o chefe. Os instintos carniceiros se satisfizeram plenamente. A indignação virou alegria. Era cortar e jogar pelas janelas. Parecia um serviço organizado. Ordens partiam de todos os lados. Com piadas, risadas, gargalhadas.

- Quantas reses, Zé Bento?

- Eu estou na quarta, Zé Bento!

Baiano velho quando percebeu a história pulou de contente. O chefe do trem correu quase que chorando.

- Que é isso? Que é isso? É por causa da luz?

Baiano velho respondeu:

- É por causa das trevas!

O chefe do trem suplicava:

- Calma! Calma! Eu arranjo umas velinhas.

João Virgulino percorria os vagões apalpando os bancos.

- Aqui ainda tem uns três quilos de colchão-mole!

O chefe do trem foi para o cubículo dele e se fechou por dentro rezando. Belém já estava perto. Dos bancos só restava a armação de ferro. Os passageiros de pé contavam façanhas. Baiano velho tocava a marcha de sua lavra chamada Às Armas Cidadãos! O taioquinha embrulhava no jornal a faca surripiada na confusão.

Tocando a sineta o trem de Maguari fundou na estação de Belém. Em dois tempos os vagões se esvaziaram. O último a sair, foi o chefe muito pálido.

*

Belém vibrou com a história. Os jornais afixaram cartazes. Era assim o titulo de um: Os Passageiros no Trem de Maguari Amotinaram-se Jogando os Assentos ao Leito da Estrada. Mas foi substituído porque se prestava a interpretações que feriam de frente o decoro das famílias. Diante do Teatro da Paz houve um conflito sangrento entre populares.

Dada a queixa à polícia foi iniciado o inquérito para apurar as responsabilidades. Perante grande número de advogados, representantes da imprensa, curiosos e pessoas gradas, o delegado ouviu vários passageiros. Todos se mantiveram na negativa menos um que se declarou protestante e trazia um exemplar da Bíblia no bolso. O delegado perguntou:

- Qual a causa verdadeira do motim?

O homem respondeu:

- A causa verdadeira do motim foi a falta de luz nos vagões.

O delegado olhou firme nos olhos do passageiro e continuou:

- Quem encabeçou o movimento?

Em meio da ansiosa expectativa dos presentes o homem revelou:

- Quem encabeçou o movimento foi um cego!

Quis jurar sobre a Bíblia mas foi imediatamente recolhido ao xadrez porque com a autoridade não se brinca.