CVI

APÓLOGO SERTANEJO

18 de novembro

Viúvo da Razão, que havia morrido no hospício, abandonou o coração, um dia, a sua fazenda no interior do país, trazendo para uma grande cidade do litoral, em sua companhia, afim de esquecerem o golpe recente, os seus filhos e filhas. Estes eram, ao todo, nove, sendo três homens - o Amor, o Pudor e o Orgulho, e seis mulheres - a Fé, a Esperança, a Amizade, a Coragem, a Caridade e a Hipocrisia.

Chefe de família descuidado, o Coração esqueceu-se, na cidade, de fechar solidamente as portas da casa, exercendo sobre os filhos uma vigilância constante e rigorosa. Jovens e ambiciosos, era possível que os rapazes e, mesmo, as raparigas, gostassem de divertir-se, de passear, de espairecer. E o resultado dessa liberalidade paterna foi imediato: os filhos e filhas passavam a noite fora de casa, atentando contra os bons costumes, com grande escândalo do ancião, que nunca pensara, em sua vida, em semelhante vergonha para sua velhice.

Horrorizado com tudo aquilo, resolveu o velho remediar o mal, regressando, com a família, para as suas propriedades, no alto sertão. E na hora da partida, reuniu os filhos, chamando-os, um por um:

- Esperança?

- Pronto! - respondeu a moça.

- Coragem?

- Presente!

- Amor?

- Presente!

E assim chamou, obtendo resposta, e metendo-os no trem, a Fé, a Amizade, a Caridade e o Pudor. Chegada, porém, a vez dos dois mais velhos, gritou:

- Orgulho?

Ninguém respondeu.

- Hipocrisia?

O mesmo silêncio. Aflito, o pobre pai procurou-os em torno, chamando-os aos gritos. E foi debalde. Nesse instante, o trem apitou, anunciando a saída. O ancião correu, e tomou o carro.

Momentos depois o trem partia, levando para o interior do país a Esperança, a Amizade, o Amor, a Coragem, a Fé, a Caridade e o Pudor, e deixando na cidade, apenas, o Orgulho e a Hipocrisia.

CVII

AS GARRAFAS

20 de novembro

D. Eleonora havia mandado chamar o seu primo, o Dr. Alfredo Bonifácio, para uma consulta íntima, sobre diversos remédios que lhe haviam recomendado, quando abriram inesperadamente o portão da casa.

- É o Augusto! - exclamou, horrorizada, a pobre senhora, apanhando com o pente os lindos cabelos em desordem.

E torcendo as mãos, aflita, a andar de um lado para outro da sala de jantar:

- Minha Nossa Senhora! que horror! que eu hei de fazer, meu Deus!...

E ia, já, nos extremos da aflição, da angustia, do desespero, quando, abrindo a porta que comunicava aquele compartimento com a cozinha, teve uma idéia providencial:

- Esconde-te ali, Alfredo! Depressa! anda! anda!

E empurrou o primo, com o chapéu na mão, para dentro da despensa completamente às escuras.

O velho magistrado não era, felizmente, homem de grande perspicácia, desses que advinham a passagem de estranhos por obra e graça do indício mais simples. Casado em segundas núpcias, confiava na mulher como confiava no Código. E enganando-se, tanto com o Código como com a mulher, foi com a alma tranqüila, calma, satisfeita, que penetrou em casa, naquela noite, após uma palestra sisuda na residência do presidente do Tribunal.

Aberta a porta, o ilustre chefe de família entrou, e, pendurando a cartola na chapeleira, sentou-se, grave, à mesa do chá, ao lado da esposa carinhosa. E ia contar-lhe a sua conversa com o outro sacerdote da Justiça, quando ouviu um barulho de garrafas na dispensa

Que é isso? Ouviste, Eleonora? - exclamou, assustado.

A mulher empalideceu, e ia, talvez, comprometer-se com uma denúncia, quando o velho, ouvindo de novo o barulho, se levantou de repente, encaminhando-se, firme, para a porta da despensa.

- Quem está aí? - gritou o magistrado, com o terror na garganta..

Na despensa escura, semeada de garrafas de cerveja e águas minerais, a situação do Dr. Bonifácio era delicadíssima. De pé, no meio do compartimento, não podia, sequer, mexer-se. Cada passo que aventurava, era um desastre, uma calamidade, que ia despertar, fora, com um rumor de vidros partidos, a atenção do dono da casa. Ao terceiro barulho, o velho tornou, severo, com o revólver em punho:

- Quem está aí?

E estava, já, resolvido a conformar-se com o silêncio das vezes anteriores, quando uma voz surda, cava, soturna, respondeu, de dentro:

- São as garrafas...

Satisfeito com a descoberta, o magistrado embolsou o revolver, e voltou, sereno, a tomar o seu chá.

CVIII

PELE CURTA

24 de novembro

Dize-me como dormes que eu te direi os pecados que tens. É durante o sono, realmente, que a consciência se revela. O sono agitado, aflito, repassado de gemidos e roncos, denuncia sempre uma alma atribulada, um espírito perseguido de cuidados, um coração atormentado pela consciência. A consciência tranqüila, dorme com o corpo, irmanados num grande sossego reparador.

As mulheres que se revoltam contra os maridos que roncam alto, não cometem, portanto, com isso, uma injustiça. Um escritor já disse, uma vez, que a garganta de um esposo, era, às vezes, a trombeta de Jericó, diante da qual ruíam todas as ilusões da mulher. E a afirmação era justa, porque é durante o sono que, adormecida a tirania da vontade, o homem se manifesta, sonoramente, com todos os defeitos dissimulados durante o dia.

Há, entretanto, casos patológicos, que, embora não justifiquem uma alteração do critério geral, servem, contudo, para ilustrar, com uma variante curiosa, um capítulo sobre a matéria.

A fazenda de Santa Justina, no município de Maricá, estava entregue, já, ao primeiro sono compensador, quando bateram à porta do casebre do Antônio Luiz, único, naquelas alturas, que ainda coava a luz da candeia pelos interstícios das paredes, das janelas e dos portais.

- Quem é? - gritou, de dentro, aborrecido, o dono da casa, juntando, com os dedos úmidos de saliva, as cartas de um baralho espalhadas sobre a madeira de um tamborete.

- Sou eu! - respondeu, de fora, uma voz desconhecida no lugar.

Aberta a porta, o Benedito Gamela, que ia de viagem, explicou o seu desejo: queria pousada por uma noite, afim de alcançar, no dia seguinte, a fazenda do Atoleiro, onde ia trabalhar na apanha de café.

- Você não tem, por aí, alguma moléstia pegadeira? - indagou o Antônio Luiz, desconfiado.

- Eu? D'aonde, minha Nossa Senhora? Eu nunca tive moléstia na minha vida. A doença que tenho, desde pequeno, nunca fez mal a ninguém, graças a Deus.

- Que moléstia é essa?

- A minha? Eu sofro de pele curta.

- Pele curta? - estranhou o morador.

Não querendo, porém, mostrar-se desconhecedor de certas novidades da medicina, Antônio Luiz não insistiu: acendeu uma lamparina, foi ao compartimento próximo, desenrolou no chão uma esteira de palha, e, concluído tudo, convidou:

- Entre p'ra cá. A casa é sua.

E encostando a porta, deitou-se na sala próxima.

Dez minutos não se tinham passado ainda quando o dono da casa deu um pulo, sobressaltado: do quarto do hospede, onde a lamparina bruxoleava, desenhando visagens na parede, subia um rugido de tempestade, que abalava o aposento.

- Camarada!... Camarada!... - chamou o Antônio Luiz, empurrando a porta. - Que é isso? Você está morrendo?

- Hein?... Hein?... - acordou o caboclo, em sobressalto. - O que é?... O que é?...

- Você está roncando como um trovão. Que é isso?

- É "pele curta", homem. Eu não disse a você? - explicou o Benedito, estremunhado.

O outro não compreendeu, e ele explicou:

- A minha moléstia é essa: quando eu fecho os olhos, abro a boca. É por isso!

E, estirando-se na esteira, desandou, de novo, a roncar.

CIX

MALITIA SEXUS

28 de novembro

Não obstante as teorias espalhadas pelos moralistas modernos, a virtude máxima da mulher será, sempre, o pudor. Afirmem embora que este não é um aliado permanente da inocência, argumentando, para isso, com as crianças e os selvagens; eu continuarei a considerá-lo a flor mais mimosa da castidade e a atribuir à sua ausência a maior parte dos venenos que dissolvem a sociedade e a família. Aos meus olhos, o pudor está para a honestidade como o fumo está para o fogo. Compreender honestidade sem pudor seria admitir fogo sem fumo.

Essa convicção não é, entretanto, privilegio meu; e não foi sem alegria que li há dias, em uma revista européia, a solidariedade de um eminente magistrado francês, patenteada em uma lição oportuna, e rigorosa, a algumas dúzias de senhoras parisienses.

Em um dos tribunais de Paris debatia-se, em uma das últimas sessões do ano último, um processo escandaloso, cujas peças documentais, que deviam ser lidas e mostradas, atentavam, de modo clamoroso, contra a pudicícia das damas que enchiam, naquele momento, a sala do tribunal. Constrangido ante aquele publico feminino, o velho magistrado que presidia a sessão fez tilintar o tímpano, pedindo atenção. Feito silêncio, o juiz avisou:

- É dever meu, como magistrado e chefe de família, comunicar às damas presentes neste recinto que vão ser exibidos, aqui, alguns documentos do processo capazes de ferir as susceptibilidades femininas. Nessas condições, eu peço, pois, às senhoras pundonorosas que se afastem da sala, de modo que os interessados possam discutir essas provas sem constrangimento.

A esse aviso, as sessenta ou setenta senhoras presentes no tribunal entreolharam-se, consultando-se tacitamente. De tantas, porém, duas, apenas, se levantaram, retirando-se, deixando-se ficar as demais nos seus respectivos lugares.

Ao fim de dois minutos, o juiz indagou, alto:

- Nenhuma das senhoras que se deixaram ficar sentadas se mostrarão escandalizadas com as peças repugnantes que vão ser exibidas?

Silêncio geral.

Ante essa resposta muda, o magistrado enrubesceu, revoltado com aquele espetáculo de despudor, e, virando-se para o comandante da força, ordenou:

- Chefe da guarda, mande pôr fora da sala o resto das senhoras!

E a guarda cumpriu a ordem.

CX

MME. LONDON BANK

30 de novembro

Contam as crônicas do Império Romano que Mitridates, o famoso rei do Ponto, que enfrentou as hostes de Sila, de Pompeu e de Lúculo, apanhou, um dia, de surpresa, um general inimigo, e, para matar-lhe a fome de riquezas, fez-lhe derramar pela garganta uma panela de ouro derretido. Incompletos nas suas informações, os historiadores antigos não dizem, de modo claro, como ficou a boca da vítima; a impressão que eu tenho, em seguida a essas leituras, é, porém, que o general se tornou, com isso, o grande antepassado de certas senhoras e cavalheiros do nosso tempo, e que eu encontro diariamente na cidade, os quais transformaram a boca em Caixa de Conversão, depositando alí, em obturações dispendiosíssimas, grande parte da sua fortuna.

Felizmente, há, entre as senhoras, espíritos esclarecidos, que movem, contra esse abuso, uma campanha infatigável. Ainda ontem, uma destas beneméritas, D. Clara de Souza Castelo, que me fora apresentada pelo Sr. Dr. Afrânio Peixoto, me informava, preocupadíssima:

- Esta moda das dentaduras de ouro está se desenvolvendo, Sr. conselheiro, como o senhor não imagina.

E após uma dúzia de nomes próprios, aludindo a pessoas notabilizadas por esse mão gosto, assinalou, penalizada, uma ilustre dama atualmente em Petrópolis, cuja boca é considerada, ali, pela quantidade de ouro que encerra, uma verdadeira sucursal dos cofres do London Bank.

- E não é só a falta de gosto, senhor conselheiro - acentuava a minha curiosa conhecida da véspera. - O pior de tudo, é o perigo a que está exposta uma criatura nessas condições. O senhor não conhece o caso de D. Laurentina, mulher do Dr. Filomeno Miranda?

A minha resposta foi, como era natural, negativa, e ela contou:

- D. Laurentina tem, como o senhor sabe, uma grande fortuna, herdada do pai. Aos vinte e cinco anos, os seus dentes começaram a estragar-se, e ela, que possuía dinheiro, mandou obturá-los a ouro. E de tal maneira procedeu, que, hoje, possui a boca inteiramente dourada! Quando ela fala, e os lábios se lhe descerram, é um deslumbramento, um luxo de ouro, que se tem a impressão de que se abriu, de repente, a porta grande da igreja da Candelária!

Eu tossi, estranhando a imagem, e Dona Clara continuou:

- O pior, porém, era o que lhe ia sucedendo. Imagine o senhor que, uma destas noites, ao regressar de uma visita, o Dr. Filomeno percebeu que havia ladrão na casa. Corajoso, hábil, experiente, empunhou ele o revolver, chamou os criados, e começou a percorrer o palacete. No quarto de dormir, o jardineiro abaixou-se, e olhou para debaixo da cama. E deu um grito, de horror e de alarma. O ladrão estava lá, debaixo do leito, escondido!

Por essa altura, D. Clara tomou fôlego, e reatou:

- Arrancado, à força, do esconderijo, pelo pulso dos criados, o miserável não negou o crime premeditado. Estava ali para roubar a fortuna da dona da casa!

- E estava armado? - indaguei, aflito.

- Estava, Sr. conselheiro, estava! - acudiu a minha informante.

E, olhando para um lado e outro, soprou-me, perversa, ao ouvido:

- Levava... um boticão!...

E soltou uma gargalhada sonora, demorada, reboante, dessas que somente sabem dar, na terra, as mulheres de dentes bonitos.

CXI

EFEITOS DO TANINO

1° de dezembro

Preocupado com a mocidade da sua linda companheira e temendo, ao mesmo tempo, a decadência de tão maravilhosa formosura, principalmente daquele admirável colo de neve, que era o seu orgulho e que ela mostrava, contente, até aonde lhe era possível mostrar, o coronel Epifânio Fonteneles procurou, uma tarde, a proprietária de um famoso Instituto de Beleza, e expôs claramente o seu caso. A Circe francesa ouviu-lhe a narrativa, compreendeu-lhe os temores, percebeu-lhe as apreensões, e, com um sorriso nos lábios artificialmente vermelhos, tranqüilizou-o:

- Pode ficar tranqüilo, coronel. O preparado que possuímos para conservar a graça do busto, a mocidade da pele, enfim, a beleza do colo, é infalível. É uma loção adstringente, de efeito seguro e poderoso, que tem realizado verdadeiros milagres. Basta dizer que entram nela, em dose elevadíssima, a pedra-hume, a casca de romã, a folha de carvalho, a casca de manga, enfim, todas as substâncias taninosas, que fazem contrair e fortalecer a epiderme, conservando-lhe a juventude.

E retirando um vidro da prateleira:

- O senhor leva um vidro, e recomende a madame que o use todos os dias. Toma-se de um pouco de algodão delicado, molha-se no liquido, e umedece-se com ele a pele do colo, principalmente o seio, cuja rijeza é preciso conservar. Deixa-se secar o liquido na pele, põe-se uma ligeira camada de pó de arroz, e está feito o remédio, e, com ele, a "toilette" do dia.

Balançando a cabeça a cada informação, o coronel mostrou haver entendido bem, pediu dois vidros da loção, pagou-os, recebeu-os, e tocou-se para casa, onde os entregou à encantadora D. Ignezinha, a quem transmitiu, palavra por palavra, todas as explicações.

No dia seguinte, à tarde, usado o liquido de acordo com as instruções do marido, e enfiado o seu vestido de decote mais longo e mais frouxo, desceu a linda senhora, sem colete, afim de patentear melhor a graça do busto deslumbrante, para a sala de visitas, onde já se havia feito anunciar, como um dos amigos mais freqüentes da casa, o jovem engenheiro militar Dr. Epaminondas Rufino.

Pausado, meticuloso, disciplinado em tudo, o coronel demorou-se ainda nos seus aposentos, vestindo-se para jantar. Meia hora depois, ouviam-se os seus passos na escada, e, logo, em seguida, a sua entrada no salão, onde madame sorria, discreta, contando uma história qualquer ao capitão Epaminondas.

- Então, como vai essa bravura? bradou, jovial, o velho coronel, estendendo a grande mão gloriosa, para apertar a do amigo.

O engenheiro ia responder no mesmo tom, mas, de repente, contraiu o rosto, empalideceu, e continuou mudo.

- Que é isto? Está se sentindo mal? - tornou o coronel apreensivo.

O capitão fez um novo esforço, com os músculos de todo o rosto, procurando descerrar os lábios apertados, contraídos num espasmo da mucosa e, com uma dificuldade horrível, quase com a boca cerrada, respondeu, apenas, num sibilo, com a língua presa, dura, paralisada pelo tanino:

- Nun... tãnho... nada!

E ganhou a rua.

CXII

ZURTZ

4 de dezembro

Quando o professor Krause esteve no Rio de janeiro, em 1920, falou-nos, a mim e ao seu colega Dr. Fernando de Magalhães, em uma descoberta que estava revolucionando a fisiologia nas vésperas da sua partida da Alemanha. Tratava-se de uma comunicação feita à Academia de Ciências Médicas, de Berlim, pelo professor Zurtz, de Munich, o qual havia conseguido uma fórmula miraculosa para aumentar o crescimento do cabelo. O poder desse preparado era tão prodigioso que, posto pela manhã, o aumento constatado à tarde era de, pelo menos, meia polegada. Um destes dias, ia eu pela Avenida, quando encontrei, com grande alegria de coração e de espirito, o ilustre diretor da Maternidade, que me foi, logo, perguntando:

- Conselheiro, lembra-se daquela descoberta de que nos falou o professor Krause?

- Qual?

- A do professor Zurtz.

Eu fiz um esforço de memória, remexi, com os dedos do pensamento, no escaninho cerebral das minhas lembranças, e respondi afirmativamente.

- Pois, aquilo, - continuou o Dr. Fernando - é um fato. As revistas francesas, italianas, alemãs e inglesas que ultimamente recebi, falam, já, no prodígio.

- Deveras?

- É verdade. E com uma circunstância mais: aperfeiçoando o seu invento, o professor Zurtz conseguiu três modalidades do mesmo preparado, com diversas aplicações. A primeira serve unicamente para o cabelo, o qual pode crescer, com ele, dez centímetros por dia. A segunda é de aplicação zootécnica: faz crescer em poucas horas, com vantagem para a industria, a lã dos carneiros. E a terceira, destinada à pecuária, faz nascer, com rapidez, os chifres aos bois, aos cordeiros, às cabras e a outros animais que os tenham atrofiados. A esse preparado deu o inventor o seu próprio nome, com diversas numerações: n. 1, n. 2, e n. 3, como os produtos químicos de Mme. Selda Potocka.

Nesse momento, um cavalheiro alto, magro, calvo, que estava perto, aproximou-se de nós, e, pedindo licença, indagou, respeitoso:

- Os senhores acreditam nisso?

O Dr. Fernando olhou-o de alto a baixo, e confirmou.

- Pois, eu, - tornou o desconhecido, sou uma prova da ineficácia desse remédio. Calvo, há muitos anos, mandei buscá-lo, usei-o, e veja!

E descobriu o crânio irregular, pelado como um ovo.

O Dr. Magalhães escorregou os olhos pela cabeça do homem, franziu a testa, mordendo o dedo, com aborrecimento. E, ao fim de um minuto, pediu:

- Diga-me uma coisa.

O indivíduo fitou-o.

- O senhor não tomou errado?

O careca desapareceu.

CXIII

A CHUVA LUMINOSA

7 de dezembro

- Maravilhoso colar este seu, senhora viscondessa; é pena que dê, aos meus olhos, uma sensação de tragédia, embora de linda tragédia!

As senhoras voltaram-se, todas, para a viscondessa de São Germano, e admiraram. Emergindo do vestido solferino, graciosamente decotado, o seu colo parecia mais alvo do que nunca; e o que realçava ainda mais essa alvura de leite era a graça de um colar de rubis que lhe volteava o pescoço de linhas puríssimas, dando a impressão de um crime sinistro, horrendo, brutal, que lhe fizesse florescer a garganta de neve com um vivo círculo de gotas de sangue.

- É lindo, mesmo! - confirmou o general Tasso Fragoso, assestando na jovem senhora o seu fortíssimo "pince-nez" de míope.

- É um deslumbramento! - asseguraram, ao mesmo tempo, o senador Azeredo e a baronesa de Pereira Alves.

Percebendo, perspicaz, a tortura a que o seu galanteio estava submetendo a beleza honesta da viscondessa, o almirante Ribas resolveu correr em seu auxílio, arrancando-a daquela deliciosa e, ao mesmo tempo, angustiosa situação. E tentou:

- As pedras preciosas, aliás, foram atiradas à terra para punição e glorificação das mulheres.

As senhoras olharam-no sorridentes, na certeza de mais um conto oriental do velho marinheiro, e ele; compreendendo o que aqueles olhos lhe pediam, começou, acariciando o rosto escanhoado e cor de rosa, coroado por uma fina cabeleira de prata:

- Antes do Dilúvio e do Pecado Original, os astros que ornavam o céu tinham, cada um, a sua cor peculiar. Sírios era verde, como as águas do oceano. Saturno era de um azul pálido, como os olhos da Sra. condessa de Souza Furtado. Marte era vermelho como o sangue. Júpiter, de um amarelo vivo. Netuno, roxo. Urano, azul, forte. O Sol, cor de púrpura. E a Lua e Vênus, alvas como a inocência.

- Devia ser lindo, o céu! - comentou, encantada, a baronesa.

O general Tasso Fragoso aparteou, erudito, contando que, de Marte, segundo Flamarion, ainda se viam dessas paisagens celestes, e o almirante continuou:

- Resplendente de astros de todas as cores, o céu era, em verdade, um deslumbramento.

Endireitou-se na grande "maple" tauxiada de prata, e contou:

- Uma tarde, vinha o Onipotente por uma das alamedas do Paraíso, quando se lhe deparou um quadro revoltante: abraçados, trêmulos, conscientes do próprio crime, Adão e Eva escondiam-se, horrorizados de si mesmos, entre as árvores enormes daqueles primeiros dias da Criação. Compreendendo, na sua sabedoria, o que havia sucedido às duas fragilíssimas criaturas a que pretendera conceder a graça da imortalidade, trovejou o Senhor que eles abandonassem, de pronto, os limites do Éden. Súplices, os réprobos imploraram perdão, pedindo clemência. A resposta foi, porém, uma ordem severa, brutal, imperiosa, para que o anjo Gabriel manejasse a sua espada de chama. E, enquanto isto acontecia, deu-se, de súbito, o milagre deslumbrante: a um gesto do Senhor, os astros todos começaram a lançar sobre os perseguidos uma chuva de fogo, como aquela que destruiu, mais tarde, Gomorra e Sodoma, a qual, desfeita em gotas de todas as cores, em pingos luminosos de todas as cambiantes, fustigavam, numa apoteose terrível e magnífica, a sublime fraqueza dos dois pecadores!

As senhoras fitavam, mudas e encantadas, o delicioso narrador, e este continuou:

- Essas gotas de fogo, tombadas na terra poluída pelo pecado, coagularam-se, cristalizaram-se, consolidaram-se.

Firmou as mãos no apoio da "maple" e, fazendo menção de erguer-se, concluiu:

- E apareceram na terra, minhas senhoras, as ametistas, os diamantes, os topázios, as opalas, os berilos, as esmeraldas, as safiras, as turmalinas, os rubis, essas gotas de fogo, em suma, que são, pelo desejo que vos despertam e pelo realce que vos dão à beleza, a vossa glória e o vosso castigo!

E levantou-se, entre palmas.

CXIV

PEDRAS PRECIOSAS

12 de dezembro

Segurando o almirante pela manga da casaca impecável, a baronesa forçou-o a sentar-se, de novo:

- Não, senhor, não pode ir; tem que contar-nos, agora, a virtude de todas as pedras preciosas exibidas pelas senhoras que aqui se acham.

- Eu? - obtemperou o ilustre marinheiro, levando a mão clara ao peitilho espelhante da camisa:

- Sim, senhor. É este o seu castigo.

E imperativa:

- Sente-se!

Generalizada, de novo, a palestra, a viscondessa de São Germano indagou, com sincero interesse:

- É verdade, almirante é certo, mesmo, que a ágata é "porte-malheur"?

- É verdade, afirmam isso... - acrescentou Mme. Sampaio Gomes.

O almirante contestou:

- É uma invenção recente, essa, D. Violeta. Os antigos, pelo menos, não dão notícia dessa propriedade. Plínio, que a ela se refere longamente, atribui-lhe a virtude de tornar os atletas invencíveis. Os egípcios indicavam-na como infalível contra mordedura das víboras, dizendo-se, mesmo, que as águias a colocavam no ninho para afugentar as serpentes, que lhes perseguiam os filhos.

- E o rubi? - indagou a baronesa.

- O rubi é a pedra dos espíritos esclarecidos. Teofrasto aponta-o como um dos incentivos misteriosos da inteligência, circunstância que a levou, ao que parece, a ser adotada como pedra simbólica dos bacharéis. Outros acreditam que ele preservava contra a peste, contra os venenos, e contra outros perigos da vida. É, mais ou menos, como a esmeralda.

- Como a esmeralda?

- Sim. A esmeralda fortalece, também a inteligência, e cura, segundo Plutarco, as mordeduras de cobra. Alberto, o Grande, recomendava-a contra a epilepsia e Cornélio Agripa contra as hemorragias.

Foi por essa altura que a encantadora D. Ritinha, que até então se limitara a sorrir, fazendo companhia ao contentamento dos outros, aventurou, cândida:

- Mas, há pedras portadoras de desgraças; não há, senhor almirante?

- Dizem que a opala é desse número, minha senhora; mas eu não creio.

- Não crê?

E entre a atenção geral:

- Pois, olhe, há dois anos, meu marido ia sendo vítima de uma dessas pedras de mau agoiro. Esteve muito mal!

- E que pedra foi essa? Pode-se saber?

A moça não lhe sabia o nome; a baronesa correu, porém, pérfida, em seu auxílio:

- Era o carbúnculo; não era, Dona Ritinha?

A jovem senhora, desabituada àquele meio super-civilizado, bateu com a cabeça, confirmando, ingênua, a horrenda perversidade:

- É isso mesmo; era o carbúnculo. E compadecida:

- Quase ele morre, coitado!...

CXV

O BRAVO

15 de dezembro

Pai de uma menina que era um encanto, o coronel Peregrino encontrara na vida, pela primeira vez, uma dificuldade que lhe detivera o passo: o casamento da filha, a escolha de um noivo digno, bravo, correto, entre os jovens oficiais da guarnição. Três tenentes, nada menos, disputavam-lhe a mão, e era essa rivalidade, exatamente, que dificultava a solução do problema. Todos eram galantes rapazes e elegantíssimos oficiais, e, como a pequena se não decidisse por si mesma, o caso era atirado, inteiro, à delicada responsabilidade do pai.

Certo dia, reunida no quartel a oficialidade da guarnição, chamou o coronel à parte os três jovens tenentes, e, torcendo marcialmente, com as duas mãos, as fortes guias do bigode grisalho, propôs, severo:

- Eu sei que os senhores, os três, têm paixão pela minha filha, cuja mão já me pediram em casamento.. A escolha, entre os senhores, é dificílima. Se eu fosse comerciante, preferiria o mais rico. Se fosse fidalgo, o mais nobre. Se me preocupasse com as aparências, o mais elegantemente vestido. Sou, porém, um soldado, e, como, tal, faço questão de escolher para genro o mais valente, o mais bravo, o mais corajoso. Não acham justo?

- Perfeitamente! - exclamou o tenente Coimbra.

- Perfeitamente! - confirmou o tenente Torres.

- Perfeitamente! - concordou o tenente Samuel.

- Nesse caso - tornou o coronel - vou submetê-los a uma prova.

E ordenou; para dentro:

- Cabo Matias, prepare a metralhadora.

O inferior puxou a maquina para o pátio, mexeu nas munições, remexeu nas ferragens, e avisou:

- Pronto, Sr. coronel.

O velho militar examinou a arma e, vendo que tudo ia bem, tomou os rapazes pelo braço, colocou-os a seis metros do aparelho mortífero, e ordenou, com voz de comando:

- Um!... Dois!...

E ia dar o último sinal para descarga da metralha, quando dois vultos pularam, rápidos, num movimento de terror, colocando-se fora do alvo.

- Covardes! - trovejou o coronel. E eram estes pusilânimes que pretendiam a mão da minha filha!...

E dirigindo-se ao terceiro, que se não afastara do lugar:

- O senhor, sim, é um bravo! A menina é sua!

E, estendendo-lhe a mão:

- Venha daí; vamos ver a sua noiva.

O oficial detinha-se, porém, imóvel.

- Vamos, homem! - insistiu.

O tenente olhou para um lado, olhou para outro, e, afinal, confessou:

- Posso lá o que! Se eu pudesse sair daqui, eu tinha corrido!

E para o soldado:

- Matias, empresta-me a tua calça?

CXVI

SÃO FILOMENO

18 de dezembro

A estação de Carirí, na Estrada de Ferro de Sobral, no Ceará, é separada da Serra Grande, ou da Ibiapaba, por dez ou doze léguas de planície, onde se estendem as caatingas uniformes e pedregosas, ou se levantam, aqui e ali, os outeiros cinzentos, ásperos, desertos, inteiramente despidos de vegetação. A falta de açudes ou de lagoas e, mesmo, a pequena fertilidade das terras, tornou alí menos densos, e menos próximos, os núcleos humanos. As fazendas são mais raras, e os povoados mais distantes, vendo-se, apenas, quebrando aquela monotonia, de légua em légua, pequenos grupos de reses, que se disputam, melancólicas, os poucos recursos de pastagem.

Contrastando com esse panorama desolador, que a impiedade do sol torna mais triste, surge, porém, de repente, aos olhos de quem viaja, um ramalhete de verdura, um breve oásis em que as arvores se aglomeram, e que se conservam permanentemente viçosas, como aqueles plátanos da Arcádia que protegeram os primeiros amores de Zeus. É alí, nesse breve refrigério da natureza, que os vaqueiros e transeuntes repousam da travessia sertaneja, descansando na terra o bordão de caminheiro ou amarrando nos troncos, à sombra dos juazeiros e das oiticicas, as velhas alimárias fatigadas.

- Que bosque é este? - perguntei, um dia; diante dessa paisagem curiosa, à simplicidade do meu guia, um caboclo serrano, moreno, forte, de alma de criança e pescoço de touro.

- Aqui? Aqui é a mata do Nicolau.

- E esse Nicolau, mora aqui? - indaguei.

O caboclo sorriu, zombeteiro, e explicou:

- Não mora, não, senhor; já morou.

O caso, como era natural, intrigou-me, e, como eu insistisse, o caboclo sentou-se no alforje, que atirara ao chão, e contou-me, enquanto almoçava o seu pedaço de queijo fresco, a maravilhosa história daquela paragem.

- Antes da seca de 77 - começou - havia neste lugar uma povoação, que vivia, com a graça de Deus, na maior fartura. Então, não havia estas árvores. Tudo isto era campina; caatinga, chapadão, como lá fora. A gente era muito ativa e decidida, e, como a terra fosse boa, não faltava nada. Com a Seca Grande, porém, veio a fome, a miséria, um horror. O povo, fiado em Deus, e em São Filomeno, padroeiro do lugar, não queria fugir. O gado morreu. As galinhas morreram. Até bode morreu nesse ano. E começou a morrer gente. Desenganados de inverno, os moradores reuniram-se uma noite na capela e resolveram abandonar o povoado. E como não entrassem em acordo a esse respeito, ficou resolvido que o Nicolau pensasse e deliberasse por todos.

- E quem era esse Nicolau? - interrompi.

- Espere lá, já lhe digo. Esse Nicolau era o sujeito mais respeitado do lugar. Sério como ele só. A mulher, D. Felismina, era uma santa. Não perdia missa, nem novena, nem ladainha, e ia até o Carirí, sozinha, para ouvir a Santa Missão. E como era ainda o menos pobre, foi o Nicolau encarregado de resolver o caso, em nome dos companheiros de desgraça. Devoto como era, resolveu ele pedir o auxílio de São Filomeno, e meteu-se, nessa mesma noite, na capela, trancado. Trancou-se, rezou muito, e, lá pela madrugada, dormiu. E foi aí que se deu o milagre.

- Milagre?

- Sim, senhor. Diz ele que, assim que pegou no sono, viu São Filomeno descer do altar, e ir crescendo; crescendo, até que ficou do tamanho de um homem. Depois, aproximou-se dele, e disse: "Nicolau, o povoado vai ser reduzido a cinza porque, todos nele são pecadores. As mulheres, então, já estão mais degradadas do que as galinhas do teu terreiro e do que as cabras do teu serrote!" - "É possível, senhor?!" - exclamou Nicolau, espantado. O santo não entrou, porém, em explicações, limitando-se a dizer: - "Olha, Nicolau, o momento não é para vinganças nem para derramar sangue de cristão. Mas eu vou te dar elementos para apurar a verdade. Toma, - disse, entregando-lhe dois punhados de caroços; - toma estas sementes, e distribui, uma a uma, pelos homens casados do povoado, para que eles plantem à porta da sua casa. Depois, fujam, abandonem o lugar, a capela, tudo, porque a seca vai continuar ainda por dois anos. Ao fim desse prazo, voltem, e examinem: na porta daqueles cujas mulheres os tenham traído, estas sementes terão nascido; e só não nascerão, Nicolau, na porta daquele cuja mulher nunca o tenha enganado!" O homem cumpriu a recomendação do santo, distribuiu as sementes pelos companheiros, plantaram, e fugiram para o Amazonas. Anos depois, voltaram.

- E então?

- E então? Então, encontraram este bosque verde, viçoso, que nunca mais morreu!

- Nasceu, então, até a semente da porta do Nicolau?

O caboclo sorriu, e atendeu:

- A porta do Nicolau era ali.

E indicou um pé de jatobá imenso, largo, robusto, cuja copa dominava o oásis e guiava, de longe, os viajantes que transitam, hoje, entre a frescura da Serra Grande e a estação da Estrada de Ferro, nos sertões do Carirí.

CXVII

O JAVALI DE CALYDON

23 de dezembro

Amigo íntimo do casal, o Dr. Fernando Magalhães tinha a vantagem, que o bairro inteiro invejava, de penetrar, a qualquer hora do dia, sob qualquer pretexto, ou sem pretexto algum, no gracioso palacete do engenheiro Alfredo Scholl, nos fins da Avenida Atlântica, ao lado da montanha e diante do mar. Pessoa de confiança, o Dr. Fernando conversava alguns momentos com a encantadora dona da casa, que lhe dava o prazer de, minutos depois, colocá-lo à sua frente, na pequenina mesa de chá, com serviço para dois. E, como o ilustre médico dispõe de uma cultura variada, bebida na ciência de toda ordem e na literatura de todo gênero, sucedeu-lhe, naquela dia, lembrar-se, a propósito de um incidente comum, da triste fábula do rei Anceo, que tomou parte, como se sabe, na famosa expedição dos argonautas.

- A senhora não conhece, então, essa história fabulosa, D. Alaíde? indagou, gentil, o ilustre ginecologista.

A moça levou a xícara de porcelana chinesa aos lábios mais delicados e vermelhos que a porcelana da xícara, e, com a boquita cheia, e uma torradinha entre os dedos, pediu:

- Não; conte-ma.

E, sorrindo, com tentação:

- Conte-ma; sim?

O ilustre médico fitou-a, com os olhos doces, e começou, com simplicidade, mas com graça:

- De regresso da Colchida, aonde havia ido com os outros príncipes gregos, governava Anceo o seu povo da Arcádia, quando, certo dia, um escravo lhe disse, à mesa, que ele nunca mais beberia vinho da sua vinha. Soberbo e incrédulo, Anceo achou espírito na predição, zombando da palavra do servo. E, para demonstrar a sua incredulidade, ordenou, de pronto, ao escravo:

- Traze-me vinho da minha vinha! Queres ver como o bebo?

O escravo trouxe-lhe uma taça de ouro transbordante, e entregou-a ao senhor.

- E agora, que te disse eu? - observou o monarca.

- O que eu sei, meu senhor, - retrucou o servo, curvando-se, - é que entre o copo e a boca ainda medeia um espaço que pode ser, talvez, uma eternidade!

Anceo sorriu, na sua arrogância, e ia levantar a taça de vinho fervente, quando a guarda apareceu, de súbito, em tumulto, à porta do grande salão.

- O javali de Calidon, meu senhor! - gritavam todos, alarmados; - o javali de Calidon acaba de entrar na vossa vinha!

Abandonando a taça, antes de levá-la aos lábios, o soberano atira-se, de um salto, sobre a sua lança, sobre o seu escudo, sobre a sua espada, ordenando, ao mesmo tempo, que as buzinas convoquem, sonoras, os guerreiros da vizinhança. E, precipitando-se para o vinhedo, enfrenta, alí, sozinho, a fera formidável, a qual se atira contra ele, ferindo-o, matando-o, estraçalhando-o, de modo que se cumpriu o que dissera o escravo, o qual assegurara que ele não chegaria aos lábios, apesar de tê-lo nas mãos, o vinho da sua vinha!

Com o queixo de mármore na curva da mão pequenina, debruçada sobre a toalha de linho bordado, D. Alaíde ouvia, embevecida, de olhos semicerrados, a palavra do narrador, que se debruçara, também, no seu rumo, para falar-lhe melhor. De rosto a rosto não havia mais, talvez, que a distância de um palmo, quando bateram, de leve, na porta que dava para o terraço, a qual se achava trancada à chave. Pé ante pé, D. Alaíde vai até à vidraça e espia, sem ser vista.

- Quem é? - indaga, em segredo, o Dr. Fernando.

E a moça, à meia voz, com a mãozinha junto da boca:

- É o javali!...

CXVIII

AUTOS E "TAXIS"

27 de dezembro

Com o pensamento, talvez, de aperfeiçoar a raça, já de si tão robusta e formosa, votou o Parlamento uruguaio um projeto de lei determinando às autoridades que não realizem mais casamentos sem que os noivos se tenham submetido, com resultado negativo, à reação de Wasserman. Acham os legisladores de Montevidéu que a mulher constitui para os homens uma cruz, e foi com pena deles, provavelmente, que se tomou a providência. Que seria, em verdade, do mortal que tomasse aos ombros a cruz da família depois de ter duas, ou três, constatadas num paciente exame de sangue?

Vindo de uma época excessivamente escrupulosa, em que os pais dos namorados sindicavam das condições sanitárias dos antepassados até à quinta geração, e em que os próprios noivos tomavam um purgativo de óleo de rícino oito dias antes do casamento, - eu não podia ser contrário à humanitária medida promulgada pelo governo do Uruguai. O meu espírito faltaria, entretanto, ao seu dever de sinceridade, aos hábitos de franqueza incondicional, se não confessasse o temor, que tenho, de que essa exigência venha reduzir, ali, o número de casamentos.

O casamento é, realmente, hoje, encarado por um prisma original, que degrada, é certo, a mulher, mas reintegra a espécie na natureza, permitindo-lhe a realização do seu verdadeiro destino. Dessa teoria, dava-me, ontem, uma perfeita imagem industrial o Sr. Roberto de Aguiar, agente de pneumáticos americanos, ao explicar-me, sem constrangimento nem entraves na língua:

- O casamento só pode ser julgado com segurança Sr. conselheiro, por pessoa que já teve automóvel. A esposa ou o esposo definitivo é, para o homem ou para a mulher, uma espécie de automóvel particular. E nada há no mundo, como o senhor sabe, que, como um automóvel particular, dê tanto trabalho: um dia, é uma peça que falta; no outro, é a gasolina; mais tarde, é a capota, que está estragada. O dono de um automóvel vive a fazer despesas todos os dias, a incomodar-se a todo instante, e, quando mais precisa do carro, tem a noticia de que ele não pode funcionar!

Eu encarei o homenzinho, disposto a deixá-lo, àquela hora da madrugada, na primeira esquina da Avenida, e ele continuou:

- Com a amante, ou o amante, não; o amante, qualquer que seja o sexo, é o "taxi" do coração: a gente toma-o, paga-o, e salta onde entende, sem perguntar, sequer, o nome da "garage". Marido ou amante, auto particular ou "taxi", que importa à mulher, ou ao homem, a espécie do veículo, se ele faz a viagem da mesma maneira? E isso com a vantagem de, ao abandonar o carro, não ter passageiro que se incomodar com o estado do motor, nem com a qualidade dos lubrificantes.

Nesse momento, soavam, monótonas, em uma torre da Avenida, três badaladas metálicas, quebrando o silêncio da noite, quase acabada:

- Três horas! - espantou-se o major Afonso Gomide, que ia conosco. - Vamo-nos?

O agente americano estendeu os olhos pela Avenida deserta, e lamentou:

- Sim, senhor! Nem um "taxi"!... E agora?

- Vamos no meu automóvel, - convidou o major, fazendo sinal ao seu "chauffeur".

Desabituado desses luxos, eu continuei o meu caminho, a pé...

CXIX

"GIGOLÔ"

29 de dezembro

Na pequena mesa redonda, em que havia lugar para três, D. Georgina comentava com a liberdade das suas maneiras, o capítulo de uma revista parisiense sobre um termo de criação recente, que tem, já, uma aplicação universal.

- Eu não sei, nem compreendo, afinal, a prevenção contra esse vocábulo.

- Que vocábulo, minha senhora? - inquiri, intrigado.

- Que vocábulo? O "gigolô", masculino de "gigolete", que toda a gente emprega, hoje, nos salões, nas festas, nos passeios, nos cinemas, sem o menor constrangimento. Uma das minhas amigas, Mme. Perez, tem uma cadelazinha a que deu o nome de "Gigolete", e chama-a por essa forma, em qualquer parte, sem o menor escândalo dos que a ouvem. As moças, hoje, andam à "gigolete", vestem-se à "gigolete", fantasiam-se de "gigolete" no Carnaval, e dizem-no sem rebuços, sem temores, sem que se engasguem com a aspereza da expressão. Não se pode, entretanto, falar em "gigolô", nem, mesmo, entre íntimos, sem que haja uma estranheza, um arrepio em todas as almas, principalmente nas que se dizem limpas de pecado. Por que essa diferença, essa disparidade, essa prevenção?

Eu olhei o Dr. Moraes, esposo da ilustre senhora, e, como o visse impassível, dirigi-me à mulher:

- E que é "gigolô", D. Georgina?

- O senhor, então, não sabe, conselheiro? Não sabe, mesmo?

E como lesse a ignorância estampada na minha fisionomia, explicou, virando-se para mim:

- "Gigolô" é o indivíduo adorado por uma mulher que tem outro homem que a ama, e que ela sustenta, à custa do último. Geralmente moço, o "gigolô" é tratado pela mulher que o adora com todos os requintes da paixão. Para ele são os seus melhores beijos, os seus melhores mimos, os seus maiores cuidados. O marido, ou o amante, ordinariamente idoso, fornece-lhe tudo, cercando-a de conforto, de luxo, de abundância, à custa, às vezes, dos maiores sacrifícios. Ela passa, entretanto, tudo isso ao "gigolô", que é, enfim, o único a lucrar com os amores e com o trabalho do outro.

CXX

CEFALALGIA

31 de dezembro

A maior ambição de D. Tereza, desde que lhe morrera o marido, consistia em casar a sua filha única, a encantadora e risonha Edelmira, com o Zézinho, acadêmico de engenharia e filho único, também, do seu irmão Samuel. Criados juntos, quase como irmãos, os dois primos votavam-se uma estima sincera, profunda, inquebrantável, que o amor havia consolidado. E era este sonho máximo da sua vida que D. Tereza acabava de realizar, naquela dia, ao ver chegar à casa, de regresso da igreja, o cortejo nupcial, de que a Edelmirinha se apeava, com os olhos vermelhos de pranto feliz, entre punhados de flores que lhe atiravam, sorrindo, as suas amiguinhas da vizinhança.

Não querem. Entretanto, os deuses, que a felicidade seja duradoura, nem eterna. No céu azul de uma vida sem cuidados, há de passar, sempre, uma nuvem cinzenta, que interrompa a continuidade da ventura. E era nisso que pensava D. Tereza, após o jantar íntimo oferecido aos convidados, quando lhe foram dizer, na copa, que o Zézinho se estava sentindo indisposto.

- Que é, meu filho, que é que você tem? - correu a boa senhora, aflita, com a angústia estampada no rosto, a indagar do rapaz.

- Não é nada, mãezinha, não é nada; não se aflija! - pedia ele, pálido, ao lado da noiva.

O caso era, entretanto, de molde a originar preocupações. Sustentando a cabeça nas mãos, o moço não podia disfarçar mais a dor horrível que lhe estalava o crânio, modificando-lhe, pela violência, a serenidade da fisionomia.

- Meu Deus! que será isto! Que terão feito ao Zéca, minha Nossa Senhora?...

E, agoniada, a andar de um lado para outro da casa:

- Isso foi inveja! foi feitiçaria! foi mau olhado que puseram nele! Meu Deus, tende piedade de mim!...

Na sala, a desorientação não era menor. Cada pessoa presente recomendava um remédio, uma droga, um recurso caseiro.

- Dê um escalda-pés, D. Edelmira, - aconselhava uma senhora gorda, montanhosa, que se abanava, paciente, com um grande leque de plumas. - Dê um escalda-pés, que é um santo remédio!

- Um chá de erva-doce, Dona Tereza; faça um chá de erva-doce bem forte! - intervinha outra dama, professora pública, jubilada. - Isso é estômago, com certeza!

Iam as coisas por essa altura, quando o Dr. Álvaro Osório de Almeida, que havia sido padrinho do casamento, interveio, acalmando tudo:

- Isso não é nada; deixem-se de aflição, de barulho, de agonia. É uma enxaqueca sem importância, que se trata em uma hora. O essencial é o repouso.

E para D. Tereza:

- Dê-lhe uma cápsula de aspirina, e deixem-no descansar um pouco. Dentro de uma hora, estará bom. O que é indispensável, é que ele descanse, repouse, fique à vontade.

E dando, ele próprio, o exemplo, tomou o chapéu, despediu-se dos recém-casados, e retirou-se, sendo acompanhado, nisso, pelos outros convidados.

Esvaziada a sala, o noivo tomou a cápsula recomendada, e, despedindo-se da tia, recolheu-se, com a noiva, à alcova nupcial.

Meia hora depois, toda a casa entrava em sossego. O silêncio era absoluto. Criados, parentes, plantas e cristais, tudo adormecera, num grande sono de fadiga. No meio de tudo, entretanto, um coração aflito velava. Era D. Tereza. Como estaria o Zéca? Teria melhorado? Estaria, já, fora de perigo? E como se as coisas, em torno, não respondessem satisfatoriamente à sua consulta; levantou-se do leito, e, pé ante pé, encaminhou-se para o quarto dos noivos. Chegada à porta, aplicou, de leve, o ouvido à tábua e, com a voz doce, medrosa, maternal, chamou, para dentro:

- Zéquinha?... Zéquinha?... E, com doçura:

- A cabeça passou, meu filho?

O silêncio, no quarto, era completo, perfeito; absoluto. Ninguém respondeu. Com o seu coração de mãe, D. Tereza compreendeu tudo, e soltou um suspiro de alívio. O Zéquinha estava bom. A cabeça, com certeza, havia passado...