XCI
OS COLCHETES
2 de outubro
Eram cinco horas da tarde, quando, fechado o escritório, o Dr. Godofredo entrou no seu palacete do Flamengo, para levar a mulher a passeio. Enveredando pela casa com a sua liberdade de marido jovem, foi ele encontrar a encantadora senhora de pé, diante do "psyché", recebendo os últimos retoques no seu vestido novo, pronta para sair. Ajoelhada no tapete de pelúcia cor de ouro, a costureira, a boca repleta de alfinetes, pregava aqui, repregava ali, endireitava acolá, ajustando, como o artista ao seu quadro, as últimas curvas, as últimas ondulações da fazenda naquela maravilhosa estátua de carne.
Sentando-se no canapé do quarto de "toilette", o moço olhava, em silêncio, a meticulosidade da costureira, a perfeição do seu trabalho e a paciência do seu modelo, quando, diante daqueles toques e retoques infindáveis, lhe aflorou à boca uma observação:
- Silvia, dizes-me uma coisa?
- Que é? - atendeu a moça, sem voltar-se, com os olhos no espelho.
- Por que é que os vestidos das mulheres, em geral, abotoam para trás?
A costureira riu, cuspindo os alfinetes na mão, estranhando a pergunta; a estátua que ela retocava apressou-se, porém, em explicar-lhe o caso, sorrindo-lhe pelo cristal do "psyché".
- Você, então, não sabe?
E explicou:
- O momento mais glorioso da vida da uma mulher, é aquele em que ela se prepara para sair. Diante do espelho, refletindo-se na lâmina lisonjeira, ela se glorifica a si mesma, olhando-se, mirando-se, namorando-se. Antes de agradar aos outros, ela quer agradar-se a si mesma; e daí as horas que passa diante do espelho, mirando-se, remirando-se, quando lhe seria mais vantajoso estar na rua, no salão, no passeio, recebendo ou fazendo visitas, para ser vista, louvada, admirada.
E depois de uma pausa, forçada por uma recomendação à costureira:
- Com essa paixão por si mesma, pelas suas "toilettes", pelo namoro da sua própria figura, a mulher não poderia admitir, evidentemente, que, ao ir vestir-se, outra mulher se pusesse entre ela e o espelho, para abotoá-la. Seriam momentos de auto-contemplação que ela perderia, e que ela evitou, relegando para trás os botões, os colchetes, os alfinetes, as pressões, e, com eles, a costureira, que deixa de lhes fazer sombra diante do espelho.
Horas depois regressavam os dois do passeio, durante o qual o jovem advogado estivera a meditar sobre a vaidade feminina, refletindo sobre o que lhe dissera a esposa em relação à origem do feitio dos vestidos, quando compreendeu que era mentira tudo quanto ela, à tarde, lhe contara. Foi quando a mulher, preguiçosa e risonha, lhe voltou as costas. pedindo:
- Desabotoa aqui?
A origem daquele costume era, positivamente, aquela. As mulheres puseram os colchetes e pressões dos vestidos para trás, unicamente para os maridos lhes beijarem as espáduas...
XCII
O VESTIDO
4 de outubro
Uma das minhas primeiras crônicas nesta folha, há três ou quatro anos, versou, se bem me lembro, sobre o milagre realizado por certas senhoras elegantes, as quais, tendo recebido do esposo um simples corte de seda, conseguem fazer com ele, por processos que só dias conhecem, quatro ou cinco vestidos de cores diferentes. Os esposos que ignoram, em absoluto, esses curiosos fenômenos de química, fecham os olhos, inteiramente, a todos os prodígios desse gênero; outros querem, porém, apoderar-se do segredo, e o resultado é tentarem obtê-lo à força, esgaravatando a esposa com uma faca ou, o que é menos bárbaro, com uma bala de revólver.
Deste último gênero, fiscalizando a mulher como quem fiscaliza uma fronteira ameaçada era, felizmente ou infelizmente, o Dr. Cantidiano de Sampaio Gutterres, figura tão conhecida no foro da cidade, e, principalmente, nas altas rodas mundanas. Chefe de família exemplaríssimo, o notável advogado não admitia que lhe entrasse em casa, sequer, um alfinete, sem o seu consentimento. As compras, as mais insignificantes, era ele quem as fazia pessoalmente, e isso, menos pelo temor de ser enganado no preço dos objetos adquiridos do que pelo programa, que se traçara, de tomar conhecimento de tudo que lhe entrasse no lar.
Desse cuidado do ilustre advogado, dá idéia, para honra sua, o episódio que lhe ia perturbando, há poucos dias, a vida doméstica, depois de doze anos de casado. O Dr. Gutterres havia comprado para a mulher, há um mês antes de partir para São Paulo, um vestido de seda verde, de uma que esteve em moda, no máximo, oito dias. De regresso, ao entrar em casa, sem ser esperado, encontrou-se, na escada, com a esposa, que vestia uma "toilette" nova, e, essa, amarela, gema-d'ovo, e sobretudo, riquíssima. Ao defrontarem-se, ficaram, os dois, mais amarelos do que o vestido.
- Que quer dizer isto, senhora? - trovejou o esposo, crispando os dedos, de cólera.
D. Antonieta encarou-o, sem dizer palavra.
- Que significa este luxo, na minha ausência? - tornou, terrível, o marido. - Quem lhe deu esse vestido?
- Foi você... - sussurrou a pobre senhora, tremelicando o beicito vermelho de "rouge".
- Eu? O vestido que eu lhe dei, então, não era verde? Como é que, agora, a senhora se apresenta com um vestido amarelo?
Ao cérebro da moça acorreu, de súbito, uma idéia, que fugiu logo, deixando apenas o rastro. Os olhos brilharam-lhe, vivos, úmidos, penetrantes, numa floração de luz, tornando-a mais jovem, mais fresca, mais linda.
- Era... - confirmou a moça
O marido encarou-a, esperando a confissão abominável. O rosto de dona Antonieta irradiou, de repente, no anúncio de uma surpresa, que podia ser um sorriso, ou uma lágrima.
- Era verde, sim... tornou, baixando os olhos: - mas...
E, perturbadíssima, sem encontrar outra saída:
- Amadureceu, Cantidiano...
XCIII
CONVENIENTES DO CIÚME
7 de outubro
Com a sua perspicácia de mulher inteligentíssima e original, Ninon de Lenclos recomendava aos maridos que se não mostrassem ciumentos sem um motivo claro, seguro, evidente, para a manifestação de tal sentimento. "Não é com suspeitas - afirmava ela, - não é com suspeitas que se fortalece a fidelidade da mulher". E acrescentava, experiente: "Uma injúria tal, longe de a prender, enfraquece-a, familiarizando-a com sentimentos cuja só idéia devia parecer-lhe um crime. Acreditar na sua inconstância, faz com que ela se acostume a encará-la como possível, a aproximar-se mais dela. Isso só pode contribuir para que a mulher acredite ser a fidelidade um mérito, quando somente devia ser um dever."
Essas observações endereçadas a todos os maridos injustificadamente ciumentos, faziam parte, já, do meu cabedal de experiência, fornecida por um incidente que, há meses, profundamente me impressionou.
Senhora de uma formosura incomum, D. Colete abandonou o marido, arrastada pela violência do coração. Esse gesto, que poderia tê-la conduzido à miséria, à lama, à vergonha, levou-a, pelo contrário, ao esplendor e à felicidade. O jovem capitalista que a recebera nos braços na sua queda, era considerado, e merecidamente, o homem mais rico da capital. E era a fortuna e o coração desse homem generoso, nobre, cavalheiresco, que ela via a seus pés, derretidos numa chuva de ouro, como aquela com que Júpiter fecundou, na torre de Argos, a desditosa mãe de Perseu.
Robusto, moço e riquíssimo, o ilustre capitalista não tinha motivos para temer um competidor. O seu orgulho, a consciência da sua própria situação econômica, deviam conservá-lo muito alto, acima de quaisquer temores. O coração que lhe batia no peito era, porém, medroso, covarde, infantil, e foi dominado por essa fraqueza que ele chegou, uma vez, a confessar o seu susto, dizendo à mulher amada, com o rosto nas mãos:
- Tu não imaginas, Colete, o que tem sido a minha vida, depois que vivemos juntos. Eu tenho por ti uma paixão desesperada. A minha fortuna, a minha vida, o meu destino estão nas tuas mãos. Dou-te, como tens visto, o que desejas, e dar-te-ia mais, se m'o pedisses. A minha felicidade é, entretanto, perturbada por um temor permanente: temor de que me deixes, susto de que me abandones, receio de que te apaixones por outro, deixando a minha companhia!
A essas palavras, tão sinceras, arrancadas do coração, a rapariga franziu a testa modelar, coroada de cabelos dourados, como quem acaba de ouvir uma novidade surpreendente. Com os cotovelos de mármore fincados na mesa de jantar, e com o rostinho de boneca, muito claro e muito lindo, pousado nas mãos de seda a sua fisionomia denunciava uma grave preocupação. De repente, a testa se lhe vincou ainda mais, e uma pergunta aflorou, franca, ingênua, encantadora de naturalidade, na sua boquita vermelha:
- Há, então, no Rio, outro homem mais rico do que tu?
E, intrigada, de si para si:
- Quem será?
XCIV
MIOPIA
10 de outubro
Uma das graças que eu devo ao Supremo Arquiteto do Universo é haver me dotado de vista excelente. Até os sessenta e cinco anos eu recusei aos olhos, sempre, qualquer auxílio artificial, vindo a capitular, apenas, há seis, quando tive de recorrer à piedade ótica de um monóculo providencial. Um aparelho visual perfeito vale por uma benção do céu; e deve levantar as mãos, rendendo-lhe o culto do seu coração, todo homem, velho ou moço, que tem a luz suficiente para enxergar, de noite ou de dia, os perigosos buracos do mundo.
Não era assim, infelizmente, o meu saudoso amigo Vieira Cardoso, a quem a magnanimidade do imperador concedeu, mais tarde, o titulo de visconde de Guaxupé.
Vieira Cardoso, que foi duas vezes ministro na Monarquia, era, talvez, o homem mais míope de todo o Brasil. Usava grau três, reforçado, e, tirando o pince-nez, era capaz de confundir um ovo com um prego e de comer o prato em lugar da lingüiça. Ele era, mesmo, tão curto dos olhos, que muitas vezes se surpreendeu, ele próprio, batalhando nas fileiras do partido contrário, vitorioso na véspera, na suposição de que estava, ainda, ao lado dos seus correligionários derrotados. O fruto desse defeito colheu-o ele, entretanto, nos limites do lar, em um incidente que ele mesmo, um dia, me contou.
Era o visconde ministro da Justiça, no gabinete Tamandaré, quando, certa manhã, entrou na sua sala de trabalho, em sua própria residência, uma senhora encantadora, que lhe ia pedir, como as esposas de hoje, um emprego para o marido. Cabeça baixa, olhos e nariz no papel, estudava o ministro um dos processos que lhe eram submetidos a despacho, quando, insensivelmente, estendeu o braço, alcançando a dama pela cintura. Com a brutalidade da surpresa, a moça não abriu, sequer, a boca; e nem lhe era isso possível, porque, quando quis protestar, estava, já, com os lábios grossos do visconde grudados, como ostra em rochedo, nos seus polpudos lábios famintos!
Nesse momento, porém, abre-se, ao fundo, a porta do gabinete, e surge, com a cólera faiscando nos olhos, o vulto da viscondessa.
- Sr. visconde, que é isso? - exclamou, rubra, a esposa do ministro.
A essa voz, a aventureira, de um salto, ganhou a porta fronteira, desaparecendo sob o reposteiro solferino. Boquiaberto, o visconde deixou-se ficar sentado, com os braços estendidos. Ouvindo, porém, de novo as palavras indignadas da esposa, estranhou, aflito, pondo-se de pé:
- Então, não era Vossa Excelência, Sra. viscondessa? Não era Vossa Excelência que estava aqui, a meu lado?
E, tateando na mesa, procurando, com os dedos trêmulos, o pince-nez, lamentou, batendo na testa, com a mão espalmada:
- Maldita miopia!... Maldita miopia!...
E escanchou a bicicleta no nariz.
XCV
O SAPATEIRO
14 de outubro
Sempre que as mulheres realizam uma nova conquista política, obtendo novos lugares, novos postos de relevo na vida civil, surgem de toda a parte os argumentos sobre a sua suposta inferioridade mental, como se fosse possível contestar com teorias aquilo que é contrariado pela evidencia incontrastável dos fatos. Forte, ou fraca, auxiliada pelos deuses ou pelo demônio, o certo é que a mulher se tem manifestado, por mais de uma vez, superior ao homem, pela agudeza, pela perspicácia, e, não menos, pelo bom senso com que resolve determinados problemas da vida.
Um caso que me vem à memória toda a vez que se levantam discussões sobre essa matéria debatidíssima, é o que ocorreu, há anos, em Baixa Verde, localidade sertaneja do Rio Grande do Norte, e que me foi contado, há seis ou oito anos, no Senado, pelo atual ministro da Marinha, o ilustre Sr. desembargador Ferreira Chaves.
Andava o Sr. Manoel Lourenço pelos quarenta anos de vida, dos quais vinte e cinco haviam sido consumidos em calçar de chinela e tamancos a décima parte da população local, quando lhe apareceu na oficina, para encomendar um sapatinho de cordavão, a risonha Clotildinha, meninota de quatorze anos, mais ou menos, pertencente a uma família modesta, mas honrada, residente no lugar. Respeitoso, o Manoel Lourenço ajoelhou-se no chão, marcou no tijolo, com dois riscos de faca, o tamanho do pé, apanhou-lhe a altura com uma tira de papel dobrado, e, não sabe como, ao erguer-se, estava inteiramente transfigurado de coração.
À noite, o pobre sapateiro não pode dormir. Mal fechava os olhos, e surgia-lhe no pensamento a perna morena da Clotildinha, a emergir do mistério da saia curta, de chita encamada, como se fosse o caule duplo de uma rosa em botão, cujo perfume lhe ficava eternamente vedado. E tanto o mísero se preocupou, aflito, com o caso, que, um mês depois, estavam casados, com todos os sacramentos e todas as bênçãos, a menina e o sapateiro da Baixa Verde.
Só depois de casado, porém, foi que o Sr. Manoel Lourenço verificou a barbaridade que cometera. Menina ainda, a Clotildinha podia ser, pela sua idade, pelas suas maneiras e, principalmente, pelo seu físico, sua filha e, até - quem sabe? - sua neta. E era pensando nisso que a mantinha a seu lado carinhosamente, paternalmente, tratando-a como quem trata uma criança.
Quem não gostava desses modos era, porém, a Clotildinha. O Manoel Lourenço tinha ido buscá-la à casa materna para mulher, para companheira, para sócia da sua vida e do seu destino, era natural, portanto, que a tratasse como tal, fazendo-lhe participar da existência em comum, e, até, dos negócios comerciais da sua oficina.
Certa manhã, havia o Manoel Lourenço acordado cedo e, como de costume, chamou a menina, ordenando-lhe que se sentasse a seu lado, na beira da rede, para conversarem. A moça sentou-se, e conversavam os dois, como pai e filha, com os olhos pregados no teto, quando viram, de repente, correr um camundongo, um ratinho de meia polegada, o qual, passando entre os caibros e as telhas, se foi perder, em cima, nos buracos da cumeeira. Ao ver o rato, Clotildinha virou-se, de súbito, para o marido, e pediu, dengosa:
- Sabes, Manoel, que é que eu queria?
- Que é? - indagou o esposo, divertindo-se com aquela alegria.
- Eu queria que tu matasses aquele rato e fizesses um par de sapatos para mim!
O sapateiro achou graça na infantilidade da moça, e retrucou, rindo:
- Que tolice, Clotilde! tu não vês que o couro daquele camundongo não dá para um par de sapatos?
A moça encarou-o com as faces em brasa, e, pondo a cabeça no seu peito, gemeu, na ânsia de possuir o seu sapato:
- Dá, Manoel, dá!
E ao seu ouvido, com a voz tremula:
- Olha, Manoel, o couro... espicha!
E abraçou-o, chorando.
XCVI
ENTRE OS PAPUAS
17 de outubro
Um dos maiores sonhos da minha infancia era atravessar a vida viajando. As aventuras do "Guliver" de Swift; o "Rocambole", de Ponson, e as fantasias de Júlio Verne, cuja primeira obra me foi oferecida no dia do meu 14° aniversário, exerceram tamanha influência sobre o meu ânimo, que eu não pensava, na adolescência, senão naquelas viagens maravilhosas. Homem feito, abracei a carreira que mais se coadunava com as minhas aspirações de criança; e, como a vida fosse curta para tanto projeto desordenado, é com verdadeira alegria que os completo hoje, mentalmente, ouvindo, aqui e ali, onde os deparo, a palestra dos amigos mais viajados do que eu.
Uma destas noites, após o jantar elegantíssimo com que o desembargador Corrêa da Cunha festejou o regresso do comendador Adeodato de Barros, que voltava da sua última excursão às índias e à Oceania, tive eu um dos momentos mais felizes da minha vida, ouvindo a história desse passeio de milionário, o qual durou, como é sabido, cerca de três anos e meio. Com a sua palavra viva, segura, concisa, narrava o soberbo capitalista os episódios mais interessantes, quando, em certo momento, se voltou para as senhoras, explicando:
- O costume mais curioso que eu encontrei foi, porém, o dos indígenas das Molucas, entre os quais me demorei algum tempo.
As senhoras voltaram-se, interessadas, e o comendador começou, mexendo, pausadamente, com uma colherinha de prata, a sua taça de vinho com água e açúcar:
- Entre os papúas, o casamento é inteiramente livre. Adeptos da poligamia, como o são, em geral, os povos brutalizados, esses indígenas permitem que o homem tome, e sustente, as mulheres que bem entenda. Uma exigência é, no entanto, feita a quantos se queiram prevalecer dessa faculdade: cada casamento que o indivíduo contrai é selado com uma cerimônia bárbara, que consiste em arrancar um dente aos esposos. Ao contrário do que sucedia a certos povos antigos, entre os quais o contrato nupcial era selado com a incisão em duas veias do braço, para que o sangue dos noivos se misturasse, os papúas exigem esse sacrifício dos dentes, de modo que o beijo de núpcias é um beijo sangrento em que se confunde, num pacto horrendo, que é um símbolo da união na vida, o sangue dos nubentes.
- Que horror! - observou Mme. Schwartz, fazendo uma careta.
- Que bárbaros! - reforçou Mlle. Toledo Gomide, repetindo o mesmo gesto de nojo.
As outras senhoras comentavam esse costume dos indígenas com a mesma indignação incontida, quando Mme. Corrêa Gomes indagou, curiosa:
- Quanto tempo o comendador passou entre essas feras?
- Um ano, minha senhora.
- Sem se afastar deles?
- Não, senhora. Saí duas vezes, para ir a Amboine, capital do arquipélago.
Passado um instante, explicou, distraído:
- Mas demorei-me pouco longe deles. Fui apenas concertar a dentadura...
E continuou a mastigar, forte, com todos os dentes.
XCVII
AS "MENINAS"
19 de outubro
Há páginas de literatura tão de acordo com a verdade, com as lições severas e surpreendentes da vida, que a gente se fica, às vezes, a pensar horas e horas em semelhante duplicidade. Essa curiosa surpresa tenho-a eu tido de vez em quando, e tive-a ontem, mais uma vez, após uma leitura meticulosa da viagem feita por Stendhal à Suíça no ano de 1821.
Os jornais do Rio de janeiro aparecem, como é sabido, cheios, diariamente, de notícias de roubos, de assaltos audaciosos, à luz do dia ou no silêncio da noite, à propriedade alheia. Não se abre nesta capital uma folha da manhã, ou da tarde, sem encontrar a descrição da escalada de um muro ou de uma janela, por um dos numerosos ladrões que perturbam, zombando da policia, o sossego da cidade.
- É uma calamidade, conselheiro! - dizia-me, na tarde de ontem rumo da sua casa, onde íamos jantar com as suas Exmas filhas, o comendador Fulgêncio Gadelha da Cunha. - Raro é o mês em que me não penetra um gatuno no quintal, carregando-me com as galinhas, com os vasos de planta, com a roupa do tanque, enfim, com tudo que lhe fica ao alcance. Já não sei mais o que faça!
- O comendador não tem cachorros no quintal? - indaguei, penalizado daquela queixa.
O velho comerciante virou-se para mim e protestou, sacudindo a cabeça:
- Eu? Não!
- Pois, olhe, - insisti; - se o senhor tivesse um ou dois cachorrões de raça, desses cães de guarda destinados a defender as habitações, ninguém lhe penetraria, sequer, no jardim, fora de horas.
- Deveras? - tornou o velho.
Eu confirmei, e ouvi, com espanto, esta resposta absolutamente inesperada:
- Nesse caso, não os quero.
- Nos os quer? - estranhei, arregalando os olhos[.
- Absolutamente. Porque, se eu puser cachorros no quintal...
E concluiu, ao meu ouvido, rindo, e piscando um olho:
- As meninas... não se casam!
Nesse momento penetrávamos, os dois, no jardim da casa, onde uns pedreiros haviam deixado, por esquecimento, há seis meses, uma escada encostada ao prédio, ao lado, exatamente, da janela das "meninas"...
XCVIII
ELAS...
23 de outubro
O relógio da igreja próxima havia acabado de anunciar as dez horas da manhã quando a encantadora mundana Suzete Latour penetrou, nervosa e célere, na risonha "garçonniére" do jovem advogado Silvestre Lobato, que envergava, ainda, àquela hora, o seu felpudo roupão de banho.
- Isto é certo? - indagou a rapariga, estendendo-lhe um jornal com a mão esquerda, enquanto atirava para uma cadeira, com a direita, o seu lindo chapéu de palha da Itália, florido como uma campina pela primavera.
A notícia do jornal era, nada mais, nada menos, do que o noivado do ilustre bacharel com uma senhorita de família distintíssima, chegada recentemente de São Paulo. Sem tocar na folha que a amante lhe estendia, o rapaz respondeu, simplesmente, acendendo um cigarro:
- É.
Essa resposta fria, seca, brutal, desnorteara Suzete. Aquela afirmativa, embora esperada, fora, para ela, um golpe no coração. Fulminada por esse monossílabo, a rapariga segurou-se ao espelho da cama, para não cair. De súbito, porém, subiu-lhe ao rosto uma onda de sangue, e foi vermelha, rubra de cólera, com os olhos brilhantes e os dentes cerrados, que ela, amassando na mão o jornal, rugiu, num desespero de leoa ferida:
- São assim, os homens! Nascem, dizem eles, para o amor, para sorverem, altivos e alegres, todos os gozos da vida. Encontram no seu caminho uma mulher cheia do mesmo sentimento, disposta a conceder-lhes tudo, tudo, tudo, para que eles experimentem, até o êxtase, a glória de viver. Com a alma ardente, ela entrega-se a eles; dando-lhes venturas que eles nunca sonharam, oferecendo-lhes a taça do prazer, da alegria, da felicidade livre, para que a esvaziem, até o último gole. E, no entanto, eles têm vergonha, têm nojo, têm asco dessa mulher, preferindo, a ela, que não esconde os ardores do seu sangue nem os ímpetos do seu coração, a mulher-mentira, a mulher-falsidade, a mulher-simulação, que lhes não entrega nem a alma, nem o corpo, em obediência, unicamente, a preconceitos, a exigências sociais! À mulher que afronta a sociedade, fiel ao seu temperamento preferem eles, covardes diante do mundo, aquelas que não têm coragem para vencer, para atirar longe, em nome do seu amor, a grilheta das conveniências!...
Cabisbaixo, olhos pregados no tapete semeado de flores de seda, o rapaz ouvia, sem um protesto, a explosão daquele cofre de jóias malditas, daquela criatura venenosa, mas admirável, que o guiava, há três anos, pelo complexo labirinto da vida boêmia. E a rapariga continuava a andar, agitada, de um lado para outro do compartimento, passando, nervosa, as mãos finas, alvas, esguias, pelos finos cabelos dourados:
- É bom, mesmo, que eu seja punida. A virtude, para os homens, é a falsidade, é a simulação, é a mentira. Eles não sabem que o amor é incompatível com o pudor, com o receio, com o respeito às convenções, e que ele está, só ele, acima da vida e acima da morte!
E, numa onda de soluços mal sufocados, crispando os dedos:
- Infelizes! Buscam o amor, e onde o encontram, puro e selvagem, fogem dele! Procuram a sinceridade, a lealdade feminina, a mulher que não mente, nem com a sua boca, nem com o seu coração, nem com a sua carne, e, quando querem amparar diante da lei uma criatura, vão buscar aquela que menos conhecem, sem imaginar que a timidez é, nas mulheres, um cálculo, e sem se lembrarem que as mulheres que amam não calculam nem pensam!...
Arrebatada pelas próprias palavras, Suzete limpou os olhos no lencinho de seda, já ensopado de lágrimas, e, na mesma agitação, tomou o chapéu, disposta a partir.
- É a última vez, sabes? nunca mais me verás no teu caminho. Adeus!
E ia já no rumo da porta, quando ouviu uma voz, que era um gemido:
- Suzete!...
A rapariga voltou-se, imperativa. Sentado na cama, com o rosto molhado de pranto, o rapaz a fitava, olhos implorantes, braços estendidos. Ela fixou-o, severa, e ouviu, então, esta súplica, ou, melhor, este soluço, que era uma capitulação para a vida e para a morte:
- Suzete... Fica!...
XCIX
BARBA DE BODE
26 de outubro
Foi recolhida, segunda-feira última, no Hospício Nacional, vítima de uma erva erroneamente receitada por um herbanário dos subúrbios, a encantadora senhorita Carmélia Passos, filha única e inteligentíssima da viúva Carlota Passos, proprietária nesta capital.
Eu desconhecia ainda este caso, e já aplaudia com todo o meu coração a atitude da Saúde Pública, perseguindo, punindo, combatendo com as armas da lei a praga dos curandeiros. E aplaudia-a com a lembrança, apenas, de um episódio doloroso, que me fora narrado, semanas antes, pelo meu prestimoso amigo o Sr. senador Elói de Souza.
O coronel Raimundo de Araújo, comerciante em Natal, capital do Rio Grande do Norte, havia entrado na casa dos sessenta anos quando, após quatorze de viuvez, entendeu de contrair novas núpcias com uma sólida moçoila de São Gonçalo. Pedida, porém, a rapariga, começaram as complicações, as dificuldades, os obstáculos e, com eles, o adiamento da cerimônia. Homem de idade avançada, sujeito, portanto, ao efeito das emoções violentas, o coronel, assim que ficou noivo, começou a declinar de forças, de coragem, de saúde, e de tal forma que, após um mês de noivado, parecia haver envelhecido dez anos. Aflito, impressionado, combalido, o abastado comerciante recorreu, e sempre inutilmente, a todos os médicos da cidade. E já estava quase desiludido da cura e da vida, quando um seu compadre, o capitão Ferreira, tabelião aposentado, a quem participara a sua infelicidade, lhe perguntou, interessado:
- O compadre já usou chá de barba de bode?
- Barba de bode? - indagou o outro, espantado.
- Sim. Pega-se todo o dia um punhado de barba de bode, faz-se um chá bem forte, e toma-se três vezes por dia.
E acentuou, sincero:
- É um santo remédio, compadre!
Animado com a nova esperança; o coronel Araújo mandou chamar à sua casa de negócio um caboclo de Currais Novos, o Antônio Severo, grande criador de caprinos naquela parte do sertão, e, sem lhe dizer para que era a encomenda, pediu que lhe mandasse na primeira oportunidade, e a qualquer preço, um saco com barbas de bode.
- Que quantidade, coronéo? - indagou o sertanejo.
- Uns dez quilos.
Duas semanas depois recebia o coronel Araújo a sua encomenda, entrando, de pronto, no uso da medicina receitada. À medida, porém, que tomava o chá, sentia efeitos exatamente opostos àquele que esperava: uma vontade doida de chorar, de berrar, de bodejar lamentosamente, e, sobretudo, um desejo irresistível de fugir às mulheres. No fim de um mês, a situação do enfermo era, mesmo, desesperadora: magro, nervoso, espumando pelo canto da boca, passava as noites na rua, encostando-se às paredes, às arvores, às pedras das estradas, nas proximidades do porto, do mercado e do quartel, e em estado tal de desmoralização que os amigos, penalizados com a sua infelicidade, tiveram de mandá-lo internar, com recomendações especiais do Dr. Ferreira Chaves, então governador do Estado, em uma casa de saúde de Pernambuco!
Esse desfecho de uma vida honrada e laboriosa impressionou, como era natural, o meio em que vivia o conhecido negociante. Quem, entretanto, mais pensava naquele infortúnio era o seu compadre Ferreira, autor da receita. Preocupado com o caso, e sem encontrar para ele uma explicação aceitável, ia o velho tabelião um dia pela praça do mercado quando sentiu, de repente, uma pancada no ombro. Era o Antônio Severo, de Currais Novos, que havia chegado naquele dia com uma partida de couros. A figura do sertanejo avivou-lhe, naquele momento, uma lembrança; e como esta fosse teimosa, forte, renitente, o velho Ferreira não se conteve, e indagou:
- Diga-me uma coisa, Severo: o coronel Araújo não lhe fez, quando você esteve aqui da última vez, uma encomenda de barba de bode?
- Fez, sim, senhor; e eu mandei, logo que cheguei lá.
- E você tem certeza de que era, mesmo, barba de bode?
Ante essa insistência, o matuto sorriu, cuspiu longe, por entre os dentes, e, com a sua vozinha de ingênuo e de esperto, confessou:
- Home, "seu" capitão, garantir eu não garanto. O coronéo me encomendou, é verdade, dez quilos de barba de bode. Mas porém, onde eu ia achar bode p'ra tanta barba? E como pensei que desse tudo na mesma coisa, mandei mesmo de cabra!
C
O TRIUNFADOR
31 de outubro
O ano de 1940 decorre tranqüilo e próspero na cidade do Rio de Janeiro. As festas do Centenário, celebradas em 1922, legaram à metrópole dos cariocas uma grande série de melhoramentos, que a tornaram a capital mais formosa do mundo. A Avenida da Independência, aberta a cães e o antigo Campo de Sant'Ana, fulge ao sol, soberba e larga, com os seus prédios monumentais, de doze a vinte andares. Inaugurados, há quinze anos, o carros elétricos da Empresa Aérea de Transportes atravessam o espaço em todas as direções, indo, em poucos minutos, do alto da Gávea à fortaleza de Santa Cruz, à semelhança de insetos monstruosos que voassem, rápidos, ligados pelas antenas a invisíveis fios de arame. Das estações do Pão de Açúcar, do Corcovado, de Santa Teresa, da Babilônia, levantam vôo a todo instante aerobus enormes, que fazem o serviço para Petrópolis, para Teresópolis, para Friburgo, para Minas, para São Paulo e para as ilhas, de bordo dos quais se agitam lenços esvoaçantes, de pessoas que se despedem saudosas, de parentes ou amigos que lhes dizem adeus do terraço dos grandes edifícios.
Em baixo, na Avenida da Independência, a estátua de Epitácio Pessoa faisca, monumental. Vendedores de jornais, montando pequenos veículos de duas rodas, apregoam, alto, as novidades do dia, entre as quais avulta a notícia de que o Loyd, nesse ano, não deu "deficit". As ruas, as praças, as avenidas, e o próprio espaço, fervilham de passeantes e de veículos, quando um guarda civil do serviço aéreo anuncia, pelo telefone sem fio a aproximação de um aeroplano esquisito e de marcha retardada, que procede do Sul.
Afixados os cartazes elétricos no alto dos morros, os transeuntes elegantes retiram os binóculos da cintura, afixam-nos na direção indicada, esperando o viajante desconhecido. Será um selenita, um dos misteriosos habitantes da Lua? Será um emissário de Marte? Nariz para o ar, chapéu na mão, os cariocas acompanham a marcha do gafanhoto de aço, que desce, aos poucos, trepidando e zumbindo, até pousar, em frente ao Club Revolucionário Maurício de Lacerda, na praça Carlos Sampaio, onde era antigamente o morro do Castelo. Curiosa, a população precipita-se, correndo e voando, naquele rumo, para ver o recém-chegado, que salta com dificuldade do seu aparelho. É um ancião alto, magro, de cabeça alva, e com uma barba de neve que lhe desce, abundante, até o estômago.
Admirado, olha ele para um lado e outro, como a perguntar-se a si mesmo se não terá errado o caminho, quando um cavalheiro idoso o encara, e recua. E um grito de entusiasmo estruge, reboa, troveja, abalando a cidade.
- De Lamare! De Lamare!
É De Lamare que regressa, vitorioso, do "raid" a Buenos Aires!...
CI
A CORNUCÓPIA
1° de novembro
O Gabrielzinho havia regressado da rua intrigadíssimo com aquela novidade. Por que motivo, realmente, a prosperidade havia de ser simbolizada sempre por um chifre repleto de moedas, que uma mulher despejava de cima, com o sorriso nos lábios? Que significaria aquele anúncio berrante da casa de loterias, no qual se via a Fortuna a derramar o ouro da sua cornucópia sobre a cabeça irrequieta dos homens? Ingênuo, puro, infantil, o seu primeiro cuidado, ao chegar em casa, foi perguntar ao velho Gabriel:
- Papai, por que é que a Fortuna é representada, sempre, com um chifre na mão?
O honrado comerciante coçou a calva, atrapalhado, mas D. Lavínia o tirou da dificuldade, insistindo:
- Responde, Gabriel! Você não tem lá dentro um livrinho que trata dessas coisas? Essa figura, como ele diz, representa, mesmo, a Fortuna. Se você duvida, veja o livro.
- É verdade! - exclamou o velho. - Aquele livro deve dar.
E, indo buscar um volume, pequeno, miúdo, edição popular, do "Dicionário da Fábula", de Chompré, tradução portuguesa, leu, alto, à pag. 165:
- "FORTUNA -, deusa que preside ao bem e ao mal."
- Não é aqui, - acrescentou.
Folheou para trás, e tornou a ler, à pag. 4:
- "ABUNDÂNCIA - divindade alegórica que se representa na figura de uma donzela no meio de todo o gênero de bens, grossa de carnes, com vivas cores, e tendo na mão um corno cheio de flores e frutos. Dizem ser filha de Acheres ou da cabra Amaltéa."
Folheou para a frente, e continuou, à pagina 31:
- "AMALTÉA - É o nome da cabra que deu leite a Júpiter. Em reconhecimento deste bom serviço, ele a colocou, com dois cabritos, seus filhos, no céu, e deu um dos seus cornos às ninfas que cuidaram dele desde a sua infância, com a virtude de produzir quanto elas apetecessem. Chamava-se-lhe o "Corno da Abundância".
Terminada a leitura, D. Lavínia observou, teimosa:
- Então, é ou não é?
- O que? - indagaram, ao mesmo tempo, o pai e o filho.
- O chifre, nas mãos de uma mulher, é, ou não é, o símbolo da Fartura?
Os dois calaram-se, e D. Lavínia continuou, ingênua, na sua honestidade:
- Eu, que digo, é porque sei.
E, simples, boa, cândida na sua virtude. recomeçando o seu "crochet":
- Eu estou cansada de dizer a teu pai...
CII
O MILAGRE DE S. BENEDITO
2 de novembro
O corpo da pobre lavadeira Maria Jovita havia sido levado, na véspera, para o cemitério, por um carro mortuário da Santa Casa, deixando ali, naquela situação aflitiva, aquela pretinha de cinco anos, herdeira triste, e inocente, da sua cor e do seu destino. Atirada para o corredor do casarão, a pequenita passara uma noite encostada à parede, agasalhando-se como lhe era possível nos farrapos da camisinha de riscado grosseiro; uma vizinha de quarto condoeu-se, porém, da sua sorte, sendo a pretinha recolhida, então, por misericórdia, como um cão sem préstimo que se apanhasse piedosamente na rua.
Dois dias após a sua orfandade, era o dia dos mortos, como o de hoje. E como toda a gente, na casa de cômodos, se encaminhasse para o cemitério, em visita aos seus defuntos não esquecidos, a pequenita Carlota acompanhou-os, ferindo os pés descalços no pedroiço do calçamento, e recebendo na carapinha descoberta, enroscada no couro da cabeça, toda a inclemência daquele horrível sol de verão. Chegada ao cemitério, perguntou a negrinha, medrosa:
- Onde está minha mãe?
As pessoas que tinham ido ao enterro da Maria Jovita indicaram-lhe um monte de terra fresca, molhada ainda, à cabeceira da qual a pequena se ajoelhou, juntando, numa prece fervente, os dois carvãozinhos das mãos. E estava ela sozinha, nessa postura, no silêncio daquela quadra abandonada, destinada aos humildes, aos desamparados, aos náufragos da vida e da morte, quando ouviu uma voz, que a chamava:
- Carlotinha?
A pretinha voltou-se, espantada, e sorriu, enxugando os olhos úmidos com as costas das mãozinhas encarvoadas: atrás dela, sorrindo-lhe com bondade, com doçura, com meiguice, estava, em ponto grande, do tamanho de uma pessoa, com a mesma cor, a mesma aureola e o mesmo burel, a imagem do senhor São Benedito, que sua mãe, quando viva, possuía no quarto, no oratório de uma pequena caixa de papelão!
- Meu São Benedito!... - gemeu a pequena, atirando-se ao solo, e beijando-lhe, comovida, a fímbria do manto escuro.
E ia juntar as mãos para rezar, quando o santo lhe ordenou, paternal:
- Carlotinha, junta estas pedras.
A pretinha arrepanhou quanto pôde as pontas do vestidinho roto, e pôs-se a apanhar, um por um, os seixos miúdos que havia pelo chão, entre as sepulturas sem nome. E assim que enchia o regaço, despejava os calhaus, a mandado do santo, sobre o monte de terra que assinalava, naquele oceano de túmulos, o lugar em que sua pobre mãe dormia para sempre.
De repente, cansadinha já daquela faina, a pretinha ouviu chamar, de longe, pelo seu nome:
- Carlota?
E como não respondesse, de fatigada, as pessoas da casa de cômodos foram à sua procura, até que, encontrando-a, recuaram, maravilhadas.
Diante da pretinha, que orava, de joelhos, a sepultura rasa de Maria Jovita, um simples cômoro de areia, desaparecia, toda ela, sob um monte de rosas!
CIII
O LEILÃO
4 de novembro
- Um conto e duzentos! Um conto e duzentos! Dou um conto e duzentos!
Foi ao som desse pregão intempestivo que o Dr. Alfredo Camilo despertou, alta madrugada, na sua cama de casal, na alcova suavemente iluminada por uma pequenina lâmpada de cabeceira. Espantado, o ilustre médico voltou-se no leito, e percebeu que era a sua jovem esposa, a formosíssima D. Belita, que insistia, no meio de um sono agitado:
- Um conto e duzentos! Um conto e duzentos! Dou um conto e duzentos!
Sentando-se na cama, o Dr. Alfredo bateu no ombro nu da esposa, sacudindo-a, com força:
- Belitinha! Belitinha! Que é isso? Que é que tens? Acorda!
- Hein? Hein? Que é? Que é que tem? - exclamou a moça, despertando, espantada, esfregando os olhos com as mãos.
- Estás com pesadelo? - indagou o marido.
- Não; era um sonho... Por que?
- Estavas para aí fazendo leilão...
- Ahn! - exclamou a linda senhora, espreguiçando-se. - Uma extravagância... uma tolice...
- Conta! Quero saber o que era! - pediu o esposo; enciumado.
- Não vale a pena, Alfredo!
- Conta! - exigiu o Otelo.
D. Belita agasalhou, a cabecita de ouro no peito do marido, e começou a narrar, de olhos fechados:
- Eu sonhei que me achava em um mercado, não sei em que cidade, nem em que país onde estavam fazendo um leilão de homens, para maridos, os quais eram disputados por centenas de mulheres. De repente, depois de várias arrematações, levaram um rapagão alto, forte, formoso, uma verdadeira beleza, que encantou, logo, todas as pretendentes. Ao vê-lo, a Luisinha, mulher do Alonso, que também estava presente, lançou duzentos mil réis. Eu lancei trezentos. A Abigail ofereceu quinhentos. Eu cobri o lance com oitocentos, e estava oferecendo um conto e duzentos quando tu me despertaste.
Com os olhos presos na cabeça da esposa, o Dr. Alfredo ouvia, em silêncio, essa história, quando, chegada a narração ao fim, protestou, revoltado:
- Sim, senhora! Uma senhora honesta, e casada, a ter sonhos destes!...
Não convindo, porém, brigar, àquela hora, por um simples sonho, um mero fenômeno de imaginação, procurou consolar-se, indagando:
- E eu, não estava lá, não?
- Você? Não vi.
- Mas, se eu estivesse lá, as mulheres dariam uma fortuna... Não?
D. Delita sorriu, e, esfregando os olhos:
- Você?
E com desprezo, rindo:
- Como você havia lá às dúzias, a cinqüenta mil réis, e ninguém queria!
E virou-se para o outro lado, roncando...
LÂMPADAS E VENTILADORES
8 de novembro
- A resistência física da mulher, Sr. conselheiro, - dizia-me, uma destas tardes, saboreando voluptuosamente o seu sorvete de melão, o meu velho amigo o conselheiro Abelardo de Brito, a resistência física da mulher é um fenômeno que merece a atenção dos fisiologistas e, principalmente, dos psicólogos. O poder da vontade é, nelas, maravilhoso, extraordinário, formidável. Senão, observe. Há um baile na sua casa, ao qual concorrem dezenas de moças. Com o entusiasmo que lhes empresta a alegria, essas encantadoras criaturas dançam, seguidamente, continuamente, valsa sobre valsa, polca sobre polca, mazurca sobre mazurca, ou, como hoje acontece, "rag time" sobre "rag time", "fox-trot" sobre "fox-trot", tango sobre tango, maxixe sobre maxixe.
- Perdão! - interrompi. Em minha casa não se dançaria isso!
- Eu sei! eu sei! - tornou o antigo magistrado, batucando a colherinha no fundo da taça, para dissolver o sorvete. - Eu sei disso. É uma simples comparação!
E continuou:
- Na festa, enquanto se dança ninguém se fatiga. As moças rodopiam, correm, pulam, divertem-se com alarido, sem atentarem para as horas, que se passam. Às três da manhã estão ainda tão lépidas, tão dispostas, como no momento em que entraram. E assim continuam, pela festa adiante. De repente, dá-se o baile por terminado. A musica retira-se, começam as despedidas, aproximam-se, buzinando, os "landaulets" dos convidados. E é uma calamidade: as moças, que, dois minutos antes, dançavam, riam, pulavam, mal podem, agora, dar um passo! Estão todas cansadas, fatigadas, com os pés rebentados, de modo a ser necessário levá-las, uma a uma, pelo braço, para dentro dos automóveis!...
A tarde estava quente, abafada, ameaçando tempestade. Na sala da sorveteria onde tomávamos chá, os ventiladores ronronavam, como gatos, refrescando o ambiente. Lufadas ardentes, fortes, brutais, varreram, lá fora, o asfalto da Avenida. O céu escureceu, de repente, e um trovão estalou, rolando pelo céu. Nesse momento. as lâmpadas do salão, abertas àquela hora, apagaram-se todas, ao mesmo tempo que, dependendo da mesma corrente elétrica, os ventiladores foram, pouco a pouco, diminuindo a marcha, até que pararam, de todo, como aves que acabam de chegar de um grande vôo. Estranhando aquela interrupção, ao mesmo tempo, da luz, e dos aparelhos, o meu venerando amigo levantou a cabeça venerável, e sentenciou, apontando o teto:
- As moças, meu velho, são assim. Apaguem as luzes do salão em que rodopiaram sem descanso, e elas se sentirão, em seguida, como esses ventiladores, cansadas, exaustas, quase mortas!
Lá fora, no ar pesado, um novo trovão estalou. E a chuva caiu, graúda, como grãos de milho, tamborilando descompassadamente no chão.
CV
MILITARISMO
16 de novembro
O militar, por menos apegado que seja as coisas da sua profissão, acaba necessariamente se habituando com elas, identificando-se com o quartel. A influência das armas é tamanha, naqueles que a elas se votam, que se reconhece na rua, ao menor golpe de vista, mesmo quando vestido à paisana, o tenente, o capitão, o major, o coronel. Ao ver, na via publica, um oficial do Exército envergando um jaquetão ou um fraque, a impressão que se tem é de que falta alguma coisa à sua elegância. Por mais correto que ele esteja nas suas roupas apuradas, lembra-nos, sempre, um tigre metido na pele de um urso, ou um leão enfiado, por modéstia, no couro de um elefante.
E essa tirania da farda não se mostra de modo menos acentuado na fisionomia moral das suas vítimas. Absorvido pelo seu pensamento de glória, o soldado revela-se em toda a parte e em todas as circunstâncias: no calor das palestras, na energia da vontade, na severidade da vida, na intransigência das atitudes, na disciplina do porte, e, até, às vezes, no emprego do vocabulário, a que procura dar, aqui fora, as mesmas aplicações. O caso do tenente Pamphilio Godofredo de Medeiros é uma demonstração pública e policial dessa verdade.
Militar garboso, bravo, decidido, o tenente Pamphilio utilizava os dias de serenidade da pátria passeando elegantemente na Avenida, quando viu, uma tarde, em certa casa de chá, uma criatura que lhe fez acordar, tocando alvorada, todos os clarins do coração. Ousado e robusto, pôs-se, logo, em atividade, e de tal modo que, no dia seguinte, sabia já o suficiente para um vigoroso ataque aos muros da fortaleza: a dama era casada, morava à rua Voluntários da Pátria, em uma casa de portão de ferro, o qual só se abria com ordem especial do marido.
Informado de tudo isso, o tenente apareceu, no dia seguinte, diante do palacete, e espremeu, comovido, o tumor sonoro da campainha. O silêncio era absoluto na casa, e ninguém atendeu. Duas, três, quatro vezes repetiu ele o sinal, mas inutilmente. E batia, já, em retirada, quando ouviu um chocalhar de corrente no portão. Voltou-se, e viu: era o jardineiro que abria a grade para dar passagem ao dono da casa, passando, de novo, a corrente de cadeado.
Atordoado pelo seu pensamento de ventura, e, não menos, pela consciência da sua superioridade de militar, o oficial não teve dúvidas: parou, deu meia volta, e marchou, firme, no rumo do cavalheiro que saíra da casa. Estacaram, pálidos, um diante do outro.
- Que deseja o senhor? - bradou, com a alma nos olhos, o marido da moça.
Mão no revolver, disfarçando a tempestade do coração, o tenente rugiu, apenas, seco:
- A senha.
E atracaram-se.