XLVI
AS CAMISAS
18 de maio
Há muitos dias que o Dr. Abelardo insistia com a mulher, a encantadora D. Silvia, para que usasse umas camisas de seda cor de rosa, que, na sua opinião, lhe deviam assentar admiravelmente sobre a pele clara, macia, setinosa. Apaixonada pelo marido, que sabia disputado pela mais íntima das suas amigas, a loura Luizita Corrêa, D. Silvia escancarou, nesse dia, o grande móvel do quarto de vestir, em que guardava as suas roupas de interior, e, tirando as dezenas de camisas que ali estavam arrumadas com ordem, ia mostrando-as, uma a uma, ao esposo:
- É assim?
- Não.
- É dessas, de seda, enfiadas de fita?
- Não.
- É assim, apenas com uma fita sobre o ombro?
- Também não!
E como a esposa lhe não mostrasse nenhuma camisa como a que ele desejava acariciar sobre o seu corpo soberbo, convidou-a ele próprio, beijando-a nos olhos.
- Amanhã, na cidade, veremos onde tem. Quero comprar-te uma dúzia. Ouviste, meu amor?
D. Silvia agradeceu, com um sorriso e um beijo, a gentileza amorosa do esposo e, no dia seguinte, à tarde, entravam, os dois, contentes, em uma casa de modas da rua do Ouvidor, onde, tomando a dianteira, o marido pediu:
- Camisas de dia, de seda, para senhora; n. 3.
- Que cor? - indagou, solicita, a moça que o atendeu.
- Cor de rosa.
A empregada subiu ao primeiro andar, trouxe algumas caixas de camisas de seda, mas nenhuma correspondia ao desejo elegante do freguês, que era, de fato, exigente.
- Não são destas? - consultou.
- Não, senhora. São mais finas, mais transparentes, com uma renda de seda até quase à cintura.
- Ah! Já sei! - exclamou a mocinha, sorrindo.
E, levantando os olhos para o andar superior chamou por uma companheira.
- Julieta!
Apareceu, em cima, no balaustre, a cabeça oxigenada de outra caixeira da casa.
- Manda-me dali, por favor - pediu - a caixa de camisas n. 8.645.
E, particularizando, alto:
- Olha! daquelas que D. Luizita Corrêa comprou aqui... Sabes?
Quando as camisas desceram das nuvens, D. Silvia tinha subido.
XLVII
O SONÂMBULO
20 de maio
A noite estava escura, fria, gelada, com a chuva a despencar, lá fora, os cafezais amadurecidos, quando o caboclo bateu, com a mão tiritante, à porta do casebre.
- Quem é? - indagou, de dentro, uma. voz masculina, demonstrando na tonalidade o aborrecimento por aquele incomodo fora de horas.
- Sou eu! - respondeu, de fora, o viandante, o Praxedes Ferreira, antigo tocador de gado em S. José do Paraíso.
Aberto um palmo da porta, o recém-chegado explicou-se. Ia de caminho para o Poço Fundo, e, surpreendido pelo chuveirão daquela tarde, pedia permissão para pernoitar no rancho, uma vez que não havia por ali, naquelas quatro léguas mais próximas, um lugar em que se acoitasse.
- Só se for no telheiro da cozinha; mas esse chove, como no meio do tempo. Serve? - observou, de má vontade, o colono Eleutério, dono do lugar e da casa.
- Serve! - concordou o Praxedes.
O colono fechou de novo a portinhola da frente, e ia atirar-se na esteira espichada no único compartimento do casebre, quando a mulher, que já alí estava encolhida, indagou, curiosa:
- Quem é, Lotério?
- Sei lá! É um camarada que vai de viaje. Mandei ele p'r'o telheiro. Tá lá.
- Coitadinho! - gemeu a rapariga. - Com essa chuva!...
E após um momento:
- Por que você não manda o "coitado" aqui p'ra dentro? A esteira é grande, cabe os três. Você fica no meio.
O Eleutério imaginou o que estaria sofrendo, lá fora, o desgraçado, levantou-se, abriu a porta que dava para o velho telheiro alfinetado de chuva, e chamou:
- Ó amigo?
- Hôi? - acudiu o outro.
- Entre p'ra cá. Se deite aqui na esteira, com a gente.
O caboclo entrou, embrulhado num velho capote que tirara do saco, e atirou-se no lugar que lhe foi indicado, separado da rapariga pelo corpo forte, atlético, vigoroso, do dono da casa. Estirou-se, embrulhou-se, e estava para dormir, quando, de repente, como quem se esqueceu de alguma coisa, bate no braço do Eleutério, avisando:
- É verdade, eu me esqueci de lhe dizer; eu tenho um sono muito doído, com uns sonho de home doente; dou pulo, salto, rolo no chão, faço o diabo. Por isso, não se incomode não, se eu, sonhando, passá por cima do sinhô.
- Você é assim? - indagou o colono, descobrindo o rosto.
- É verdade! - confirmou o outro.
- Então, é tal qual como eu. Tem vez que eu sonho que estou agarrado com um cabra doido, da minha qualidade, e quando acordo, tou no meio da casa, em pé, de faca na mão. É um perigo!
O caboclo ouviu a ameaça, pensou, meditou, ruminou, e, após um instante, propôs:
- Vamo, então, fazê uma coisa?
- Que é?
- Vamo drumi sem sonhá?
E embrulhando-se no capote, rolou, macio, para a extremidade da esteira.
XLVIII
O AMBICIOSO
23 de maio
A Mesopotânia estava, já, povoada de animais de toda a ordem, quando Jeová resolveu, uma tarde, aperfeiçoar a sua obra dos sete dias.
- Tudo isso - pensava o Criador - está muito bem. Urge, entretanto, favorecer estes viventes, facultando-lhes um ornamento natural com que se embeveçam, e que seja, no mundo, o objeto dos seus cuidados.
E chamando, com a sua voz poderosa, o anjo Gabriel, mandou que ele preparasse, nas margens do Eufrates, alguns quilômetros de cauda, de diversas grossuras e de diversos feitios, para ser distribuída, na manhã seguinte, pelos seres recém-criados, - à semelhança do que fazem, hoje, com os cordões honoríficos, alguns governantes sem dinheiro.
No dia seguinte, pela manhã, a várzea do Éden ressoava de guinchos, de uivos, de gritos, de berros, de bramidos, de um alarido, enfim, que fazia tremer a terra. Eram os gatos, os leões, os cães, os tigres, os coelhos, a animalidade inteira, em suma, que acorria de toda a parte, na ânsia de receber o seu prêmio.
Sentado sobre um pequeno outeiro resplandecente, com os rolos de cauda amontoados ao lado, o Criador ia chamando, um a um, os animais aglomerados na campina.
- Leão! - gritou.
O quadrúpede formidável aproximou-se, arrastando, humilde, pelo solo fresco, a juba monstruosa, e recebeu dois metros de cauda, da mais grossa, que prendeu, imediatamente, à extremidade do espinhaço.
- Macaco! - chamou.
O animal deu um pulo, chegando-se.
- Dê-lhe metro e meio da cauda n. 2! - ordenou Jeová ao anjo Gabriel.
E assim foi distribuindo, eqüitativo, pelos outros bichos, dando meio metro aos cachorros, um metro aos tigres, vinte centímetros aos gatos, um metro aos bois, e, desse modo, consecutivamente.
Em certo momento, porém, chamou o Homem, entregou-lhe a sua parte, que era, mais ou menos, um metro.
- Tome! - exclamou.
- Só isso? - estranhou o ambicioso, com desdém.
Jeová encarou-o, irritado, mas, pensando em vingança ainda mais terrível, ordenou:
- Então, espere aí.
O homem ficou de lado, aguardando a nova chamada, e a distribuição continuou, sendo contemplados, então, na proporção das necessidades, o coelho, o gambá, o carneiro, o bode, o veado, o lobo, toda a bicharada, finalmente, que havia no Paraíso.
Aflito, retorcendo as mãos, o homem olhava o desenrolar dos rolos de corda viva, notando que ia ficar sem a sua, quando, de súbito, implorou:
- E a minha, Senhor?
Dos quilômetros de cauda fabricados restavam, apenas, duas pontas pequeninas, de dois ou três centímetros, que o mísero pediu, arrependido:
- Dá-me, ao menos, uma destas sobras, meu pai!
- Destas? Não. Esta aqui é do tatú.
- E aquela, Senhor?
- Aquela? É da cotia!
Vendo-se assim preterido, como pena da sua ambição, o homem deu meia volta, e afastou-se, contrariado.
E daquilo que foi, em verdade, uma punição, fez ele, depois, na terra, o motivo do seu orgulho...
O SOVINA
27 de maio
Funcionário modesto, ganhando apenas setecentos mil réis por mês, o operoso oficial de Fazenda Emiliano Praxedes não podia, ou não queria, dar à mulher, jamais, um vestido de passeio, mesmo de baixo preço. Casado há um ano, a esposa ignorava em absoluto as suas despesas, a cifra dos seus orçamentos, sabendo, entretanto, que os dispêndios eram grandes, fortes, elevados, porque ele nunca entrava em casa com dinheiro.
Cansada de esperar pela generosidade espontânea do esposo, D. Lídia chegou-se, um dia, para ele, e, agradando-o, amimando-o, acariciando-o, pediu, passando-lhe a mão pelos cabelos:
- Praxedes, quando é que tu me dás um vestido novo? Tu nunca me deste nada...
Apanhado de surpresa, o funcionário prometeu:
- Breve. Isso depende apenas de ti. Dá-me um filhinho, um anjo para o nosso lar, que eu te darei um vestido! Está combinado?
- Está combinado! - concordou a moça, batendo palmas de contente.
No fim de nove meses, dado o beijo no seu primeiro pimpolho, que piscava no leito os olhinhos desconfiados, partia Emiliano Praxedes para a rua, de onde voltava horas depois com um embrulho, que entregou à esposa.
- Pronto ! exclamou. - O prometido é devido!
D. Lídia abriu, risonha, o pacote, e empalideceu, mais do que estava: era um vestido de chita azul, grosseira, ordinaríssima, que não havia custado, talvez, mais de seiscentos réis o metro!
Desapontada embora com a sovinice do marido, a pobre senhora não se revoltou, não protestou, não disse nada. Calcou o seu ressentimento no fundo da alma, escondeu a sua mágoa no coração, e, sem que o esposo lhe tivesse feito outra promessa, deu-lhe, ao fim de mais um ano, um outro filho. Terminado o período de resguardo, tomou um bonde para a cidade, e, à tarde, ao entrar em casa, vinha arrebatadora: vestido de seda, chapéu de plumas, sapato de cetim, pele de raposa, colar de pérolas, enfim, um deslumbramento!
- Que é isso, Lídia? Que escândalo é esse? - exclamou, boquiaberto, pondo-se de pé, o Praxedes, que já se achava em casa, à mesa de jantar.
E madame, desafiadora:
- Você pensa, então, que todos são miseráveis como você?
E entrou na alcova, tirando as luvas.
L
CERIMÔNIAS NUPCIAIS
31 de maio
Em um congresso de jurisconsultos, reunido, há alguns anos, em Berna, o delegado da Suécia, se bem me lembro, sugeriu a uniformização do Direito Civil, dando-se às leis peculiares aos costumes de certos povos uma feição de instituto internacional. Essa medida constituiria um passo para a fraternidade humana, acabando-se, de vez, com as complicações decorrentes da desigualdade dos códigos. A cerimônia do casamento, principalmente, se tornaria mais simples e respeitável, como observava, e muito justamente, um destes dias, o Sr. comendador Paulino Sampaio, em uma palestra erudita com algumas senhoras inteligentes.
- É, realmente, absurda - observava o honrado capitalista, essa desigualdade de critério. Não seria mais razoável que o casamento, aqui, fosse igual ao casamento na China ou na Arábia? Para que, pois, essas diferenças fundamentais, nesse processo de reunir o destino das criaturas que se querem?
E, para demonstrar o que é a desordem nessa matéria, lembrou, documentando o seu pensamento:
- Na África, por exemplo, são adotados os processos mais esquisitos, e, até, mais repugnantes. Em certas regiões daquele continente, a cerimônia consiste, mesmo, no seguinte: a noiva enche de água uma vasilha, e leva-a ao noivo, para que lave as mãos. Feito isso, a noiva toma a cuia entre os dedos e bebe o resto da água servida. Feito isso, estão casados.
As senhoras entreolharam-se, espantadas, e o comendador continuou:
- Em outras regiões, a coisa é ainda pior: em vez de dar as mãos a lavar, o noivo dá os pés, tomando a noiva, depois, solenemente, os restos da água. É horrível! Não é?
As senhoras entreolharam-se de novo, escandalizadas, e o velho capitalista insistiu:
- Esses costumes dão ensejo até, às vezes, a crimes inomináveis. Ainda em 1918, após uma lavagem dos pés do noivo, uma rapariga bebeu a água, na forma da tradição. E, momentos depois, caiu fulminada!
- Onde foi isso, comendador? - indagou Mme. Costa Pinho, penalizada.
O capitalista sorriu, e explicou, gentil:
- Na África Portuguesa, minha senhora!
LI
A PEDRA DOS NAMORADOS
3 de junho
Fugindo ao clima intolerável da cidade, os dois amigos inseparáveis resolveram passar, este anuo, o verão em Paquetá. As dificuldades, como era natural, foram enormes. Ao fim de algum tempo encontraram, porém, duas casas na mesma praia, as quais se comunicavam pelo quintal, e foram alugadas, não só entre as demonstrações de alegria de D. Adalgiza, esposa do Dr. Archimedes, como entre as de D. Eleonora, mulher do tenente Pedreira.
- Magnifico! - aplaudiu a primeira, batendo as mãozinhas finas, brancas, de dedos afilados.
- Esplendido! - confirmou a segunda, com as mesmas demonstrações de contentamento.
Mudados para a ilha encantadora, saíram os dois casais, uma tarde, a passeio, juntando conchas pela praia, até que foram ter ao local em que se levanta, entre a terra e o mar, um penedo de três ou quatro metros de altura, em cujo cimo se amontoava uma infinidade de pedras pequeninas, equilibrando-se com dificuldade.
- Olha, ali! Que é aquilo? - exclamou D. Eleonora, radiante com aquela vida de liberdade, apontando, com a sombrinha fechada, no rumo da pedra.
- Ah! É a "pedra dos namorados"! - explicou o Dr. Archimedes. - Essa pedra tem uma história curiosa.
E contou:
- É corrente aqui, na ilha, que este rochedo anuncia os casamentos. Os namorados que passam por aqui, atiram-lhe ao cimo uma pedra pequena, uma concha, ou coisa semelhante. Se ficar lá em cima, a pessoa terá de casar-se; se não, se a pedra rejeitar o objeto atirado, fazendo-o rolar para o chão, é sinal de que a pessoa não se casará.
- Que graça! - rouxinoleou, rindo, Dona Adalgiza.
E, voltando-se para os companheiros:
- Vamos experimentar?
- Mas... nós já estamos casados! - obtemperou a amiga.
- Não faz mal. Vamos!
Apanhados quatro seixos, aproximaram-se do penedo, e atiraram, cada um por sua vez. O primeiro ficou. O segundo, igualmente. O terceiro, da mesma forma. O quarto, também.
- Todos ficaram! - exclamou, com a sua jovialidade infantil, a linda D. Eleonora.
E acentuou, espichando-se, nas pontas dos pés:
- Olhem: a minha pedrinha ficou junto da do Dr. Archimedes, e a da Aldagiza bem juntinho da do Pedreira!
O tenente olhou, sério, o bacharel. O bacharel fitou, grave, o tenente. Sorriram, os dois.
E continuaram, os quatro, o seu passeio, apanhando, felizes, na areia úmida, as pequeninas conchas da praia...
LII
O PORCO
(Lenda muçulmana)
5 de junho
A terra estava ainda mole do Dilúvio, mas começavam a rebentar, já, aqui e ali, as sementes das plantas resistentes. E como já houvesse, no solo libertado das águas alimento bastante para a bicharia salva da inundação, resolveu Noé, naquela manhã de grande sol e de grandes ventos, abrir as portas da arca, encalhada na areia.
- Primeiro os veados. - ordenou o Patriarca.
Jafet correu à proa da embarcação, espantou um casal de gamos que devorava uns restos de palha espalhados nas tábuas, e os dois animais pararam em disparada, estalando os cascos luzentes no soalho escuro do tombadilho.
- Agora, os leões.
Cham instigou, cauteloso, um leão e uma leoa que piscavam os olhos fulvos a claridade intensa do sol, e as duas feras saltaram no areal ainda úmido, gravando com força, na terra empapada, as quatro patas de unhas fortes.
E assim foram saindo, dois a dois, os camelos, os cavalos, as zebras, as girafas, os bugios, os tigres, os ursos, os castores, Os cães, as águias, os milhafres, as cotovias, tudo, em suma, que devia constituir, mais tarde, o ornamento da terra ou do ar.
Deserta a Arca, notou Noé, ao passar-lhe revista, que, no lugar em que estivera o elefante, ficara, empestando o ambiente, um monte de imundice, de lama pútrida, que repugnava.
- Sem? Cham? Jafet? - gritou o velho, chamando os filhos.
Os rapazes acudiram, tapando o nariz.
- Tirem daqui esta indignidade, - ordenou.
Os futuros construtores de Babel entreolharam-se, horripilados com aquela incumbência nauseante. E iam principiar, obedientes, o trabalho penoso, quando o pai, compreendendo-lhes o escrúpulo, mandou que se abstivessem. Tinha-lhe acudido uma idéia: estendeu os braços no rumo do monte de esterco, e ordenou:
- Move-te!
A montanha de imundice estremeceu por si mesma, ergueu-se acima do soalho alguns centímetros, suspensa por quatro pés invisíveis.
O Patriarca estendeu os braços e, novamente, determinou:
- Retira-te!
O monte de lama podre partiu correndo, buscando misturar-se com a lama que ficara das águas.
Tinha nascido o porco.
LIII
REVELAÇÃO
"A recordação de um primeiro beijo de homem, mesmo quando recebido contragosto, transforma-se no espírito da mulher virgem em desejo tenaz, absorvente, imperioso de o repetir, de renovar a sensação daquele delicioso pecado. - COLETTE WILLY"
8 de junho
Com os olhos vermelhos de chorar, e com tremores de susto por todo o corpo delicado, a loura Mariazinha penetrou no gabinete do pai, em cujos braços se atirou, desatando em soluços. Trazido um copo dágua, e serenados os seus nervos exaltados, ainda, pelo terror, a moça contou, a custo, com o rosto nas mãos, o caso inominável.
- Eu vinha, - soluçava, entrecortando as palavras, - eu vinha da aula de música, sozinha, com a pasta debaixo do braço, quando, ali, na rua Paissandú, perto da praia, um sujeito se aproximou de mim, pelas costas, e, pondo o braço no meu pescoço. curvou-me para trás, e...
- E... - interrompeu o pai, com a agonia no coração.
E a moça, terminando, com dificuldade:
- Deu-me um beijo na boca, e correu, no rumo da praia!
O caso havia sido, realmente, assim, mas o comendador insistiu na explicação:
- E tu não o conheces?
- Não, senhor. É um rapaz alto, de roupa clara, chapéu de palha, que eu não sei quem é. Se, porém, o encontrar, eu o reconhecerei. Intimamente aborrecido com aquela aventura da filha, o comendador deliberou punir o atrevido, prometendo à menina, entre carícias afetuosas:
- Deixa estar, sossega. Esse patife há de ser castigado. De agora em diante eu passarei a acompanhar-te, e, onde o encontrares, eu quero que m'o apontes.
E, entre dentes:
- Patife!
Passada a primeira emoção, em que o seu pudor de criatura ingênua, de botão desabrochando para a vida, se patenteara com toda a violência da pureza sem simulações, começou o instinto feminino a tomar o seu lugar no espírito da moça, entre cogitações que a alarmavam. Aquele beijo, roubado por um desconhecido, revoltara-a, indignara-a, enchera-a de ódio, na ocasião. À medida, porém, que o tempo se passava, parecia-lhe que aquela carícia brutal aflorava, de novo, na sua boca, numa fome angustiosa de repetição. Debalde, passando a mãozinha pelos lábios, ela procurava escorraçar, afastar, dissipar aquela lembrança. Esta voltava, entretanto, persistente, continua, teimosa, e de modo tal que ela própria já buscava conservá-la no pensamento, como se conserva uma flor encantada, cuja árvore se viu morrer no caminho.
No dia seguinte, após uma noite de angústias deliciosas, em que se casavam, substituindo-se, o pudor e o desejo, foi com desprazer, e com um susto mal definido, que a mocinha ouviu, recompondo com coquetaria os finos cabelos de ouro sob o lindo chapéu de palha de Itália, o convite paterno:
- Mariazinha, estás pronta?
- Já vou, papai! - respondeu a moça, de dentro, dando os últimos retoques na "toilette", diante do toucador.
Durante uma semana o comendador acompanhou a filha, acima e abaixo, da cidade até o palacete, e do palacete à cidade, sem que ela descobrisse o seu insolente desrespeitador. E se o velho capitalista sofria com essas caminhadas, com essas idas e vindas fatigantes, mais padecia, ainda, a menina, cujos olhos se foram cercando de um halo escuro, denunciador evidente das penosas noites de insônia.
Uma tarde, enfim, ao sair com o pai, a um passeio na praia Mariazinha tomou um susto, que a fez parar, branca, de cera, no gramado por onde ia: diante dela, em um grupo de rapazes, estava, de pé, o estroina, que lhe acordara a alma adormecida na inocência, furtando-lhe na árvore virgem dos lábios o fruto venenoso daquele ósculo! Voltando a si, a moça, como num delírio, não se conteve:
- É aquele, papai! gritou, batendo as mãos geladas pela emoção.
E, atirando-se ao pescoço do rapaz, cobriu-o doidamente, furiosamente, desesperadamente, de beijos...
LIV
RESPOSTA DIFÍCIL
10 de junho
Rosto em fogo, cabelos em desalinho, Dr. Atanásio, que acaba de entrar da rua, passeia nervosamente de um lado para outro no seu gabinete de trabalho, agitando nas mãos crispadas uma carta que acabara de receber no escritório, e que fora, para ele, uma punhalada no coração. À sua frente, no canapé de couro escuro, tauxiado de prata polida, a jovem D. Eleonora esconde a face lavada de lágrimas nas duas conchas das mãos cor de neve, soluçando de vergonha e de susto no horror daquela situação.
- E dizer-se que eu confiava em ti, tua honra, no teu amor, e que estava em S. Paulo tranqüilo, sereno, na certeza de que procedias, aqui, com seriedade. com dignidade, com a correção que me havias jurado, de joelhos, diante de Deus!... - geme, quase chorando, o pobre esposo desesperado.
Madame procura, como um náufrago na tormenta, uma frase com que inicie a desculpa impossível, mas o marido atalha, agitado, com os olhos em chama, forçando-a a esconder, de novo, a cabeça entre as mãos:
- Que vergonha, meu Deus! que vergonha, agora, para mim!... Nunca mais, na minha vida, poderei levantar o rosto diante desta sociedade, que conhece, que sabe, que testemunhou, impassível, o teu crime, a lama que atiraste sobre o meu nome!...
Enfiando os dedos na cabeleira grisalha, passadas largas, o notável advogado mede, cada vez mais nervoso, a extensão do gabinete, cujos tapetes lhe abafam os passos, quando, de repente, pára, e reclama, cerrando os punhos:
- Confessa-me. afinal: quando foi que aquele miserável, abusando da tua fraqueza, e aproveitando a minha ausência, penetrou nesta casa?
Adivinhando nessa pergunta um caminho para a reconciliação, D. Eleonora levanta o lindo rosto ensopado de lágrimas, e, fixando os grandes olhos úmidos nos olhos ardentes do marido, indaga, apenas, pronta para uma explicação:
- Qual?
O TROPEIRO
14 de junho
O casamento do Sr. Antônio Moreira, comerciante e fazendeiro em S. Bernardo das Russas, cidade cearense a duzentos e quarenta quilômetros de Fortaleza, estava anunciado para a véspera de Natal, que distava, apenas, oito dias. Há um mês, quase, não se falava em outra coisa. A festa devia ser estrondosa, com banda de música e danças por uma semana, e o que era mais, com uma abundância de comidas e bebidas como não havia noticia de outra na redondeza. Antegozando o sucesso daquele acontecimento, o Sr. Antônio chamou, uma tarde, um antigo tropeiro, e ordenou:
- João, você vai, amanhã, à capital. Daqui lá são quarenta léguas, das grandes. Você ponha a cangalha na burra preta; escanche, em cima, o jogo de malas. e, chegando à cidade, receba, na casa da modista para quem vai esta carta, o vestido da noiva.
E olhando o tropeiro, significativamente:
Mas, olhe: você deve estar aqui no sábado, à tarde. Se não, já sabe!
O caboclo correu ao cercado, pôs a cangalha na burra, atirou-lhe por cima o jogo das malas de couro, e partiu. Chegando a Fortaleza, recebeu a encomenda, e, para estar em S. Bernardo no dia determinado, retrocedeu na mesma hora.
O prazo que o Sr. Moreira lhe havia dado para a viagem era, francamente, curto. O caminho não era bom, a burra era velha, e, sexta-feira, à tardinha, faltando ainda dezoito léguas, estava completamente estropiada. Debalde o caboclo, sacudindo o cabresto, lhe metia o relho, rogando-lhe pragas: a alimária reunia as forças, tentava um choto manhoso, e voltava ao mesmo passo triste, lento, fatigado.
De repente, surgiu à margem da estrada uma palhoça de lavrador. João bateu:
- Ôi, de casa!
- Ôi, de fóra!
E apareceu à porta de esteira um sertanejo cobreado, dando as "boas-tardes".
O tropeiro, que era mais ou menos conhecido por ali, perguntou, interessado, se não havia um cavalo, um burro, um jumento, que lhe pudessem alugar. O dono da casa foi franco: animais, não tinha; informado, porém, do compromisso do viajante, lembrou-lhe, experiente, um remédio:
- Homem, você quer um conselho? E ensinou:
- Olhe, ali, atrás da casa, tem uma pimenteira. Está encarnada de pimenta. Você. apanha uma porção delas, machuca num caco, faz uma bolota de pano, e... e... passa!
O João aceitou a receita: machucou as pimentas, enrolou alguns molambos à ponta de um pau, ensopou-os no molho, e passou.
Passou e despediu-se.
Daí a pouco, a burra começou a aumentar a marcha. Momentos depois, principiou a trotar; e, finalmente, largou, de malas às costas, numa carreira brutal, furiosa, desabalada, caminho em fora.
Seguro à ponta do cabresto, o caboclo, a principio, acompanhou o quadrúpede. Quando, porém, este abalou na correria desbragada pela estrada silenciosa, não houve mais recurso: estava, ele também, cansado, fatigado, estropiado. Mas, recordando-se que tinha prometido estar com o animal em São Bernardo das Russas, e este se podia transviar com a roupa da noiva, reuniu, num supremo esforço todas as suas energias de inteligência e de músculos, arrancou, num movimento rápido, o cinturão de couro, e, fazendo em si mesmo o que havia feito com a burra, largou-se, também, pelo caminho soturno, numa carreira desenfreada!
No dia seguinte, pela manhã, oito horas antes da que lhe fora marcada, atravessavam os dois, o tropeiro e a burra, em disparada, as últimas ruas de São Bernardo das Russas.
LVI
PARÁBOLAS
16 de junho
Em matéria de parábolas, eu conhecia, apenas, as que o Nazareno arquitetou para edificação dos seus discípulos: a do bom samaritano, a do filho pródigo, a do semeador, e três ou quatro outras, igualmente profundas e morais. Agora, acabo de conhecer mais umas duzentas, contidas em um volume encantador, publicado há dois dias pelo Sr. Dr. Afrânio Peixoto.
As "Parábolas" do brilhante romancista da "Maria Bonita" e da "Esfinge" são, como todas as parábolas bem urdidas e meditadas, um excelente repositório de "ensinamentos, de exemplo", de lições adaptáveis à vida dos homens. E entre elas nenhuma é, talvez, tão humana, tão sábia, nem tão oportuna, como a do melro e do tico-tico. "Descobri num arbusto, quase à beira do caminho, no meu jardim - escreve o autor, - um ninho de tico-tico. Vi-o voar, quando me aproximava, e pude notar três ovinhos depostos na fofa cama bem feita. Pareceu-me que um dos ovos era diferente na forma e na cor, dos outros dois, mas não insisti na minha malícia. Seria lá com o tico-tico. Não perturbei mais o mistério dessa maternidade com a minha indiscrição. Muitos dias depois, distraído, vou pelas mesmas bandas e ouço inquieto pipilar. Pé, ante pé, chego à espreita: o tico-tico depois de saltitar de galho em galho, acerca-se do ninho, trazendo no bico a nutrição para a ninhada que o chamava sôfrega. Olho paro o ninho e vejo um passarinho só, grande, bem maior que o outro, vestido de penugem negra, de amplo bico aberto, à espera de alimento... O filho do tico-tico era um melro!"
Entusiasmado com essa página de Afrânio Peixoto, eu acabava de lê-la para a admiração do desembargador Bernardo Meireles quando o velho político do Império me interrompeu, indagando:
- Como se chama essa história?
- Parábola, desembargador.
- Parábola? - trovejou o ancião, fazendo ressoar no soalho o seu bengalão de massaranduba, e agitando, num tremor subitâneo, as barbas veneráveis. - Que parábola, o quê!?...
E acentuou, indignado:
- Uma grande patifaria, é que é!
E chamando os oito netinhos, filhos da mesma filha, começou a distribuir biscoitos por esse pequeno viveiro humano, em que havia, cantando, pipilando chilreando, melros, canários, tico-ticos, cambachirras, curiós...
LVII
A ADÚLTERA
(João, VIII, 1-12)
20 de junho
Regressava Jesus, naquela tarde, do monte das Oliveiras, quando, em meio do caminho, com o sol a esconder-se, ao longe, no leito de fogo das montanhas, foi rodeado por um pequeno grupo de fariseus, que traziam de rastros, pálida e desgrenhada, uma pobre mulher que se debatia entre eles. Supondo confundir o Rabino com a sua consulta inesperada, um escriba, de nome Barachias, adiantou-se dois passos, e pediu, com fingida humildade:
- Mestre, esta mulher foi surpreendida a trair o esposo, a quem jurara fidelidade. A lei de Moisés determina que ela seja apedrejada, e morta pela multidão. Que devemos fazer?
Jesus, que lhe ouvira o coração antes de lhe escutar a palavra, baixou-se na areia da estrada, e pôs-se, com o dedo, a escrever.
- Mestre - tornou o fariseu, - esta mulher foi apanhada em flagrante, traindo o seu esposo. Devemos matá-la à pedrada, como estabelece a lei de Moisés?
Jesus, em silêncio, continuava a escrever sobre a areia, quando, de repente, erguendo-se, respondeu:
- Só o justo pode punir o pecador. Aquele, pois, que, dentre vós nunca pecou, atire a primeira pedra!
A estas palavras, Barachias desapareceu, e, com ele, um a um, aqueles que o acompanhavam, ficando no caminho, apenas, Jesus e a pecadora. Agradecida e assustada, ia a mísera atirar-se de joelhos para beijar as sandálias do Mestre, quando o Rabino a deteve pelos braços, dizendo-lhe, severo:
- Nada me deves, mulher. Em verdade te digo, que as leis de meu Pai são mais implacáveis do que as leis de Moisés. Poupei-te a vida porque a própria morte não puniria a tua falta!
E, repelindo-a com a mão, suavemente:
- Anda; vai! A vergonha do teu crime, na tua velhice, será, na terra, o teu castigo!
E, baixando os olhos, continuou, sozinho, a caminho de Jerusalém...
LVIII
OBEDIÊNCIA
23 de junho
Mal saída do colégio, para onde entrara ainda criança, isto é, desde que o pai, o comendador Anacleto, enviuvara, foi a encantadora Maria Lúcia residir no palacete recentemente alugado pelo velho capitalista em uma das ruas menos movimentadas de Botafogo. Deslumbrada com a liberdade conquistada à força de estudo, de uma aplicação que lhe granjeara o primeiro lugar na sua turma, apenas uma coisa a desgostou: foi a recomendação que lhe fez o pai, severo e prudente:
- Olha, minha filha; esta casa é tua; governa-a como se fosses a dona. Uma coisa, apenas, eu te peço: vive isolada, sem relações de amizade, e nunca, em hipótese alguma, incomodes os vizinhos.
E beijando-lhe a testa clara. coroada por uns lindos cabelos castanhos:
- Muito juizinho; ouviu?
Duas semanas não se tinham passado sobre a libertação de Maria Lúcia, quando uma quadrilha de ladrões, vendo, uma tarde, sair as criadas, que a jovem patroa indultara naquele dia, resolveu assaltar, pulando o muro dos fundos, o palacete do comendador. Descalços, em mangas de camisa, chapéu em cima dos olhos, os miseráveis penetraram na casa e, desrespeitando a fraqueza da moça, praticaram toda a sorte de depredações, esvaziando as gavetas, arrombando os cofres de jóias, carregando, enfim, com todas as coisas de valor que havia na residência do honrado capitalista.
À noite, ao abrir a porta, de regresso ao lar, o comendador teve um pressentimento triste, ao ver a casa às escuras. Abertas, porém, as lâmpadas, recuou, horrorizado, para, em seguida, precipitar-se, de compartimento em compartimento, chamando, aflito, pela menina:
- Maria Lúcia? Maria Lúcia? Onde estás, minha filha?
No último quarto da casa, esperava-o uma surpresa maior: sentada no leito, desgrenhada pálida, com as vestes em desalinho, Maria Lúcia chorava, com a cabeça nas mãos.
- Minha filha da minh'alma! - gemeu o velho, atirando-se para ela. - Que foi isso?
- Os ladrões!... - explicou a moça, num gemido.
E enxugando os olhos;
- Levaram tudo: as roupas, as jóias, a louça, tudo, enfim. Depois...
- Depois?... - rugiu o velho, com os olhos esbugalhados.
- Desgraçaram-me!... - concluiu a moça, prorrompendo em soluços.
- Desgraçaram-te?... - gritou o velho, de dentes e punhos cerrados, com um rugido soturno, cavo, de fera atingida no coração.
E após um instante de silencio desesperado:
- E como foi? Amarraram-te?
- Não, senhor.
- Subjugaram-te?
- Não, senhor.
- Taparam-te a boca?
- Não, senhor.
- E por que não gritaste? - berrou o ancião, parando, de súbito, no meio do quarto.
E a moça, levantando para ele, num soluço, os lindos olhos machucados de lágrimas:
- Papai não disse que eu não incomodasse os vizinhos?
LIX
AS LOÇÕES MIRACULOSAS
28 de junho
A coisa mais fácil de inventar, é. neste mundo, o tônico para cabelo. Não há barbeiro por mais modesto e preguiçoso, que não possua a sua formula prestigiosa, destinada a fazer rebentar uma cabeleira encaracolada na calva mais rebelde e, se possível, numa bola de bilhar. Quanto à utilidade real dessas loções, desses tônicos, dessas tinturas miraculosas, prova-a o número, sempre crescente, de carecas, existente no Rio de janeiro.
O mais curioso é, no entanto, o entusiasmo, a fé, a convicção, com que os "fígaros" fazem a propaganda do seu preparado. Concluída a barba do freguês, o bárbaro, empunhando ainda a navalha, propõe à vítima:
- Vamos, agora, a uma fricção do nosso tônico?
Agredido assim, o freguês encara o agressor, medindo-o de alto a baixo, com raiva; ao dar, porém, com os olhos na lamina faiscante, aberta a dois palmos do seu pescoço, capitula, forçosamente, concordando, desarmado:
- Ponha!
Autorizado a cometer o crime nefando, o barbeiro passa, então, a fazer o elogio do seu remédio.
- É um prodígio, senhor doutor! - assegura. - Se ele caísse numa pedra, no chão, a pedra criaria cabelo!...
O mais curioso propagandista desse gênero foi, entretanto, o de que deu noticia, há muitos anos, na imprensa do norte, um saudoso jornalista paraense. Apanhado, certa vez, de surpresa, em uma cadeira de barbearia, esse mártir foi intimado, de súbito, pelo homem da navalha:
- Então, uma loçãozinha para nascer o cabelo; não?
O desventurado ia recusar terminantemente a proposta, mas o barbeiro atalhou, abrindo a navalha:
- É um verdadeiro milagre, o meu preparado. Basta cair na calva, para o cabelo começar, logo, a nascer. É assombroso! É prodigioso! É formidável!
E enquanto esfregava na cabeça do freguês a água do pote perfumada, contou:
- O senhor quer ver o que é a minha loção? Uma vez, estando eu a fabricar este preparado, peguei um jarro, que estava cheio dele, e coloquei-o em uma prateleira, pregada à parede. Debaixo da prateleira, que é alta, ficava o meu baú, um baú grande, de couro curtido, todo pregueado, daqueles antigos, sólidos, enormes, que se faziam em Portugal. Pois, bem; o jarro, que estava rachado, começou a vazar o liquido na prateleira, que o fazia cair, por seu turno, sobre o baú; e de tal forma que, na dia seguinte, ao abrir a porta encontrei o baú...
- Molhado. não? - interrompeu o jornalista.
E o fígaro, sério:
- Não, senhor; coberto de cabelo!
E esfregou-lhe a careca, com força.
LX
A VINGANÇA
30 de junho
O caboclo Saturnino, agricultor em Jacarepaguá, era, por natureza um homem morigerado. Criando os seus porcos, as suas cabras, os seus perus, as suas galinhas, fazia o possível para que a bicharada não saltasse a cerca, indo devastar as plantações dos vizinhos. Se ele se indignava até à inconveniência quando um bode alheio lhe penetrava o roçado, era natural que os outros se revoltassem, também, quando vítimas de idênticas depredações.
Não obstante os cuidados de todo o dia, tapando, endireitando, recompondo os menores buracos do cercado, foi o Saturnino surpreendido, uma tarde, pela falta de uma das galinhas mais gordas do terreiro. Experiente como era, saiu o caboclo pelo fundo do quintal, e, ao olhar para a cozinha do seu compadre Teodoro Maniva, descobriu, lá, a sua galinha, que estava sendo depenada pela dona da casa. Saturnino rodeou o cercado, bateu à porta da frente, e queixou-se do que lhe haviam feito. Positivamente, aquilo não era sério, nem digno de um homem de bem... Teodoro sorriu, e desculpou-se:
- Ora, compadre, para que brigar? Vamos entrar num acordo. A galinha já está na panela; venha jantar, hoje, comigo...
Inimigo de questões, Saturnino aceitou o convite, esperou a hora, jantou, despediu-se, e dirigiu-se para casa, de cabeça baixa, imaginando o meio de tomar desforra do seu compadre Teodoro.
Esta, não foi difícil. A Brígida, mulher do Teodoro, era uma cabocla forte, rochonchuda, atarracada, cujos olhos faiscavam toda a vez que divisavam, na vila ou nas estradas, o vulto do Saturnino. O caboclo recordou-se disso e, com o propósito da represália, resolveu explorar essa fraqueza da comadre. E tanto fez, tanto virou, tanto mexeu, que, um dia, ao voltar do roçado, o Teodoro não encontrou mais a mulher. Desconfiado, rumou para a casa do Saturnino, e bateu.
- Quem é? - perguntaram de dentro.
- Sou eu! - trovejou o Teodoro.
Saturnino apareceu na soleira do casebre e o outro indagou, feroz:
- A Brígida não está aqui?
O caboclo sorriu, batendo-lhe no ombro:
- Está aí, compadre; ela está aí dentro.
E tomando-o pelo braço, puxando-o para a cabana:
- Entre, compadre; fique para dormir com a gente...