XXXI

MANIAS

1° de abril

Em um trabalho recente na "Edinburgh Review", o crítico inglês John Browing denuncia, a título de curiosidade, um certo número de manias de escritores nacionais, procurando, ao que parece, demonstrar a feição patológica de todos eles. Por esse trabalho de pesquisa, foi que eu vim a saber, com espanto, que Walter Scott dormia com o chapéu na cabeça, que Wordsworth almoçava arrepiando o pêlo de um gato, que Goldsmith só trabalhava assobiando, que James Macpherson gostava de estrangular passarinhos, e que Poppe, não obstante as aparências de saúde perfeita não conciliava o sono senão quando o criado fazia barulho no quarto contíguo, batendo desesperadamente numa bacia.

Para o crítico de Edimburgo, essas originalidades constituem anomalias, aberrações, moléstias mentais interessantíssimas, patenteadas, segundo diz na obra literária que as suas vítimas produziram. Eu me permito, entretanto, o direito de contestar semelhante tese, baseando-me no exemplo de um homem perfeitamente sadio, como é, no caso, o coronel Evaristo de Souza Portela.

O coronel Evaristo Portela, grande fazendeiro em Minas, era um dos homens mais virtuosos produzidos, até hoje, pelo município de Uberaba. Chefe de família exemplaríssimo, não havia passado, jamais, uma noite fora de casa. Viagem que ele fizesse, ou realizava-a em companhia da sua digna esposa, a veneranda D. Geralda, mãe dos seus únicos quatorze filhos, ou fazia-a tão curta que estava de volta, à noite, para dormir na fazenda.

A posse do Sr. Raul Soares no cargo do ministro da Marinha determinou, entretanto, uma profunda modificação na vida do conceituado fazendeiro. Compadre do ilustre político e correligionário que lhe levara à pia dois filhos, o coronel não podia, absolutamente, faltar à grave cerimônia do cais dos Mineiros; como cumprir, porém, esse dever de amizade, de cortesia, e de solidariedade política, se D. Geralda, sua companheira inseparável de dezesseis anos de sono no mesmo leito, não se podia abalar para uma viagem tão tentadora, mas, ao mesmo tempo, tão rica de incômodos e inconvenientes?

- O que não tem remédio, remediado está! - exclamou, afinal, uma tarde, o coronel, depois de profundas cogitações.

E mandando arrumar duas malas de mão, tomou o trem, no dia seguinte, com destino ao Rio de janeiro.

A primeira noite de capital foi para o honrado fazendeiro um suplício, um martírio, um tormento. Habituado à vida rigorosamente domestica, não lhe foi possível, em absoluto, conciliar o sono. E de tal modo lhe nasceu a saudade da casa dos filhos, e, principalmente, da esposa, que o criado do Grande Hotel, onde ele se hospedara, ainda o encontrou com os olhos da véspera quando lhe foi, de manhã, levar o café.

O dia, passou-o o coronel mais ou menos distraído, fazendo compras, visitando amigos, palestrando com os conhecidos. À noite, porém, voltou, com a saudade, a tortura da insônia. Debalde fechava os olhos, apertando as pálpebras: à simples lembrança de que se achava tão longe, tão distante de casa, fugia-lhe o sono, deixando-o a remexer-se, aflito, no leito largo, a amassar nervosamente os lençóis.

À meia noite, após duas horas de martírio na cama, o coronel não pôde mais: ergueu-se do leito, em pijama, pondo-se a andar, nervoso, de um lado para outro do quarto. E estava já, há meia hora, nesse exercício, quando teve, de repente, uma idéia: tocou a campainha, chamou o criado, e pediu:

- O senhor não tem, por aí, uma escova, dessas para cabelo?

- Tem, sim, senhor.

- Traga-a.

O criado trouxe a escova, o coronel agarrou-a pelo meio, do lado do pêlo, com a mão aberta, e, apagando a luz, atirou-se no leito.

E dormiu, sereno, até de manhã...

XXXII

FEMINICE

(Sobre uma frase de Emile Faguet)

4 de abril

D. Elisabeth Saldanha era apontada no Rio de janeiro como a senhora de vida mais acentuadamente elegante entre quantas, até hoje, possuiu a cidade. Honesta por educação e por temperamento, ninguém lhe apontou, jamais, um deslize, uma falha, uma simples leviandade de conduta. Em uma terra em que a maledicência enche as bochechas a cada canto da rua, ela fizera o milagre de conservar sempre limpo, sem a menor mancha do hálito da calunia, o espelho de cristal da sua reputação

Os seus hábitos mundanos não eram, entretanto, propícios à conservação desse conceito. Adorando o marido e sendo idolatrada por ele, havia uma vaidade que ela colocava acima de tudo na terra; e esta eram o teatro, os chás, os jantares, as conferências literárias, os concertos, e, sobretudo, a visita às amigas, num desperdício de tempo, de frases e de vestidos que lhe parecia verdadeiramente encantador.

Certo dia, porém, ao sair do Municipal, D. Elisabeth descuidou-se um pouco do "manteau" bordado de dragões de ouro e cegonhas de seda, e apanhou uma pneumonia. A ciência médica da cidade foi, toda ela, mobilizada em uma noite. E tal é o prestigio da medicina diante da morte, que, dois dias depois, o Dr. Alfredo Saldanha penetrava o portão do cemitério de São João Batista, segurando, sem tirar o lenço dos olhos, uma das alças do caixão funerário da sua querida Elisabeth.

Enquanto se dava isso aqui na terra, uma alma, imponderável como o ar e mais alva, talvez, que um floco de neve, batia, suave, à porta do Paraíso.

- Seu nome? - perguntou S. Pedro, abrindo a portinhola, encantado com tanta candura.

- Elisabeth Saldanha, meu santo.

O apostolo fitou-a com simpatia, e continuou no interrogatório:

- E que fizeste na tua vida, minha filha? A recém-chegada franziu a testa morena e perfeita, como se consultasse a si mesma.

- Não ouviste, filha? Que é que fizeste na tua vida?

Elisabeth ia, pela primeira vez, se atrapalhando, mas, recobrando a serenidade, indagou:

- Eu?

E, com um sorriso, que lhe abotoava a boca num beijo:

- Eu fiz... muitas visitas!

São Pedro sorriu, bondoso, e a grande chave rangeu, faiscando estrelas, na enorme fechadura dourada.

XXXIII

CHAVES E FECHADURAS

7 de abril

- Os senhores, conselheiro, os senhores, homens, - dizia-me, abanando-se pausadamente com o seu grande leque de plumas vermelhas, a linda viscondessa de Lima Freire, - os senhores serão, sempre, injustos com as mulheres, por que nem todos poderão compreendê-las.

- As mulheres são, então, o maior mistério do universo? - indaguei, com ironia.

A viscondessa sorriu da minha ingenuidade, e, sem dissimular a sua piedade pela minha ignorância, acentuou, bondosa:

- O conselheiro não me entendeu, ou não me quer entender. A mulher é um mistério, mas um mistério, apenas, para o homem que lhe não agrada. O símbolo da fechadura tão freqüentemente citado pelos psicólogos, constitui uma verdade indiscutível.

- O símbolo da fechadura?

- Sim; não o conhece?

E como lesse a curiosidade no meu olhar, contou-me, pausadamente, cerrando a meio os seus macios olhos de míope:

- Cada mulher é uma fechadura que só tem uma chave...

- Só? - interrompi.

- Espere aí! - pediu, impondo-me silêncio com o leque.

E continuou

- Cada mulher é uma fechadura, que só tem uma chave, a qual está nas mãos do homem que a tem de amar e que tem de ser amado por ela. Outros passarão sob os seus olhos, tentando abrir-lhe o coração. Abusando da sua inexperiência, um ou outro poderá, talvez, penetrar no sacrário da sua alma, usando de chave falsa. Um homem, apenas, tem a chave verdadeira, e é somente quando a mulher se encontra com ele que se dá, realmente, a felicidade no matrimônio. Compreendeu?

Eu ia confirmar com um monossílabo, mas a ilustre senhora não me deu tempo.

- Cada mulher - continuou - devia esperar, de olhos fechados, como a princesa adormecida no bosque, o portador da chave da sua fechadura. É da impaciência de algumas que nascem, geralmente, os escândalos, os divórcios, a dissolução ruidosa das famílias legalmente constituídas. Supondo-se esquecidas pelo seu porteiro, elas cedem à primeira chave falsa, ou à primeira gazua, e casam-se. Mais tarde, aparece o portador da chave. E Já se vai, com esse encontro, a felicidade de um lar!

- Isso era antigamente! - observou, intervindo, o capitão Peixoto Cunha, que nos observava de perto. - Hoje não há mais portas com uma chave só.

E acentuou, rindo:

- As portas, hoje, são de trinco!

Nesse momento, chegava, pausadamente, o visconde, enrolando em torno do dedo grosseiro uma fina corrente de prata, em cuja extremidade chocalhava, numa argola, uma penca de chaves.

Estas eram seis, e abriam, todas, com a mesma facilidade, as duas gavetas da secretária...

XXXIV

O MONSTRO

10 de abril

Não é de hoje que eu me bato, na imprensa, e, pessoalmente, perante os empresários cinematográficos, em favor da exibição, nos cinemas, de "films" verdadeiramente instrutivos. Os romances de amor, as "fitas" que acabam em casamentos e beijos, devem ser substituídas, de vez em quando, por verídicos pedaços da natureza, que nos dêem, na sua grandeza e na sua inocência, uma sensação da vida real.

Os "films" desse gênero devem ser, entretanto, claros, fáceis, explícitos, não só na imagem, na reprodução viva da paisagem e das coisas que a animam, como nos letreiros explicativos, que devem estar ao alcance de todas as inteligências. Um episódio ocorrido há poucos dias em casa de uma ilustre família brasileira, após a exibição, no Pathé, da "fita" "Santa Cruz", da Comissão Rondon, mostra, de modo irrecusável, a força dessa necessidade.

Mandada vir de Hamburgo para governante de uma casa de família notável, Dona Edda, rubicunda viúva alemã, empregava a sua paciência teutônica, dia e noite, em aprender o maior número de vocábulos portugueses. Soletrando os nomes, e procurando identificá-los pelo conhecimento das coisas que eles representavam, não perdia a pachorrenta senhora um pedaço de jornal ou um dístico de cinema, que não soletrasse e traduzisse, ajustando a palavra à figura. E foi com esse intuito que, anunciado, há duas semanas, o "film" do general Rondon, correu ela ao cinema, conduzindo à mão, para as consultas indispensáveis, o seu pequenino dicionário ilustrado.

Com os óculos na ponta do nariz, acompanhava a neta de Lohengin a excursão pitoresca dos abnegados sertanistas, quando tomou um susto, ao aparecer, na tela, o primeiro jacaré dos lagos de Mato Grosso. Curiosa, esperou o intervalo, abriu o dicionário, consultou, viu que se tratava de anfíbios vorazes, que nasciam pequeninos e tomavam grandes proporções, anotou o caso, decorou o nome, e continuou a ver o "film" até o fim.

À noite, agasalhados os pequenitos da família, estava D. Edda, sozinha, na sala de jantar, quando, ao voltar-se, empalideceu: diante dela, na janela que dava para o Jardim, estava, a espiá-la, batendo a cabecita inquieta, uma pequena lagartixa de muro, uma dessas osgas minúsculas e inocentes, que se alimentam de moscas e habitam, no Brasil, às duas, e às três, os troncos das árvores e as fendas das paredes.

Ao deparar o réptil, que a fitava benignamente, a alemã deu um pulo, folheou, rápido, o dicionário, identificou o animalzito pelo aspecto, e correu, aflita, para o salão.

- Que é, D. Edda? Que foi? - acudiu, a jovem dona da casa.

- Uma "bicho", zenhorra!

E, apontando, com os olhos esbugalhados a lagartixa, que a fitava da janela, sacudindo a cabecita inofensiva:

- Um "crreança" de "jacarré"!...

XXXV

A "FESTA DOS OVOS"

14 de abril

O último número do "Pathé-Journal", que está sendo exibido em um dos nossos cinemas, registra, entre outros acontecimentos curiosos, a chamada "Festa dos Ovos", levada a efeito recentemente em Wilkes Barre, nos Estados Unidos.

Entre os divertimentos populares dessa pequena cidade da Pensilvânia, está esse, que é, realmente, pitoresco. Em um parque das redondezas, são escondidos cuidadosamente, nos ramos das árvores, nas raízes, na cavidade das pedras, nos montes de folhas e nos tufos de relva, milhares de ovos, que devem ser descobertos pela criançada das escolas. Conduzida, este ano, ao parque, e dado o sinal, a pequenada composta de sete mil colegiais, dispersou-se pela enorme planície arborizada, à procura dos vinte e cinco mil ovos escondidos. E era de ver a algazarra, o tumulto, a alegria bulhenta, com que aquele exército de crianças se lançava em todos os rumos, na ânsia de fazer a maior colheita possível!

O comendador Inocêncio Coutinho havia estado, anteontem, com a sua jovem esposa, D. Odaléa, no conhecido cinema da Avenida, e gozado, em gargalhadas enormes, o interessante episódio de Wilkes Barre, quando resolveu, ontem, reproduzi-lo em família, para afugentar, bonacheirão, o tédio da sua encantadora companheira. Com esse intuito, saiu ele do Banco de que é diretor e, dirigindo-se a uma quitanda das proximidades, adquiriu, aí, três ovos, que escondeu, cuidadosamente acondicionados, no forro do chapéu. Chegado à casa, foi gritando, logo, do vestíbulo:

- Sinhazinha? Ó Sinhazinha? Sinhazinha? Vem cá!

A esposa acorreu, displicente, e o comendador convidou, feliz, num riso largo, ingênuo, bonachão:

- Vamos fazer a "festa dos ovos"? Olha: eu comprei uns ovos, e os escondi, comigo. Se os encontrares, como as crianças do cinema, ganharás um colar novo, de pérolas, para as festas do Rei. Está feito?

Incentivada pela idéia do prêmio, a linda senhora atirou-se, sorrindo, à procura dos objetos que o esposo ocultara. Lépida, risonha, barulhenta como uma colegial, meteu as mãozinhas de neve nos fundos bolsos do marido, remexeu-lhe a bainha da calça, examinou-lhe a manga do casaco, passou, em suma, no comendador, uma revista completa.

E não os achou, a infeliz!...

XXXVI

APARÊNCIAS

17 de abril

Em toda a rua São Gabriel, naquele movimentado bairro operário, o assunto mais em evidencia era, há muitos dias, aquele: a saída furtiva, a horas altas da noite, daquela rapariga tão linda, desde que lhe morrera o marido.

- É uma falta de vergonha, D. Inácia, o que está fazendo aquela desalmada - informava, de janela para janela, a vizinha da direita. - Ainda ontem, à noite, eu fiquei de alcatéia aqui por dentro da rótula, e vi tudo: a atrevida esperou que se fechassem todas as casas, abriu a porta, espiou para um lado e para outro, e, como não visse ninguém, pôs um xale, e saiu. Imagine o que ela não foi fazer por ali...

- Dizem que vai para um clube dançar o maxixe com o Manoel português, - adiantava D. Inácia.

- A Vitalina, outro dia, quando voltava do baile do Alfredo, alta madrugada, encontrou-se com ela, que saía de casa. A desnaturada ficou tão envergonhada que cobriu o rosto, para não ser conhecida.

- Que mulher cínica! - terminava uma.

- Que falta de vergonha! - confirmava a outra.

Divulgada a notícia do escândalo, toda a rua ficava, horas e horas, à espreita, aguardando, pelas frestas das janelas, a saída clandestina da viúva. E quando esta desaparecia, ao longe, na esquina, as rótulas se escancaravam, as cabeças emergiam, e começavam as observações!

- Viu?

- Vi!

- Sim, senhora! Quem diria?!...

- Que escândalo!

- Que horror!...

Certa noite, porém, instigados pelas mulheres, resolveram alguns operários acompanhar de longe a notívaga, fiscalizando-lhe os passos, para desagravo do morto. Pé ante pé, espiando de canto em canto, escondendo-se pelos portais, andaram os homens de rua em rua, até que foram ter a um campo deserto, em frente a um mercado. E ali viram, enxugando os olhos rasos de pranto: a "pervertida" saía todas as noites, embuçada na treva, para disputar aos porcos, no monturo, uma fruta podre, para a fome do filho!...

XXXVII

A COBERTA

21 de abril

Não há quem não conheça, em todo o Brasil, a fecundidade da mulher cearense. Terra privilegiada e infeliz, em que a natureza, ao mesmo tempo, se destroi e se refaz, o Ceará constitui um caso curiosíssimo pelo modo por que aumenta, no meio das maiores calamidades, a sua população. À semelhança dos dragões fantásticos dos belos contos medievais, cujo sangue, ao cair na terra, se transformava em legiões de guerreiros, cada cearense que tomba de fome ou de sede, rebenta, no ano seguinte, multiplicado por dez. E daí serem freqüentes, em todo o Estado, os casais com vinte, trinta, e até quarenta filhos, que se espalham depois pelo mundo, honrando pelo talento, e dignificando pelo trabalho, o glorioso nome do Ceará.

As famílias de prole modesta que vivem no Sul, compreendem dificilmente como pode uma pobre mãe lidar com uma tribo tão numerosa. E, no entanto, nada mais fácil para o cearense. Eu conheci, por exemplo uma senhora daquela procedência, que descobrira um processo originalíssimo de fiscalizar o seu exercito de descendentes. Mãe de dezessete filhos, de um a quatorze anos, D. Josefa aproximava-se, à tarde, da mesa de cozinha, e partia, ali, uma ou duas rapaduras. Chamava os filhos e, deixando-os a comer, ia colocar-se ao lado do único pote dágua que havia na casa. Acossada pela sede, originada pela absorção do açúcar, a meninada corria, logo, a beber, enquanto D. Josefa os ia contando:

- Um. .. dois. . . três. . . quatro... cinco.. seis...

E assim por diante, até dezessete. Se havia apenas dezesseis, a bem-aventurada gambá-humana saía a procurar, como o pastor da parábola, a ovelha desgarrada.

D. Ifigênia de Medeiros, outra senhora que a seca de 1918 desterrou do seu Estado natal, possuía, entretanto, um processo mais simples. Casada em 1898, aos treze anos, com um fazendeiro de Itapipoca, teve desse consórcio abençoado, que durou seis anos, nove filhos, sendo quatro meninos e cinco meninas. Contraídas novas núpcias, no mesmo ano da viuvez (1904), com um tabelião de Sobral, forneceu D. Ifigênia ao Ceará, em mais cinco anos de matrimônio e caldos de galinha, sete meninas. Viúva pela segunda vez, casou em 1909 com um agricultor da serra de Uruburetama, a quem deu cinco meninos e cinco meninas, em nove anos. Perdido este terceiro esposo em 1918, recusou a fecundíssima senhora seis ou oito pretendentes que lhe apareceram, preferindo embarcar para o Rio de janeiro, onde se encontra desde aquele ano.

Apresentado a essa virtuosa nortista, que vive, hoje, em relativa abundância, perguntei-lhe, curioso, se ela não se confundia com tanta criança em casa.

- Eu? - atalhou, sorrindo. - Absolutamente!

E explicou-me o seu processo de evitar confusões:

- Eu adotei, para comodidade, o seguinte sistema: os filhos de cada marido usam roupa de uma cor. Os do primeiro, por exemplo, em número de nove, usam roupa de cor cinzenta.

E chamou para dentro:

- Lili? Iaiá? Amélia? Nenê? Totó? Bibi? Alfredo? Almerinda?

Aparecida a primeira parte da tribo, D. Ifigênia continuou:

- Os filhos do meu segundo marido vestem-se de azul.

E chamou:

- Teté? Lulu? Judith? Ester? Virgilina? Margarida? Sebastiana?

A segunda turma apareceu.

- Os do meu terceiro marido trajam amarelo.

E gritou:

- Jequiriçá? Pindoboçú? Coema? Jaci? Lindóia? Ubirajara? Peri? Iracema? Jacaúna? Guaraciaba?

O terceiro turno surgiu.

Evacuada a sala, D. Ifigênia sorriu; acrescentando:

- E ainda tem!

- Ainda tem? - exclamei, espantado.

- Tem, sim!

E entrando para o quarto contíguo, trouxe, nos braços, um pequenito de três meses.

Esse, nascido no Rio de janeiro, vinha embrulhadinho numa coberta de retalhos, em que se misturavam o branco, o azul, o preto, o amarelo, o roxo, o rosa, o pardo, o verde, o encarnado...

XXXVIII

A DERRADEIRA "MORADA"

24 de abril

O administrador do cemitério de S. Geraldo, Alfredo Costa Ximenes, residia, há anos, à rua Real Grandeza, quando, em março último, forçado a mudar de casa, foi alugar um prédio de segunda ordem, de que era proprietário o comendador Augusto Gonçalves Teixeira, que lhe foi dizendo, logo, sem circunlóquios:

- O aluguel da casa é quinhentos e vinte mil réis, fora a pena d'água e a taxa sanitária. Além disso para que eu lhe dê a chave, o senhor terá de pagar-me seis contos de réis, de "luvas".

Debalde o honrado funcionário da Morte chorou, suplicou, implorou; o comendador mostrou-se inabalável na sua exigência, e ele teve de arranjar, mesmo, as "luvas", para se não ver, de uma hora para outra, lançado à rua com a família.

Dois meses depois desse episódio, estava o administrador, uma tarde, no seu posto, na secretaria da necrópole, quando parou ao portão, buzinando e rolando, um cortejo funerário. Levada às suas mãos a papeleta fúnebre, o funcionário viu pelo nome, que o morto era, nada mais, nada menos, do que o seu senhorio, o comendador Gonçalves Teixeira e teve, de repente, a idéia de uma represália: chegou ao portão, onde o esquife já repousava, agaloado, na carreta do cemitério, e, recebendo da família a chave do caixão, mandou rodar o ataúde no rumo da sepultura.

Terminadas, ali, entre lágrimas e vertigens, as angustiosas despedidas da praxe, um filho do defunto mandou chamar o administrador, a quem havia dado a chave do esquife, para que fosse identificar o morto, e fechar o caixão.

- Pronto! - apresentou-se Ximenes, apertado na sua sobrecasaca preta. - Que desejam?

- A chave, - explicou um parente do defunto.

- Suspendam a tampa do esquife, - ordenou o administrador.

Um amigo abriu o caixão funerário, onde jazia, inteiriçado, vestido de preto o corpo do desventurado capitalista.

Ximenes passou, meticuloso, a vista sobre o cadáver, e, vendo-lhe as mãos nuas, cruzadas sobre o peito bojudo, reclamou, severo:

- E as "luvas"? Querem, então, que ele desça à derradeira "morada" sem as "luvas"?

E não entregou a chave!

XXXIX

A PUNIÇÃO

Il est des femmes qu'on ne devrait jamais épouser soi-même. On devait les laisser épouser par ses amis - Alfred Capus.

26 de abril

Molemente estirado no leito revolto, com a farta cabeleira de ouro em desalinho sobre o travesseiro em que se achava impresso ainda, o sinal de outra cabeça, a linda Julieta Erst acompanha com os olhos os movimentos do Dr. Cardoso Simas, que abotoa a botina, tranqüilamente, com o pé sobre uma cadeira. Olhando-o, assim, de costas, ela examina, desvanecida, a máscula formosura do amante jovem, cuja harmonia de espáduas se patenteia através da camisa de seda creme sob a cruz "grenat" do suspensório quando, de repente, a sua saudade lhe dita uma queixa:

- Vê, só, Eduardo, o que foi o resultado daquele arrufo em nossa vida! Se tu não tens brigado comigo, naquela tarde, nós nos teríamos casado, e, em vez deste amor cortado de sustos, de incertezas, de pecados, viveríamos, agora, um junto do outro, sem temores nem pesares!

O rapaz continua, de costas, abotoando as botinas e a moça insiste, aconchegando o lençol, com os olhos nele:

- Seria uma vida ideal; não achas?

- Talvez... - aventura o moço.

- Talvez por quê?

E ele, explicando-se, displicente:

- Por que? Porque, se eu me tivesse casado contigo, estaria, agora, no escritório, enquanto que o Erst se acharia, talvez, aqui, na minha ausência, amarrando os sapatos!

E, sem olhar para trás, continua, em silêncio, abotoando a botina...

XL

O NABABO

28 de abril

De regresso de uma excursão pelos subterrâneos da alma humana, um escritor louvava, certa vez, entre as virtudes que lá descobrira, o pecado da Vaidade. Esse defeito, na sua opinião, era o mais vantajoso de quantos possui o Homem. Foi pela vaidade de possuir um nome ressoante que Colombo descobriu a América. E é a Vaidade, ainda, que dá de comer aos humildes, utilizando nas oficinas milhões de operários, que tecem a seda, fabricam os leques, esculpem as jóias. Tudo, na terra, é Vaidade, e só Vaidade, afirma o Eclesiastes. E Pascal adianta: a Vaidade está de tal maneira inveterada em nosso coração, que os próprios filósofos não lhe fogem ao império: aqueles que escrevem contra a glória, querem a glória de haver bem escrito; e aqueles que lêem, querem a glória de ter lido.

Há, entretanto, um gênero de Vaidade que não tem, sequer, essa atenuante: é a do pavão que se espaneja sem cauda, a que repousa na mentira, na falsidade, no ridículo, a que procura, em suma, viver dos juros sem um risco evidente do capital, e da qual é sacerdote, no Rio de janeiro, o conhecido "gentleman" Dr. Alfredo Pereira da Cunha.

Modesto de posses, vivendo de um emprego que lhe dá dificilmente para as despesas imprescindíveis, esse meu jovem amigo tem uma fraqueza: pertencer ao número dos cavalheiros irrepreensivelmente elegantes, equiparando os seus coletes aos do Dr. Villaboim, as suas gravatas às do Dr. Darcy, os seus colarinhos aos do Dr. Galeno Martins, as suas botinas às do Dr. Arnaldo Guinle, os seus ternos aos do desembargador Ataulfo, as suas camisas às do Dr. Humberto Gotuzzo, e, até o seu monóculo de vidro ordinário, ao monóculo de cristal puro do eminente Dr. Leão Velloso. E tudo isso com a circunstância de atribuir-se tudo - coletes, gravatas, colarinhos, botinas, ternos, camisas, monóculos, - em quantidades verdadeiramente atordoantes. Dessa forma da sua vaidade, há uma demonstração curiosa, em que eu funcionei, há dias, como testemunha involuntária.

Sentados um diante do outro, tomávamos nós, no Alvear, o nosso chá das cinco horas. quando me chamaram a atenção, na elegância americana do meu amigo, uns arabescos em linha branca, traçados no cós da sua calça de flanela, no intervalo dos botões destinados ao suspensório. Curioso, apliquei melhor os óculos, e vi: era o número 846, em algarismos feitos a agulha, como esses que encontramos na roupa ao recebe-la da tinturaria.

- Que é isso, doutor? - indaguei.

O jovem advogado baixou os grandes olhos negros sobre o seu busto sem colete, em que a camisa de zefir se desfiava em alguns pontos com uma elegância de varanda de rede, e explicou, com um sorriso superior:

- É o número da calça.

- Você tem oitocentas e quarenta e seis calças? - estranhei, arregalando os olhos e parando a xícara a meio caminho da boca.

O Dr. Alfredo olhou-me com irreprimível piedade, e, lamentando intimamente a modéstia dos meus recursos, respondeu-me, apenas, num doce insulto à minha pobreza:

- Das de flanela...

E continuou, solene, a tomar o meu chá.

XLI

A CONFISSÃO

Em que se prova que certas perguntas inocentes, claramente feitas, valem, às vezes, por uma informação perigosa.

2 de maio

O padre Sebastião havia tido notícia, por intermédio do sineiro, que a sua paróquia, colocada sob a invocação de Nossa Senhora do Retiro, se achava minada, solapada, anarquizada, pela corrupção dos costumes. Segundo o depoimento dessa testemunha, o bairro estava semeado de casas duvidosas, onde algumas senhoras levianas se juntavam durante certas horas do dia rindo, dançando, palestrando com rapazes e velhos divertidos, que ali ficavam, até à noite, consumindo o seu tempo e gastando o seu dinheiro. Escandalizado com a denúncia, o virtuoso sacerdote chamou, uma tarde, o sacristão e recomendou-lhe:

- Francisquinho, nós precisamos agir, na freguesia, contra o demônio da corrupção. A seara de Deus, que se mostrava tão prospera, principia a ser devorada pelas lagartas do Demônio. E nós precisamos trabalhar, meu filho!

O sacristão arrebitou o nariz para melhor farejar o escândalo, e o reverendo explicou o seu plano:

- É preciso que você, que conhece toda a gente, indague, por aí, quais são as casas suspeitas, em toda a paróquia. Veja o número dos prédios e venha avisar-me, para que ou tome as providências.

Francisquinho pegou no chapéu, sacudiu-o no cocoruto, e partiu, rebolando-se, pelas ruas do bairro, a indagar, de café em café, de botequim em botequim, de antro em antro, onde estavam situados aqueles focos de corrupção. E à tarde, informava, com a sua vozinha em falsete, a S. Revma. o vigário:

- Meu padrinho, descobri tudo; as casas são três: uma na rua dos Enforcados n. 29, outra na rua França Coelho n. 417, e outra na travessa de Santa Apolônia n. 46. E é só.

Padre Sebastião tomou nota em uma das folhas do breviário, decorou, depois, um por um, o nome das ruas e o número das casas, e, no dia seguinte, foi, como de costume, confessar e absolver os fiéis.

Estava ele no confessionário, ouvindo, peneirados no crivo de ferro, os pecados do seu rebanho, quando percebeu na última dama que se ajoelhara à sua frente, uma das senhoras cuja virtude não lhe merecia grande confiança. Cauteloso, o sacerdote, em certo momento, indagou:

- E você, filha, nunca abandonou o seu lar, para ir à rua dos Enforcados n. 27?

- Não, senhor! - gemeu a moça.

- E à rua França Coelho n. 417?

- Também, não, senhor! - insistiu a dama.

- E à travessa Santa Apolônia n. 46? - tornou o pároco.

- Não, senhor!

Padre Sebastião absolveu a linda ovelha impoluta, e, como não tivesse mais ninguém a confessar, deixou-se ficar no confessionário a olhar para a porta da igreja, por onde ia sair a última confessada. De repente, abriu a boca, espantado: no portal do templo, a formosa paroquiana tomava nota a lápis, em uma carteirinha, que exumara, ali, de uma custosa bolsinha de ouro. Desconfiado, o sacerdote encaminhou-se para a porta, arrastando em silêncio as suas moles sandálias de lã, e, chegando perto da moça indagou, interessado, com a sua santa voz de além-túmulo:

- De que é que toma nota, minha filha?

A dama, sem se aperceber da pergunta, respondeu, apenas, como se falasse a si mesma:

- Essas eu não conhecia, não!

E, guardando a carteirinha na bolsa de ouro, retirou-se, descendo os degraus.

XLII

POLÍTICA

6 de maio

Sentado diante do seu "bureau-ministre" coberto de telegramas e cartas, que lhe chegam, a todo momento, de toda parte do país, o grande chefe nacional dá audiência aos amigos. A situação do partido é, em toda a República, a mais lisonjeira, e é com a alegria no rosto e o orgulho no coração que ele recebe, um a um, como portadores de boas-novas, o enxame dos políticos correligionários.

As eleições para renovação da Câmara e recomposição do Senado haviam atemorizado um pouco o terrível politiqueiro indígena, pondo em perigo a sua poderosa máquina eleitoral. De tal modo havia ele, porém, se conduzido, sacrificando amigos e contemporizando com certos adversários, que emergia, agora, vitorioso, forte, insolente, como um homem que não transigiu um palmo e a todos esmagou pelo caminho.

Feliz e forte, ouve ele, embalando-se na cadeira de mola, as informações que lhe são carregadas pelo formigueiro que lhe mantém o prestigio formidável, quando entra no escritório, com familiaridade, um amigo particular. É um antigo senador afastado das lides partidárias, um velho companheiro que preferiu gozar em sossego os proventos da sua advocacia administrativa, um homem tornado independente e conhecedor do mundo, e que goza, por isso, de considerações especiais.

- Tu, por aqui? - exclama o chefe poderoso, arrancando o charuto caro e enorme da grande boca servida de dentes rígidos, sólidos, brutais, de antigo estraçalhador de carnes humanas.

O outro senta-se, abrindo um parênteses de intimidade na seriação de baixezas, de humilhações, de frases covardes, ouvidas pelo velho político naquele dia de audiências; e, a certa altura, entra no assunto que motivara a visita.

- O que me traz aqui - explica - é a situação do Belarmino; ele precisa entrar para a Câmara, e é indispensável que você o auxilie.

O grande chefe, habituado às incidências, aos sofismas, às expressões dúbias, balança a cadeira, lança para o teto uma nuvem de fumaça do seu charuto de sessenta mil réis a dúzia, e observa:

- Creio que não há nada contra ele...

E após um ligeiro silêncio:

- A votação não foi boa?

- Foi. Quinhentos e oitenta votos sobre o seu competidor.

- As mesas não funcionaram com regularidade?

- Perfeitamente.

- Houve protesto dos fiscais?

- Não.

- Eles não assinaram os boletins?

- Assinaram.

O chefe põe os olhos nos olhos do antigo companheiro, como a perguntar onde estava, então, a razão do seu temor, do seu susto, do receio de que o seu protegido seja sacrificado, e este esclarece:

- Há, porém, uma coisa.

O outro inquire com os olhos.

- Ele é casado com uma mulher feia como um bicho!

A essa informação a fisionomia do velho chefe, que se mostrara, até então, satisfeita, risonha, jovial, muda de expressão. Três rugas fortes, pronunciadas, profundas, cortam-lhe a testa perpendicularmente, unindo a cabeleira às sobrancelhas de cerda. E, após um instante, compreensivo:

- Homem, isso, agora, foi o diabo!

E, aborrecido, como quem tem a certeza de que perdeu um deputado:

- Enfim, vamos ver...

XLIII

O AMIGO

8 de maio

O engenheiro Adriano Walsh havia chegado de viagem, e convidara para almoçar em seu palacete, no dia seguinte, o seu opulento amigo Dr. Polidoro Tavares, advogado jovem e competentíssimo que era tratado na família com as maiores considerações.

O almoço, nesse dia, correu delicioso. Alta, esguia, elegantíssima com os fartos cabelos de ouro arranjados com encantadora simplicidade, Mme Walsh mostrara-se, como sempre, deslumbrante de formosura e de espírito. Atordoada pela alegria do marido, os seus olhos, cinzentos e lindos, lembravam duas pérolas grandes e misteriosas, luzindo, magníficas, entre os canteiros de violetas das olheiras. Vestida de linho espumante, o seu vulto emergindo, na mesa, do tumulto dos cristais e da baixela de ouro, era como uma grande rosa branca, em torno da qual fervilhassem, disputando-lhe o pólen, miríades de insetos faiscantes.

Após o almoço, quando o sol já sonhava, cansado, com o leito longínquo das colinas, os dois amigos tomaram o automóvel, e desceram, juntos, para a cidade. Na Avenida, saltaram, e caminhavam, palestrando, por uma das ruas transversais, quando diante de uma fabrica de móveis, o engenheiro estacou, preocupado:

- Diacho! - proclamou. - Minha mulher pediu-me para mandar concertar um móvel em casa, e eu não me lembro. Agora, qual é a peça da mobília!

- Não é o divã da alcova, que está rangendo muito? - atalhou o advogado, insensível.

- É isso! é isso mesmo! é o divã da alcova! - lembrou-se o Dr. Walsh batendo na testa.

E entrou na marcenaria.

XLIV

A LIÇÃO

12 de maio

- Toma cuidado contigo, Enedina! recomendava a bondosa D. Matilde, repreendendo a filha. - Essa mania de bailes, de festas, e passeios e esses vestidos muito curtos e muito decotados, podem prejudicar-te. É preciso um pouco mais de decoro, de zelo, de discrição. Isso, assim, não vai bem!

- Ora, mamãe! - respondia a linda moça, num muxoxo. - Mamãe não quer, então, que eu me case?

- Quero, sim; mas não é assim, indo a toda parte, e mostrando as pernas até os joelhos, e o colo até o estômago, que encontrarás um bom casamento.

A resposta era, porém, a mesma, com o mesmo estouvamento gracioso:

- Ora, mamãe!...

Sábado último, desejando oferecer à filha uma jóia custosa para as futuras festas ao Rei, veio D. Matilde à cidade, e parou, com ela, diante das vitrines da casa Adamo, na Avenida:

- Aquele não te agrada? - indagou, mostrando à moça um dos mais lindos colares da exposição.

- Não; não quero aquele.

- E aquele?

- Também não quero.

E convidando D. Matilde:

- Vamos ver lá dentro?

Entraram.

- Colares, de pérolas, ou de brilhantes, - pediu a conhecida senhora.

O dono da casa abriu o cofre forte, pondo-lhes sob os olhos um chuveiro de pedrarias.

- Quero este! - pediu a moça, batendo as mãozinhas, contente.

No automóvel, de caminho para casa, D. Matilde indagou da filha:

- Achaste, mesmo, esse colar muito bonito?

- Achei-o, sim.

- Mas havia outros mais bonitos, na vitrina.

- Havia.

- Por que não escolheste um deles?

E a moça:

- Mesmo. Porque estavam tão expostos, tão à mostra... Toda gente já os viu! Este, não; e, com certeza, há de despertar mais interesse, mais curiosidade! Não é?

A estas palavras, D. Matilde sorriu, carinhosa, e, tomando nas suas mãos enluvadas, as mãozinhas de neve da sua Enedina, observou-lhe, maternal:

- Minha filha, sirva-te isto, pela última vez, de lição. Os homens são pelas mulheres o que as mulheres são pelas jóias: preferem as que se acham guardadas, recolhidas, às que vivem permanentemente no mostruário, expostas a todas as vistas! Aproveita, tu própria, minha filha, a tua experiência!

E beijando-lhe a testa, bondosa:

- Sê discreta e modesta para seres desejada. Ouviste?

XLV

OS GÊMEOS

16 de maio

O piloto Alfredo Fagundes de Moura estava casado há pouco mais de seis meses quando, por determinação da companhia de navegação em que era empregado, teve de embarcar subitamente no "Capanema", antigo cargueiro alemão, para uma demorada viagem ao Mediterrâneo. A travessia, com os submarinos teutônicos a costurarem, como agulhas monstruosas e invisíveis, o manto verde do oceano, era, naquele tempo, arriscadíssima: o que, porém, mais afligia o jovem marujo, não eram os perigos, os riscos, a visão sinistra da morte nas águas, mas a saudade da sua encantadora Palmirinha, tão simples, tão doce, tão amada, e, o que era pior, tão sozinha no mundo, onde não tinha como amparo senão a coluna de ouro do seu amor.

A ordem de partida fora, porém, terminante: e, uma tarde, lá se foi o "Capanema", barra a fora, apartando, como um pastor de ovelhas irrequietas, o infinito rebanho das ondas. Dias depois estavam na Madeira. E os portos foram-se sucedendo: Lisboa, Gibraltar, Cadix, Marselha, Gênova... além de outros, pequenos, monótonos, secundários, a que eram forçados a arribar por imposição arbitraria das flotilhas inglesas de vigilância. E nisso gastou ele dezoito meses de trabalho e de saudade, ao fim dos quais ancorou, de novo, com a alma nos olhos, nas proximidades da ilha fiscal.

A alegria do casal não podia ser maior. Beijos, abraços, lágrimas de contentamento, foram os confeitos de coração na doce festa daquele encontro.

- Estás linda, meu amor!

- E tu, forte, corado, bonito!

E novos beijos estalaram.

Um mês depois, porém, começou a entrar na cabeça do Fagundes, batido pelo martelo de um pensamento mau, o prego de uma dúvida horrível: é que a sua Palmirinha havia dado ao mundo, oito dias depois da sua chegada, dois pequenitos miudinhos, mas perfeitíssimos, que a ciência conseguira salvar.

Aos olhos do piloto, habituado a ver longe, aquilo parecia incompreensível. Se ele estivera em viagem ano e meio e chegara apenas há quinze dias, como admitir o nascimento daqueles pirralhitos, tão bem conformados, e que tinham vindo de tempo? O melhor, em tal emergência, era consultar um médico, um entendido, e foi o que ele fez, indo bater à porta do Dr. Abelardo Meira, que morava no mesmo quarteirão.

- O meu caso senhor doutor, é este.

E contou o fato, palavra por palavra, sem omitir a menor particularidade. Ao fim de tudo, o médico fitou-o, indagando:

- Quantos meses o senhor passou fora?

- Dezoito, senhor doutor.

- E quantos filhos sua senhora teve, agora?

- Dois, gêmeos.

O especialista endireitou o "pincenez", pigarreou, tossiu, remexeu-se na cadeira, e inquiriu, sentindo-se vitorioso:

- Diga-me cá: com quantos meses nasce uma criança?

- Nove.

- Então, está aí! - exclamou o médico.

E batendo-lhe na perna:

- Está claro, homem de Deus! Duas crianças, dezoito meses, isto é, nove para cada uma. De que é que se admira?

O Fagundes sorriu, desafogado. E levando a mão à cabeça, arrancou, satisfeito, num gesto brusco, o doloroso prego daquela duvida...