Raul Pompéia

ANTES E DEPOIS

O salão entornava luz pelas janelas. No sofá, bocejava a boa gorducha d. Maria, digerindo sonolentamente o quilo do jantar. O seu digno consorte, o desembargador, apreciava o fresco da noite à janela, sugando com ruído a fumaça de um havana, com os olhos nos astros e as mãos nas algibeiras. Perto do piano, arrulavam à meia-voz Belmiro e Clara... Já se sabe: dois pombinhos...

O Belmiro estudava; tinha futuro, portanto; Clara... tocava e cantava...

II

- Belmiro, disse o desembargador, atirando à rua a ponta do charuto, manda Clara cantar...

- Cante, d. Clara, pediu Belmiro.

Clara cantou... Cantou mesmo? Não sei. Mas as notas entraram melífluas pelos ouvidos de Belmiro e foram cair-lhe como açúcar no paladar do coração...

- Esplêndido! esplêndido! dizia ele, fazendo chegar a umidade do hálito à face rosada da meiga Clarinha...

O desembargador olhava outra vez para os astros...

III

Rola o tempo...

Numa casinha modesta de S. Cristóvão, mora o dr. Belmiro com sua senhora d. Clara... Os vizinhos dizem cousas... ih!

IV

- Como vais, Belmiro?

- Mal!

- Mal?... disseram-me que te casaste com a tua Clarinha...

- Sim! sim!... mas, queres saber... de amor ninguém vive; é de feijões...

- Então...

- Devo até a roupa com que me cubro!...

- E o dote?

- Ah! ah! adeusinho...

V

É noite.

D. Clara está ao piano. Um vestido enxovalhado escorre-lhe da cintura abaixo, sem um enfeite. D. Clara está magra. No chão arrasta-se um pequenote de um ano, com uma camisolinha porca amarrada em nós sobre o cóccix.

Clara toca; e não canta, porque tem os olhos vermelhos e inflamados...

O dr. Belmiro vem da rua zangado.

- Não sei o que faz a senhora, gastando velas a atormentar-me!... Mande para o diabo as suas músicas e vá-se com elas!

A Comédia. São Paulo, no. 66, 21 maio 1931. (Da série "Uma história por dia".)