Raul Pompéia

NO MAR

I

Em volta de nós alargava-se um círculo d'água contornado pelo horizonte.

Era o Atlântico.

A noute caíra, uma noute esplêndida. O céu, recamado de cetim azul, cavava-se no alto, profundo e luminoso. Umas estrelas, de luz mortiça apareciam cintilando como cabeças de alfinete de prata e a lua desfigurada e enorme pela refração saía do oriente.

Havia oito dias que estávamos no mar, e cada noute fora para mim um espetáculo incomparável; nenhuma, porém, como a última. A pureza da atmosfera, o sossego das ondas, a tranqüilidade de bordo e o luar casavam-se tanto com o bem-estar de espírito em que me achava que eu me sentia impregnado de romantismo.

Estava sentado na coberta do vapor, sobre um caixão, que tinha (lembro-me ainda) as iniciais C.R. borradas com tinta preta. Levantei-me e me acerquei da amurada.

Firmei no parapeito os cotovelos e pus-me a olhar e a meditar. Por um tapete deslumbrante desenrolado por cima d'água, vinham até o vapor os raios de um luar branco delicioso.

Comecei a ver nesse tapete uns rostos conhecidos, digo, uns semblantes que havia gravados no meu coração. Eram as minhas recordações.

Reconhecia minha mãe, reconhecia meu pai, reconhecia meus irmãos.

Pensei neles e refleti que, dentro de uma semana, estaria eu na Europa, longe, longe dos seus carinhos. Entristeci-me. Súbito, porém, como que senti no cérebro uma chuva de estrelas; principiei a distinguir em meio da noute as grandezas que eu ia encontrar no velho mundo, tão novo para mim. O Brasil e a Europa apresentavam-se distintos na esfera das minhas reflexões. De uma parte, um hemisfério escuro, mergulhado na sombria tristeza da saudade; de outra, um hemisfério radioso iluminado pela minha sede do desconhecido.

O tempo que levei nessas cismas não sei. Fato é que, ao despertar-me delas, vi a lua elevada bastante e o isolamento em torno de mim. Os passageiros, que por ali andavam passeando ao luar, se tinham recolhido; um ou outro marinheiro necessário às manobras mostrava-se, neste ou naquele ponto, como uma sombra...

Ouvi, então, um suspiro abafado.

Cousa esquisita! Um suspiro ali pertinho, um suspiro que me pareceu escapado a um peito amante e a uns lábios formosos de moça poética...

Voltei-me para ver quem era.

A uns oito passos de mim, estava alguém, encostado à amurada como eu e olhando para o mar como eu estivera. Sonhei logo mil romances. O luar clareava um rosto de mulher, não deixando contudo ver-lhe a beleza. Do corpo, pouca cousa aparecia, oculto como se achava na sombra da amurada. Dirigi-me para a suspiradora.

Ela não mostrou perceber o meu movimento. Possível me foi examiná-la.

Era uma linda jovem de dezesseis anos presumíveis. Tinha uns olhos grandes, encantadores, voltados para o mar e uma pequenina mão encostada ao veludo rosado da face.

Trajava de azul, pareceu-me.

Lembrei-me de que, nas minhas cismas, não se me afigurava um rosto como o dessa visão, desse anjo.

É que meu coração não fora ainda penetrado pelas ternuras do amor e eu me habituara no Brasil a ver, nas mulheres, mulheres. Entretanto, naquela que ali estava eu via um anjo.

Esse anjo voltou os olhos para mim.

Vi de frente o mais belo rosto de menina que pudera idealizar.

Tinha cabelos castanhos e a tez entre o moreno e o alvo, isto é, da cor mais simpática do mundo.

O anjo sorriu-me furtivamente...

Eu vira aquela mulher uma única vez a bordo. Fora no dia seguinte ao do nosso embarque. Notara-lhe a beleza simplesmente. Desta vez, entretanto, um interesse excepcional levava-me para ela.

Sorri-me ao seu sorriso.

A linda criança envergonhou-se. Baixou o rosto. Eu estendi o braço e tomei-lhe a cintura. Ela não se ofendeu.

- Como se chama o senhor? perguntou com a voz comprida, balbuciante.

- Júlio, disse eu... E a senhora?

- Júlia, disse-me ela.

Oh! que não sei como referir ao leitor a doçura que me derramou no peito esta coincidência.

Júlia gozou também, com isso. Senti-lhe o braço redondo apertado pela manga do vestido cingir-me o pescoço com força. O meu corpo e o dela estavam achegados um do outro. As palpitações do meu coração encontravam-se com as palpitações do seu coração.

Saboreei num instante todas as alegrias de um amante feliz; e perante a presença da lua, como um namorado da antiga escola, depus no rosto abrasado da formosa Júlia um beijo... demoradamente...

Mais um aperto de mão e separei-me do meu anjo...

II

Dous longos dias se passaram, sem que eu tornasse a ver a minha Júlia, o meu primeiro amor...

Comecei a ter remorsos de não haver perguntado à mocinha quem eram seus pais, quem era ela, dizendo-lhe quem era eu também. Não quis informar-me para não despertar suspeitas. Resolvi esperar.

Debalde porém, postei-me à noute no lugar da minha entrevista.

Júlia não voltou.

Na terceira noute depois do momento mais feliz que tive na minha viagem, vi um homem dirigir-se para mim. Um marinheiro.

Vinha sério e como que tímido.

Cumprimentou-me, cumprimentei-o.

Eu estava à proa do vapor, vendo as ondas passearem à luz do luar, que continuava admirável como na noute de meu beijo. Era tarde.

- Sr. Júlio, disse o marujo, chamando-me pelo meu nome, sem querer, eu o vi, noutro dia, beijar uma moça... Queira acompanhar-me... vai ver uma cousa interessante talvez para o senhor...

Fui com o marinheiro para o tombadilho.

- Fique aqui e espere, mandou ele, indicando a entrada do beliche de um meu amigo de bordo... solteiro e folião...

Mal acabara o homem de falar, vi sair do beliche uma mulher...

Júlia!

O marinheiro olhava-me com um ar compadecido. Juro que tive ímpetos de dar uma bofetada neste homem de bem.

III

Momentos depois, pensa o leitor que estava eu resolvido a suicidar-me?...

Dei uma gargalhada.