Raul Pompéia
ÚLTIMO CASTELO
(Dramas Fluminenses)
Álvaro, o grande Álvaro devia realmente sucumbir, esmagado sob as ruínas d'alguma das soberbas construções levantadas à força de imaginação, em meio da noute dos seus sonhos.
Passava através da vida, absorto em concepções estranhas, olhar vago, observando sempre uma aparição espantosa, que ninguém via e que, para o sonhador, brotava do chão, viva, colorida, vibrante; e voava-lhe em torno, às vezes como um bando de pombas risonhas e festivas, às vezes como tristes pterodátilos infernais de pesado vôo e vastas asas negras! Com a variedade das aparições, variava igualmente a expressão do semblante do poeta, ora doce sorriso inexplicável de louco satisfeito, ora profundo pavor de visionário em êxtase de contemplações horrendas...
Pobre Álvaro!
A rua do Ouvidor conhecia bem os esgares extravagantes, os bracejamentos exagerados, espécie de caricatura violenta e inimitável de alta tragédia, que o saudoso Álvaro desempenhava febricitante em qualquer esquina, ao correr da palestra, como um desalmado, tomando os assuntos pelos cabelos, apunhalando-os no ar, com a fúria de uma eloqüência sanguinária, funambulesca, apoplética e atirando-os afinal, remoídos exangues, aos pés dos ouvintes, horrorizados e deslumbrados.
Álvaro dispunha verdadeiramente de um gênero de elocução como nunca se conheceu.
Criticava os dias e os fatos, evocando brutalmente as concepções poéticas do passado e os heroísmos arcaicos adormecidos nos museus da história. Verberava um ministro, atroando-lhe os ouvidos com o fragor épico das armaduras de Homero, ou pegava-lhe nas abas douradas do fardão e o lançava por cima de uma boa distância de séculos, coberto de motejos, ao riso escancarado dos crocodilos de Ganges.
E não somente nessa eloqüência tempestuosa irrompiam os vulcões do seu espírito. Ele era um poeta trovejante e indomável, que sabia talhar estrofes imortais em blocos de lava ainda quente, transpirando ainda a vitalidade renitente da ignição das crateras!
Liam-se aqueles versos, como se o livro escaldasse, como se as linhas do poema exalassem incêndio; e o leitor ofegava, sentindo na fronte a cálida irradiação da estranha obra, simultaneamente maravilhado e exausto.
Um cérebro construído desta sorte não pode necessariamente fraternizar com a parvoice poderosa e grosseira das misérias da vida. Há de viver em esfera superior, à parte, ou sucumbir, afogado em vulgaridade, nessa vulgaridade uniforme, imensa, que enche o quadro social e que é rasa como um pântano, estéril como um deserto...
O grande Álvaro, devia acabar, esmagado pelos escombros rodianos d'algum dos castelos da sua imaginação...
Álvaro sonhara muito, mesmo porque sonhará sempre. E vira muitos dos seus sonhos, sem mais a tinta azul e os nevoeiros da simples idealidade, palpara muitas das suas visões, acorrentando com uma força de vontade exaustiva e rara as dificuldades brutas do mundo hipogrifo possante da imaginação que possuía...
Uma vez, saciado da boêmia, sonhou ardentemente as alegrias do lar, as doçuras da família, os poemas vivos do amor conjugal, a paternidade e todos os enlevos que advêm...
Foi este castelo o mais rico que lhe agitou o espírito em toda a sua vida... Ter uma filha, que lhe dissesse a cada instante: papai! papai!, saltando-lhe aos joelhos, vestidinha de branco, com uma fita ao cabelo, ruidosa como as aves e meiga como os anjos!... Ter uma esposa adorável e adorada, que lhe prometesse, através de uma crepitação de beijos, outras filhinhas, uma ninhada de criaturas como a primeira... E toda aquela multidão de louros pequenos, cercando-o com o seu amor e com as suas risadas cândidas, bulhentas!
Álvaro entrou em campanha, para concretizar este sonho. Foi uma campanha memorável de ardor e entusiasmo.
E triunfou!
Uma bela manhã, as folhas noticiaram o casamento do poeta, desejando todas, uníssonas que, diante dos passos dos felizes noivos, houvesse sempre, interminável e franca, uma estrada de rosas e prosperidades.
Veio realmente a estrada; houve muitas rosas, muitas prosperidades...
Álvaro gozou a suprema doçura de ter um filho, um lindo filho corado e forte. Não se descrevem as explosões do poeta, os delírios, as febres que lhe acendeu n'alma aquele acontecimento. Já tinha um filho!...
Cada vez que narrava o caso a um amigo, uma ode faiscante fugia-lhe dos lábios, espantando os transeuntes, como o escândalo dum meteoro.
Infelizmente passaram as rosas, deixando apenas a coroa de espinhos dos entrelaçados galhos; e das prosperidades, apenas a saudosa recordação...
Álvaro descobriu que a esposa adorada o traía...
Pela primeira vez em sua acidentada existência o expansivo e estrepitoso rapaz conteve natural tendência do temperamento. Encarcerou heroicamente, no fundo do espírito, a tempestade rábida do desespero. Todas as erupções foram refreadas e passou-se no íntimo do poeta a convulsão incalculável que se daria, se um vulcão engolisse para as entranhas da terra os vômitos de fogo que lhe ferviam na boca.
Foi uma espécie de calcinação pelo abrasamento concentrado. O poeta sucumbiu.
A loquacidade vertiginosa do pobre Álvaro extinguiu-se de súbito. Sobre a mobilidade dramática do seu rosto, passou uma refrega de vento glacial, que lhe fixou na fisionomia um rictos congelado de espanto inalterável, profundo, e uma palidez fantástica de morto.
Ninguém houve que penetrasse o mistério daquela transformação. Álvaro sepultara em sua alma a desventura, como o cadáver duma ilusão trucidada. E os vermes deste cadáver roíam a vida ao poeta, e o poeta ocultava as dores no silêncio absoluto, como sob a discrição duma lápide de mármore.
Macerava-lhe, sobretudo, o espírito a fatalidade que resultava da catástrofe.
Sonhara viagens extraordinárias ao Egito, à Palestina, às Índias; e as tinha realizado; visitara as areias amarelas, cálidas e sem termo da planície africana, por onde trota o camelo, fustigado pelo sol, aspirando sôfrego as emanações do oásis distante; fora às florestas da Ásia, que o elefante percorre, dominado pelo cornaca, levando adiante a tromba poderosa, como uma serpente colossal cativa; vira o teatro das grandes cousas do passado, nas ruínas venerandas do oriente!... Sonhara deleitosas amantes, que soubessem abraçar como os polvos e como as deusas, amando e devorando, sequiosas e insaciáveis; sonhara o luxo europeu, abundante e caprichoso, o convívio dos grandes espíritos, a supremacia literária; e tudo tivera à mão, concreto e tangível...
Só aquele doce ideal da família, das venturas tranqüilas da paternidade, o mais santo enlevo do seu espírito sonhador e altaneiro é que havia de degenerar miseravelmente, numa vergonha atroz; só este ideal lhe havia de cair aos pés como um anjo prostituído!
Álvaro, desalentado, pediu socorro ao vício. Era mister aturdir-se. O jogo, a crápula, o vinho, qualquer cousa que atordoasse e aniquilasse! Contanto que lhe não fosse dado assistir em si mesmo ao desmoronamento que lhe destroçava as boas ilusões antigas.
Abandonou a casa. Vinha só de tempos a tempos, abraçar o filho.
Mais desembaraçada, então, dos tropeços que sempre aduz a presença do cônjuge, a esposa dava largas aos seus instintos alegres de borboleta.
Raciocinava, em satisfação à consciência, que era bien triste o marido. E tinha melancolias. Alguns amigos do tirano, compadecidos até à lágrima, dispensavam à vítima a mais terna e desinteressada proteção...
Extenuado de excesso e sofrimentos, o infeliz Álvaro enfermou gravemente. Foi bater a um hospital.
- Tem família? perguntaram-lhe.
- Não tenho família!
Numa triste enfermaria, povoada de gemidos e emanações infectas, esteve o doente algum tempo. Tinha delírios, de quando em quando, durante os quais relampeava por momentos um ou outro clarão do seu espírito, mortiço reflexo,. apenas, de sol posto.
E lá morreu.
Antes de morrer, ergueu-se; quis abandonar o leito. Contiveram-no. Estava mais branco que os lençóis, crescido os cabelos, a barba abundante. Barba e cabelo cercavam-lhe o rosto d'uma moldura negra, contrastando fortemente com o alvor da cútis e acentuando mais aquela palidez espantosa.
Olhou em roda do leito, movendo a cabeça, mas com os olhos parados.
Os enfermeiros em grupo observavam com assombro a atitude do extraordinário doente.
Álvaro sem articular um som, fez grande gesto com a mão, imperioso e solene, mandando embora os enfermeiros.
Os empregados do hospital afastaram-se dous passos e continuaram a ver.
O enfermo levantou a fronte, baixou-a depois lentamente, cravando um olhar, de través, terrível, num ponto do espaço; encolheu os ombros, contraiu os braços, crispando medonhamente os dedos. E descarregou toda essa violenta retração muscular num gesto único e supremo...
...............................................................
Ficou assim longamente, o braço direito, estendido para a frente, hirto, rijo e inexorável, apontando com o indicador nodoso e descarnado aquele objeto invisível que o seu olhar magnetizava e fulminava!...
Corte, 1884.